A sua grande festa do espírito, a sua exultante euforia, o florescimento daquele complexo destino durou dez anos. Neste período, abandonou-se plenamente na alegria do cumprimento de sua missão. Nos únicos dois meses que, no verão, o seu trabalho lhe deixava livres, conseguiu escrever um milheiro de páginas que publicou em artigos e volumes. Sentia a concepção tão madura e pronta dentro de si, que não lhe tomava tempo. O trabalho normal de preparação cultural, bibliográfica, de assimilação do argumento estava já automaticamente realizado. Não precisava senão do tempo indispensável para a compilação material da escrita em duas vezes: uma primeira, ilegível para os outros porque feita com extraordinária rapidez, e uma segunda, cuidada, clara, para o editor. Os períodos nasciam já quase sempre automaticamente harmônicos e coordenados; a palavra vibrante e espontaneamente fundida ao pensamento, em estilo rebuscado, sem dúvidas, sem penosas incertezas, sem necessidade de corrigir ou refazer. A prosa era um ímpeto de paixão e de conceito. Alternadamente, segundo o argumento, ele sentia arder a mente ou o coração, e vivia nesta chama da qual sentia ter saído e por cujo intermédio estava sempre alimentado. Esta chama tinha a função de criar os escritos ardentes que nasciam nele e em rápido incêndio e a de transformar o nosso homem, operando nele ainda mais intensa maturação espiritual.

Vários elementos e momentos se interpenetram cooperando para a maturação desse período:

1º A maturidade de um destino em pleno rendimento. O sujeito em alta tensão espiritual, da qual jorrava a produção contínua e no qual reside a sua realização no cumprimento da missão. Estado de grande rendimento também como resultado prático.

2º No exterior, um mundo surdo e negativo que admira só o lado espiritualmente insignificante do fenômeno, isto é, a posição econômica concedida ao sujeito pela Divina Providência, somente para que ele tivesse na terra em que se apoiar, sem lhe faltar o necessário. Ele está, temporariamente, afastado deste mundo por uma incompreensão que se transformará em agressão à medida que, continuando a publicação de suas obras, melhor se compreenda o seu pensamento. Há, todavia, pequena minoria de eleitos que será chamada a colaborar; que compreende e encoraja. Apoio concedido pela Providência para que a missão se pudesse cumprir.

3º A Alta tensão espiritual, a permanência do sujeito nesta elevada atmosfera, neste estado de graça - permitiram-lhe a aceleração da maturação evolutiva, a uma tão rápida expansão de todo o seu ser para o alto, que o fenômeno se precipita da fase inspirativa na catarse mística e o registro conceitual transforma-se em contemplação e visão. Com esta realização suprema conclui ele este período.

A grande força que sustinha tudo era o seu íntimo incêndio espiritual. No momento, vivia disso e, mesmo exaurindo-se, não desistia, não sentia cansaço. Depois, à satisfação interior juntava-se a pura e intensa do triunfo exterior. Os seus escritos tinham encontrado subitamente os melhores editores e se traduziam e divulgavam no exterior. Como escritor, ignorado entre os mais ignorados, surpreendeu-se e explicou o milagre com a intervenção, também nesse campo, da Providência que agora tão decididamente lhe abria novos caminhos. Em sua vida privada, já obtivera provas surpreendentes. Também aqui uma inteligente convergência de forças queria, preparava e agia. Ele, marinheiro de primeira viagem, navegava em pleno oceano, na tempestade, entre tantos escolhos, sem os evitar e com êxito. Alguém devia, certamente, dirigir por ele, pois estava absorvido no trabalho de execução. Avançava com segurança e sucesso, sem hesitar, deixando-se guiar por um instinto que resolvia e concluía, sem lhe revelar a análise nem o segredo de suas operações. Era a hora da abundância e nenhum auxílio se recusava. Seu nome se divulgava e se tornava notório. Por um momento, ele foi quase tão humanamente ingênuo a ponto de acreditar na fama. Mas, não experimentara ainda senão uma pequena parte dela - e já compreendera que amargo engano ela significava e tratou de se livrar dessa ilusão na qual tão facilmente se cai. O mundo via os efeitos práticos, admirava e aplaudia - justamente esse mundo que de novo se preparava para a condenar. Alguns, de espírito de eleição, tinham compreendido não os rumores, mas as originárias alegrias e dores

No entanto, nem tudo era sempre festa no seu trabalho. Havia as horas de embriaguez da concepção; havia os auxílios da Providência, que pareciam miraculosos; havia a realização de si mesmo em resultados concretos. Mas havia também o cansaço do trabalho; as resistências estúpidas do mundo cego e inerte; o tormento de mil pequenas dificuldades que precisava superar por si mesmo. Já estava assoberbado por outro trabalho que lhe tomava as forças e a energia. Tinha que roubar horas ao sono e o organismo ressentia. Violava a lei do equilíbrio impondo-se um esforço demasiado violento, que a natureza havia de lhe fazer pagar. A alta tensão nervosa exauria-o. Em volta, tudo ficava indiferente ao seu fragílimo estado de hipersensibilidade. Continuava a caminhar pela sua estrada, ignorante da tensão que o empurrava, às vezes, brutalmente. Ninguém compreendia, nem admitia este segundo trabalho, esta sua segunda vida invisível em que se atormentava. Os seus superiores exigiam dele, justamente, constante rendimento. A vida tem suas leis desapiedadas. E ele não tinha senão os seus pobres meios para avançar, e temia que lhe pudessem vir a faltar as forças antes de terminar toda a obra.

As férias de verão oficialmente significavam repouso. Quando ele, exausto de seu trabalho, retornava às ocupações humanas, os superiores o esperavam para lhe dizer: "Agora que repousou bastante, trabalhe". E ele trabalhava.

Era um trabalho monótono, insípido, tão anti-intelectual que o estupidificava. Fora apanhado justamente no período de mais violenta produção, por um superior sem energia, nem discernimento, mas em compensação implicante até ao exagero. Pobre infeliz! Quem sabe em que miséria física e moral terá lutado pela vida! Não era capaz de compreender que não tinha o direito de se fazer socorrer por quem estava em piores condições que ele. Quando, finalmente, se foi embora, foi uma libertação para todos.

Morreu a mãe de nosso protagonista. Pois tiveram a coragem de não lhe dar nem um dia de licença. Uma vez fizeram-no voltar de mais de cem quilômetro de distância, quando estava nas férias de verão, perdendo um dia de viagem, apenas para fazê-lo escrever duas palavras esquecidas numa ata. Coisa de loucos! O nosso homem amava o trabalho, o trabalho eficiente, não as inúteis formalidades burocráticas. A perda de tempo sempre lhe parecia um crime.

Nestes pequenos contrastes, na resistência cotidiana de uma vida simples e pobre, ele se temperava. Certas humilhações tinham a força de lhe aprofundar o pensamento e de lhe adoçar o julgamento de seus semelhantes, que são mais doentes que maus, embora relativamente culpados. Evangelicamente, suportava e exercitava as virtudes da humildade e da paciência, desprezadas pelo mundo que exalta a força e a vitória. Em certos momentos, desdobrava-se, e como esteta da beleza moral, contemplava as suas condições de vida. E achava moralmente artístico alguns contrastes violentos: achava moralmente confortadores certas condições de abatimento humano. Em cada momento ele era, sempre, o irredutível inimigo do mundo, a ponto de não encontrar a sua própria exaltação senão na renegação, na subversão, na destruição de tudo o que o mundo exalta.

O seu trabalho desenvolvia-se no local de um velho convento. Às vezes tinha de ficar trabalhando até tarde da noite para terminar qualquer serviço atrasado. Acontecia, com freqüência, ter diante de si uma daquelas terríveis atas, prosa sem sentido em que o superior examinaria, depois, até as vírgulas. E tinha de preparar diversas. A mente fugia para outros lados. Por dentro ardia um incêndio de pensamentos vivos, anelantes, que não sabiam ossificar-se numa ata. Tinha de escrever e a mente rebelde divagava, tanto mais ativa quanto mais detestável era o trabalho a realizar. O edifício era frio, desolador, tétrico no silêncio, e na solidão! Daquelas paredes nuas emanavam vibrações pesadas que lhe davam penosa sensação de tristeza. A pena parava e a mente divagava. Aquele mosteiro parecia-lhe a Cartuxa de Valdemosa onde Chopin, aterrorizado por íntimos pavores, compunha em seu pobre piano maiorquino, sozinho, na noite tempestuosa, os amargurados prelúdios. E também, como Chopin, ele via desfilar pelos tétricos e silenciosos corredores uma procissão de frades salmodiantes, à incerta luz de candeias. Fitava os olhos mortos e perguntava: "Quem sois? Por que a vida e a morte? Por que vivestes? Por que sofro? Por que se deve sofrer tanto?" E a fila continuava e desapareciam quem sabe onde, com o cântico lento e dilacerante. E ele despertava sobre a ata. A vida batia-lhe com ela na face, como bofetada.

Voltava para casa tarde, seguindo caminhos escuros e solitários. No inverno fazia muito frio naquele povoado de montanha e ele morava justamente numa garganta entre morros, onde a ventania soprava com violência. Mas, o que ele temia eram os homens e não os elementos.

Sua casinha estava situada entre ásperos escolhos, aberta para o vale onde dominava o vento. Era simples e pobre, e em torno, a força dos grandes movimentos telúricos parecia ter imobilizado as massas em atitudes de gigantes. Essa paisagem estava em perfeita sintonia com seu espírito - paisagem toda feita de força, com evidentes lineamentos audazes e violentos nos quais a vertical era dominante. Estava em perfeita sintonia com seu espírito, exprimindo o mesmo doloroso anelo de ascensão, essa paisagem atormentada, contorcida como se o espasmo de uma íntima dor criadora tivesse ficado impresso na sua carne martirizada. Quanto devia ter lutado essa terra forte e ousada para elevar-se a essa altitude! Aquelas ciclópicas contorções telúricas pareciam falar-lhe do profundo tormento construtivo da ascensão, de que ele próprio sofria. Também a terra, no seu plano evolutivo, muito havia lutado e certamente sofrido, para poder chegado a formação daquelas soberbas catedrais de rocha, obedecendo ela também à lei que ordena que sem o profundo e íntimo trabalho não se pode construir coisa alguma. Ele que, com audácia semelhante, tentava construir a catedral do pensamento, via-se na tensão daquelas agulhas de pedra e se encontrava a si mesmo, meditando como, para chegar também ao vértice do espírito, fosse necessário atravessar e sofrer as mesmas convulsões, iguais desabamentos de planos inteiros de consciência e semelhantes reações de emersões salvadoras.

Em seu quarto não havia senão o leito; não havia ali outros seres humanos para disputar-lhe a estrada, livre para se comunicar com o céu. Quando voltava, a casinha estava deserta. Tudo estava em ordem, como deixara, mas faltava o calor do afeto. A temperatura da casa era muito fria, mas isto não era nada. Ela era fria, sobretudo para o coração. Era angustiante. Às vezes sentava-se, sozinho, nas escadas diante da porta, sem ter coragem de entrar, para não sentir aquele gelo. Também aqui se temperava. Certas solidões, intensamente dinâmicas e fecundas, são sofrimento útil e precioso. A sua solidão não era nem pacífica aquiescência, nem inércia de espírito. Era um silêncio desejado e apenas exterior, para melhor ouvir a voz de Deus; era uma calmaria aparente, plena das mais macerantes tempestades e laboriosas maturações de alma; era uma inércia das coisas admitida apenas para não perturbar o ardente dinamismo interior; era uma sufocante compressão de fora que condicionava a explosão criadora interna. A gélida privação de afetos humanos é, talvez, um constrangimento necessário para se encontrar o amor evangélico pelo próximo.

Passava os longos invernos de montanha naquelas solidões geladas e nervosas entre as tempestades e os montes. A solidão é espantosa e sublime. O homem comum lhe tem quase medo. Encontra-se sozinho diante dos grandes mistérios da vida que dá vertigem. Sufocam-no os grandes silêncios onde falta o Eterno e a alma escuta. É como se ele não tivesse força para se apoiar nos pontos de referência situados no absoluto, por cima do seu cotidiano relativo. Mas o nosso homem não temia aquele silêncio. Solidão gelada, digna de ser vivida. "Bem - dizia ele - à porta da minha casa, a humanidade hesita, cala-se, não entra". E o seu vulto, batido pelo pensamento, curvado pela dor, o seu olhar triste e profundo, tornava a voltar-se para o alto, para o céu. Visões desciam, então, a confortá-lo e, então, mais forte se fazia o turbilhão de sua vida espiritual e o seu ser se expandia para o alto, inebriando-se de liberdade. Sentia quanto fazem bem à alma e quanto são necessários estes grandes e terríveis silêncios, para chegar ao fundo, onde está a realidade das coisas, além das aparências e das ilusões humanas. Renunciava à vida de todos para conquistar uma nova vida; recebia revelações que depois divulgava em seus escritos.

Tinha que descer muito profundamente para ouvir a voz de Deus. Seus leitores pensavam que o estro inspirador, que tudo parecia criar de golpe com tanta espontaneidade e facilidade vinha-lhe gratuitamente, sem esforço. Não! A lei é que, sem dor não há criação. Sabia quão duramente merecia aquela inspiração vertiginosa; com que profunda maceração na dor e com que lenta maturação fora preparada. Sabia que somente sob tremendas chicotadas do destino podiam nascer certas páginas que pareciam escritas com sangue; que somente sob o estraçalhar do espírito podiam surgir aquelas palavras que soavam com o timbre do bronze, aquela concepção lampejante e profunda que parecia mover a essência das coisas. E sabia também, e muito bem, que a vida do espírito tudo pede exige para si, não podendo competir com os lucros, os interesses, as satisfações humanas. Precisava, portanto, fazer o mínimo daquilo que é humano, que é terreno, e negar comodidades ao seu corpo, para ser livre no espírito, independente de tudo e de todos, para que nenhuma necessidade material o fizesse cortejar os bens terrenos e aqueles que os possuem. Urgia possuir a coragem heróica de não ter piedade de si mesmo, pois que sem sacrifício e renúncia não se realiza a missão e não se consegue chegar a elevado destino para o bem dos outros. Sabia que para criar é preciso purificar-se e que para se purificar é preciso arder e consumir-se. Para ouvir a música de Deus e fazer explodir o irrefreável canto interior, teria que viver a trágica surdez de Beethoven, a consumpção de Chopin e os tormentos de Catarina de Siena; devia voltar as costas ao mundo para poder voltar a face para Deus. Sabia que o caminho empreendido implicava um empenho sério e tremendo com Deus e consigo próprio, de perseverar na luta contínua do espírito até conseguir a libertação no espírito. Tinha que morrer para renascer; devia ter, primeiro, sentido toda a sua dor e a sua parte da dor do mundo, porque só quem se dá em holocausto e superou o martírio da própria humanidade - pode ressuscitar no paraíso e ouvir a música divina.

Cada uma de suas palavras gritava ao mundo que, sem o sofrimento profundo, nenhuma grande criação é possível; sem despedaçar a alma a inspiração não vem, porque até ao céu não se chega. Para chegar ao triunfo era necessário trazer sempre alta em nome de Deus a chama sagrada, queimar-se no incêndio das labaredas para que levasse a Deus a voz de sua alma até o último alento. Sabia de tudo isto e se atirava ao duro trabalho, lutando tenazmente, em silêncio.

Assim vivia em simplicidade, reduzindo ao mínimo, para ser livre, as necessidades humanas que servem à matéria, totalmente preso a uma gigantesca vida do espírito. No exterior, nas maravilhas do criador, a magnificência da obra de Deus - no interior uma ciclópica tempestade de pensamento. Outras coisas mais próximas traziam sofrimentos à sua alma. O povoado era pequeno e, como todos os povoados estava ávido de tudo indagar, para se abastecer daquela nutrição cerebral necessária a todos. Os mexericos reinavam como mosquitos importunos, girando-lhe sempre em torno. Ele se reduzira à vida de um frade: solidão e trabalho são fraco alimento para o apetite dos curiosos. Parecia-lhe viver sobre o palco, diante de uma platéia. Aquela observação contínua e, sobretudo, a frivolidade com que era exercida, incomodava-o. Nada é mais terrivelmente desapiedado que a inconsciência irresponsável. Só os maiores imbecis são capazes de cometer as mais atrozes crueldades e por isso mesmo merecem perdão. Os rapazes que andavam pelas estradas daquele povoado montanhoso sentiam-se no dever de, apenas o viam, insultá-lo com palavrões e, naturalmente, por excesso de coragem, sempre de longe. E ele indagava que grau representavam aqueles rapazes na evolução espiritual humana, que lei biológica do desconhecido instinto movia o insulto tão pronto e sinceramente sentido daqueles inconscientes. Nascidos ontem, eles sabiam perfeitamente repetir as cenas velhas de vinte séculos, mas sempre novas e renovadas, da crucificação de Cristo. Certos juízos que faziam dele, com superficialidade e ligeireza, amarguravam-no. Há vidas obscuras, tristemente aprisionadas no silêncio; dores mudas que, mais que as outras, merecem respeito. Não sabia explicar certa persistência na maldade senão levando-a à conta de profunda inconsciência e de completa insensibilidade.

O riso escárnio do julgador está perturbado pelo terror de poder compreender e dever admitir que, naquele silêncio existe um drama que não se ousa afrontar e, em conseqüência, há também um heroísmo que olha tudo de cima. Talvez haja nisso um destino de trabalho e de dor que, para ser mais trágico, se veste de ridículo. Faziam-se dele os mais disparatados juízos. Decerto, quase ninguém compreendia. Entre outras coisas, ele não era considerado religioso, porque era pouco praticante. O mau cheiro emana da multidão mesmo quando está nas igrejas. As verdadeiras preocupações que ele sentia dominar o espírito sufocavam-no. As emanações espirituais daqueles ajuntamentos tolhiam-lhe a respiração e ele tinha que fugir. E assim passava por misantropo, soberbo, incréu. Sofria por ver em muitas pessoas devotas a virtude reduzida a pretexto para censurar o próximo, por ver tanto zelo na subversão do Evangelho.

De outro lado, como poderiam renunciar a isso se tinham conseguido, quem sabe com que estratagema, realizar a difícil tarefa de conciliar o ímpeto dos instintos agressivos com a persuasão, embora ilusória, de assim poderem conquistar o paraíso? Ele perdoava e não deixava passar ocasião de, em segredo, ajudar. Em lugar de se magoar sentia que ao julgamento de um pequeno mundo não devia dar importância alguma, pois era muito fácil compreender quão pouco isso valia.

Quando se encontrava diante da má vontade do próximo, dizia a si mesmo: "quem deseja me fazer mal não pode senão fazer-me bem; só pode fazer o mal a si próprio. Não posso nem devo tolher-lhe o direito de experimentar e, sofrendo, compreender. Não tem culpa da sua involução, insensibilidade, ignorância das leis da vida. É bom que sofra. Mas eu devo perdoá-lo e tenho que o ajudar a redimir-se".

Apreciava o contínuo recuo das coisas e das pessoas - porque o destacavam da terra. Aquele silêncio, aquela solidão desolada, aquele desconforto na luta contra os elementos, o trabalho, a tolerância e a incompreensão - ele sentia bem no coração - eram as condições de sua ascensão espiritual. Que profundidade de sensações íntimas naquela tristeza, que intensa vida interior, que fervor de maturação!

Ele que compreendia, apreciava e tanto amava estas coisas, nelas encontrava grande recompensa. Sabia como são necessárias, para se conseguirem certas conquistas espirituais, as condições de sofrimento, sobretudo morais: lacerando, destacam, destruindo, criam. E toda uma elaboração íntima que renova. E ele a gozava profundamente.

Algo do mundo do espírito descia para compensá-lo da falta de satisfação das necessidades mais elementares e fundamentais da vida de sentimento. Enquanto que aos estranhos parecia misantropo e egoísta, era, em verdade, uma alma ardente e apaixonada. Tinha necessidade de expansões superiores. As pessoas comuns, mesmo boas, lhe pareciam terrivelmente superficiais, vazias, inertes e absolutamente incapazes de compreender como se lhe afiguravam assim. Uma voz íntima lhe falava sempre na alma e ele se punha a escutar. Eram colóquios em espírito, feitos somente de pensamento, sem sons nem forma de palavras, mas plenos de conceitos e de bondade. Havia toda a substância de um ser pensante, mas nada de sua aparência. Os seus sentidos não viam nem ouviam; percebia igualmente com os sentidos da alma uma vibração bem individualizada que se dirigia a ele e o tocava. E era confortante. Parecia que aquela voz tinha a faculdade de dissipar sua tristeza, de preencher sua solidão e o persuadia sempre para o bem, como se fosse pessoa viva. Ele ouvia com afeição. E a voz nunca o repreendia., mas o aconselhava e encorajava. Quantas vezes, na angústia de alguma contrariedade, tornara-se tranqüilo! Nenhuma voz humana proveniente de fora fôra jamais assim convincente como esta voz interior. Como poderia uma criação ilusória de sua fantasia chegar a tais extremos? Como poderia uma alucinação persuadir e acalmar? Como poderia um desdobramento de consciência conter um pensamento diverso e oposto ao do sujeito, a ponto de provocar discussão, um pensamento superior a ponto de discordar do outro pensamento e no entanto deixar o indivíduo satisfeito? E, depois, aquela voz era tão sábia, tão elevada, tão bondosa! Parecia-lhe ouvir a voz de Cristo. E o doce sonho, às vezes vivo como uma recordação, embalava-o e, em todas as suas atribulações, sempre o pacificava.

Às vezes o colóquio se fazia tão intenso, tão forte aquele pensamento batia às portas de sua alma, que lhe parecia encarnar uma forma branca, luminosa e diáfana, que lhe recordava a figura de Cristo. E ele a olhava para fixar-lhe os lineamentos feitos de luz. Às vezes, sentando-se à mesa, era tão viva a impressão da presença dessa figura, que ele, sem o querer, punha outro talher, como se tivesse um comensal. E este lhe sorria com um sorriso todo seu, de quem compreende e perdoa e mirava-o com um olhar que parecia atravessar-lhe toda a alma. Surpreendia-o, acima de tudo, a força de penetração daquele olhar que, no entanto, mal se distinguia. Parecia que nada se poderia esconder dele, nada lhe poderia resistir e que cada pensamento se tornava, para ele, transparente. Aquele olhar era uma tal síntese de vida, uma vibração tão intensa e total, um raio tão potente, quente e profundo, que persuadia com a sua simples presença.

Não se explicam tais fenômenos dando-lhes, apenas, nomes de origem grega e com os definir como anormais ou patológicos. A ciência das vibrações está apenas nascendo e não temos autoridade para negar "a priori" a possibilidade de fatos de ordem suprasensorial, só porque não se deixam medir pelos nossos grosseiros instrumentos. E mesmo que se tratasse de ilusões, cometeria delito uma ciência que desejasse privar a alma deste conforto, sem saber fornecer nada capaz de o substituir.

Assim, ignorado do mundo, na paz e na solidão, de uma vida simples e obscura, protegido pelo silêncio, florescia este doce sonho fervoroso e tranqüilo, em que palpitavam as recordações da Galiléia. Era como se o céu, às vezes, desejasse e pudesse descer à Terra, a esta nossa terra infernal -, mas furtivamente, protegendo-se com formas sutis e evanescentes, que, para os sentidos grosseiros do mundo, permanecem invisíveis e assim podem escapar à sua intervenção agressiva e destruidora. E assim o alto pode, com tranqüilidade, operar sua irradiação de força, inundar com ela alguns seres, produzindo aquelas profundas saturações espirituais que são a premissa necessária de certas explosões que depois o mundo se limitará a comprovar, a aceitar, sem ser capaz de lhe traçar a misteriosa preparação.

Ele as absorvia lentamente, num estado de idílica simplicidade, defendido ainda pelos mal-entendidos em que caem a ignorância e a insensibilidade humana que, nada vendo, nada pode destruir. Ninguém podia imaginar que tempestades se preparavam naquela serenidade, quantas dores já continham aquela alegria. Nada de estranho, afinal. Se certos fenômenos fossem compreendidos, neles se veria a lei que, para o grande e o pequeno, é sempre a mesma.

Assim como a profunda elaboração da matéria na formação do feto se processa oculta à luz exterior, protegida de invólucros, toda entregue a um fervoroso trabalho interior, e só nestas condições pode o novo ser vir à luz e lançar o seu grito de vida, assim a profunda elaboração do espírito na catarse mística se desenvolve igualmente escondida e protegida e só à custa do trabalho interior de maceração e de aperfeiçoamento, de destruição e reconstrução; só quando um período de paz e de alegria produziu a completa saturação pode o novo homem vir à luz do mundo e aqui se afirmar com o seu grito de desafio. São necessários anos de silêncio, de vida oculta para fazer um homem, prepará-lo, dotá-lo dos meios de combate. A ingenuidade deste sonho idílico, do Evangelho sentido como alegria que desce do céu antes de ser a batalha que se terá de combater sobre a terra, como primaveril doçura de amor em vez de tempestade de desapiedado martírio, não era satisfação gratuita, mas premissa necessária.

E nesta espera o destino dava uma hora de repouso. Assim em paz e alegria se cumpria a catarse mística de nosso personagem. Houve uma hora culminante que é preciso narrar.

Uma tarde, voltando à pequena cidade onde vivia, tarde de inverno, sozinho, em carro de 3ª classe de um pequeno trem gélido e chocalhante, acomodara-se sobre o duro assento, com a alma amargurada pela solidão, num pressentimento de qualquer coisa dolorosa que se preparava. Ninguém o esperava à chegada. A casa estava gélida e vazia. Sentia a alma apertada num torno, uma tristeza mortal. Começou a orar, pensando na paixão de Cristo, revendo, na contemplação, especialmente a íntima cena espiritual do Getsêmani e revivendo-lhe a profunda angústia. Apenas mergulhara nesta visão interior, quando lhe pareceu ver, na cadeira defronte, aparecer, emergindo da sombra em que a luz incerta deixava aquele canto, uma como que fosforescência, uma luminosidade vaga que se ia fazendo mais intensa e definindo seus lineamentos em forma que, também desta vez, sem dúvida, tomava a semelhança de Cristo. E como de outras vezes, nascia primeiro o olhar e esse olhar lhe falava.

Observou longamente, para se orientar, para decifrar o pensamento que estava nas vibrações daquele olhar, que era um olhar triste e piedoso no qual parecia fundir-se toda a dor do mundo. Aquele olhar parecia descer de um vértice de amor e dor - a Cruz -, parecia evocá-la, como meio de redenção. E a voz internamente dizia:

"Eis que o meu amor te traz sofrimento. O mundo me foge e me engana, repele a redenção porque não quer sofrer. Eu dei o exemplo. Tu, que me amas e me segues, prepara-te. Eis que se aproxima a tua hora, a prova maior. Prepara-te. Eu dei o exemplo".

Aquele olhar anunciador fixava-se sobre ele e sobre o mundo. E ele o via reaparecer na doce figura de Cristo inclinada sobre cada homem que sofre. Quantas dores diferentes! E cada homem tem a sua dor e sobre cada dor se curvava aquela figura e aquele olhar. Quantas faces de Cristo apareciam ao mesmo tempo em tantos lugares diversos, junto a tantas almas angustiadas, com tantas diversas dores, dispensando a cada um o conforto! Ele via em fileira infinita multiplicar-se a figura de Cristo para a multidão imensa do mundo e a cada um repetir: "Prepara-te. Eis que tua hora se avizinha. Eu dei o exemplo".

Uma sacudidela mais forte acordou-o, advertindo-lhe que tinha chegado. Saltou do carro e se foi, sozinho, para a casa vazia, pelas ruas escuras e desertas. Aquele olhar o havia fitado por último, imprimindo-lhe na alma um sentimento inesquecível de amor e de dor. Talvez fosse um aviso de paixão, uma prova de união, uma ordem. Esse foi um momento culminante, que ele jamais pôde esquecer.