Um dia, em que meu espírito estava prostrado, pela demasiada intensidade de sua vida e jazia abatido pelo cansaço da carne, um espírito malvado, um semblante de Satanás, veio ao meu encontro com o olhar oblíquo, riu-me na face e sussurrou ao meu ouvido: "Palhaço!" Era mentiroso e parecia ter escolhido astutamente este momento para me colher em falta, tentando triunfar de minha fraqueza. Sentia-se forte, mas falava com a pressa do ladrão que rouba, que sabe ser breve a hora propícia que não volta depressa.

As forças mais baixas, apenas caia a tensão da ascese e se abra uma brecha na alma — podem surgir, por lei de equilíbrio. Eu estava prostrado e triste. O céu estava fechado e este era o conforto. "Palhaço" — ouvi repetir-me. "Onde está a tua força de espírito, o infinito, a harmonia da criação, a presença da Lei? Se és amigo de Deus, por que não desce Deus para te confortar?" O escárnio atroz dançava sobre o meu sofrimento. Estas são as horas tétricas nas quais os vastos horizontes se fecham, o céu permanece inacessível à  percepção, torna-se irreal e se evade no nada.

Então, o espírito do mal lançou-me ao rosto o sou hálito fétido e me disse: "Palhaço!" O mundo esplendoroso do espírito está longe. A carne esta ali, cansada e grita seu tormento. Nos meus ouvidos não há senão o ruído da derrocada de minha alma abatida. Atiro-me ao solo. Não sei mais orar.

Estes são momentos medonhos na vida de quem luta por um ideal. Formam-se na alma vácuos imensos e silêncios terríveis; passam-se horas de solidão e desolação nas quais o eu mais profundo se ausenta, deixando a alma cega e agonizante. O relâmpago da intuição me abandona, tenho medo daquela coragem que antes tudo ousava; a minha fronte está no chão e se lacera contra a pedra. É a revolta das forças biológicas, a desforra, a derrota de uma hora. Que esta acontecendo no íntimo? Por que Deus me abandona? Porque eu sei que naqueles silêncios sem nome e sem esperança estão os trajetos subterrâneos do caminho das ascensões; sei que destas anulações ressurgem as grandes massas túrgidas de pensamento e de paixão, emerge o vórtice maravilhoso onde esplendem todas as luzes. É no fundo desses abatimentos, quando a alma vive suas horas mais atrozes, que ela ouve a primeira nota de onde nascera a criação. Pois que fé e concepção jorram destes espasmos de alma que, para despedir centelhas, deve se atirar contra os penhascos ásperos e cortantes. Os meus pensamentos são gotas de sangue espremidas de um tormento interior onde minha alma se debate para fazer nascer a concepção. Esta floração de escritos é martírio e holocausto de cada dia. Cada afirmação espiritual é um pedaço de carne deixado sobre as sarças do caminho. Caminhar e sangrar é a vida do pensamento. Produção contínua significa sofrimento continuo.

Existem momentos em que a realidade brutal da vida, o mundo das imperiosas necessidades retoma a direção e recorda asperamente ao espírito livre a sua escravidão — que é a verdade do momento. A matéria tem as suas desforras, as suas vinganças tremendas. Reinam, então, as trevas, a mentira triunfa, o sarcasmo sorri, a incompreensão alarga-se. E o ignorante, o falso, o malvado que tem na mão os meios materiais, enfrentam-nos, gritando: "Dinheiro! Dinheiro! Eu sou o poder! Quem reina sou eu!" E então a terra é,. em verdade, um deserto sem esperança. A fonte seca, o canto emudece. As lagrimas caem sobre o solo seco e o egoísmo humano bebe avidamente a dor alheia. A idéia se dispersa ao vento, a fé dúbia escapa. E ele, o herói do pensamento e do amor, fica abandonado e só. Só, com os olhos arregalados na escuridão, onde a luz de seu sonho se apagou. Só, com o coração despedaçado ao qual do alto já não chega o amor; só, com a mente arruinada, onde o canto dos céus já não tem ressonância.

Era muito linda a embriaguez do sonho e a felicidade de imolar-se longe da terra. Vai, alma cansada, pela deserta terra, sem esperança. Deus te olha, mas o teu castigo é não vê-Lo mais. Deus te ajuda, mas o teu martírio é não o saber. Deus te ama, mas. teu tormento é não O sentir. Tua lira partiu-se. Em. teu coração há uma derrota de paixão que ia não sabe chorar. Aquele olhar cintilante de pensamento e de bondade abaixou-se, humilhado Aquele gesto estendido em ato de amor abateu-se, envilecido. Aquela cabeça que concebeu os mais altos conceitos da vida esta coroada de espinhos.

Não o conforteis. É a sua hora. As trevas se apressam em exauri-la; a dor se apressa em polir aquela alma com seus golpes maiores. Apressai-vos, forças do mal, porque estais encerradas no tempo que vos segue e vos destrói. O espírito se cala e se atemoriza, mas vós vos exauris. Ele se concentra, atrai a si as energias da vida e adquire forças com o vosso assalto. Acumula-se a reação e esta próxima a hora em que explodirá seu grito, para dilacerar as trevas e reencontrar a luz.

O espírito é um anjo que desceu de seus céus esplendentes sobre a terra. Para amar, tornou-se inerme e deixou longe, já não sabe onde, todas as armas de sua defesa e aparece, fragrante como uma flor, bom como uma criancinha. E chega ao inferno terrestre. Um riso de escárnio o recebe, um vento de tempestade dá o primeiro golpe naquela fragilidade de sensitivo. O doce canto que ele trazia consigo, cessa, destroçado. É preciso aprender a canta-lo aqui em baixo, no inferno terrestre. Aqui reina a matéria, plena de força, armada de esperteza, conhecedora de estratégias, atenta para colher o espírito em falta. Sabe as passagens, as armadilhas, a mentira que disfarça, a zombaria que abate, a traição que mata. O primeiro encontro é brutal. A fera responde: "Não sou teu semelhante, odeio-te, não quero luz. És uma criatura do céu descida cá em baixo? Pois bem, és tu o estrangeiro, não eu. Aceita as leis do meu mundo. Aqui reina a força; guarda tua justiça, aqui ela não serve. Aqui reina a mentira, guarda a tua verdade, que também não serve. Aqui se maldiz e se odeia, portanto, guarda a tua bondade e o teu amor. Que queres, louco ridículo? Teu Evangelho é loucura. Nós temos uma lei. É feroz, mas é nossa. Não aceitamos a tua. Some-te, estrangeiro! Insistes? Nós te destruiremos".

Mas o anjo avança. Começou a luta, mas ele esta acostumado a sofrer. Então, o ataque muda. A matéria veste-se de adulação e mentira, a ferocidade se esconde e reaparece sorridente de graça. O terreno se faz mais pérfido. O anjo avança num mundo de aparências inconsistentes e mutáveis, de formas falazes. Vai colher uma flor e colhe um escárnio; acredita estar contemplando a verdade e é uma máscara que se desprende, gargalhando. Cada ser tem duas faces; mostra a falsa e esconde a verdadeira. É um mundo irreal, no qual tudo foge e se desfaz; é uma dança macabra de esqueletos doidos que acreditam ser sábios e lindos. É o triunfo dos ouropéis, um perfume que recende mal, um beijo que morde, urna carícia que mata, um mundo de luzes falsas, onde tudo são trevas e silêncio.

Mas, o espírito avança. A força não o venceu e a mentira não o vence. Vê a cor real da vida e deseja lenir o sofrimento de que ela é feita. Vê ouro e fome, exércitos e cruzes, poder e sangue. São poderosas as ordens do deus prazer! O mundo pede-lhe amor falso; é feito de forças inferiores, mas deseja realizar-se a si mesmo. E a luta continua. Satanás se disfarça em seus infinitos semblantes e muda de tática. Vejo-o voltar e não me diz "Palhaço". Está razoável e ladino. Diz-me: "Reflete, deixa a utopia, depressa. A vida é bela e é preciso gozá-la". É lento e paciente o cerco da lisonja. É uma imaginação interior; nasce inadvertida nas raízes do desejo. Insinua-se enganosa, por toda parte. Parece nada e já envolve o espírito em seus tentáculos. E quando este percebe, já esta preso e aprisionado. Insinuação prudente, de gesto lento, de mil braços de polvo, aperta acariciando num longo sufocamento. Age com cautela e tem fascínio, como a serpente. Assim se forma o sorvedouro onde se submerge o mundo.

A luta continua. Pobre de minha alma! Tem sede e não deve beber: a fonte esta poluída. Tem fome e não deve comer: o alimento está envenenado. Esta exausta e não pode repousar: o terreno é malseguro.

Mas, muda ainda a aparência de Satanás. O meu ventre está satisfeito. Que beatitude! Inércia de espírito, toda a sua vibração neutralizada numa pausa de calma. A animalidade domina, o jogo da vida reduziu-se aos planos mais baixos, a consciência interior cochila satisfeita no equilíbrio das funções primárias, na felicidade do bruto. As tempestades estão longe. Que alegria, finalmente, repousar! Quantos ventres satisfeitos vão pela vida, acreditando serem tudo, felizes apenas por estarem cheios. Pequenas almas situadas no ventre! O ventre deseja, opina, escolhe — beatitude de carne saciada. Conheci também isto, a espera de que o leão despertasse, rompes-se a inércia com o seu rugido e tornasse a mergulhar o olhar nos céus.

O espírito avança, mas também o inimigo caminha e penetra na fortaleza da mente. A fé desagrega-se na dúvida. Terei eu lutado e sofrido tanto em vão? O pó das coisas não cobrirá todas as minhas fadigas? Investi todo o meu capital de pensamento e atividade no Evangelho. Para esta inversão dos valores humanos perdi as vantagens positivas, tangíveis, reconhecidas. E, afinal, se fosse ilusão? Arrastei-me assim toda a vida, humanamente destruído, e só por um sonho? E se o espírito me traísse? Onde esta Cristo, se eu não o vejo? Por que jamais um sinal de evidência? Onde esta esse mundo que ninguém percebe e que todos os fatos negam? Por que, por que acreditar? Que desilusão tremenda recolher quimeras! E esse mundo é tão pronto a se desvanecer, e eu aconselhei e sofri na realidade — e a última compensação será a derrota! "Tolo, não confies — diz Satanás. Por que crer? Era uma quimera, e agora és um vencido. Mereceste. Rebela-te, libera-te, derruba e destrói o edifício das ilusões. Salva, pelo menos, as últimas horas. Goza. Não te deixes trair para sempre. Esta é a vida, não vês? Não há outra vida senão esta. A minha alegria esta aqui, o céu está longe".

Mas o espírito avança. E então, depois do ataque do escárnio, da dor, da necessidade, da força, da mentira, do gozo, da inércia, da dúvida, — desfere-se o assalto do desespero. Sinto-o aproximar-se sob a forma de um fantasma e sinto terror. Adensam-se as trevas em torno da minha alma. Estou cego e mudo em poder da tormenta. Penetra-me um choque diabólico de todo meu ser e a minha alma mergulha no inferno. É uma precipitação involutiva de plano em plano, uma perda de luz, de leveza, sempre mais para baixo, num invólucro sempre mais denso. O assalto agarrou-me, aperta-me em seus tentáculos, arrasta-me de sorvedouro em sorvedouro, mutilando-me, sufocando-me. O inimigo rompeu as cadeias e está em mim para me torturar. É a sua hora, a hora das trevas, a hora tétrica de sua vingança. Atira-se contra mim. Minha alma debate-se em seus tentáculos. Vãos os dias arrastados no duro e necessário trabalho, vão as noites sem repouso, vão o tempo que me deixa arruinado. As trevas me destroçam. Preciso correr e não posso andar. Tenho que fugir e estou amarrado. Petrifico-me numa dor muda, negra, sem lágrimas, sem esperança. Ignoro Deus, entorpeço-me, estou perdido.

Então a minha sensibilidade se torna um porto aberto a todos os ádvenas. Mil forças barônticas aparecem, tremendas e confusas; mil faces se desenham no raio de minha consciência. Sou levado numa esteira de tormenta que me atravessa o espírito.

Depois, quando a força do mal esta saciada de todos os seus assaltos, em todos os seus aspectos, ouço-a fugir, zombando, feliz de sua esplêndida chacoteação.