O mistério da redenção é um mistério de dor e de amor. Para compreender, voltemos aos conceitos fundamentais. Já examinamos em outro livro 33 o fenômeno estupendo da anulação da dor através da evolução. A dor é o cansaço da ascensão, que laboriosamente leva a felicidade, que assim deve ser conquistada. Mas, se a dor faz a evolução, a evolução anula progressivamente a dor. Então, a anulação da dor se processa através da dor. Com seu exemplo, Cristo nos veio mostrar estes profundos aspectos da Lei. A dor é uma característica de determinada fase de nossa evolução, em que funciona necessariamente como agente de transformação; desaparece quando preenchida a sua finalidade, apenas seja alcançado um alto plano de vida. A dor é uma condição de vida inerente à matéria, durante a fase humana. Na desmaterialização do ser essa condição desaparece. A dor é uma dissonância que vem reabsorvida na harmonização; é uma densidade que se vaporiza na espiritualização. Cristo veio ensinar o caminho da superação da dor, através da dor e da espiritualização. Antes de Cristo a dor era feroz, terrível, sem piedade. Cristo fez dela a via mestra da ascensão, da liberdade, da redenção. Fez dela uma força amiga, indispensável para a conquista do nosso bem e da nossa felicidade. A fera inimiga suavizou-se, domesticou-se, é útil colaboradora: a coisa temida e maldita se faz santa e amada e nós a apertamos ao coração como um salva-vidas. Cristo derrubou e refez a concepção humana, fazendo do vencido um santo, um herói, um vencedor. Cristo desceu e se fez presente e sensível no fundo das almas que sofrem, irmanando-se com elas no Seu amor, tomando própria a sua dor, a cada dia, justamente como o fez sobre a cruz.

É um maravilhoso fenômeno que estou experimentando, este do superamento da dor, que Cristo ensina. É lógico que a dor, sendo um instrumento de ascensão, se destaque do eu quando a ascensão é terminada. É necessário, na ordem do universo, que a dor caia quando for superada a função evolutiva de prova e de lição. Quando tivermos compreendido tudo e com isso houvermos esgotado sua função de escola e de expiação equilibradora na ordem dos impulsos morais, então, ela cai, como as outras ilusões da vida. Então, não só não se verificam mais, por haver sido alcançada a medida do débito, as condições exteriores da dor, porque um assunto inútil aos escopos do bem está fora de equilíbrio (trata-se de equilíbrios automáticos ingênitos da Lei), mas advém um fato novo. Mesmo que a dor permaneça como fato exterior, advém por evolução uma tão profunda transformação de personalidade, que ela lhe escapa. A evolução, levando-a a uma fase nova, deu-lhe um novo modo de ser no qual a dor não repercute com as mesmas reações do nível humano; em outros termos, a ascensão levou o espírito a tal grau de harmonização (amor divino), que não existe mais dissonância que tenha força para a penetrar e alterar. Então, mesmo que permaneçam idênticas as condições ambientes, o choque daquela força não encontra mais impulsos antagônicos nem reações contra as quais se assanhe por sua expansão — e desaparece sem resistência. O instrumento receptivo mudou e bastou esta mudança de natureza, para que se transformasse completamente a gama de suas ressonâncias. Superpõe-se à consciência uma opacidade de audição; o espírito não responde senão àquela ordem de vibrações e a surdez naquele plano é substituída por um poder receptivo no plano mais alto do amor. O fato positivo e o fato negativo convergem para o amortecimento progressivo da sensação penosa da dor, na sensação gloriosa do amor. A mutilação do desejo e a compressão do sofrimento se transformam, então, na multiplicação e expansão do amor: a dor se muda em felicidade. Agora, a dor é amor, nisto se afirma e jamais se encontra a si mesma. junta-se a Cristo, ao amor que Ele nos trouxe — compreende e alcança a Sua redenção.

Grande e maravilhosa lei de equilíbrio e de justiça esta pela qual a dor, quando cumpriu sua função de levar a alma até a superação da animalidade — se afasta em silêncio! Quanto é sábia a lei de Deus, na qual o mal é confinado e submetido aos fins do bem; o sofrimento é justo e frutífero; a dor é condição de felicidade! Ela é uma força fechada no seu plano, da qual não se pode fugir; a liberdade só é possível subindo-se. A dor não pode atuar além do limite circunscrito pela Lei, onde se deve esgotar sua função de prova e formação da alma. Mais no alto não existe senão a dor do justo, que é coisa santa, livre, é missão, martírio, triunfo e sobretudo, amor.

O drama da paixão de Cristo, ponto culminante de sua descida, tocou estes pontos culminantes da vida humana, o núcleo central da lei no momento humano. Cristo nos revelou, na sua ação, o mistério desta reabsorção da dor em amor. Devo discorrer sobre estes problemas porque são eles a substância da obra do Cristo. Olhemos, porém, mais profundamente. Ele não veio apenas para ensinar. Veio também para pagar. Não somente para mostrar-nos o princípio da expiação necessária, mas para sofrer, Ele próprio, com Seu tormento, esta expiação. Ele não veio apenas para fazer-nos compreender pela palavra e pelo exemplo, este maravilhoso fenômeno que descrevi, do anulamento da dor, sua espiritualização e o rearmonizar-se de suas dissonâncias na harmonia do amor. Cristo não desceu apenas para ensinar-nos a possibilidade de uma libertação. Colocou-se no centro do fenômeno e o viveu. No centro da dor humana, que fez Sua. No centro da dissonância, para reabsorvê-la dolorosamente na harmonização do Seu amor. Fez sua a escravidão humana e teve que, com trabalho e sofrimento humano, conseguir a libertação. Fazer-se homem é imergir completamente, até o fundo, no plano humano, em sua atmosfera, em suas debilidades, em suas sensações; em sua iniquidade. Significa fazer própria essa iniquidade e por ela ter de responder, em Seu nome, diante da Lei de Deus. Assim, Cristo se fez culpado, em Sua Pessoa, pelas iniquidades humanas, devendo expiá-las.

O que aturde e assombra nossa compreensão nessa descida do Cristo é este aprofundamento de divindade na imundície da carne humana.

Somente se sabendo que Ele é Deus e é homem, pode-se compreender a vertiginosa grandeza desse ato e que tremenda força é, por isso, o amor divino.

Que necessidade poderia ter o Santo dos Santos de passar pelos caminhos da dor? Não por Si, decerto. Ele era perfeito. Não tinha necessidade de purificação, de ascensão ou de redenção. Mas, isso se tornou uma necessidade fatal, apenas Ele se fundiu na natureza humana. Toda carne e todo sangue parece terem ascendido com Ele, após Seu martírio de carne e de sangue, eternamente enobrecidos por esse contato.

Muitos dizem: Por que o tormento dilacerante da Cruz se Ele era Deus, o Todo-Poderoso?

Eles não compreendem que aquela dor é a sombra das culpas humanas que, sem essa expiação, não poderiam ser neutralizadas.

Cristo não quis, diante do povo que Lhe pedia o milagre, salvar-se e descer da Cruz. Não poderia fazê-lo, diante do Pai, que Ele representava. Não o poderia, perante a Lei, que Ele personificava.

Aceito o cálice, estreitados os liames, a paixão era um redemoinho de forças em movimento em que o Verbo se expressava. Cristo agia no coração da Lei e, com o arbítrio, se a violasse, teria negado a Si Mesmo.

O    povo que estava ao pé da cruz não compreendera esta fatalidade de paixão, esta inviolabilidade de princípios e como Quem a quisera, não poderia renegá-la. “Salvou os outros e não se pode salvar a Si mesmo!” - diziam. “Se é o rei de Israel que desça agora da cruz, e nós acreditaremos n'Ele!” O povo, que era o mundo, imaginava ser Cristo um homem que deveria pensar em si mesmo. Se o supunham um Deus, era no sentido de deus humano, cujo principal fim e uso do próprio poder seriam em sentido egoístico. No vértice de sua paixão, Cristo não existia para si. Da Cruz, olhava o mundo dividido por um abismo de incompreensão. O mundo imagina um Deus e uma lei à sua semelhança, não ainda perfeitos, que admitem modificação, retoques, arbítrio; confunde liberdade com licença, poder com abuso  — e não imagina que tudo isto desaparece quando se sobe. O mundo acredita que, como aqui em baixo, possam existir no Alto consciências isoladas e egoístas; que se substituam, segundo os caprichos, as ordens absolutas da Lei. E invoca o milagre como prova de poder, enquanto que o poder maior está na ordem.

Mas, este volume quer somente ser um ímpeto de fé e de paixão, um protesto de amor o veneração a Cristo; representa somente a primeira explosão de estados místicos na vida do autor. Aqui, nesse estado d’alma que, depois, será retomado e desenvolvido nos seus outros volumes, ele não quer, de nenhum modo, enfrentar o problema da essência do Cristo e da significação da Sua paixão e da redenção. Estes são problemas amplos que, para serem resolvidos, exigem uma preparação e uma explanação mais vastas. Serão considerados, com o maior amadurecimento que só se poderá alcançar nos últimos volumes da obra, somente nos quais estas questões poderão ser resolvidas definitivamente. Isto não se tornara possível senão numa explanação particular, em que todo o sistema ficará resolvido, especialmente no X volume: Deus e Universo e no último: Cristo. 34
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33 - A Grande Síntese, cap. LXXXI  A Função da Dor - (N. do A)
34 - Veja-se a nota do Prof. Ubaldi no final do cap. IX da II parte deste volume.
Convém acrescentar que os problemas referentes a natureza espiritual de Cristo, o Autor os expôs não somente no seu livro Deus e Universo (Cap. XIV - A Essência do Cristo), mas ainda em O Sistema e Queda e Salvação, que se lhe seguem e lhe são intimamente complementares. (N. do T ).