Ascese Mística

A lei se cumpre e eu observo o seu fatal avanço. A maturação é um processo tão lógico, um concatenamento de forças tão equilibrado, que me parece natural. Na evolução, alto e baixo são relativos e não vejo em mim nenhuma superioridade excepcional. Eu persigo a minha alegria, como o fazem todos. Apenas, persigo uma alegria mais verdadeira; por meios mais incomuns — e alcanço-a. O universo é harmonia que guia ao supremo amor, que é Deus. Eu, simplesmente, me harmonizo. Isto é tão espontâneo, que qualquer sensação de fadiga desaparece. Não creio que me possa arrogar mérito por isso. Chega-se a isso naturalmente, fora da medida das grandezas humanas. Oferecer-se em sacrifício é a lei natural de coesão, neste plano. E se se ama a dor inimiga, não é por loucura, mas porque já se experimentou que esse é o meio de conquista. Bendiz-se, então, a lei de Deus que fere, porque se sente que por trás da prova está o Seu amor. Falo de forças ativas e sensíveis, de conquistas reais. Não se creia que os estados místicos sejam uma absurda exceção a universal lei utilitária do mínimo meio31  e maior rendimento, o qual deve estar sempre em termos de felicidade. A sensação do sublime paga largamente cada esforço, e aos práticos poderia dizer: “o negócio convém”.

Esta harmonização progressiva, que através de todos os seres se eleva ao amor de Deus, é uma vibração tão grandiosa, leva a tão grandioso êxtase — que se alcança a suprema felicidade Que posso desejar mais? Nenhuma insaciabilidade humana poderá jamais ser tão saciada. Caíram, para mim, os véus dos mistérios e minha mente esta satisfeita. Na harmonização, agora, caem as barreiras do amor e o meu coração esta satisfeito. Depois da festa da compreensão, a festa da expansão. Depois da alegria de ver com inteligência — a alegria de apreender com as minhas sensações. A mente fundiu-se na luz divina, alcançando a unidade no conhecimento da verdade. Agora, o coração desperta e se eleva aquela mesma altitude, para alcançar a unidade no amor. O processo de unificação no conhecimento e no amor — meta suprema da vida — é único, para a inteligência  e para o coração. Só então estará completo.

Onde esta, agora, minha pobre percepção inspirativa, aquela espiral aberta para o céu — se as portas estão escancaradas e chovem, com a luz, torrentes de sensações? A intuição tornou-se visão, um rapto, um êxtase. Chegou como uma explosão de toda a minha personalidade, um soerguimento total do meu ser, lançado como uma onda para o céu. Todas as potências do meu eu projetaram-se para o Alto num ímpeto de paixão. Atônito, assisto a minha dissolução e a minha ressurreição.

O grau de ascensão do ser nos planos espirituais mede-se pelo grau de harmonização conseguido pela consciência no organismo universal, pelo grau de identificação com o todo, de unificação com Deus. E o índice exterior da harmonização, o sentimento pelo qual esta se revela sensível, é o amor. É o grau com que se apazigua a luta, se dilata o altruísmo; o grau com que se sabe ouvir a música da criação e irmanar-se a todas as criaturas; o grau com que se sabe sofrer por amor, pelo bem dos nossos semelhantes. O amor ó a forma com que a personalidade radiante alcança a identificação vibratória com as correntes divinas: o amor  o sinal da unificação. Chega-se a Deus, mesmo em meio a dor, com a alma contente, cantando e louvando; subindo de harmonia em harmonia, de amor em amor. O grau de ascese mede-se pelo grau com que a alma venceu a dor com alegria, absorveu no bem o mal, harmonizou na ordem as dissonâncias.

Este amor é uma palpitação secreta e interior, potente e submissa, violenta e, no entanto, doce; por vias íntimas, ele se propaga em silêncio, de ser a ser, e alcança longe. Tão longe que o coração abraça em si tudo o que foi criado. Amor profundo e amplo, que penetra em tudo e em toda parte encontra seres para amar. Satisfação superior ao desejo. É grande esta maravilha, num mundo onde o desejo é sempre maior que sua satisfação. É uma ebriedade sem limites esta vibração imensa, onipresente, indestrutível; este abrir-se de almas para se derramarem umas nas outras. Já era tão grande a alegria do tímido escapar de um raio de amor humano, de um egoísmo para outro egoísmo! Que paraíso não será então este de poder ouvir, onde quer que seja, para onde quer que a mente se dirija, além de todas as barreiras do espaço e do tempo — ouvir uma palpitação de retorno que diz: "amo-te"! E então, a alma grita; "Descobri o amor! Venham a mim, humanos que o buscais! Não é o vosso, o amor. Descobri o amor! Isto não é loucura, é alegria. Sorria, quem o quiser. Eu canto, eu vivo, eu gozo, eu afirmo! Os que negarem ficarão em suas trevas.

A tremenda luta humana e animal se desarma completamente diante da força luminosa do amor. Amei tanto que também tu, dor inimiga, te tornaste amiga. Doce irmã morte, amei tanto, que tu também me apareces envolta em amor. Então, apenas se pode dizer: "Meu corpo está cansado e eu canto; o meu corpo sofre, e eu canto, o meu corpo morre... e eu canto". Eis o paraíso, fruto, não da morte, mas da maturação íntima, que sempre se pode alcançar.

Então, na própria alma repercutem todos os ecos do universo, em música solene e profunda onde canta a voz de Deus. Esta música embala e adormento a minha dor. Identificando-me aquela vibração, me aligeiro e posso fugir ao peso da matéria. Este amor tornou meus amigos os rochedos, as sarças e as tempestades: irmãos meus o homem e a fera. Tornou minha amiga também tu, irmã morte, que marcarás o último impulso de minha fadiga terrena. O amor vence a dor e a morte. Que transmutação de valores, que maravilhosa libertação! A ferocidade de cada pena é domesticada pela elevação: o irmão lobo faz-me carícias. E então, as ressonâncias da vida mudam ao toque desta força. Acalmam-se todas as rebeliões, adormece o cansaço. De cada ato de bondade emana música tão doce que reabsorve toda a aspereza do sacrifício que o ato impõe. A bondade, aqui, abre a porta de uma lei superior, cujas harmonias são tão fortes que neutralizam o sofrimento e o cansaço da renúncia. Trata-se de uma superior estética do espírito, cuja beleza supera todas as belezas. O sacrifício expande-se por esta ressurreição numa vida maior e conquistada; transforma-se numa limpidez de visão, num amplexo de amor. A perda esta no restrito ângulo visual humano, não no divino, onde existe afirmação, alegria, beleza. Eu ouvi esta música divina; ela canta no sacrifício e estou sedento por ouvi-la de novo. O cansaço se vai e a música fica. Então, a alma não grita somente: "Descobri o amor!", mas grita também: "Venci a dor!"

E tudo adquire um sabor novo; irradia-se uma alegria que se difunde sobre todas as coisas. A alma se torna um canal por onde desce e se difunde o amor divino. Com alegria se retoma, a cada manhã, o fardo da vida. E o trabalho comum de todos; mas um sentido divino que lhe bafeja dentro, torna-o santo e esplendente. Dirão: "Ora, velharias!" Respondemos: “que se dizem, mas não se fazem, não se sentem”. Dentro daquela fadiga que é a mesma por fora, arde uma tal luminosidade de bem, uma tal beatitude de espírito, uma tão vivida bênção de Deus, tanta fé e tanto amor, que tudo se transforma, como por toque magico. Então, e só então, a vida é verdadeiramente bela. Então o homem, curvado ante o caminho, levanta-se a cada manhã com a alegria no coração, porque sabe que é santa a renovada fadiga que o reconduz a Deus; e a noite, na carne cansada, o espírito exulta, rendendo graças pelo dever cumprido, pelo novo pedaço de caminho percorrido. Sabe que a dor escreve, além do tempo, aquilo que não se apaga mais. O corpo se abate e a alma se abre e cantam dentro dela as harmonias do universo. Aquela alegria é a alegria de toda a criação, e transborda, e volta, e não há força que a amordace.

Então, me vem uma nova coragem de viver, um desejo de dar as minhas forças um maior rendimento de bem, um medo de dispersão humana porque tudo se concentra no divino. E retorno a todos os seres, numa larga multiplicação de amor, olho todas as faces do universo, porque me falam de Deus. E então, tudo é amor em tomo de mim, dentro e fora de mim. Amor, alma dos fenômenos, centelha da vida, grandeza divina. Mas, eu quero esta união profunda e completa, esta compenetração e identificação que o amor humano não dá; quero o amplexo sem fim, imenso, com todo o universo; quero o amor sem egoísmo, perfeito, indivisível, eterno. Quero o verdadeiro amor, mais forte que a morte.

Se eu tudo possuo, que importa se a pesada cruz da vida me faz sangrar ao longo do caminho   se eu avanço estreitamente unido, coração a coração, com todas as criaturas irmãs? Se a florzinha que eu colho, me dá o seu perfume e morre, dizendo: amo-te, irmão"? Se os animais, as rochas, o vento, os espaços, me dizem: "amo-te"? Se as estrelas e as imponderáveis forças giram em torno de mim, em maravilhoso equilíbrio e sinfonia de movimento, para me dizerem: "Amo-te, irmão"?

Então, meu espírito explode na suprema loucura e sou envolvido na esteira luminosa de Cristo e nela me dissolvo. Esqueci o meu eu. Não existe, não se reconhece mais. Esta morto. Ressurrecto. Não sou mais eu, no entanto, estou vivo e presente, em um novo mundo, mudado, renovado, imenso. Eu sou tudo o que é o meu amor. O meu amor esta em todas criaturas; o meu é o seu eu; o meu canto é o seu canto; a minha alegria é a sua alegria. E que morte pode fechar esta vida universal sem limites de tempo e de espaço?
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31 - Veja nota de rodapé - cap. XX, da 1ª parte. (N. do T.)

 

Propus-me, nestes capítulos, a dar minha sensação do fenômeno e aqui estou, já bastante atarefado na exposição racional de sua compreensão. É esta minha sensação que para cá devo trazer, aproximando-a dos olhos do leitor. Meu primeiro dever é a espontaneidade, para que tudo seja exposto aqui, fora de mim, tal como em mim foi vivido. Nenhum freio impede, já agora, o ímpeto do meu entusiasmo e da minha paixão. Preocupações de incompreensão mutilariam meu pensamento; já não me posso deter. A psique normal esta habituada ao âmbito fechado de seus limites e não se reencontra neste confinamento de valores. Há necessidade de tatear a solidez de sua prisão, de se identificar no invólucro, para se sentir, viver. É aquela reação de retorno das forças, girando em campo fechado, que dá a sensação do eu. Mas quando todas as resistências cedem e as paredes se abatem, não há possibilidades suficientes para que se abranjam os novos horizontes. Trata-se, aqui, de uma explosão da alma, que em sua expansão se vaporiza e não sabe se reencontrar, de improviso, no todo; falta-lhe então a pressão do confinamento na mente (ignorância) e no coração (egoísmo), que faziam concretamente sensível a identidade. É muito diferente sentir-se o eu na identificação da própria mente, no conhecimento universal e do próprio coração, no amor de Deus.

Subindo aos superiores planos da evolução, o eu se torna uma unidade completamente distinta. já vimos, na recepção inspirativa, que a certas altitudes conceptuais, não se encontram entidades pessoais no sentido humano, mas somente noúres, ou correntes de pensamento e que, para se conseguir imergir nestas correntes é necessário transformar-se evolutivamente, até esses planos e dimensões. Ora, quando a consciência humana passa da fase intuitiva das simples comunicações à fase mística da identificação, perde permanentemente, e não ocasionalmente, como no período receptivo, suas características de personalidade humana, mudando-se por evolução, até se transformar naquele tipo de consciência que o inspirado encontrara em suas ascensões, isto é, numa noúre ou corrente de pensamentos. Em outros termos, transforma-se numa personalidade radiante. A alma humana já é, inicialmente, um estado vibratório, uma corrente de pensamento e é isto, exatamente, o que sobrevêm na desmaterialização do processo evolutivo. Este tipo de consciência é igualmente identificável, conservando uma individualidade característica, não porém pessoal, no sentido humano. O eu, evoluindo, sofreu um processo de expansão. já não é mais um campo de forças confinado em si mesmo, como a matéria, mas um sistema cinético radiante, como a energia. A identificação já não é feita, então, no sentido humano da circunscrição e da distinção, mas num outro sentido, o do tipo individual de vibrações que, em uma consciência radiante, dilatada, não pode ser, agora, senão a única forma de identificação. Assim é, e só assim acontece com aquele que constata seu aparecimento, sozinho, no plano noúrico, ou seja, na superposição de consciência, na identificação e na fusão por grupos, dentro do seu tipo de vibrações. E só assim se pode explicar e compreender o fenômeno da unificação, que no plano humano será sempre um mistério.

Estas transformações profundas no modo de existir explicam o esmagamento do espírito que chega a esta fase de evolução. O eu não se vê mais em suas vestes de personalidade humana e distinta e não se reconhece nesta sua nova forma radiante, em sistema cinético aberto, como noúre ilimitada, livre. A expansão lhe dá o sentido da dispersão. No entanto, é este, para todos, o futuro da evolução biológica em seu plano psíquico superior. Esta é a transformação de dimensões, o ingresso num novo universo, ou seja, em breve explicação, o que nos espera além dos portais. Superando, por evolução, o limiar, a consciência naturalmente muda suas características. Retorna ao nível mais alto o fenômeno da explosão do átomo, que desenvolve reservas inexauríveis de energia radiante. O sistema cinético fechado, de trajetórias em circuito de retorno sobre si mesmo (átomo, egoísmo), no qual o existir é justamente este contínuo rodopiar egocêntrico e a sensação do eu, pela inexorável pulsação de todas suas forças interiores contra a trajetória limitada do sistema, não superada, se transforma num sistema cinético aberto, de trajetórias impetuosas, radiantes (energia, onda, personalidade radiante), onde o existir se identifica com o movimento e a sensação do eu: uma expansão que se estende até a identificação com o todo. Fenômeno de libertação, de multiplicação, de superamento. O movimento sucede à   estagnação, o vôo ao passo. O existir não esta mais em permanecer, mas em andar. Ao atual tipo humano do eu estático sucede o tipo, hoje dificilmente concebível, do eu dinâmico.

A sensação de vida é um extravasar ilimitado que a princípio aturde; é um dilatar-se de impulsos, é aquela desmaterialização na qual se traduz, justamente, a evolução. Faltará consistência a essa sensação; mas, em troca, quanto espaço conquistado! Não nos sentimos mais concretamente como antes: sentimo-nos em tudo! Eis de que técnica fenomênica nascem e como se justificam as minhas sensações. Assim se perde a individualidade humana circunscrita, para se adquirir uma nova e imensa, no seio de Deus. Assim se compreende como eu possa, como afirmo, atingir e possuir o sentido da unificação; compreende-se a origem de muitas das minhas estranhas expressões, e a grande lógica da aparente loucura; compreende-se como a ascensão da alma para Deus, que é a substância da evolução e a razão da vida — seja um processo de harmonização, isto é, de progressiva sintonização na harmonia suprema.

Subindo, tudo se reúne e converge à fonte comum: a verdade una, o amor uno. Aqui em baixo, tudo esta dividido: as verdades são diversas, os egoísmos diferentes, o amor limitado e desunido em cada criatura. Nesta transformação de consciência, o esforço da evolução é largamente compensado. A grande aspiração e a maior alegria da vida, que é a expansão, alcança aí sua satisfação mais completa. As pequenas portas humanas se abrem de par em par. O eu não tem mais necessidade de se obstinar e se restringir, porque se unifica no todo e o todo é seu. E cada um sente no seu instinto quanto a alma sofre aqui em baixo, onde a cada passo a sua marcha tropeça num mundo de obstáculos. Todos sentem quanto a terra se opõe a essa ânsia de liberdade. O maior e mais ardente desejo de todos não é esse de fugir ao espaço, ao tempo, superar as formas do pensamento, de conquistar, multiplicar-se em novas forças? Esta superação espacial-temporal não é a base e a essência do nosso progresso mecânico? Só por este motivo, isso é evolução, porque é evasão dos limites e superação das dimensões. Todos desejam riqueza, força, liberdade, amor. Mas esta outra é a verdadeira riqueza, a verdadeira força, a verdadeira liberdade, o verdadeiro amor: porque tudo se amplia no próprio poder de percepção, numa sensação ilimitada, numa consciência onipresente.

Chega-se a unificação com Deus depois de se haver compreendido, numa síntese conceptual, o funcionamento orgânico do universo, fundindo-se e identificando-se com a alma universal. Este é o rumo ao ser, a realização da maior felicidade porque, ao mesmo tempo, da mais vasta expansão. De outro modo, tudo será uma trabalheira inútil. O instinto insaciável da alma está manifesto, mas a porta de entrada esta no céu e não na terra. Aqui em baixo, no ambiente fechado, a expansão se reduz a violência recíproca, pela angústia de espaço. Aqui em baixo isto não se obtém senão roubando-o aos semelhantes, senão oprimindo e esmagando — mas não é assim no céu! A que extremos opostos estamos sobre a terra, onde a afirmação do eu é a luta de todos contra todos, é a imposição, a extorsão e a coerção do mais forte para com o mais fraco Que dissonâncias, que atritos, que dispersão de energias, que inferno No entanto, o universo é ordem, é música, é amor e tal aparecerá, com esmagadora evidência, assim que a alma se curve as realidades mais profundas. Esta é a maravilha que nos espera, transposto o limiar. A verdadeira expansão esta nas dimensões superiores do espírito. Só assim ele, o insaciável, poderá ficar saciado!

Assim nasce, entre o místico e o mundo, um antagonismo irredutível, um abismo de incompreensão. Tudo, logicamente, depende das diversíssimas colocações do problema, pela diversíssima situação do centro da vida. O grande trespasse não é a morte. Pode-se morrer e renascer em vida, segundo o grau de espiritualidade conseguida. Quando subimos, desaparecem as distinções humanas. A matéria divide, o espírito unifica. Quantos estridores dissonantes em baixo — quantas harmonias paradisíacas em cima! Faz-se tão profunda a harmonização das criaturas, quando sobem para o Centro, que a harmonia adquire uma intensidade inviolável. Faz-se tão poderosa que não há mais dissonâncias que a possam perturbar. Tão forte, que não há vozes maldosas que a possam dominar. Tão doce que nenhuma dor poderá mais polui-la! E fatalmente, gradativamente, dor e mal são reabsorvidos e anulados nessa suprema harmonia.

 

Assim o meu eu desce e vai de uma consciência a outra, do abismo da animalidade aos cumes do espírito; dos vários planos me contemplo, enquanto de síntese em síntese avanço pela estrada da evolução. Exposto assim o meu panorama, observo-me e penetro o mistério da minha alma. Com o superconsciente alimento o consciente. Com este analiso aquele. Retraço, assim, os lineamentos de meu vulto psíquico na eternidade.

A minha exposição se faz cada vez mais pessoal e vivida. O fenômeno, pela lenta deslocação dos panoramas, cada vez se coloca com maior precisão, e, desnudo em sua vibrante realidade, cada vez mais se aproxima do coração do leitor. Um livro diz tudo sem o querer, especialmente o que não se quer dizer, pela preocupação de o calar. A miragem que vibra nos olhos do escritor transfere-se para as suas páginas. Quem sonhou glórias, escreverá glórias; quem egoísmo, egoísmo; quem avidez, avidez; quem sensualidade, sensualidade. Mas também aquele que tudo lutou e sofreu pela elevação do espírito — diga o que disser, só falara sobre elevação do espírito. É como uma música de fundo, uma cor predominante, uma psicologia dominante que não se quer, não se improvisa, não se inventa. Não se pode mentir através de volumes e volumes, diante de argumentos tão medonhamente grandes. Só quem tem para dar um testemunho, que é mais forte que a vida e a morte, pode, a cada passo, pronunciar o nome de Deus.

Já superei a exposição teórica. Devo agora dar, do fenômeno, a impressão sempre mais viva, através da minha sensação. Devo controlar-me e conter-me para avançar gradualmente, para não desorientar o leitor de chofre, com a visão dos últimos planos e para que veja quanto foi contida, controlada e guiada por mim a suprema loucura que está para acontecer. E eu, contra meu próprio ímpeto de paixão, avanço temeroso, porque espero afirmativas cada vez mais altas, deveres sempre mais graves, revelações sempre mais solenes.

Minha alma percorreu o áspero caminho narrado no cap. XXV de I Fioretti di S. Francesco29,  a que já me reportei30 . Colhamos os fenômenos da ascese espiritual no ponto mais intenso e central, no momento mais notável, de sua transformação, quando convergem todos os impulsos, coexistem todos os elementos, se juntam e fundem todas as forças e surge a última síntese na qual o fenômeno se precipita em novos equilíbrios e se transmuda em novas orientações. Estamos no centro do drama.

A vida é uma viagem e eu sou um peregrino: serei sempre encontrado a caminhar. O meu último volume viveu e foi superado; minha alma não ficou saciada. Disse: ainda, ainda, quero subir ainda. E andei mais um ano, por um novo sulco, diferente do velho sulco traçado. Alinham-se assim os volumes, seguindo as etapas do meu cansaço. Caminho, caminho pela infinita estrada da vida. Como é grande a dor, como é espantoso o conhecimento e infinito o universo; parece que jamais conseguiremos chegar! E no fim está o abraço da morte irmã.. Vai-se exausto de forças, carregado do pó da viagem, pesado de lama, de lágrimas e de sangue. Quanto trabalho para atravessar a vida! Em nenhum ponto se sabe como a alma pôde arrastar-se até lá. A espera do abraço da morte irmã, a dor chama e martela. O leitor não sabe quanto sofrimento humano condiciona certos triunfos do espírito. Estou freqüentemente muito cansado. Sinto-me culpado e abatido... Esta minha pobre irmã carne chora abafada, já sem coragem para protestar. Pobrezinha! Ela sabe, porém, que o seu sacrifício era necessário a estas afirmativas de uma vida mais alta. Ofereceu-se e recua hoje, humanamente doente, sem um lamento. Pobre irmã, obrigado por teu pequeno heroísmo. Ela o compreendeu. Ensinei-lhe, dia a dia, que ela não podia ser um fim, mas apenas um meio. E ela disse ao meu espírito: "Vive tu, então, que vales mais. Há tempos, pedi ao meu corpo que se oferecesse em holocausto e ele me respondeu: Toma-me. E agora, ele é tão distinto e afastado de mim, que o considero como uma outra criatura que amo, porque à sua imolação devo a verdadeira vida. É justo que o menor se sacrifique ao maior. A minha piedade deixa-o morrer tranqüilamente.

A dor bate, martela, consome e reedifica. É um martelar rítmico, lacerante, que fere e desperta as profundezas. Esse martelar arranca de minha alma gritos que são a sua voz, uma voz que conta, com lógica e calma, uma história trágica e estranha, profunda e sublime — a história de uma alma que conquista o infinito. É para lançar estes gritos, que são minhas obras, que enfrento e empenho minha vida; é para viver, viver e narrar este fenômeno supremo que suporto, sem auxílio nem piedade, a minha imensa dor interior, diante da qual estou sozinho e não posso estar senão sozinho Com a agonia do humano se resgata o triunfo no divino.

Contei às pedras a minha dor. Contei-a às ondas humildes, às árvores amigas, ao céu e ao vento. Minhas lágrimas ardentes caíram sobre as pedras e elas não se partiram. O homem olhou-me rindo e as criaturas irmãs recolheram-se pensativas, em silêncio. A onda humilde e casta vai ainda, murmurando, levar meu pranto de crista em crista, sem compreender. É preciso ter gritado ao mundo, sem resposta, uma grande paixão incompreendida; é preciso arrastar-se, sangrando, sobre espinhos; é preciso ter atravessado o deserto de todas as solidões e de todos os abandonos; é preciso ter perfurado com a cabeça as duras portas do céu para abri-las e, com o último alento, ter atirado para dentro a alma encolhida, para que o infinito se entregue e a visão de Deus apareça em seu deslumbrante esplendor. Aquele que se lança através de certos caminhos deve perder o apoio da compreensão humana. Deve, num certo ponto de seu caminho, encontrar-se só, porque ninguém mais está em seu plano — e só e sem ajuda, tem que avançar por desconhecidas e ásperas estradas. Sobre a terra: indiferença, quando não sorrisos céticos e censuras. Se se tem sede de almas e ninguém sente tal febre espiritual —ninguém compreenderá de que paixão se morre.

Chegam, então, do céu ao qual o espírito se prende como última salvação — as provas maiores. Parece que as forças da vida percebem possibilidade de uma fuga e agarram-nos para impedi-la. Parece desencadear-se, no dinamismo cósmico, uma rebelião contra a nascente exceção, que viola a regra geral, e começa o assalto. Só quem o experimentou pode imaginar que coisa é esta insurreição de forças que exigem o nivelamento na mediocridade.

Trágico e ciclópico destino, de conquista e de aflição, de visões e de trevas, em que me debato, criando no pensamento, enquanto peço um repouso que não existe senão na morte. Só no pensamento reside a minha mais intensa sensação de viver. Nestes contatos super-humanos está, para mim, a razão de tudo, o refúgio, o repouso, a nutrição e o cansaço. Sinto meu organismo estalar sob tamanha tensão. E já estou sobrecarregado com o trabalho normal de todos, necessário para o cumprimento dos deveres e para se ganhar a vida. Mas o espírito está calmo, observa satisfeito e vai espreitando os sintomas do fim, inebriado com a sua criação, triunfante e contente deste lento martírio, sonhando, nele, sua libertação e redenção.

Ofereço, fisicamente, o espetáculo do homem prostrado pelo lento trabalho da exaustão. Tenho a sensação de uma longuíssima agonia em que as forças físicas se diluem. Não é moléstia, nem lesão, ou alteração orgânica. É o extinguir-se, o dar-se de uma forma de vida, enquanto o essencial se coloca mais no alto. Os dois termos, matéria e espírito, são antitéticos. Só em tal estado de prostração física se avizinham as transparências do céu. A ascensão espiritual é feita também desta desmaterialização exterior; tal sublimação da alma implica também estas transformações íntimas da matéria. O corpo se extingue, e vaporiza-se numa dilatação imensa. Só neste estado se pode falar de coisas que já não são da terra. Somente com a alma nua diante de Deus e com o corpo nu diante da morte se assume o dever da sinceridade absoluta e de certos testemunhos supremos; somente sob o martelar tenaz da dor, olhando para a morte e apresentando-se além dela, se tem o direito de levantar a voz e de se falar em nome de Deus.

E eu falarei, pelo direito que me dá o ter sofrido tanto, ter-me oferecido em minha fadiga que foi até à  exaustão, e por ter Cristo no coração; pelo direito que me confere o batismo da dor, o espasmo da paixão, o dever, o amor. Uma voz imensa eleva-se de meus laboriosos silêncios; a dor me arrancará novos clamores, a visão me encherá de novos entusiasmos; eu senti algo de inolvidável no tempo, lá longe, nos infinitos espaços do meu espírito e não posso esquecer, não posso calar. E direi, obedecendo a uma ordem que me é superior, que só eu conheço, e que está por sobre todas as ordens humanas. Tenho de dizer toda a minha verdade antes de morrer e, na morte, dar testemunho de minhas afirmações. Devo deitar a semente, para que um dia germine. Recebi o archote da verdade e devo passá-lo aos que me seguem. Devo, até meu último alento, com a palavra e o exemplo, dar a certeza da idéia que possuo. O que importa é a idéia e não este inútil trapo de minha pessoa. Num exaltamento de todo meu ser, grito com toda a força de minha voz a verdade da vida eterna e da ressurreição no espírito. E digo: vede e tocai, vós que não credes — eu o vivi.

Neste volume chego aos últimos degraus de minha vida. Este é o livro da dor e do amor, o livro da unificação. Já realizei a cansativa obra da condensação (A Grande Síntese) e do ajustamento conceptual — o trabalho que faz pensar. Cumpro aqui um momento evolutivo diferente, não em termos de ciência, mas com voz de paixão, a obra jubilosa da expansão, que faz chorar e esperar, o livro do triunfo do sentimento e da fé. Chego, com ele ao último ponto onde Cristo, que já se avizinha, me espera; e além de uma nova grande dor, que me faça digno, abrir-se-á o selo interior da devoção e do amor. Caindo e erguendo-me, andei através da vida. Os meus livros são um longo caminho de esforço e de fé. Superei muitas etapas; meu pensamento desenvolveu-se em muitos conceitos; minha paixão amadureceu graças a muito sofrimento. Ao fim de tanto trabalho de mente e de coração, depois de tanto expor, não restará senão uma única palavra: Cristo. Sobre esta palavra, que é a síntese suprema do conhecimento e do amor, eu me inclinarei, satisfeito e feliz, para morrer. Saciado como quem, além de todas as ilusões humanas, reencontrou a verdade absoluta; feliz como quem, além de todas as dores humanas, reencontrou sua suprema alegria.
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29 - A história do áspero caminho e encontrada no cap. XXV de I Fioretti em alguns textos, qual o usado pelo Prof. Ubaldi. Em outras edições a mesma história é narrada no capitulo seguinte. A excelente tradução do padre português Aloysio Gonçalves (Florinhas do Glorioso São Francisco de Assis, Braga, Portugal, 1944), regista-a no cap. XXV, mas "I Fioretti di San Francesco" (Rizzoli Edit., Milano, Itália, 1949) traz o mesmo relato no cap. XXVI. Igualmente, as edições da Vozes, — De Durval de Morais, inclusive em São Francisco de Assis - Escritos e biografias - Crônicas do 1º Século Franciscano, Vozes - Cefepal, 1981 - assinalam o cap. XXVI. (N. do T.)
30 - As Noúres, cap. IV - "Os Grandes Inspirados". (N. do A.)

É realmente trágico sentir alguém em si mesmo este desfazimento físico, ver diante de si ainda um imenso trabalho e viver ansiosamente, no temor de que lhe venham a faltar as forças. E ter que consumir-se no trabalho humilde e pesado que a vida impõe, e ter que esbanjar-se a mãos-cheias, na luta estúpida a que o constrange a filosofia dos demais. A natureza humana é lenta e preguiçosa; arrasta-se a custo e segue de má vontade. Tem a teimosia do asno, tem todos os vícios, a inércia e a fraqueza da animalidade. A matéria é sombria, não compreende. O inimigo está dentro de mim. O meu corpo e um meu irmão menor que arrasto atrás de mim com coragem e esforço E, no entanto, tenho de lhe dar o de que ele precisa, para que dê seu rendimento. As vezes lhe digo: "Ponhamo-nos de acordo irmão! Não me dê atribulações inúteis! Vamos! Vença o peso de sua matéria, e caminhemos juntos". Mas ele pára, tropeça, não agüenta. Dorme facilmente, e não sonha senão com curtas e fáceis descidas. Cada vibração de entusiasmo, cada arrepio de alta paixão, todo o incêndio do meu espírito se desfaz rápido nesse meio denso e inerte. Que luta entre o espírito ativo e a carne inimiga e sonolenta, que condena estas relações intolerantes entre ambos! A animalidade pretende impor a todo o ser a sua lei e o espírito se atormenta para impor seu dinamismo. Onde uma é ardente, o outro é glacial. Pobre companheiro embrutecido! Meu espírito espera tranqüilamente tua aniquilação, para realizar seu sonho de fuga. Pobre corpo! Não és feito para vôos. Corres e ficas verdadeiramente extenuado! Consomes-te nesta marcha absurda que não é feita para ti. Eu bem o sei! O edifício orgânico não suporta tão intensos e rápidos desenvolvimentos dinâmicos, tais tempestades de concepção, tais fulgurações de paixões. Vejo-o as vezes tombar dominado de exaustão dolorosa, mas o espírito é insaciável, sem piedade. Esquece-os até que ele chegue a extremos intoleráveis e então a alma, também sofrendo, observa a sua dor, acaricia-o e ele se acalma; apanha-o em marcha, coloca-se ao seu flanco e leva-o junto, como um irmão. E a matéria opaca se ilumina de sacrifício, esplende nos reflexos do espírito e se oferece em longa agonia em holocausto ao triunfo do irmão maior, porque sabe que ele é o único e legítimo herdeiro de sua síntese de vida e que a ele pertence o futuro; sabe que esta é a lei: pelo aniquilamento da vida física, nasce e cresce a vida espiritual.

O    corpo não pode viver nas altas temperaturas a que o espírito atinge em contato com o divino; naquela altíssima tensão, as fibras humanas se rompem; naquele fogo espiritual o corpo arde e se consome rapidamente; brilha subitamente numa chama violenta e se aniquila. No entanto, é belo, se é vencido ou triunfa; se morre ou revive; se sofre ou é feliz. Ao declinar das forças físicas, o canto sobe do fundo da alma, cada vez mais doce, mais sutil, mais belo. Afina-se pela dor, harmoniza-se com a harmonia do universo, conquistando novas ressonâncias em sintonia com o infinito. É intuitivo que certas elevações espirituais, certas realizações supremas não possam ser alcançadas senão a custa de repercussões no estrato inferior do próprio ser. É lógico que toda a unidade da pessoa seja arrastada no turbilhão da ascese. Só a morte, com sua proximidade, pode dar ao espírito certa luminosidade. Só um corpo quotidianamente açoitado pode facilitar certas transparências próprias da última purificação. Os que lêem não podem saber de que sulcos de tormento desponta esta nova flor de vida; de que destruição humana nasce a amplitude conceptual e passional que alimenta certos trabalhos literários; de que massa de vida se deve dotar a palavra para que seja quente e ativa. Não pode compreender que bases de angústia sustém o ímpeto festivo e exuberante da criação.

Conheço esse tormento e o aceito. Cada volume me parece o último, mas sei que haverá um outro amanhã embora hoje o ignore. E retomarei o livro de minhas confissões: diante de mim uma resma de folhas em branco, dentro de mim, a minha paixão. Viver, evoluir, escrever. Caminha, caminha! E esta fatal caminhada não cessará senão pela extrema exaustão. O futuro é infinito; diante do eterno amanhã todo o passado é sempre um prelúdio. Conheço o tormento da criação, mas torno a dar-me, torno a abandonar-me aquela febre que me dá a vida e a morte, que me eleva e sustém na sublime exultação das intensas realizações e que, no entanto, me destrói e me foge do corpo. Este trabalho me despedaça, mas eu abro para o mundo uma nova janela no céu, mas o espírito vence. É a sua hora.

Estou falando de morte e devia falar de vida; continuo olhando a terra enquanto o céu me chama. Este estado não é fim, mas começo; não é poente, mas alvorada; não é derrota, mas triunfo. Esta é a maravilhosa realidade que eu vivo, e hei de gritá-la cada vez mais alto. Ouça-me o leitor. Minha alma já está além da vida. Escrevo diante de Deus e da morte, nu diante de tudo o que foi criado e me vê. Não pode ser mentira. Personifico, neste momento, o fenômeno apocalíptico da minha grande revolução biológica e o apresento no momento decisivo de sua maturação, carregado dos aspectos mais ricos, vivos em mim no mais forte contraste de forças antagônicas. Estamos no centro do drama. A besta e o anjo que vivem em mim empenham-se nos últimos assaltos. As forças da vida apertam o cerco fatal e todo um processo se fecha; longa travessia de milênios, lentamente, dolorosamente seguida se precipita num instante que tudo refaz, contém e justifica. Aqui está em mim o supremo drama humano de uma vida que se extingue; aqui está em mim o supremo drama divino de uma vida que ressurge. O sacrifício humano foi imenso, mas o resultado final do meu trabalho superou toda a minha expectativa. Não vem a mim apenas a luz do mistério; vem a meu encontro o amor de Deus.

Tenho a sensação de que profundos abalos se dão em mim, como se planos inteiros da minha consciência se desmoronassem. E no fundo das ruínas encontro ressurreições estupefacientes. Aquelas prostrações são a condição de reações profundas que têm a virtude de trazer a luz o mistério da alma, de fazer penetrar o meu eu consciente nas camadas profundas. Procedo por mergulhos no abismo e ressurgimentos, como as ondas do mar, e destas grandes oscilações nasce um poder sempre maior do espírito. Vivo lentamente, saboreando-o e controlando-o, minuto a minuto — o fenômeno da morte orgânica e da ressurreição espiritual. No aniquilamento do corpo, a crosta opaca que me aprisiona o espírito se faz cada vez mais diáfana; na exaustão física me chega então, e ouço, cada vez mais límpido, mais distinto — o cântico que se eleva além das limitações. Insaciável, torno a escutar e a ouvir, para trabalhar e para sacrificar-me ainda, até o último alento de minha paixão Ouço um martelar taciturno e incessante sobre a bigorna da minha dor. Mas, cada golpe acorda nas profundezas uma ressonância nova, como o eco divino. A cada golpe se rasga um pouco a minha alma e das feridas lampeja luz. Ouço um cortejo sempre mais freqüente de golpes e de respostas, com uma fatal aceleração de ritmo — amo e abraço minha dor que me abre as portas. A cada instante, mais me inebrio ao sentir que, além do sensível e concebível, uma pulsação nova e maravilhosa bate e responde. Cada pingo de tempo rasga um véu e destrói um obstáculo. Avanço, mas tenho medo e me angustia este progressivo diminuir da distância. Mas, estou em marcha e não posso deter-me. Não se interrompe um fenômeno desencadeado. Tudo converge para a unificação. Caem, um a um, os últimos diafragmas. Sinto adelgaçar-se a parte sensorial que ainda me detém. Que existirá ainda? Desfazem-se os últimos liames. Darei um salto e cairei nas chamas.

A fonte das emanações noúricas, da qual captei uma vez os meus registros inspirativos, era uma estrela brilhante e longínqua que me olhava do céu. Mas, o transmissor aproximou-se do receptor que, ao longo daquele raio se encaminhou para o céu. Agora, a estrela, sempre mais próxima, se tornou imensa a ponto de invadir e ocultar todo o meu horizonte. Aquele fio de fria concepção aqueceu-se e tornou-se um incêndio. A luz trêmula de uma estrela longínqua é agora um flamejar de meteoro flamejante que me atrai ao seu campo de ação e me envolve numa tempestade de forças. Sinto-o chegar, raptar-me e me absorver, como uma labareda imensa a qual não posso fugir. Quereria, mas é tarde. Quereria escapar a este último aniquilamento, e não sei. Sinto-me preso em sua órbita; a minha massa é lançada e a trajetória se restringe. Perder-me-ei naquela luz e nem me reconhecerei a mim mesmo. Aperta-me a alma um abraço imenso, ouço as pulsações de meu coração ecoando pelo universo e em cada ângulo do infinito responde uma palpitação fraterna. É um amor novo, inextinguível, sem fronteiras, que se recurva sobre todas as almas irmãs. É uma vida tão vasta que revive na vida de todos os seres.

Fenômeno de força astronômica. Compreendo que é uma enormidade falar de mim mesmo nestes termos. Mas nesse fenômeno me anulo. Eu o sei. Aqui em baixo, sempre se receia que o nosso semelhante seja maior do que nós. Mas não falo de minha grandeza — falo da grandeza de todos. Todos podem subir e subirão, fatalmente. Dos meus conceitos muito pouco atribuo a mim mesmo — nada mais que o esforço de ir colhê-los. Se assim falo de mim, é porque o meu eu é apenas uma centelha de vida no seio de Deus, é uma força que não pode ser separada do universal organismo. Falo, portanto, de mim e de todos, porque neste plano não se fazem distinções. Em suma, o meu novo amor me leva a falar, para guiar a liberação aqueles que sofrem. A minha experiência é perturbadora para mim. E é humano gritar a própria alegria suprema, a vitória do espírito pela qual se lutou e gastou uma vida. É humano, para quem superou o terror dos abismos e a amargura de todas as ilusões, dizer ao irmão ainda inexperiente: "Vê! Esta é a vida! Assim te falo, porque assim vivi. Pode ser que a minha verdade te convenha". E como posso recusar-me a alegria de evitar um perigo aos outros, de poupar uma dor aos demais? Eu também estou ligado a esta lei de coesão universal que traz unidos os mundos quanto as almas; aquele que evolui sente necessidade, para poder gozar de sua evolução, de voltar-se para trás e comunicá-la aos próprios irmãos. Alegria isolada não é jamais alegria: o amor é a grande lei da vida.

 

Revivamos agora, em forma pessoal, a teoria exposta nos últimos capítulos. O meu eu consciente ouve vozes emersas dos diversos planos do inconsciente: daquelas zonas que são normalmente de trevas, vejo explodirem clarões de luz que me enchem de espanto porque me revelam que em tudo existe uma personalidade imensa. A medida que volto a percorrer dentro de mim as várias fases da evolução realizada, projeto-me conscientemente em zonas de superconsciência; num plano, ouço uma voz e outra voz noutro plano; cada uma delas tem um timbre, uma pureza e uma força diversa, segundo o seu nível e a minha posição e força de vida em relação a esse nível. Ouço se aproximarem ecos longínquos de formas psíquicas vivas e sepultadas nas mais profundas dobras do eu; vejo o passado amorfo e primordial erguer-se do sono dos séculos e voltar a mim (isto é, do subconsciente ao consciente), das profundidades tenebrosas da raça e do sangue, das estratificações fundamentais do instinto, através da incessante recomposição da carne e do espírito de que é feita a vida. Como o passado tarda a morrer! E súbito reaparece a fera bruta e violenta, a baixeza que se condena nos outros — tipos de consciência que existiram e que se negam a morrer. No subconsciente está toda a animalidade do homem-besta, como no superconsciente está a super-humanidade do gênio e do santo. A evolução da consciência do sub ao superconsciente é justamente a ascensão espiritual da besta ao santo — fenômeno imenso e universal.

Existem realmente, para quem pode senti-las, realidades tremendas dentro de nós. As vezes, a unidade do eu oscila entre vários planos, a síntese consciente da personalidade não consegue encontrar meios de se fundir numa forma nítida e única. Então, ouvem-se dissonâncias interiores, desencadeiam-se conflitos de íntimas vontades dissidentes que não sabem e não podem fundir-se na alma, que, por estar em fase de rápida transformação evolutiva, contém em si mesma todos os extremos de baixeza e de sublimidade. É justamente as portas dessa superação que todo o passado, sentindo-se subitamente negado, se aferra violentamente ao desejo de não morrer. Então, numa tempestade imensa, erguem-se das profundezas as forças desencadeadas pela turbação dos equilíbrios que dormiam em paz. E gritam com vozes apavorantes de trovões, para reviver ainda e sempre. E nas profundezas há um medonho redemoinho interior uma batalha de negativas e afirmações que desejam ser absolutas, uma explosão de rebeliões imprevistas, ilógicas, inexplicáveis e que não dão de si outra razão senão a de íntima sensação instintiva de uma verdade indestrutível.

Minha percepção noúrica é imensa, sobretudo dentro de mim; minha sensibilidade psíquica permite-me contato com uma vasta gama de planos de consciência, tanto no alto como no fundo. Posso mirar não apenas os luminosos picos do superconsciente, mas também as tenebrosas profundidades do subconsciente. E devo dizer: o passado é também pavorosamente profundo! Que há lá em baixo? Lá estão as raízes do mal e da dor que o cansaço da vida traz consigo em cada dia e que é preciso vencer. Há todo um mundo naqueles abismos da alma, todo o mistério do ser e do destino, o próprio mistério do universo. Daquele oceano profundo onde mergulharam tantas dores e tantas vitórias, culpas e virtudes — emergem agora inesperadas e insuspeitadas, estas criações da sombra, para nos ajudar ou para nos punir, segundo o que nós fizemos. Dos quadros que se seguirão adiante, poder-se-á ver que infernal, demoníaco passado é capaz de emergir dessas profundezas. Isto, embora se deseje projetar ao exterior em estado físico, está sempre e só dentro de nós, num estado de consciência — quer seja o inferno nos estágios involuídos do subconsciente, com os seus demônios (individualizações de forças pensamentos-vontades) quer seja o paraíso nos estágios evoluídos do superconsciente.

Daquela profundeza fala a voz do nosso destino e são concedidas as dádivas da felicidade que parecem casuais e gratuitas; vêm, enfim, as punições que se crêem imerecidas. E a vida flui como uma torrente, que leva consigo todas as escórias do caminho percorrido e, sempre em marcha, deposita-as e se purifica. E assim como a torrente tem uma vontade própria irrefreável, de andar, maleável e sujeita aos caminhos que o terreno oferece, adaptando-se ou reagindo — assim o destino tem uma trajetória ampla, impulsionada pelo seu passado, ativa e resoluta e, no entanto, dócil às  circunstâncias, que aceita ou às quais reage. Experimente-se, porém, opor um dique a esse doce fluir de onda; a torrente e o destino amontoarão impulsos e massas compactas, até se tornarem ameaçadores e poderão tudo arrastar no seu ímpeto — expressão do domínio absoluto da lei, pela qual aprendemos que é melhor andar de boa vontade já que é impossível parar.

No extremo oposto, minha consciência se defronta com o superconsciente. Embora eu tenha sempre falado e fale neste trabalho do lado positivo do fenômeno, descrevendo as emersões evolutivas da minha consciência não quis, nestas últimas páginas, esquecer o lado negativo, de sombra, descrevendo minhas imersões involutivas Contraste necessário estas oposições dos aspectos subumano e humano e do aspecto divino do fenômeno; necessária a exposição deste lado de debilidade e fracasso, de quedas e ressurgimentos — porque corresponde à verdade; porque torna o meu caso mais acessível à compreensão, humanizando-o em alguns pontos; porque me reaproxima, me irmana, sob a mesma cruz, ao meu semelhante humilde e desconhecido que luta e sofre sem a alegria das compensações espirituais.

Grande felicidade, mesmo porque duramente merecida, esta emersão no superconsciente. Este confinamento superconceptual é para mim um fato de cotidiana experiência. Dir-se-ia que minha consciência normal, pela contínua pressão que exerce sobre o desconhecido, sofre dilatações imprevistas. Dir-se-ia que às vezes o invólucro que circunda e delimita o âmbito, cede a lacerações súbitas, através das quais penetram relâmpagos de luz ofuscante. Vejo assim aparecer constantemente, na minha consciência racional normal, súbitas concepções, vindas não sei de que ignotas profundidades. Sinto cada dia, com espanto, fazer-se mais viva a presença desta mais vasta consciência intuitiva e mística, onde o racional se perde. Trata-se de uma nova consciência, cuja unidade de medida e pontos de referência são diversos; ela me parece interminável, porque jamais acabo de percorrê-la e de conhecê-la inteira. Talvez alguém queira negá-la: para mim, é uma realidade sensível, evidente. Pode a razão achá-la absurda, porque ela pode perder-se e ser negada; no entanto, para mim ela é repleta de reservas conceptuais inexauríveis, porque dela fluem continuamente idéias que antes eu ignorava. Habitualmente, no meu trabalho de escritor, atinjo o manancial. Ponho-me a escrever, mal conhecendo o assunto, e enquanto escrevo, as idéias brotam daquelas profundezas, e percebo a sua presença sensível na minha consciência. Então, apodero-me delas, vejo-as, são minhas. Não sei onde e como se poderiam procurar de outro modo e muito menos encontrar, idéias que não estivessem em livros, que não fossem a repetição de velhas coisas já ditas.

Mas, onde estão essas, antes que me apareçam? E então, a dúvida: sou eu, ou não sou eu? E fácil um engano, mas, certamente, o eu não é tudo na base consciente. Aqui são outros os seus limites  um mundo mais vasto, que se revela aos poucos, por síntese; tão forte que minha razão tem grande trabalho em representá-lo com palavras; um mundo onde a concepção é tão viva, luminosa e espontânea e também tão rebelde a todas as normas do razoável, que me é muito trabalhoso dominá-lo e mantê-lo dócil à  forma objetiva do pensamento comum. Este mundo não está fora, mas dentro de mim. Esta grandiosa expansão é interior e se dirige à desmaterialização, ao superconsciente, a Deus. E surpreendente encontrar um super-eu ignoto e tão vasto dentro de nós; mas não se pode negar que ele exista e que eu o sinta dentro de mim.

É, então, o meu eu uma unidade tão extraordinariamente imensa que contém em si, em sua profundeza, o universo conceptual onde estão os caminhos que conduzem a Deus? Se o meio de comunicação está dentro de mim, eu não sou o meio de comunicação, nem as noúres cósmicas com que me identifico. Mas a tudo chego e com tudo isto me unifico, aprofundando-me dentro de mim mesmo. Digo de mim mesmo, mas o fenômeno é universal e acessível a todos os que amadureceram. O superconsciente parece, pois, conter tão vasto mundo, porque é a fase de evolução em que o ser retoma contato e comunhão com esse vasto mundo. É uma extensão maior que o espírito faz sua e onde se expande. É uma desmaterialização de substância que lhe permite a identificação de consciência com um campo imenso, antes exclusivo, do eu. E então esta nova imensidade conquistada é uma imersão tão íntima, que se torna em realidade.

Justamente aqui, enquanto escrevo, este superconsciente está presente e funciona. Sinto-o fazer pressão, túrgido de concepções, e preciso me conter para não precipitar o concatenamento das idéias e saltar às conclusões. Sem dúvida, em mim o controle é contínuo. Mas às vezes a concepção é tão premente que tenta seguir sozinha e não admite desvios. Eu mesmo, quando começo a escrever, parto de uma idéia simples, já amadurecida, sem me preocupar com o seu desenvolvimento, que ignoro, e deixo-a caminhar espontaneamente. Assim, tão logo me identifico com um conceito, ele se torna meu, porque se grava preciso e a fogo em minha consciência. Deixo-o andar e falar, porque o sinto como força viva, volitiva e autônoma, até que me revele todo o seu íntimo. Eu vivo deste estupendo trabalho agitado que ultrapassa minha consciência, que parece ativa em toda parte, mesmo na profundidade do mistério, onde lança seus tentáculos e segura e traz a si tudo o que encontra em sua sondagem.

Esta sensação de oceânicas profundidades em mim mesmo; a liberdade de atingir o inexaurível, a consciência de possuir uma tal reserva de recursos conceptuais é para mim uma alegria, uma enorme sensação de poder. Parece-me ter atingido as próprias raízes da vida, o princípio das coisas, a essência do absoluto. Escrever passa a ser, então, meditação, prece que me aproxima de Deus. E destes páramos profundos e não da consciência normal, que afloram os pensamentos mais puros e mais belos, tanto mais puros e mais belos, quanto mais profunda é a sua nascente. E eles parecem ofuscar-se quando saem à superfície da consciência, cristalizadas em luzes que bruxuleiam e morrem, aprisionados nas palavras. São tão esplêndidos, fluidos e vivazes que é doloroso paralisá-los em formas imóveis. A palavra escrita é um ataúde ao qual eles não desejam descer. E quando julgo havê-los assim aprisionado, eles já estão mortos e eu apresento apenas cadáveres. E ressurgem outra vez, mais vivos, mais esplêndidos, mais verdadeiros, e tomam a luzir, a brilhar no céu nebuloso do meu superconsciente, inexauríveis palpitações de uma sabedoria imensa que vem de Deus. Se se sabe e se deseja amadurecer, isso pode aparecer na consciência de todos.

Se na minha fase intuitiva a emersão foi apenas conceptual, de orientação e ajuizamento (A Grande Síntese), na atual fase mística a emersão é também de sentimentos; a dilatação não se verifica apenas na força do pensamento, mas também na intensidade de sensações e no fervor da paixão. É ainda emersão de forças que me agarram e me engolfam na unificação. O fenômeno se complica com o aparecimento desta força de atração, pela qual não apenas eu me atiro à  nascente para possui-la, mas a nascente se projeta contra mim, para me submergir. Este extravio do ser no infinito é uma tal dilatação de vida que meu espírito ali retorna incansavelmente, agora que a vai conhecendo, voando-lhe em torno, como a falena que se atira à  luz cegante e não sossega enquanto não lhe cai em cima e queima.

O meu eu é uma escada que se prolonga ao infinito. Quanto mais avanço, mais vejo nas margens da estrada coisas maravilhosas. Cada plano de consciência me dá uma síntese mais forte e mais luminosa do universo. O meu ser se inebria com este avanço progressivo, com esta navegação pelo inexplorado, que revela sempre novos horizontes. O meu eu, indo de uma consciência a outra, no superconsciente desmaterializa-se, se rarefaz, sente diluir-se. É como se eu me evaporasse. No entanto é esta evaporação, na qual já não reconheço o meu velho eu concreto, que me leva longe. É uma decomposição, mas no fundo dela Deus se substitui ao meu pequeno eu, porque tudo Ele o absorve em Si. Sinto, então, nascer em mim as palavras tremendas da Beata Angela de Foligno: "Tu és eu e eu sou tu"; e aquelas de São Paulo: “Já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim.”

E isto também pode se passar no coração de todos.