Ascese Mística

Assis, Quinta-feira Santa, 1937


Peregrino de dor e de paixão, eu me aproximo de Ti, Senhor.

Despedaçaste todos os meus afetos humanos; um a um; quiseste que somente o Teu amor permanecesse.

E quando o meu coração caiu por terra, ensangüentado, na estrada poeirenta, pisado por todos, Tu então o recolheste e me disseste: "Eu sou o teu amor. Somente a mim podes amaria.

Em mordaça de ferro comprimiste minha paixão; quando ela desejava explodir no mundo, Tu lhe fechaste todas as portas e a lançaste dentro de mim, para que, nessa constrição, se tornasse mais profundo e mais potente o seu lume e ardesse num incêndio sempre maior, e no íntimo inflamasse, chamejando até encontrar-Te, Senhor.

Dosaste o meu tormento, proporcionaste asfixia lenta, quiseste que eu me aproximasse de Ti por minha busca e por esforço meu.

Agora compreendo que ao Teu amor divino eu não poderia chegar senão pela dilaceração de todo amor humano.

A Ti não se chega senão pela tempestade, porque és o turbilhão e o poder, és a essência da força

Sinto que a chama do Teu incêndio se aproxima e lança labaredas sobre mim. De repente, uma delas me toca e se enrodilha  minha alma, aperta-a e agarra-a para atrai-la a si, no centro do incêndio.

figura  1 asece mistica

Afrouxa, em seguida, a pressão e me deixa recair nas coisas humanas, para retomar-me depois, outra vez, ainda outra, sempre mais forte.

Aquele incêndio me espera e eu nele cairei.

*   *   *
É a Semana da Paixão e aproxima-se a hora santa em que Tu, Senhor, na Tua agonia, lançaste ao mundo o grito da redenção e do amor.

Nestes dias espadelaste minha alma para que também eu vivesse a tua paixão de dor e de amor.

Sobre minha sensibilidade, vibrando e ressoando, passaram o choque brutal e o insulto feroz, e nela se hospedaram, submergindo-se com alegria na minha dor torturante.

Tu estavas presente e próximo, mas, por desgraça minha, eu não o senti.

A nova dor, porém reergueu até Ti minha sensação e nas profundezas do meu desgarre eu Te reencontrei, assim como tantas vezes eu Te perdi e na minha prostração vieste ao meu encontro e de novo me apareceste.

Que desejas de mim, Senhor?

*   *   *

Chego a Assis, ao anoitecer da Quinta-feira Santa. Sete velas e mais sete, em duas ordens bem visíveis, ardem, solitárias, na basílica de Francisco.1

Apagam-se lentamente, uma a uma, com um salmodiar longo e triste, em que chora a Igreja e o mundo suplica; lá fora, tristemente, o dia se extingue, filtrando sua agonia através dos históricos vitrais.

A sinfonia de liturgia, de luzes, de pranto, canta concorde uma lenta sonolência de morte em que se extingue a agonia da paixão.

Quando, porém, com a derradeira luz do dia se apaga a última vela, o último canto do salmo explode tão trágico e dilacerante, interrompido pelo triste batido das vergas no solo,2 que minha alma tempestuosa se abate, parque então ouço em mim gritar a dor do mundo que, súplice, chora com o Cristo que morre.

Já é noite. Ensombram-se os vitrais luminosos. Tudo está apagado nos altares nus. A Igreja, que nesta hora agasalha a dor de um Deus e a dor do homem, depôs seus ouropéis e se abate desnuda aos pés de Cristo.

Nesse ar triste, mas calmo; nessa atmosfera de dor, grande, mas consciente e resignada, escuto o clamor das multidões distantes, que não querem e não sabem sofrer; sinto o espasmo das marés humanas que a dor e a paixão perseguem e atormentam.

Minha alma treme.

Jaz abatida ao pé da cruz e olha, no alto, o drama de um Deus agonizante por amor. Somente o seu olhar me dá força para viver.

Vivo o Teu tormento, meu Senhor. Subi Contigo até a cruz; Tua dor é minha dor. Agonizo e morro Contigo.

Desejaria invocar piedade para todos, mas não tenho coragem. Não tens mais sangue para dar; morres nu e amaldiçoado e és inocente. Que posso pedir-Te mais por amor do homem?

Eu o sei: dar-me-ás ainda lacerações tremendas; mas, a cada novo rasgar-se de minha carne, eu Te direi: "Por amor de Ti, Senhor

E quando, já sem forças, cair, e vir chegar até mim a carícia sedutora das coisas humanas, minha alma deverá recusar qualquer repouso ou conforto e dizer: "Por amor de Ti, Senhor".

Flagela diariamente meu espírito, para que ele seja desperto e pronto, ao Teu comando.

Com a minha renúncia alimentarei todo dia a chama de meu amor por Ti.

Não! Não é renúncia, não é dor: é expansão e alegria. "É por amor de mim, Senhor".

Que posso eu fazer? Agora, é inútil resistir. Precipito-me em Ti, Senhor; as órbitas se comprimem vertiginosamente; a maturação prossegue no mundo e em mim por caminhos opostos.

A hora é intensa para todos. Não se pode detê-la. Preparada, já há tempo, precipita-se. Eu temo olhar.
*   *   *
O cerco se aperta. O drama da Paixão de Cristo se faz intenso dentro de mim; o drama das tempestades humanas acossa quem está lá fora.

Desço à  cripta e me abato aos pés do túmulo de Francisco.

Apossa-se de mim, plenamente, o espírito do lugar, tão forte que me lança por terra. Apoio sobre a pedra desnuda a fronte em chamas, para acalmar a febre e abrandar o incêndio.

Conduziste-me até aqui. Para que? Que queres de mim, Senhor?

Começo a balbuciar: "Toma minha alma".

Estou à espera, vibrando, em tensão, sem palavras.

Recordo. Já me disseste numa hora de trevas: “Segue-me, segue-me”.

Paira sobre mim algo de grave e de grande que eu não sei. Sinto solene a hora. Estás perto de mim, é Cristo, eu Te sinto. Francisco é uma força viva, vibrando daquele túmulo, e me contempla e me ajuda.

Algo de potente, de imenso, quer subir das profundezas de meu coração e não pode. É intenso demais para suas forças. A idéia se agita, comprime-se para explodir, busca a palavra que a expresse, que a engaste em sua última forma.

Finalmente, emerge a voz e minha alma grita: "Senhor! Eu Te seguirei até à  cruz!"

Então, sinto dentro de mim, a cantar: "Tu estás no centro de meu coração".

Minha alma, liqüefeita em lágrimas de júbilo de amor e de paixão, prostra-se, sem forças.

Naquele instante, porém, ressoa do alto, do templo superior3, da igreja baixa pintada por Giotto, no cântico que salmodia até ao vértice de sua paixão, ressoa, como raio a ecoar toda a explosão do meu tormento, condensando minha tempestade, ressoa, no clamor da música e das vergas batendo no solo, o grito derradeiro do Cristo que morre.

Esse grito me atinge e me fere. Alguma coisa se dilacera em mim; abre-se uma fenda em minha alma.

O extremo apelo me convoca: é o lamento do Cristo, é a dor do mundo, é uma convergência, em mim, de forças superiores e inferiores; sinto minha alma fugir-me, arrebatada num vértice de forças titânicas, sinto a Voz instar dentro de mim e repito: "Senhor, seguir-Te-ei até à cruz".

Estou esmagado pelo peso de uma promessa solene.

*   *   *
Torno a subir à  igreja média, pintada por Giotto.

Apaga-se a última vela. É noite. Ouço ainda mais perto, dentro de mim, a repetir-se, o grito do Cristo a morrer.

Ele aqui está, no momento, presente.

Rasga-se, então, ante meus olhos, a visão da Terra e do Céu.

O Céu chora a agonia e a .paixão de amor de um Deus, a Terra treme, convulsa, no pressentimento de um vendaval sem nome

O drama do homem e o drama de Deus se conjugam nesta hora suprema de paixão.

Olho, atemorizado. Vejo um turbilhão de forças que se projeta para a Terra e vejo a Terra sacudida, agitada, submersa num mar de sangue.

É a hora tétrica da paixão do mundo. E parece sem esperança. O cerco estreita-se cada vez mais; bem depressa estará fechado e tarde será para escapar à compressão.

A mão do Eterno empunha o destino do mundo; estão prontas a desencadear-se as forças para o choque fatal. Esta próxima a hora das trevas, do mal triunfante, da prova suprema. Feliz quem não for vivo, então, sobre a terra.

O amor de Deus deve retrair-se um momento, para que a justiça seja feita e o destino, desejado pelo homem, se cumpra.

Há algum tempo, eu já disse — preparai-vos, preparai-vos — e não ouvistes. Em breve, será demasiado tarde.

O drama está próximo, eu o sinto, torna-se meu, toco-o, ressoa desesperadamente no mais íntimo de meu espírito.

Repito: "Toma, Senhor, minha alma".

E três vezes repito: "Senhor, ofereço-te a mim mesmo pela salvação do mundo".

"Seguir-Te-ei até à cruz".

Três vezes repito e sinto que Tu, Cristo, me escutas me aceitas e que estou unido à Tua paixão.

Compreendo que me guiaste até aqui, ao templo de São Francisco, para que, sobre Seu túmulo, próximo Dele, eu Te repetisse esta nova promessa, solene, decisiva, após a primeira, após cinco anos de duro caminhar.

Compreendo que Tu esperavas esta minha nova dação, porque agora um peregrinar mais áspero se inicia e um esforço mais árduo me espera.

O cântico cessou depois de seu último paroxismo.

Todas as luzes se apagaram. O templo está em silêncio, no escuro.

Minha alma atinge, junto à alma de Cristo no Getsêmani, sua última desolação.

Abala-me o último estalido das vergas batendo no solo.

Naquele instante, verdadeiramente senti a terra tremer.

*   *   *
Como era belo contemplar, lá fora, antes do ocaso, sobre o doce e extenso vale úmbrico e os reflexos do Tescio4, os pinheiros ondeando ao vento, contra os diáfanos esplendores da distância!

E, mais tarde, a lua cheia surgindo do Subásio5, a mole do templo, irreal entre pálidas luzes, e a imensa campina adormecida.

Hora de doces colóquios de espírito com a alma do criado, no intenso pressentimento de primavera. Hora de ternas recordações para mim, nesta doce terra de Assis, onde tão profundamente tenho vivido e que tanto tenho amado. Hora em que o Céu e a Terra refletem, amigos, um sorriso comum e se estreitam num fraterno amplexo.

Parecem em paz, mas é aparência do momento.

Vive dentro de mim a visão da realidade

Eu senti verdadeiramente a Terra tremer.
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1 Nessa basílica giottesca celebra-se, nas tardes de Quarta e Quinta-feira Santas, ao crepúsculo, o "Oficio das Trevas", extremamente sugestivo pelo ambiente artístico, a liturgia e o canto solene, e sobretudo pela quase ausência de assistentes, que, pela sua distraída incompreensão, sempre perturbam. (N. do A.)

2 Refere-se o escritor a um rito litúrgico da Semana Santa. Ao traduzir "Passione", não entendendo esse trecho, recebi do Prof. Ubaldi a explicação do mesmo, em carta de 3 de maio de 1950. É um rito da Igreja em que se representa a Paixão de Cristo, de que faz parte a cena da flagelação ("scena deile battiture"), quando o Senhor foi preso a uma coluna e açoitado com varas. No rito, as vergas, longas e delgadas, batem no solo, exprimindo as flagelações impostas a Cristo. "Isso, — escreve-me o Prof. Pietro — produz um efeito lúgubre e triste. Naquela cena eu senti em mim a dor de Cristo flagelado pelas vergas". (N. do T.)
3 A basílica de São Francisco é composta de três igrejas superpostas A cena se passa na igreja do meio e na cripta que está em baixo, onde se encontra o túmulo do Santo. (N. do A.)
4 Torrente das proximidades de Assis. (N. do A.)
5 O monte Subásio, aos pés do qual está edificada Assis. (N. do T.)

 

Desfere-se o derradeiro cântico da vida.

És bom e grande, ó meu Senhor. Tenho-Te concebido em Tua infinita potência, no estupendo dinamismo do universo. Sinto, no entanto, que tudo em mim se acha exausto e já não sei senão isto: morro e amo-Te.

Ouço, como um grito dentro da noite, todo o turbilhão de meu corpo que não quer morrer. Elevo-me; porém, para Ti e digo: Senhor, sustém minha alma, sinto-me fatigado.

Para chegar a Ti Senhor, dilacerei minhas vestes sobre as sarças e as perdi ao longo do caminho: deixei, sobre os seixos da estrada, minha carne em farrapos e verti todo o meu sangue. Cobri-me de poeira e desfiz-me através de longa fadiga. Já não tenho lágrimas para chorar, nem voz para invocar-Te, nem forças para andar e para sofrer.

Enfrentei as forças titânicas da vida, para superá-las. Elas se rebelaram e fizeram de mim um farrapo. Tremi na solidão das noites de insônia; arrastei-me das vias de meu dever, de unhas e cotovelos, quando os pés já me sangravam. Tenho vivido para sofrer e tenho sofrido para amar-Te. Acreditei em Ti, sem que jamais pudesse ter direito ao sinal exterior, que persuade os sentidos. Amei-Te perdidamente, sem jamais poder experimentar a alegria do amor correspondido.

O último esforço da minha vida consiste em alçar meu coração para confiá-lo ao Teu seio, ó Senhor. É minha última dadiva.

*   *   *
Perdoa, Senhor, minha ânsia. Fraca é minha carne e atroz é a sua tempestade.

Sobe de minhas vísceras uma tristeza de morte; despedaçados se acham meus membros, submerge-me uma amargura inominável. Prostra-se-me a alma na luta extrema.

Ergue, Senhor, a criatura que Te invoca.

No limiar da morte, busco-Te com um olhar, para que me salve Tua vista.

Já Te vejo, esplendente, no fundo de minha dor e já ouço a voz de Tua ressurreição.

Morre-me o corpo e na profundeza da minha alma Tu cantas; no fundo de minha agonia física entoa-se o cântico da vida maior. Ele ressoa pelos céus, nas noites cintilantes. A fronde, no poente, sussurra-o para a fronde; a criatura, em carícias, transmite-o à criatura irmã e a onda repete-o para a onda, através dos mares ilimitados. Celebram-nos as luzes que cruzam o firmamento, propaga-o o raio tonante, irradiam-no os sóis e nele retumba e esplende o universo sem confins. O cântico sobe das coisas para mim, dilata-se na minha agonia, triunfa na minha morte.

É a minha vida nova. Deus de potência e de amor enfim, eu Te sinto. Jaz desfeito o meu corpo, minha alma, porém, chegou a Ti. Finalmente, no grande cântico do universo todo, ouço a voz do amor que responde: "Criatura minha, amo-te".

Ouço a voz de Deus cantar pelo universo; escuto os seres que respondem, num cântico sem fim.

Vejo a luz de Deus difundir-se e dar vida; vejo os seres nutrirem-se de seu reflexo e progredirem em fileiras sem fim.

Sinto palpitar no Infinito o ritmo da ordem divina; ouço ressoarem, de esfera a esfera, as harmonias da criação.

Extasio-me na música das coisas divinas; a Verdade desceu até minha alma.

O centro de minha vida retraiu-se para a profundeza, aí onde Deus a todos espera.

Superei os confins do ser, caídos jazem todos os véus. Atingi o derradeiro termo das ascensões humanas.

Rasgou-se o firmamento e Tu, Senhor, sublime, apareceste nos céus e enato, prostrei-me para adorar-Te.

Tu me arrebataste e eu, que Te reencontrei, vou entoando um cântico, de céu a céu.

Perdi, no entanto, a consciência de mim mesmo. Tu és tudo: eu estou em Ti e Tu estás em mim.

Em Ti, o nada que sou torna-se no tudo que Tu és. Ele se identifica em mim e eu me identifico n'Ele.

Para lá do mutável, alcancei o Imutável; para lá do relativo, atingi o Absoluto; para lá da diversidade, toquei a Unidade.

Perdi o senso da separatividade. Realizou-se em mim o mistério da unificação.

Já não me envolvo nas espirais da dor, porque Teu amor a venceu, Teu amor me redimiu.

Apoderou-se de mim, Senhor, Tua vontade e não sei distinguir-me, nem resistir.

Teu pensamento desceu a mim e já não sei pensar senão em Ti.

Venceu-me o Teu amor e já não sei amar senão a Ti.

Morri e depois ressuscitei. Pois que Tu vives em mim, eu revivo em Ti.

Tua mão, Senhor, a tudo sondou e revolveu na profundeza de meu coração, para tudo reconstruir. Tu Te colocaste no centro de mim mesmo, para aí procederes como dono.

Minha alegria consiste em abandonar-me em Ti, em não mais separar do Teu o meu minúsculo ser.

Sou transparente à Tua luz, que me invade por inteiro.

Vivo no ritmo da Tua ordem, que inteiramente vibra em mim.

Nutro-me de Beleza e da Verdade em que Tu fulges; Teu amor me sacia.

Estou em Teu regaço, ó Senhor, e já não quero reencontrar-me.

Contemplo o desígnio do universo, ausculto o respiro da criação, sinto em mim mesmo a ressonância de Teu pensamento.

Revelaste-me a urdidura divina de amor que rege os seres e neles Te reencontro; somos todos obreiros de um vasto organismo, abertos no afã de retornar a Ti.

Subir, subir, eis o cântico do universo. Teu amor a todos nos estreita, como irmãos

Vivo da Tua Lei, porquanto em mim esta a palpitação de Teu pensamento e de Tua vontade.

Na profundeza de minha alma reside Tua paz.

 

Que importa se ganhei ou perdi, se estou bem ou mal, se sou rico ou pobre, amado ou amaldiçoado, se Tu estas aqui, Senhor, e eu não me encontro mais sozinho, e Tu estás ao meu lado e me animas?

Que importa riqueza ou miséria exterior, se dentro de mim canta a magnificência do universo?

Que importa se nada mais possuo, se sou desprezado e ignoro meu amanhã, se atingi a fonte das coisas eternas?

Faz frio, mas eu me abraso porque me queima o Teu amor.

Esta escuro, mas eu enxergo porque me ilumina a Tua luz.

Tudo é silêncio, mas eu escuto a doce música da Tua voz.

Minha carne perdeu as forças no caminho do dever, mas meu espírito exulta.

Estão vazios meus sentidos, mas esta saciada minha alma.

De Ti esta cheio o universo e eu Te possuo.

Acorrei, criaturas irmãs! vinde alegrar-vos comigo; ajudai-me a cantar o cântico do divino amor!

Escutai: muitos, muitos anos estive sozinho, mas agora esta comigo o meu Senhor.

Muitos, muitos caminhos percorri, mas agora cheguei.

Muito, muito tenho lutado e sofrido procurando; agora achei e sou feliz.

Onde está meu desespero? Não mais o encontro.

Onde estão os espinhos dolorosos do meu tormento? Não vejo senão rosas...

Onde o rugir das forças desencadeadas do mal?

Vinde escutar. Canta dentro de mim a música da criação.

Vinde, ajudai a alegrar-me; não tenho forças para ser tão feliz!

Vinde, achegai-vos a mim, criaturas de Deus, auxiliai-me a cantar, a orar, a amar.

Compreendei o milagre. Eu estava encerrado num castelo de dor e o castelo desmoronou-se. Eu era cego e agora enxergo. Era surdo e agora ouço. Meu coração estava comprimido em mordaça de ferro e a mordaça despedaçou-se. Estava imerso num mar de gelo e agora me acho envolto num incêndio de amor.

Sobre minha fronte descansou o beijo do Eterno e eu ressuscitei.

Basta, Senhor! Reprime o êxtase do meu coração, que se despedaça...

Faz-me ainda sofrer, somente para que eu aprenda a amar-Te mais intensamente ainda!...

Pequei, Senhor. Mea culpa, mea culpa.44
Outrora, sorriam em mim, com o Teu sorriso, o céu e a terra. Agora, tudo se me afigura tétrico, melancólico e deserto; perdi toda luz e toda ressonância em minha desolação.

Morro, porque não posso viver sem Ti, Senhor.

Da profundeza de minha culpa, já não ouso erguer o olhar, nem sei tão pouco dirigir-Te minha prece.

Gela-se-me a alma, agora que já não me aquece Tua luz.

Sou desprezível. Sei que Te traí e Te reneguei.

Agora, ia não tenho nada para ofertar-Te, a não ser minha culpa.

Pronto estava o espírito para seguir-Te e ascender contigo. Mas, a carne recalcitrante quis volver ao lodo.

Ela me acorrentou em baixo e me venceu. Não tive forças para arrastá-la.

Horroriza-me a minha baixeza, porque ainda estas junto a mim e me olhas.

Olhas-me, como sempre, com um olhar feito de amor. Penetra-me a alma esse doce olhar de perda o e, todavia, mais do que qualquer exprobração, ele me aniquila.

Sobre o coração experimento o peso imenso do remorso de quem traiu seu mais doce amigo.

Ofendo-Te e Tu me acaricias; insulto-Te e Tu me perdoas; abandono-Te e volves a buscar-me.

Não te aproximes, Senhor. Não sou digno de implorar perdão. Não sou digno, Senhor.

Naquele tempo, Tu vieste ao meu encontro e me disseste: Tenho necessidade de tua alma. E eu, então te disse: Senhor, toma-me a alma.

No entanto, ela está maculada de culpas. Não te repugna descer sobre tal esterqueira?

Amo-te, disseste-me. E retomaste-me a alma repleta de torpezas, curaste-a com Teu amor. Só Tu, só Tu, Senhor, podias fazê-lo, não eu.

Outra coisa não possuo, nem outra criatura posso tornar-me.

Toma-me a alma, toma-me a vida. Ela Te pertence até o último respiro
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44 - “A culpa é minha, a culpa é minha”. Primeiras palavras de uma antiga oração da Igreja, o "Confiteor" (“Confesso-me”): o orante reconhece, diante de Deus, seu pecado, culpa ou responsabilidade (N. do T.)