Assim começou a desenrolar-se o fio da vida do nosso homem. Há tipos lineares, simples, evidentes, de consciência superficial. A personalidade pode, então, revelar-se logo. Há indivíduo que se manifesta mais facilmente inteligente, de mente brilhante; tudo exterioriza com rapidez, e pode ser logo apreciado e desfrutar a sua posição no mundo. O centro da consciência, no nosso homem, estava, pelo contrário, tão profundamente situado, que permaneceu, para ele mesmo, longo tempo escondido. Ele sentia qualquer coisa de imenso dentro de si, no seu passado, e uma tão vasta complexidade no próprio eu, que levou muito tempo a reencontrar-se, e não pôde fazê-lo senão lentamente, laboriosamente, parecendo, enquanto isso, inepto, tímido, medíocre. A sua consciência devia ser encontrada não apenas na superfície, mas em profundidade. Não podia viver por imitação, nem aceitar verdades já confeccionadas para o uso prático. Não lhe bastava pautar as ações de sua vida pelas simples idéias correntes ou pela simples orientação dos instintos. Sentia a necessidade de penetrar a substância e de inteirar-se diretamente das razões da vida. Não sabia nem podia agir senão de maneira consciente. Não podia fazê-lo de outra forma. Tal era o determinismo do seu tipo.

A sua meninice foi exteriormente insignificante. Nada de notável, de particular, que a distinguisse das demais. Enquanto sofria, suportava o ambiente, mas tudo observava. Poderia chamar-se a esse o período das explorações, anteposto ao da experiência. E observando e registrando, preparava-se para julgar. Preparava os primeiros acordes das futuras sinfonias espirituais, estremecendo ao cheque dos primeiros contatos do ambiente terrestre. Sob a aparência de uma meninice insignificante, de menino dócil, obediente, estudioso, ocultava o complexo trabalho de um eu que se cansava na procura de si mesmo. Se exteriormente aparentava uma personalidade comum, simples, vulgar, - aquela que os outros viam e continuariam a ver, quase todos, durante a sua vida, - ele sentia revelar-se vagamente no seu íntimo, e avidamente buscava, movido por um profundo instinto, uma segunda personalidade, com uma segunda vida, tão mais vasta, bela e profunda, que lhe parecia, quase não pertencer à Terra. Com a sua percepção interior, sentia esse enigma e não o compreendia. Havia lá, no recôndito de si mesmo, um abismo que lhe parecia insondável, um outro mundo indecifrável. Tinha a vaga percepção de uma dor imensa, e se perguntava porquê. Sentia uma vaga sensação de uma terrível queda, semelhante a da esplendente estrela que, precipitada da sua luz, caísse prisioneira da Terra, privada da imensa liberdade dos espaços, nas profundidades abissais de um oceano escuro e pavoroso. Não percebia senão alguma coisa, de relance, como num subitâneo reencontro, como uma revelação. A vida aparecia-lhe, então, como terrificante experiência, que exigia uma coragem heróica para superar, e que não obstante devia ser superada. Estava diante de uma prova tremenda, além da qual, porém, devia haver alguma luz, porque um secreto e incoercível instinto lhe dizia que Deus é justo e bom, e que o universo é obra de sabedoria, conscientemente guiada. Esboçavam-se, assim, os fundamentais motivos condutores de sua vida. Os germes se desenvolviam; ele amadurecia em silêncio.

A primeira sensação consciente de que se lembrava, ligava-se ao terceiro ano de sua vida. Foi uma sensação indistinta, mas assim mesmo tão impregnada de angústia sutil, que jamais pode esquecê-la. Lembrava-se perfeitamente a princípio, ou seja, na sua psique a recordação aparecera direta e imediata; depois, tornara-se a recordação da recordação; depois, ainda, a recordação dessa última; e assim, reevocada sucessivamente, a impressão sobreviveu ao contínuo cancelamento das superfluidades da lembrança humana. Os psicólogos, sempre à caça de psicopatias, prontos a confundir subnormal, anormal, e supranormal, apressar-se-ão, - talvez para satisfazerem àquele instinto fundamental de luta, que leva o indivíduo a sobrepor-se aos outros, julgando e demolindo os tipos diferentes dele mesmo, - a descobrir, também neste caso, algum sintoma neuropatológico. Porque o indivíduo, para ser são e normal, deve possuir uma psique simples, sem supérfluas e incompreensíveis complicações. De outra forma será um anormal, e portanto um fora da lei, que se poderá impunemente aniquilar. Que maior satisfação, na luta pela vida? O impulso é tão instintivo e irresistível, que se torna quase um dever. E a lei da luta não lhes passará no subconsciente um terrível logro, de vez que a própria luta que leva cada um a descobrir defeitos no próximo, para sobrepujá-lo? E os melhores não foram sempre os gênios? E não será esta a íntima e inadvertida determinante das teorias lombrosianas? E essa mania do patológico não será uma ofensa à Natureza, que tudo equilibra e compensa cada deficiência, tudo, até mesmo o que possa parecer patológico, tornando-o útil, e a tudo dando uma função, para alguns dos seus fins?

Eis o fato. Nada exterior, todo subjetivo. O quadro da recordação constitui-se de um aposento pobre, com um fogão em terra, baixo, de fogo extinto, junto a uma janela, por cujos vidros sujos se filtra, com infinita desolação, a tétrica e pálida luz de um lento entardecer, triste como um pranto ao crepúsculo. O motivo repete-se, volta mais fortemente, mais tarde. Havia ainda uma cozinha escura, à noite, uma luzinha a óleo e um som desolado de sino distante. Que coisa contêm estes terrores pueris, estas impressões vagas e no entanto profundas? De onde emergem elas, e como possuem tanta força, para traçarem no espírito um sulco, sobre o qual sempre retornam? Por que, depois, sempre, aquela sensação de aflita tristeza, ao som de um sino na tarde? Por que certas coisas, de preferência a outras, se fixam na personalidade de alguns tipos humanos e não mais se apagam, mas, pelo contrário se reforçam com os anos? São recordações? Que recordações? São, sem dúvida, atrações, repulsões, simpatias, amores, ódios. Por que? Em virtude de que leis, desde o nascimento se revelam estes motivos e ligações do espírito com as coisas? Por que a presciência, por que estas diversidades, se as almas são todas criadas ao nascer? Ou há nelas um passado, que torna à luz nesses momentos? Só os espíritos inertes e sonolentos podem viver sem sentir uma ardente necessidade de compreender. E quem vibra num espírito como este não pode, absolutamente, reduzir-se a tal suicídio espiritual, como se os insensíveis o quisessem impor, a todos os que não são, como eles, natimortos do espírito.

A substância do fato, não era o lugar nem a hora, mas o revelar-se da nota dominante de uma vida. Cada vida é um motivo que se desenvolve. Ele é dado logo ao nascimento, inexoravelmente, seja alegria ou tristeza, atividade ou preguiça, bondade ou maldade, inteligência ou estupidez, e assim por diante. A coloração fundamental é dada e acompanhará o ser por toda a vida. É ela a onda da alma, o tipo de vibração inerente à personalidade, a constante emanação, o sabor indelével de todo o indivíduo. Até mesmo as plantas o possuem, e o revelam em toda parte, com suas simpatias e antipatias, de tal forma que constatamos, às vezes, entre elas, inimizades tais que, se crescerem próximas, se aniquilam mutuamente.

Mais tarde, esse motivo muitas vezes repercutiu no espírito do menino que se tornara adulto. Reapareceu, condensando-se em diferentes quadros, porque a vida está sempre em movimento, embora repetindo e, ao retornar, retoca e modifica os seus motivos. Nas antigas cidades medievais da sua Úmbria, as pedras antigas lhe contavam então histórias estranhas, macabras, dilacerantes, como de pessoas queridas, assassinadas na estreita soleira de uma daquelas portas angustas, chamadas "do morto". Aquelas pedras se animavam e lhe falavam, como transmitindo antigas vibrações de fatos longínquos, ali acontecidos, vibrações de que se haviam saturado e que então restituíam. Quando, nas tétricas noites hibernais, já homem, ele vagava pelas antigas ruas de Assis ou de Gubbio, as cidades do silêncio e do sonho, as velhas paredes lhe pareciam animar-se daquela vida profunda que possuem as coisas mortas, que não obstante não podem morrer. Ele interrogava as velhas paredes que tanto tinham vivido, entre as quais o homem por tão longo tempo havia passado, com as suas lutas e as suas dores. Certas vielas tortuosas, em que gostava de vaguear, especialmente à luz incerta da tarde, provocavam-lhe, às vezes, estranha estupefação, como imprevista revelação. E ali ficava atento, de alma suspensa diante do grande mistério do tempo, do mistério daquela inexorável e eterna palpitação, ali retida, não se sabe por que milagre, naquelas pedras. Permanecia ali, atento, espreitando a magia dessas fixações e desses retornos, dessas sobrevivência de coisas longínquas, renascendo aos fluxos para repetir, com uma estranha e profunda música, a eterna identidade do drama humano. E o seu espírito escrutava, buscando a recôndita imagem do eterno através do respiro dos séculos, a imagem gravada na alma daquelas cidades. O seu espírito interrogava, procurando encontrar, na voz das árvores, das rochas, do vento, na voz da terra e do céu, no fundo da grande voz do silêncio, a voz de Deus.

Escutava à noite o zumbir da tempestade, ululando ao longo das velhas paredes, como se arrastasse consigo uma fuga de espíritos, sibilando antigas histórias de ódio e de vingança. E sentia que as trevas o miravam e lhe falavam. E interrogava-as, e como um rabdomante à procura de subterrâneas correntes de água, vagava indeciso, parando entre as velhas casas. Foi aqui, foi lá, onde, como? Não encontrava, não percebia nada, claramente; não obstante, ele estava ligado àquelas cidades por uma indecifrável, angustiada nostalgia de um grande afeto, tragicamente espedaçado. Quem sabe? Depois, nos seus escritos, descreveu e exaltou as suas úmbricas cidades do silêncio, que tanto havia amado. E os habitantes atuais dessas cidades viram nisso uma exaltação natural das mesmas. Mas ele não via naquelas cidades o presente, e procurava outra coisa. Estabeleceu-se, assim, entre estes e o seu espírito uma sintonização que se lhe tornou profundamente cara. Mais precisamente, conseguiu despertar em si a sensação dessa sintonização, que já se encontrava no seu íntimo, como um instinto anterior, antes mesmo de qualquer percepção consciente. E sobretudo nas tristes e obscuras tardes do sonolento outono, sob o amarelecer das folhas das grandes árvores amigas, ele procurava e conseguiu encontrar novamente os acordes daquela sintonização que provinha do passado, um passado que ressuscitava e que sentia ser o seu próprio. Há, sem dúvida, em algumas almas, imensos e terríveis mistérios.

Mas nem tudo, no seu espírito, era trágica tristeza. Havia luz também, e quanta luz! Lembrava-se de haver sido trocado, em criança, mais na vista interior do que nos olhos, certa tarde, numa igreja, por uma luz amiga que fluía do alto, não sabia como. Contou o fato, mas ninguém o compreendeu, e então se calou. Mas nunca o esqueceu! Depois, nas suas úmbricas cidades do silêncio, sobrepondo-se ao terror das atrocidades medievais, reencontrou, com a mesma angustiada nostalgia, o encanto de uma figura simples e humilde, que passava fazendo o bem. Irradiava tamanho esplendor espiritual, que todas as trevas se dissolviam ante ela, todos os terrores se dissipavam, os ódios desapareciam e as dores eram consoladas. Era a figura de São Francisco. E na sua vida ele a seguiu em silêncio, além de Assis, até Verna, a Greccio, sobre o Trasimento, e a tantas outras cidades menores, por toda a parte a que pudesse ir, beijando-lhe angustiadamente as santas pegadas. E em cada lugar se perguntava: Foi aqui, foi ali, onde, quando? Assim amou Assis primeiramente, depois amou Gubbio, como à sua pequenina irmã franciscana. Conheceu depois a Itália inteira, a Europa e as Américas, mas nenhuma cidade encontrou a que pudesse amar mais do que aquelas duas. São Damião, a Porciúncula, o túmulo de S. Francisco em Assis, a Capela das Estigmatizações, em Verna, haviam sido os lugares de mais intensa e evidente sintonia com o seu espírito, como outras tantas etapas da sua paixão. Naqueles lugares reencontrou o sentido mais profundo do seu destino, reencontrou engrandecida aquela primeira luz da sua infância, alcançou a visão daquela afirmação que ultrapassa a terrificante prova da vida, encontrou a força de se redimir superando os terrores do passado, conseqüências naturais de suas grandes culpas e dos seus desvios. Eram forças por ele mesmo desencadeadas em algum tempo, e que agora se lançavam desesperadamente contra ele, para espedaçá-lo, a ele inexoravelmente ligadas pelo determinismo do seu destino.

Havia cometido, por certo, uma queda, que agora reclamava, fatalmente, justiça e expiação. Um dia foi a Versalhes, para reconstruir, dentro de si mesmo, a torpe frivolidade do mundo de Luiz XV e aquela trágica hora de prostituição do poder a da riqueza, de que nasceram os horrores da revolução francesa. E ali chegando, de novo se perguntou se não os reconhecia. Quem sabe? Ainda ali, por certo, alguma coisa o prendia, o atraia, como um canto enganador de sereia, como os tentáculos viscosos de um polvo, molemente atraindo-o para o fundo de um abismo em que se encontra a morte. Em Versalhes, conserva-se ainda no centro o quarto, com o leito e os móveis de Luís XIV,"le roi soleil "6, em tudo orientado pela grandeza solar.

Ele havia olhado o seu retrato, que se achava naquele quarto, feito de cera, com longos cabelos verdadeiros, expressivos, e o olhara com antipatia. Detestava os soberbos, particularmente aquele soberbo. Mas havia tocado com interesse os quixotescos e frívolos gobelinos do quarto de Luiz XV, dirigira-se ao Grand Trianon, ao Petit Trianon, à Maison de la Reine, sobre o pequeno lago, havia explorado os recessos do parque, procurando nos pequenos aposentos de Versalhes a figura de Maria Antonieta. Luiz XVI mal aparecia, grosseiro, apagado, insignificante. Mas as vibrações mais decisivas permaneciam e lhe falavam. Todo um mundo de loucuras, frívolo e trágico. De Versalhes, ele o seguiu com o pensamento a Paris, às Tulheiras, para a trágica fuga de Varennes, ao Templo, e por fim à guilhotina de Luiz Capeto e de Maria Antonieta. E o Delfim desaparecido. Eis o período do terror, os cárceres regurgitantes de aristocratas condenados. Eis Robespierre, elegante, o incorruptível, e Danton e Marat, devorados pela sua própria revolução. E tudo se afunda no sangue. O terror da revolução era o seu próprio terror, e ao rebuscar-lhe as causas, nas imponentes salas de Versalhes, arrepiava-se, como diante de uma sensação real.

Ele se perguntava: que tenho eu com esse mundo, como as suas culpas podem ser as minhas, qual é o significado desta sintonização, que me faz vibrar com os seus episódios, desta atração que me prende, pois tudo isso eu sinto reviver em mim? Está ali, talvez, a causa da minha atual expiação, que por isso adquire forma tão precisa e específica, a ponto de parecer a correção daquelas culpas? Por que uma tal correspondência de sensações e de posições? O fato de que a dor não golpeia ao acaso, mas insiste, quase com lógica e método, sobre certos pontos, que numa vida são quase sempre os mesmos, faz nascer a idéia de uma expiação específica. E é ainda justo que uma dor seja a correção de determinados erros, e erros próprios, e em proporção a eles, e não dos erros de um místico e distante Adão, do qual, tão pouco se sabe. Só assim a vida é escola, é campo de provas, em que se corrigem antecedentes, só assim se adquire o senso de completa justiça na dor, da sua utilidade específica e do seu funcionamento lógico. A dor tem assim uma explicação e uma justificação precisas, um significado mais convincente, e resulta, não só de modo vago, mas também prático e exato, em nossa utilidade.

Ele satisfazia assim à sua necessidade de ver claro os porquês da sua vida e dos seus atos, e de traçar a rota do seu destino, porque esta continha também os seus objetivos. Uma coisa, apenas, não compreendia: como podiam os seus semelhantes viver sem sentir a necessidade de se orientarem, de precisar o significado específico da sua vida e o conteúdo a lhe dar.

Era certo que percebia esta sintonização, instintiva e indiscutível, com ambientes históricos contendo condições de vida que ele verificava estar revivendo, agora, de maneira inversa, contraditória, como uma compensação. Por que esta sintonização, esta atração de simpatia justamente por aqueles ambientes, e como nunca esta correspondência de posições contrárias? Não podia cientificamente negar, "a priori", a possibilidade desta impregnação vibratória das coisas, nem a sua atual irradiação, após a saturação no passado, nem a possibilidade de um hiper-sensitivo, como ele, pesquisar essas correntes vibratórias, registrá-las e com elas sintonizar-se, fosse por concordância ou dissonância, simpatia ou antipatia, segundo a natureza das próprias ondas psíquicas. As últimas descobertas científicas o induziam a admitir a possibilidade de estabelecer relações com ondas longínquas, a nova ciência das vibrações o levava justamente a tais conclusões.

Só quem vegeta sem sofrer pode ficar adormecido na ignorância e contentar-se com as simples explicações filosóficas sobre a dor. As belas teorias servem muito, mas para as dores alheias. Quem sofre, porém, seriamente, a sua própria dor, não encontra a paz enquanto não lhe descobre pelo menos as causas. Se para outros a sensação fundamental da vida pode ser de gozo, e a posição normal de tranqüila inconsciência e de inércia, para ele, para quem a sensação da vida era de dor, a posição normal não podia ser senão de atividade e de procura. Ele era, portanto, um investigador nato. E queria resolver não só o problema do conhecimento sem sentido universal, mas sobretudo no sentido particular do seu próprio destino.

À força de observar, de procurar sintonizações diversas, guiado por um senso especial e uma sensibilidade sempre mais refinada, com o avançar da vida pela escola da dor, impulsionado pela necessidade de escapar de uma existência que era prisão para o espírito, à força de experimentar, confrontar, meditar, conseguiu estabelecer confrontos, e depois relações de causalidade, que assim lhe deram, ao menos por meio de hipóteses, uma provável explicação do seu estado atual. Porque uma hipótese de trabalho era o mínimo necessário para poder trabalhar no desenvolvimento do seu destino. E seguiu, aplicou esta hipótese, porque ela correspondia àquela íntima convicção instintiva que está além de todo raciocínio, e que é a que mais persuade; aplicou-a, porque ela concordava com as leis que ele descobrira reger o funcionamento orgânico do universo, e isso harmonizava o seu espírito; porque, enfim, era ela a única coisa que lhe dava uma lógica explicação de tudo, permitindo-lhe satisfazer a sua necessidade de compreender e de agir, com conhecimento e retidão.

Podia assim reconstruir um pouco da sua própria história e aprofundar o conhecimento de si mesmo. Bem poucos, cremos, sabem dar uma resposta à pergunta: quem sou eu? Para descobrir uma, tentou a grande aventura da exploração de si mesmo, conseguindo assim reencontrar alguns lineamentos da sua verdadeira, profunda, eterna personalidade. Conseguiu estabelecer paralelos e correspondências entre hipóteses e experiências, e a descobrir uma explicação dos fatos presentes, dos seus próprios impulsos instintivos, das idéias e atitudes inatas, do desenvolvimento da trajetória da sua vida, da natureza e significação do seu destino, e a encontrar, portanto, a direção a dar à própria atividade, para fazer da sua existência terrestre não uma vaga tentativa, mas um trabalho orgânico e consciente. E pôde precisar o significado daquela sua íntima sensação de queda, daquele seu temperamento incomum, daquela sua inadaptabilidade ao ambiente humano, daquele seu senso tão doloroso da vida.

O seu passado era, sem dúvida, extenso e rico de profundas experiências. Não podemos aqui aludir senão às mais típicas e mais decisivas. Um conhecimento havia sido, pois, conquistado e, embora ofuscado, mais tarde, pela queda, ainda restava, porque aquilo que uma vez se conquistou não se pode mais perder. Ainda quando a consciência humana oprimida pelo cansaço de mil dores, houvesse naturalmente vacilado, havia nele um subconsciente gigantesco, que nenhum assalto podia destruir. Mesmo marcado por mil fadigas, arrastado por um destino de expiações cruciantes, inexoráveis e tenazes, até às portas da sua alma, aquele passado estava escrito, indelevelmente, no seu subconsciente, era seu, como inalienável produto do seu trabalho. Diante desses substratos da personalidade, a dor não pode destruir, mas somente elevar, aperfeiçoando o indestrutível. Em tais casos, a dor que aniquila e avilta os normais, ao contrário, exalta, eleva, embeleza; é instrumento de ressurreição.

Havia, entretanto, entre ele e aquela luz do seu passado, um período de trevas humanas, de graves erros queridos pelos quais, era responsável, e que gravavam o seu espírito alado e o ligavam às tristes vicissitudes da dolorosa experiência terrestre. O seu destino, portanto, enquanto revelava, de forma evidente, a função redentora da dor, continha também, de maneira superlativa, essa trágica alternativa de treva e de luz em que se desenvolve a luta mais sangrenta da vida; seu, de maneira particular, era o grande drama do bem e do mal, que é o eixo do mundo. O significado da sua atual experiência era, sem dúvida, em primeiro lugar, o de expiação; dada a sua posição, assim estreitamente individual, a sua vida era uma prova dolorosa, para ressarcimento de equilíbrios perturbados, para correção de experiências, erradas, para atingir a assimilação de novas experiências, dirigidas agora em sentido oposto, difíceis de suportar, mas destinadas a construir na sua alma qualidades mais elevadas, que ainda lhe faltavam. A sua via não podia ser outra, senão a da cruz. Em meio a tantos caminhos diversos, de tantos homens diversos, este era o tipo do seu destino. Cada qual tem o seu, como tem a sua personalidade, o seu tipo inconfundível. Na vida social os destinos se enredam em ações e reações, se chocam, se influenciam, se corrigem, mas não se confundem nunca, e cada um permanece nu e só, diante de si mesmo.

Mas além da cruz esplendia a libertação, além da luta pela redenção, surgia a ressurreição. Expiação pela dor era, portanto, a primeira palavra de ordem da sua vida, no caminho da cruz; mas havia depois, também, um outro aspecto. Mesmo subindo pela via dolorosa de Cristo, haveria espaço para ele prestar benefícios, em alguma parada, em algum descanso, em algum afrouxamento das tenazes fatais, lhe restaria ainda uma possibilidade de missão, para conceder aos outros, no inferno terrestre, alguns reflexos da luz uma vez conseguida e que permanecera inesquecível.

Este destino que narramos, vê-lo-emos desenvolver-se no caminho do Calvário, sobre as pegadas de Cristo. Não se trata mais, agora, de simples sintonização, talvez pela memória, com ambientes medievais franciscanos, de um amor pelo santo da bondade e da humanidade, que quis fazer a experiência integral do Evangelho, mas da convergência de todo um destino, como prova de dor e como missão, para a figura de Cristo. Trata-se de uma suprema experiência toda tensa na realização vivida do pensamento, da bondade, da paixão de Cristo. Veremos, mais adiante, o grave sentido destas palavras e a que tipo particular de experiência humana, orientada para o divino, a vida que relatamos quis realizar ou, pelo menos, sonhou e procurou atingir. Veremos uma tentativa, direi, quase desesperada, em face do homem atual, de uma integral aplicação do Evangelho. E veremos a desforra do mundo: as resistências, as reações, as condenações, as falências e as traições, escárnio de quantos quiserem fazer, no campo do espírito, qualquer coisa verdadeiramente séria. Registraremos choques, incompreensões, anacronismo. Um dia o encontro entre o nosso homem e o mundo ocorreu e então já não foi mais possível retroceder.

Mas Cristo esplendia naquele destino, no seu passado, no seu futuro. Como uma lembrança e como um pressentimento, o envolvia todo em luz, tanto que o breve espaço daquela vida de treva dolorosa se fechava entre dois esplendores. Aquela luz estava antes da culpa e depois da expiação. Cristo era a sintonização mais palpitante daquela vida e sempre ressurgia diante daquela alma, sempre com profunda emoção. Este era o sulco mais fortemente traçado e que ali se tornara indelével. Parecia, sempre, àquele homem ver a grande e amada figura andar pelas terras da Galiléia, às margens do lago de Tiberíades, de Belém a Nazaré, a Jerusalém, da pobre manjedoura o Getsemane e ao Gólgota. E a seguiria como exemplo, em silêncio, pelos caminhos da vida, amando e sofrendo. Cristo era, para ele, antes do nascimento e depois da morte, a última síntese de todos os valores humanos.

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6 - “O Rei Sol” (N. do T.)