Encontrava-se bem esgotado quando chegou ao fim. É humano que, quando se chegue ao fim da luta, se espere encontrar, senão um triunfo, ao menos uma compensação adequada. E é indispensável encontrar um pouco de alívio, para se confortar e recobrar força e coragem. O normal para ele, nesse nível, era encontrar as mais duras provas. Tal é a lei desses fenômenos. Ele que superara a vida inferior animal para ressurgir na vida superior do espírito. Ele que saíra vitorioso dessa prova, assimilando-lhe toda a significação; encontrava-se agora diante de uma tarefa maior, constrangido a arriscar-se a uma prova mais árdua. Suas novas conquistas e qualidades eram subitamente provadas e examinadas. Chegava ferido no próprio espírito, privado subitamente de todas as suas alegrias e afirmações, golpeado no centro de sua nova vida, na sua nova consciência.

No decênio que agora findava todos os nós de seu destino se tinham afrouxado e desfeito; iniciava-se, agora, um período em que todos aqueles nós se apertavam de novo. Eis a compensação que ele encontrava depois de tanto trabalho e dedicação. Também a colheita é dor. Caminha, caminha! Quantas estradas percorrera para chegar e eis que estava, novamente, no começo! Quanto trabalho! Quanta canseira! Como é longa a vida de quem luta e sofre! Mas, eram necessárias novas dores, novas quedas e experiências, para não apodrecer sobre os louros e para poder ressurgir sempre mais alto! Por agora, porém, eram as trevas! Geralmente, vistos de fora, certos sentimentos incompreendidos parecem desfalecimentos que o mundo julga com desprezo. Mas é sempre grande o destino de uma alma que sofre e sofrendo se redime. Desgraçados dos que não se redimem, porque ninguém é perfeito. Se fosse perfeito não estaria na terra.

No belo sonho espiritual esquecera-se da realidade da vida humana. Até agora a sua existência fora projetada para o alto, fora uma estratégia de fuga do plano humano, da terra para o céu. E agora se lhe antepunha a experiência de sombra, como reação à precedente experiência de luz, uma fase de desolação, mas também de aperfeiçoamento por um lado ainda não explorado. Não escolhia nem desejava.. As reações que o rodeavam arrastavam-no, tornadas fortes pela sua fraqueza, e ele foi atirado em cheio àquele estado e teve que superar o embate desapiedado da realidade humana

O primeiro impulso do mundo, diante de uma construção nova, é agredir. Destarte avalia o valor e a solidez da mesma. É o exame da escola da vida, a garantia biológica. Era chamado a descer dos seus céus e constrangido a viver sobre a terra, que lhe impunha suas leis, reprovando-lhe a fuga. A realidade biológica esperava-o de emboscadas, para cair-lhe sobre os ombros e submetê-lo a exame, bem diverso da espiritualidade a que se habituara . O exame seria tanto mais severo quanto ele era menos preparado e sempre desejoso de fugir. A sua emersão de espirito se projetava sobre a terra; os seus superamentos o tornavam visível, o mal-entendido protetor de sua paz caía; compreendia-se que ele era o amigo do Evangelho e o inimigo do mundo. A luta devia, logo, provar a sua resistência, índice de seu valor substancial. Esta era a lei biológica que lhe impunha o seu férreo dilema: ou vence e reforçar-se, ou perder a ser eliminado.

As leis da terras são antes de força que de justiça; e de justiça apenas através da força. Não se tinha, dirigindo-se ao céu, colocado em posição de desafio para com a terra? Devia aceitar a luta. Não podia mais recuar, nem deixar-se ficar entre o céu e terra. Tomara uma posição extrema e decisiva. Obrigado, assim, a vir a campo, devia enfrentar, num desafio supremo, de vida ou de morte, o mundo que o afrontava e decidir: Vencer, ou morrer. O seu ideal devia ainda superar a prova da luta. Não era este, afinal, o ponto essencial de seu destino e não se cumpria nele a realização de sua missão?

Os seus livros, a sua vida, eram contra o mundo. A simples presença do autor e da sua obra eram para o mundo uma exprobração, uma acusação mútua e contínua. Isto era perturbador porque a vida real detesta o Evangelho e aquele que o vive seriamente. Quando se compreendeu qual era o seu verdadeiro pensamento e sua verdadeira vida, ou seja, a aplicação a sério do Evangelho, muitos se revoltaram, sinceramente escandalizados, mas sobretudo aborrecidos com as conseqüências práticas lesivas aos acomodamentos que tanto trabalho tinham custado para serem subtraídos à vigilância do espírito. Com palavras e ações ele perturbava o mundo e o mundo reagia. Condenava o mundo com suas medidas e o mundo retribuía-lhe do mesmo modo.

Achava-se em estado de exaustão nervosa e precisava de repouso, encorajamento e conforto. Mas, assim como estava, tinha de entender a suas obrigações, para ganhar o pão. E nem mesmo o fruto do seu trabalho, que de direito lhe pertencia, o guardava para si; dava-o para ajudar os pobres. Se algo sobrava, ele se considerava apenas como depositário que guardava para alguém que pudesse precisar mais do que ele. Cansaço, cansaço - era o que lhe minava cada vez mais a saúde. Não lhe restava senão um duro trabalho mecânico e uma vida oprimida por todos os gêneros de contrariedades. A natureza vingava-se asperamente de quem violara suas leis fundamentais de conservação. O menor dos incidentes parecia encarniçar-se contra a pessoa. Não sobrara para ele, que saboreara a grande alegria da vida do céu, senão a amargura da vida bestial da terra. E o grande incêndio interior, que o animara, extinguira-se. O facho tombara e jazia sobre a terra em cinzas. Vivia nas trevas, nas quais dominava uma sensação, certamente irreal mas não menos viva por isso, do abandono por parte de Deus. Essa sensação abria as portas à dúvida infernal: "Estarei enganado? Ter-me-ei sacrificado por um sonho, por nada?"

Todos os valores, construídos com tamanha fadiga, rolavam por terra, demolidos. Sobre eles passara uma tempestade destruidora, gelada. Seria forçoso, mais tarde, depois de passado o tufão, saber reencontrá-los, pegar aquele impulso e tonar a desenvolvê-los, refazendo-se desde o começo, para reassimilá-los desta vez em profundidade, com mais calma e consciência do que na primeira e precipitada conquista. Só isto lhe poderia dar estabilidade. Agora era necessário resistir, sobreviver ao esgotamento físico e mental, ao abatimento, ao abandono, à noite espiritual, aos assaltos materiais - sobreviver contra tudo com seus próprios meios e à sua própria custa.

Nos momentos mais difíceis, em vez de se desesperar, esperava, sentindo que há na própria força dos acontecimentos uma tendência a resolverem-se automaticamente, pela lei da vida. A experiência era terrível. Sentia-se acabado e tudo era contra si. Não havia meio de escolher. Não importava senão uma coisa: sobreviver. Os motivos triunfais de seu destino giravam agora como impetuoso vento de morte. A primavera era uma recordação longínqua - ela dera o seu fruto, que já fora recolhido. Era preciso, agora, atravessar o inverno e recomeçar o trabalho de preparar, desde o início, uma nova colheita. Tudo se lhe afigurava muito longe, inatingível, impossível, além de toda a esperança.

O mundo que condenava era extraordinariamente dividido em opiniões, credos, escolas e sistemas filosóficos, sociais, religiosos, científicos, políticos, literários e artísticos. Cada um proprietário de sua própria terminologia, freqüentemente centro de uma exclusivista construção orgânica de interesses que representa e sintetiza, armado contra todas as outras escolas e sistemas. A forma dominava a substância. O mundo era uma cacofonia de vozes discordes e rivais. Ele preferia a verdade simples do Evangelho, única, esquiva de forma, toda substância. Resolveria todos os problemas com simplicidade, indo direto ao coração do homem. O mundo estava divido em muitos campos, separados, exclusivistas, sempre em luta entre si, mas todos igualmente lutando pelo monopólio - única coisa em que todos estavam sempre concordes e eram sempre iguais. Não era tanto verdade universal, igual para todos, o que interessava, mas a solução do problema relativo, limitado, humano e imediato. Isto dominava na substância. E depois, no fundo de tudo, embora camuflado de mil formas, atrás de todas as fachadas, sempre a mesma verdade biológica do egoísmo e da luta. Em meio a tantas distinções, ele via que o mundo não fazia, em verdade, senão uma distinção: a do eu e do não-eu. Por outras palavras: "Você é do nosso grupo? Está conosco? Então, está com a razão. Não está conosco? Então está errado". Cumpria-lhe estar acima de todas as divisões e de toda luta, ser imparcial e universal. Tinha, ainda, necessidade de unificar tudo aquilo que tende sempre a se dividir. Procurava, em lugar da cisão, a unidade - unidade superior jamais disposta a cindir-se e abastardar-se para se transformar em interesse particular. Aquelas singulares verdades separadas apareciam-lhe como castelos murados e armados, onde a vida transcorria como na era medieval, dos tempos ferozes, obrigada a refugiar-se para não ser destruída. As barreiras materiais dos tempos medievais tinham caído, mas as barreiras morais permaneciam, impedindo o caminho a cada passo. A causa era a ferocidade dos tempos.

As verdades particulares estavam prontas para aceitá-lo, assim que ele circunscrevesse o seu pensamento e a sua atividade dentro de seus âmbitos. Ofereciam proteção, mas impunham a domesticação, a prisão. Impunham, sobretudo, o exclusivismo e o interesse dos homens que as professavam e a guerra contra o exclusivismo e os interesses de todos os outros, pois que nenhum homem defende outro se não vê nessa defesa a defesa de si próprio. Naturalmente, a culpa não era desses homens, a luta é a lei mais imperiosa da vida; coisa alguma poderá existir sobre a terra, até mesmo o céu, se a ela descesse, se não estiver preparada para guerrear e se defender. Não era culpa deles se "ataque e defesa" são a linguagem dominante na terra, onde tudo que deseje existir deverá assumir essa forma. Não era culpa do homem se tudo, para poder vencer, deve fechar-se em grupos, em coalizões de interesses, onde o egoísmo é necessário; cada um defende o seu grupo na proporção em que ele é o seu próprio eu, defendendo-se a si próprio. Não é culpa do homem se assim cada um é inimigo do grupo onde não se vê a si mesmo. E assim cada grupo combate todos os outros grupos, como nada "eu" combate todos os outros "eu". Não é sua culpa se o homem está imerso no relativo. Ele não pode compreender verdades mais universais do que es que cuidam de sua defesa sua vida.

Se se observarem as opiniões e teorias que em cada grupo cada um defende, ver-se-á que, não obstante a grande diferença, elas são invariavelmente iguais no fato de que as suas conclusões e a moral que trazem são tais que se dá razão a quem as professa, colocando-o em posição de superioridade em relação aos demais. Assim, o forte sustentará a filosofia dos fortes porque é forte; o astuto, a do astuto, porque o é. O mesmo com os fracos e com todos os tipos humanos. Nos fatos cada um sustenta a filosofia em que triunfa, jamais a em que permanece fraco e derrotado. Portanto, a verdade, praticamente, está na defesa de cada um contra todos os outros; cada opinião e filosofia em cada campo não é mais que um ato de afirmação egocêntrica, ditada pela exaltação do eu e pelo menosprezo dos outros. Neste nível, cada verdade mais alta se vê reduzida ao mínimo. Ë por isso que os grandes princípios, as grandes leis, as grandes metas não são alcançadas pela maioria. O homem comum limita-se ao trabalho de conservação individual e coletiva. Ele não é a célula social de exceção, especializada na função de órgão nervoso de seleção, de antena que antecipa a evolução. Este tipo de exceção, que sente o universal, supera os grupos particulares e professa verdades mais vastas situadas acima dos interesses próprios e do grupo, não tem defesa contra nenhum dos outros, porque está fora do seu egoísmo. Ao contrário, é agredido por todos. Mais tarde, se um grupo se apoderar dele, usá-lo-á como estandarte. E assim se progride, mesmo que a divulgação e a assimilação não se possam atingir senão através do desfrutamento. O ponto de partida humano para o universal é o particular; para o altruísmo é o egoísmo; para o absoluto é o relativo; para o progresso coletivo é o progresso individual. Para sobreviver, e fazer-se entender, é necessário entrar no grupo, no particular, no relativo, no egoísmo individual; é necessário que o ideal (para não ficar letra morta, se os tempos não têm força para se elevarem até ele) desça, se avilte até ao nível dos tempos.

Tudo isto o nosso personagem compreendia, mas sentia também que a verdade pura e completa não pode ser senão utilitária e universal; aquilo que um inimigo vê no vizinho - não é a verdade. Ele amava a grande verdade unitária, totalitária, compreensiva, a verdade de Deus, que abraça tudo e todos. Sem distinções nem preferências, as particularidades interessadas, todas indistintamente o repugnavam. Amava a verdade que, mesmo compreendendo e admitindo as lutas humanas, permanece sempre acima delas. Não a sabia compreender senão assim. Sem tomar o partido de ninguém, negava razão a todos, pela falta de senso que em todos havia. E por isso, porque não tomava partido, era repudiado por todos. Foi assim que, achando inaceitável a verdade cindida, relativa e utilitária, não podendo fechar-se num castelo particular, ficou só, expulso de todos os lugares, mas livre.

A irresistível necessidade de liberdade atirou-se sobre as costas todos os mal-entendidos. Foi tomado por irreligioso; incrédulo para alguns; excessivamente zeloso para outros. Em cada campo era visto com maus olhos, porque perturbava os hábitos; era rebelde às tradições, pretendia ter direito a uma independência de consciência que, mesmo dirigida para o bem, era sempre insubordinação e escândalo. O Deus das religiões é também um rei; não é lícito falar-lhe muito diretamente a sós, sem os devidos intermediários humanos. Ele tinha a sua consciência e assumia sinceramente a sua responsabilidade. Era um homem não alinhado, o que não pode viver com o rebanho. Isto podia ser também santidade, mas, seguramente, cheirava anarquia e rebelião, enchendo de suspeitas as almas piedosas. Exigiam-se dele as coisas que todos faziam - justamente as menos adaptadas para ele.

Fora julgado de sem maneiras diferentes, segundo o ânimo de cada um que o observava. Cada um lhe aplicava sobre as costas a sua própria etiqueta. O mundo gostava de catalogar, enquadrar, na prática terrena. Assim, ele fora definido como - médium espírita, espiritualista, modernista, panteísta, monista, cientista, filósofo, estudioso, inspirado, místico etc... Cada um, vendo-o com seu olho particular, classificara-o definitivamente, segundo acreditava, sem perceber que ele, se naquele momento atravessava o campo de sua classificação, pouco depois, seguindo seu caminho evolutivo, já estaria muito fora dele. Fora tomado pelo que não era; fora confundido com as coisas mais diversas. Ele era todas elas e não era nenhuma. A sua verdade era dinâmica, em evolução contínua, e não podia ser senão um produto seu, filha de suas experiências. Ninguém era, por princípio, mais respeitador de todas as autoridades do que ele. Mas, tinha necessidade de compreender e ver por si mesmo, guiando-se nas grandes coisas do espírito e não podia delegar a ninguém esse direito fundamental inato em sua consciência.

Que atribulação, não poder dar um passo no mundo sem esbarrar subitamente num obstáculo de pensamento, numa das muitas divisões humanas - todas prontas para encaixá-lo, esperando fazer dele uma peça a seu serviço! Que desejo de libertar-se de todos estes empecilhos! Que repugnância ao ver todos os problemas em prática transportados da substância para o plano dos interesses e ver que nisto quase todos concordavam! No entanto, isto era lógico. Nem sobre a terra poderia ser de outro modo, dado que aí vigora a lei da luta, a qual não deixa outra forma de vida senão o ataque e a defesa. O pensamento puro, o ideal, a bondade que não estejam fixados no invólucro de egoísmo e de interesse - não tem defesa, e não podem sobreviver em tal mundo. Não se arriscando a degradar-se no lodo, o ideal não pode funcionar sobre a terra e não age sobre o homem. Se ele não se avilta na matéria, a matéria não o fixa, não lhe conserva a impressão. As adaptações, as traições do ideal são naturais, e são condições indispensáveis à sua descida ao mundo. É naturalmente isto o que espera na terra o homem superior que professa um ideal. A cruz é uma lei biológica - é a matemática resultante do encontro das forças do céu e da terra. O êxtase horizontal da terra, combinado com o dinamismo vertical da ascensão, forma, também geometricamente, a cruz. Sem cruz, o ideal não sobe. Sem traição ele fica inacessível e inassimilável. O céu não pode tocar a terra senão em um ponto, que se chama martírio. A reação é o natural exame do ideal, é a prova da sua presença, o índice do seu valor, a medida da potência substancial de uma idéia.

Ele atravessara todos os campos e verificara quão poucos homens verdadeiros existiam em cada um. E, em vez de se interessar pelas categorias que mantêm os homens divididos, procurava aquilo que poderiam unir. Procurava o homem, o verdadeiro valor, tão raro, tão pouco agarrado aos interesses; procurava o homem em si, sem se importar com a aparência; procurava a substância, sem deixar enganar pela forma. Uma coisa, sobretudo, repugnava-lhe, e essa ele não a perdoava aos seus semelhantes: a de ser um homem, sem ser honesto e sincero. E uma coisa, sobretudo, o fazia rebelar-se: as estudadas transigências humanas que prostituem os princípios em favor da comodidade. Achava preferível ser e não parecer. Este era o verdadeiro, insanável dissídio entre ele e o mundo. Tomava as coisas a sério e fazia de modo terrivelmente sério aquilo que os outros sustentavam apenas com palavras e com tanto mais ruído quanto menos acreditavam e quanto mais faziam empenho em fazer crer que acreditavam. À insolência desta forma estampada na face de todos, ele respondia com a substância, vivida em silêncio. Este era seu desafio. A sua religião do trabalho, do amor ao próximo; mais que a religião das prédicas e das práticas, era a religião da bondade e do sacrifício. Não acreditava na discussão porque sentia que por trás das palavras havia um pensamento diferente daquele que era expresso. Não acusava e perdoava, mas sentia que seu antagonismo não era contra esta ou aquela doutrina, mas sim contra o homem - sempre o mesmo sob todas as doutrinas. Via sobre a terra um mar de interesse que permaneciam os mesmos sob os mais variados estandartes. Não encontrava senão egoísmos utilitários e coligações de tais egoísmos. E ele não procurava senão o Evangelho. Os dissídios de forma podem ser superados, mas quando são profundos em substância, se tornaram insanáveis. Fugiu a todas as discussões e em sua alma se fez um grande silêncio.