História de um Homem

Não é a riqueza em si que merece condenação: porque ela é força que pode, quando bem empregada, ser um meio poderoso de realizar o melhor. Merece condenação a psicologia de avidez que é a sua auréola natural, a atmosfera sufocante que dela constantemente emana, o mal que, para conquistá-la, não se tem receio de praticar, as aberrações que provoca, a horrível espécie de almas que atrai e de que se circunda, a escravidão, a asfixia, a abjeção espiritual que freqüentemente são o seu preço. Para libertar-se de tão triste companhia era preciso livrar-se da sua causa.

Não era fácil. Não é fácil no mundo moderno, onde tudo o que se refere à propriedade é exatamente regulado por meio de mil veículos jurídicos, complexa rede de interesses em equilíbrio. Não é tão simples resolver o problema, como no tempo de Cristo ou de São Francisco. Havia, pois, complicado conflito de deveres, em que se jogavam os direitos alheios, que não se podem lesar. Como resolver o caso entre tantos deveres voltados para direções contrárias, e todos autorizando, perante a consciência, pedidos de satisfação? Como cumprir uns sem lesar os outros? São Francisco, por exemplo, devia lesar o dever de obedecer ao pai, porque tinha de obedecer a um dever maior. E qual, no nosso caso, era o dever maior? Todos falam sempre de seus direitos; entre os seus deveres ele achava difícil a escolha. Não bastava esquecer os interesses e o egoísmo para resolver a questão.

Os seus bens eram hereditários, ou seja, obtidos gratuitamente. Não eram fruto do seu trabalho. A sociedade do seu tempo admitia essa forma de aquisição, que a consciência lhe declarava injusta. Não condenou os outros, mas apressou-se a corrigir-se a si mesmo. A aquisição gratuita de bens por hereditariedade era, "para ele", para a sua lei moral e pessoal, coisa ilícita, imoral, inadmissível. Cuidava de si e respeitava a lei dos outros. Mas devia viver conscientemente a sua lei.

E esta não era somente a lei instintiva da sua consciência, pois era também a Lei do Evangelho. Ouvia a voz longínqua a repetir-lhe:

"Bem-aventurados vós, que sois pobres, porque vosso é o Reino de Deus!

Mas, ai de vós, ó ricos, porque já tendes a vossa consolação!"

E ainda:

"Dá aos que te pedem, e se alguém te tirar o que é teu, não demandes com ele"

E por fim a máxima:

"É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus".

Ele sentia bastante o Evangelho no coração, para não tomar a sério estas palavras. E o aborrecia bastante a elasticidade de consciência e as acomodações, para não sentir o dever de tomar uma posição bem definida, entre Cristo e o mundo. Preferiu Cristo, mas o mundo o condenou, e começou a luta.

Não pretendia, de fato, no seu coração, aplicar aos outros a sua lei. Não condenava, não julgava; perdoava, pensando que como medimos seremos medidos. Não podia deixar de sentir a injustiça originária que está na base de toda acumulação de riqueza, que muito raramente se pode formar apenas com o trabalho, sem ao menos um início de fortuna. Este injustiça originária se agravava com a gratuita transmissão hereditária.

Achava absolutamente anti-cristã, ainda que em parte, a vida à custa do que não fosse o fruto do próprio trabalho. Viver do trabalho alheio, isto é, daquele próximo que se deve amar, e sobre cujos ombros não é, portanto, lícito, a um cristão acomodar-se para se deixar levar. Achava absolutamente anti-cristã essa concepção egoísta da vida, base de explorações e causa de lutas, porque o pobre é por ela instigado, talvez mesmo constrangido a fazer justiça, com a esperteza, com o furto e a violência. As religiões preferiam acomodar-se, passando por cima deste ponto fundamental da eqüidade evangélica, mas ele quis estar inocente diante das condescendências anti-cristãs e das suas tristes conseqüências morais e sociais. São Paulo, falando de si mesmo, dizia-lhe que "trabalhava com as próprias mãos, para não ser pesado a ninguém" ( Atos, XX 33-34 ). Os sistemas do mundo representavam convenções, estavam consagrados pelos costumes, eram uma contradição admitida. Tudo aquilo era aceito, corrente, legal no mundo; a sua consciência, porém, não aceitava compromissos e definia claramente as suas posições. Não podia endossar tudo aquilo sem se tornar cúmplice; não podia aceitar os benefícios sem incorrer na responsabilidade.

A injusta distribuição da riqueza era o problema do seu tempo, e contra ela se batiam os homens, as classes sociais e os povos. O espírito do seu século insurgia-se contra aquela injustiça, que tanta luta custava. O mundo debatia-se para preparar o advento da justiça social. O instinto da ávida acumulação egoísta era biologicamente justo, mas correspondia a fases evolutivas do passado, que hoje devem ser superadas por outra fase, de mais justa coordenação orgânica coletiva. E se esta preparação tantos esforços e sacrifícios custava, podia ele, por interesses pessoais, lançar-se contra o futuro?

Sentia que a fundamental injustiça da exploração econômica devia ser corrigida pelo "Quod superest date pauperibus"10, pois o supérfluo é realmente roubado aos pobres, que dele necessitavam para viver. Além disto, um grande preceito lhe vinha de Cristo: "Ama o teu próximo como a ti mesmo". Devia cumprir também este dever. Não se tratava somente de livrar-se do peso, das ligações, da injustiça, da riqueza. Tratava-se, para amar o próximo, que na sua maioria é pobre ou quase pobre, de abraçar a sua vida, participar das suas fadigas, suportar as sua tribulações. Tratava-se de trabalhar com a maioria e de ganhar o próprio e justo pão cotidiano. Tratava-se de caminhar seriamente com o povo, começando por si mesmo e não pelos outros, pelos deveres e não pelos direitos, praticando antes de pregar. Sentia, na consciência, que só o fruto do seu trabalho podia ser honestamente seu. Sentia que essa era a forma da verdadeira fraternidade evangélica e a verdadeira realização da justiça social.

Considerava o trabalho não só como dever para com o próximo, mas como direito, na escola da sua formação individual. Segundo a velha concepção, os valores maiores são representados pela riqueza, ante a qual o homem é um meio. Segundo a sua concepção, que era a dos novos tempos, o maior valor é o homem, ante o qual a riqueza é um meio. Se antes se antepunha a riqueza ao homem, amanhã se deverá antepor o homem à riqueza. O trabalho, então, não é mais um meio de aquisição de bens econômicos, mas uma forma de exercício e aquisição de capacidades novas, a que cada um tem direito de ser admitido, porque isso representa a sua formação e a sua evolução. Assim concebido o trabalho, ele quis a sua parte, como dever e como direito.

O fato de haver tomado, espontaneamente, a parte que lhe cabia no peso da vida, proporcionava-lhe, por fim, implicitamente, maior estabilidade de posição social, que é sempre mais solidamente equilibrada quanto mais em baixo, quanto mais se aproxima da normalidade e se afasta da exceção. Mas tudo isso não era fácil realizar. Quem o haveria de ajudar?

Com a ação começarem as dificuldades. Toda a rede de interesses que se forma em torno de uma riqueza reagia. Tudo quanto já se formou e estabilizou, em qualquer posição, represente um equilíbrio que se defende e resiste. Em qualquer lugar e momento se formam prontamente estas coalizões, estes tácitos consensos, em que se harmonizam tão espontaneamente os homens, quando vêem nisso uma utilidade, e que são verdadeiros organismos armados contra tudo. Para se libertar a si mesmo, devia libertar também, muitos dos seus dependentes, ou seja, desalojá-los de suas posições, a que estavam bem agarrados, pois pensavam de maneira bem diversa. Sucedia-lhe, em menor proporção, como a certos chefes que são os servos da casta, que os sustém na posição enquanto isso lhe convenha. Aprendeu assim, logo, a conhecer a verdadeira face do homem.

A sua particular experiência o levava à conclusão de que administrar pode ser sinônimo de roubar. Bastava deixar-se administrar para conseguir de pronto a libertação. Mas ele não era um inepto, que se deixa destruir por preguiça ou incapacidade, e não podia absolutamente fazê-lo em benefício do furto. Não poderia ser proprietário, sem se tornar cúmplice responsável. Assim percebeu que a libertação de um patrimônio, para atingir a pobreza franciscana, era problema moral e material muito complexo em nosso mundo moderno. A mesma humanidade que lhe pedia fraternidade o impedia de realizá-la, com a sua feroz avidez, demonstrando-lhe como o mundo é pouco disposto a compreender tais sacrifícios, que entretanto tem a coragem de pregar e de pedir. Percebeu quanto é difícil para o indivíduo, num mundo estruturado em sentido oposto, saber resolver o problema da exploração econômica, sem provocar qualquer prejuízo. Isso ainda porque cada qual quer compreender os motivos dos atos do próximo e desconfia sempre. Ora, os seus motivos ninguém conseguia compreender e se os compreendesse não os admitiria. Toda a sociedade era impulsionada por uma vontade em sentido contrário: pilhar, acumular, enriquecer. Todos os caminhos dirigiam-se naquele rumo e todos andavam naqueles caminhos. Todas as instituições, leis, costumes pressupunham aquelas motivações. Bem longe de admitir a possibilidade de existir um honesto, que afasta de si a riqueza por um senso de justiça, o mundo se arma de desconfiança contra o homem que, cheio de escrúpulos, tem muita pressa em se desfazer da riqueza. E tudo se volta contra quem vai contra a corrente.

Os seus deveres não eram egoístas, utilitários, dos que permitem fazer bela figura e dão, ao mesmo tempo bom rendimento. Eram deveres reais, de consciência; deveres estranhos ao mais longínquo rendimento, deveres incompreensíveis e, portanto inadmissíveis. Estes deveres escandalizavam os outros, que desejam resultados concretos para poderem avaliar. Os espertos do mundo julgaram-no mais esperto do que eles; acreditavam que, para fins de lucro, disfarçava-se em altruísta. Os homens de bom senso, ainda mais espertos, chegaram a descobrir, por meios muito complexos, os seus recônditos objetivos reais.

A luta foi longa e corpo a corpo, mas o fez conhecer o homem. Descobriu que era muito difícil saber dar sem fazer mal. Via que o pobre não era, quase sempre, senão um rico frustado, muito diferente do pobre de espírito, cheio de toda cobiça, insaciável, de alma agarrada ao dinheiro, e cada ato magnânimo servia de estímulo àqueles sentimentos. Percebeu que o homem, freqüentemente, ao ato passivo de receber, preferia ser ativo no pilhar; preferia a conquista à esmola. E isso é biologicamente normal, mas tende a fazer do homem, em última instância, um malfeitor. O seu signo, porém, é positivo, e a ele a natureza confia o trabalho da seleção, e não o da conservação, que compete à mulher. Descobriu no homem o seu aspecto de mais ou menos cego executor das leis biológicas; espantou-se com a imensa, insuportável distância que o separava do Evangelho. Na luta corpo a corpo para a realização do seu plano, ele era o supremo utopista, escarnecido e incompreendido. Essa foi a resposta bem clara que o mundo francamente lhe deu, segundo a sua lógica natural. As leis biológicas, aplicadas ao homem por instinto, embora sem este as compreender, rebelam-se contra ele, precipitaram-se ao seu encontro, como enfrentando um violador. No mundo, ele estava errado. Por certo a sua forma de luta era muito diferente da que as leis da natureza impunham à terra; buscava uma seleção muito elevada, muito complexa e de muitos remotos resultados, para que as suas ações pudessem ser admitidas num mundo em que se desenvolvia outra luta, dirigida no sentido de outra seleção. De resto, aquele mundo estava bem solidamente situado e equilibrado e, na sua férrea lógica, no âmbito do seu plano, tinha razão. A grande maioria vivia aquela lei, enquanto ele estava só ou quase só; achava-se, portanto, deslocado. O nosso utopista, tinha consigo o Evangelho, e se havia lançado justamente na via da sua aplicação integral. Chocava-o a enorme dificuldade de realizá-lo na prática e o gritante antagonismo em que o mundo se encontra com o Evangelho e o Evangelho com o mundo. E se perguntava por que a lei biológica, destinada por Deus a reger a vida humana e gravada nos instintos do homem, tinha de estar nos antípodas da lei evangélica, igualmente destinada por Deus a reger aquela mesma vida humana.

Este livro quer antes relatar experiências do que formular teorias. Narremos, pois. Ele continuou inabalável, enquanto registrava em si mesmo essas observações. O nosso relato é breve, mas, para ele, a luta foi longa. Nós fazemos simplesmente um relato, enquanto ele construía um homem. Ele continuou. Havia jurado fé no Evangelho e com o Evangelho queria ir até o fim, se necessário, até os extremos da desesperação e da morte. Havia decidido dar agora à sua vida este conteúdo: a experiência suprema do Evangelho, integralmente vivida. Que aconteceria? Observava e registrava. Nele se travava o grande duelo: quem teria razão, o Evangelho ou o mundo? Enquanto a sua vida prosseguia, observava os entrechoques da batalha. O mundo derrotaria nele o evangelho, ou o Evangelho venceria o mundo? Neste segundo caso, a sua vida não era mais uma utopia. Não era um louco, como se dizia; o triunfo do seu espírito estaria completo, a via excepcional que seguiria não era errada. O seu caminho, porém, era tão contrário às leis do mundo, pelo qual avançava, que seria necessário um contínuo milagre, a presença nunca suspeitada de uma Divina Providência, que o salvasse a cada passo de tudo e de todos. E olhava em torno para ver se o milagre se verificava e se poderia verificar-se. Tremia no mais íntimo de si mesmo, porque compreendera que a sua atitude, no fundo, era um desafio de obediência a Cristo. Mas sabia também que se entregava todo, jogando a cartada da vida, e quem assim procede talvez tenha algum direito mais do que os outros. E se, ao contrário, o mundo derrotasse o Evangelho, demonstrando-lhe, através de fatos, nesta experiência decisiva, a sua absurdidade prática? Se a Divina Providência, com a qual ele contava, o abandonasse; se esta força imponderável lhe escapasse na sombra, que meio teria para mantê-la presente e ativa, que direito teria de considerar-se um predileto, particularmente ajudado por Deus? A sua fé era grande: empenhava a vida em confiança, sob a palavra de Cristo. Era, então, assim terrivelmente forte, a voz de Cristo nele? E se este Evangelho, sobre o qual empenhava todo o seu ser e investia todas as ações e todo o capital da sua vida, o traísse, o que lhe restaria? Restar-lhe-ia uma simplicíssima; o direito de dizer em plena consciência, de alma nua diante de Deus e em nome da divina justiça que, seguindo o Evangelho, tinha errado, e que não é prudente acreditar sem ver. Na sua alma se teria dado um terrível abalo que teria sido a sua destruição. Mas que lhe importaria a sua alma, quando naquele abalo teriam caído também o seu Cristo e o seu Evangelho? O dilema era impiedoso e tremendo. O leitor não se espante, porém, porque, quando uma consciência age retamente, nunca é abandonada por Deus.

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10 - “Dá aos pobres o que te sobra”.

 

 

O nosso protagonista começou a pôr metodicamente em execução o programa da sua própria espoliação, inteligente espoliação. A sua atitude não era de fuga, como a de quem, sem preocupar-se com as conseqüências, com as reações desta força que se abandona, a riqueza, entrega apressadamente tudo aos pobres e volta as costas ao mundo, para ausentar-se no seu misticismo, solitário. A ele cabia, pelo contrário, o trabalho entre os deserdados, para suportar com eles o peso e compreender o sentido da sua vida. A escola, que mostra no benfeitor um rico e no beneficiado um pobre, não aproxima aos homens, não cobre o abismo que os divide, não resolve a injustiça das diferenciações econômicas. Essa esmola é um paliativo a que o rico recorre porque, custando-lhe relativamente pouco, oferece-lhe a vantagem de tranqüilizar-lhe a consciência e dar-lhe a ilusão de garantir o paraíso. O cálculo indica uma vantagem maior para o sacrifício, e a coisa se torna conveniente. Mas o pobre, sendo talvez somente um rico frustrado, e portanto pior que o rico, pedindo justiça apenas quando esta significa a defesa do seu egoísmo, e sendo quase sempre indigno de esmolas, porque ele mesmo foi a causa da sua pobreza, por preguiça ou esbanjamento, não precisa tanto do piedoso supérfluo dos outros, quanto da sua aproximação fraternal, da descida dos outros até a sua própria miséria, para vivê-la cotidianamente provando toda a sua amargura, até a sua degradante baixeza. Só diante dessa descida até ele o pobre sente que a justiça foi feita e que não lhe resta mais o direito de pedir, porque só assim o abismo é transposto, a distância é destruída, porque então o ser que vivia uma outra vida e parecia de outra raça tornou-se dos seus, vive a sua mesma vida, com as mesmas necessidades, psicologia e dores. Este é o veemente egoísmo do pobre, tão cheio de avidez que não concede ao rico nem mesmo o supérfluo que o rico lhe dava. Mas o nosso protagonista, que sentia a justiça de Deus, sentia também que aquele egoísmo era em grande parte um direito à vida e ao progresso, e que era seu dever dividir as suas vantagens, pois não passava de verdadeiro furto tentar monopolizá-las para si. Sentiu que a esmola não é completa se não se tomar nos próprios ombros a cruz do pobre, para carregá-la com ele, ao seu lado. Sentiu que somente essa é a verdadeira esmola, que irmana, que nos faz, sem distinções, todos iguais, como filhos de Deus. Sentiu que, - não importa se as religiões se descuidam desta questão vital -, só assim se podia aplicar o Evangelho e ter o direito, sem mentir, de se dizer cristão.

Assim ele, como cristão, não quis fugir ao comprimento de seu dever, nem acomodar-se na passiva solidão contemplativa, onda há excesso de tempo e de paz, ou em ociosa pobreza de resignada e inerte aquiescência, indiferente às fadigas e às dores do mundo. Mas abriu, como cristão, os braços às fadigas e às dores alheias, fazendo-as suas, e quis, como cristão, o seu posto de luta na vida. Sentiu que nenhuma espécie de penitência pode justificar o imponderável pecado do isolamento, que nos afasta da fraternidade na luta e na dor, ou o pecado capital do ócio, que nos afasta do grande dever individual e social do trabalho. Não é acaso suficiente matéria de penitência a dor do mundo, para que se deva artificialmente buscá-la de outra forma? Fixada a sua posição, preparou-se para agir. Quem verdadeiramente crê numa coisa, ao invés de pregá-la, começa a praticá-la. Amava a fé criadora, as virtudes dinâmicas e operosas, e se lançou à obra. Até que as suas intenções não se manifestaram em fatos concretos e não se tornaram claramente visíveis no exterior, as coisas andaram discretamente. O mal-entendido o defendia; os seus atos podiam ser interpretados de maneira diversa. Deixaram-no viver. Mas quando, pouco a pouco, começaram a compreender o que ele, de fato, queria fazer, os seus dependentes, que receavam perder as suas posições e ser despojados das suas utopias, ocultamente se congraçaram para tomar conta de tudo, antes que qualquer outro o fizesse, e começaram o cerco. Quando principiaram a compreender as suas verdadeiras intenções, deram início às apreciações, aos juízos, e com estes à condenação. Começava assim, econômica e moralmente, o trabalho de sua demolição. Eram essas as leis normais e naturais; devia suportá-las. Agem inexoráveis no seu plano, seguindo a própria justiça. Não importa se se trata de um mártir ou de um santo. As suas reações pertencem a outros mundos, que a natureza terrena ignora e dos quais não se dá conta. As compensações surgirão depois, noutro lugar, não aqui na terra, onde reina contra lei, a do mais forte. Ele encontrava-se entre os vencidos; aqui em baixo não importa que um destes se destine a elevar-se mais tarde. Tinha de sofrer, portanto, a sorte impiedosa dos vencidos. Suportar todas as torpezas do aniquilamento.

Não pediu ajuda a ninguém, porque sabia que este era o seu caminho e queria segui-lo até o fim, para não renegar o Evangelho. E, além disso, sabia muito bem, que quem sabe negociar gosta de faze-lo apenas em benefício próprio. Assim superou a tentação de recorrer a parentes e amigos, e o cerco continuou. Enquanto os interessados no caso o atacavam e espoliavam, o mundo o julgava. Os primeiros a assaltaram com trapaças e traições, o segundo o cercou de uma atmosfera surda de desprezo. Desprezo, porque não sabia vencer no plano humano dos valores comuns; desprezo, porque perdia o poder que já possuía e tinha de cair entre os pobres, os deserdados, os mendigos. Devia, pois, sofrer a mesma sorte destes, ser considerado um falido na vida, como estes eram considerados: coisas sem dono, carne feita de miséria, que se pode pisar impunemente, feita mesmo para ser pisada. Sentia a injustiça do julgamento, mas se confortava na tranqüilidade e na satisfação da sua consciência. Restava-lhe, porém, a humilhação, e esta queimava. Não como humilhação, porque o seu interesse ele o colocava em coisas bem diversas, e sabia que o juízo do próximo não o podia elevar, nem abater, mas queimava porque o isolamento é doloroso para todos, mormente para os espíritos mais retos e sensíveis, que sentem de maneira mais viva a necessidade da fraternidade humana. Foi julgado sem piedade como inepto, pois só assim se podia explicar e admitir o empobrecimento. Reprovaram a sua inaptidão, suspeitaram da sua má-fé; quanto mais ignorante era o seu próximo, mais se apressava a julgá-lo, da maneira mais inexorável. Perdeu todo o respeito da parte dos outros. Compreendeu amargamente que a estima e a atenção dependiam da sua posição social. Tornou-se o imbecil, o alvo preferido dos críticos fáceis, triunfantes, sempre heróicos diante de um vencido, mais animaizinhos tímidos e obsequiosos diante de um forte. Aprendeu a conhecer toda a vileza humana. A experiência da verdadeira imitação de Cristo começava a se tornar trágica. Que seria feito dele? Atrás da sua posição social, teria naufragado também a sua alma? Que horas de desespero o aguardavam, a ele, o louco?

O julgamento da opinião pública, no seu ambiente, se fixava, se consolidava e se divulgava. Ao seu redor, em lugar da antiga auréola de estima e de atenção, expandia-se agora um odor de apodrecimento. Há seres vis na sociedade; vivem, como certos vermes imundos, de todos os produtos em desagregação, e os farejam de longe, para correrem prontamente, ao primeiro sinal, em busca da presa. Eles cumprem a função biológica de apressar o fim e de transformar aquela podridão em outra forma de vida, seja embora inferior. Ousara desafiar as leis do mundo; era justo que este se vingasse. Ninguém poderia já agora detê-lo. A princípio o sacrifício é belo, livre, generoso, heróico; mas, por último, nos ligamos inexoravelmente a ele, que é então miserável, forçado, atroz, impiedoso. A sua nova posição trouxe consigo os piores Judas do mundo dos negócios, espertalhões, ávidos de liquidá-lo, sugando-lhe tudo o que fosse aproveitável. Amargamente, estudou aqueles rostos ávidos e a sua psicologia. Com que prudência farejavam a vítima a distância, como giravam depois ao seu redor, cautelosos, assegurando-se de que ela já não podia morder! Com que garbo felino a cercavam de todas as astúcias, a amarravam, como faz a aranha com a mosca, para que não mais pudesse mover-se, e então amparados na justiça, a envolviam na sua baba e a sugavam! Com que olhar ávido de vampiro espreitavam os seus últimos arrancos, para desferirem o ataque final e se banquetearam sobre a vítima enleada! Aparecia-lhe então horrorosa aquela riqueza que atraía semelhantes espíritos. Maldisse o esterco do demônio, ídolo do mundo!

Vamos ao fim. Os vampiros, afinal, arrancaram as máscaras. E a luta se tornou, então, sem quartel e sem escrúpulos, a verdadeira luta corpo-a-corpo, a luta feroz pela vida, sem tréguas e sem piedade. E em breve ele se encontrou por terra, pobre, abandonado, desprezado. Cumpria-se o primeiro grande ato de seu destino. Estamos no momento mais desolado, no mais profundo ponto da descida. E eis que ele tem de abandonar seu ninho, tem que se pôr a vagar pelo mundo sem ter mais a sua casa. Arrancaram-no se seus caros e velhos hábitos; foi destruída toda a sua delicadíssima sintonização vibratória, que ele ajustara ao seu ambiente; foram dilacerados todos os doces afetos. Todas as suas coisas, recordações de outros tempos, que eram a sua passada vida, foram atiradas, sacudidas para todos os lados, servidas, pedaços de sua alma jogados ao vento! Que destruição! Era seu próprio cérebro que estava disperso. Que desolação não ter mais um lugarzinho próprio para descansar a cabeça; um lugar onde pôr em ordem as suas coisas, para poder ordenar, sobre elas, seus próprios pensamentos. Desordem que penetrava também em sua alma, sobretudo a sua mente. Encontrou-se de súbito longe de sua casa e dos seus, perdido numa desolada região da Sicília, num pobre quarto de pensão, com uma cama e uma mesa, pobres e não suas. E os ajuizados desprezavam-no, repetiam-lhe sábios e prudentes conselhos de sua própria experiência - e o faziam com tanto maior autoridade porquanto os fatos lhes davam razão. Ele fora um rebelde, um teimoso e em sua intransigência sem seguir seu absurdo escopo, atraíra a inimizade de conhecidos e parentes que não estimavam pobres perto, que são um contínuo perigo, gente para ser mantida. No entanto, quanto mais atraente e simpático se torna aquele que triunfa! Que respeitável, que estimável pessoa! É tamanha a simpatia, que todos fecham um olho voluntariamente aos casos de honestidade e outras coisas. Que fascínio a riqueza! Mas, de um tal projeto de pobreza, que poderia nascer, senão sempre novas derrotas?

As experiências evangélicas deste gênero fazem-se apenas em teorias; na prática, se forem feitas, o são muito superficialmente. Geralmente, esta parte mais real e substancial dos ensinamentos de Cristo - que foram ditos não apenas para serem pregados mas também aplicados - vem sendo, prudentemente, deixada no esquecimento e todos evitam chamar sobre ela muito claramente a atenção. Prefere-se fazer ressaltar os aspectos que dão autoridade, poder e que reforçam, em vez de enfraquecer, o homem no plano humano. E das conquistas e exaltações do plano do espírito fala-se em forma retórica, sem se pensar que elas possam ser realidade de vida. O homem normal considera espantosas as dificuldades das primeiras provas e inacessível o triunfo espiritual de que elas são a promessa; afinal, as duas coisas: condição e resultado estão igualmente acima da sua capacidade. E sem esforço, unicamente por instinto humano, ele se prende a um tácito acordo, com o qual a maioria concorda e que se transforma em uso geral: cuidar das belas coisas que se dizem mas não se fazem. Isto dá impressão de mentira e de contradição, mas o homem é o que é, e como se pode pretender que ele tenha a heróica coragem de se prender aos fatos ao invés de às palavras nestas tão terríveis experiências evangélicas? É mesmo natural que se algum temperamento de exceção quiser convencê-lo, o homem comum não o compreenda, não o admita e ainda o condene. Sabia tudo isto e não esperava nada e nada pedia aos seus semelhantes. Mas tudo pedia e tudo esperava de Deus, ou seja, da força de uma outra ordem e de outro plano. Sabia que não lhe restava outro caminho a seguir e que assim devia comportar-se se desejasse progredir na estrada da ascensão espiritual. Pois que a lei justa e fatal é que, sem uma limitação no plano humano, não se pode alcançar a correspondente expansão no plano divino; que o crescimento do espírito pede a mortificação da matéria; é lei também que não se pode realizar uma conquista sem renúncia.

 

 

Aquele primeiro ano de exílio em região perdida no extremo da Sicília, tão espiritualmente longe da sua mística Úmbria, foi de profundo sofrimento. Era este o primeiro gole do cálice da sua amargura. Parecia-lhe impossível descer mais baixo. Que desolação de alma, de trabalho, de ambiente! Os habitantes do lugar, muito corteses, lhe diziam: "Mas, fique conosco. Aqui é tão bonito!" E ele pensava: "Oh, poder fugir!"

Parece seja necessário, para que se possa manifestar alguma lei superior da vida, que uma alma deva primeiro ser espoliada de tudo; parece que antes de se revelar por atos, aquelas leis esperam que ela se tenha flagelado ao extremo. Parece que essas leis exigem como garantia a prova do máximo que o indivíduo possa suportar, segundo suas forças. O espírito deve chegar a um vértice de tensão e desespero, que é o momento crítico no qual o fenômeno da catarse espiritual se realiza. Chega então um ressurgimento pelo qual as forças negativas assaltantes ficam vencidas. De negativas se transformam em positivas e, em vez de demolir, constróem. Para que se possam verificar tais prodígios, são necessárias condições especiais de espírito e de ambiente. Mesmo sem o saber, guiado por seu instinto, ele as havia preparado. Estas culminâncias não se improvisam. Só podem emergir de longos períodos e preparação subterrânea que progridem sem que a consciência o saiba. Quando tudo está maduro, então o fenômeno se precipita rápido e irresistível como uma explosão. Apenas as forças do destino o fizeram tocar o fundo do abismo, logo se transformaram para elevá-lo e salvá-lo. Em vez dos impulsos que poderiam lhe aparecer como demônios enfurecidos desejando destruí-lo, ele se viu circundado de impulsos que eram como anjos que, amorosamente, o rodeavam, confortando-o.

Que houve e como se deu essa transformação? Fora obrigado a atuar na sua heróica experiência - mas, era, por certo, uma interrogação colocada diante daquela Providência à espera de uma resposta decisiva. Neste momento crítico houvera uma complicação no seu destino e ele a ligara ao nome de Cristo. Tê-lo-ia Cristo escolhido? O seu destino estava naquele momento crucial em que surgia a trágica pergunta: "O Evangelho seria humanamente aplicável", ou "Quem o aplicasse deveria ficar destruído"? Esta pergunta era uma força, porque se fundava em fatos e pedia aos céus uma resposta concreta. E não podia calar. O nosso homem acreditava-se no direito de impor-se uma questão: Ter-me-ia o Evangelho enganado? E de levantar o dilema: Se o Evangelho é verdade, Deus deverá me salvar: se Deus me salvar, o Evangelho não é verdade! Com seu empenho tão sincero, pleno e definitivo com respeito aos ensinamentos evangélicos, tinha dado às forças da vida um tal impulso que a sua posição atual exigia solução e resposta.

Gostava de se retirar, para suas preces, à solidão de uma colina rochosa, sobreposta à região, entre cardos e figueiras bravas. Ali esperava nova revelação interior. Fora, nos trâmites da vida, esperava a passagem da divina Providência na sua já agora necessária manifestação. Sentia indistintamente que alguma coisa havia de nascer, de dentro e de fora, e que aquela hora era o ponto convergente em que se manifestariam os resultados de toda a precedente preparação de sua vida.

A divina Providência operou sua intervenção nos dois campos: o interno e o externo. Observemos, primeiramente, o que sucedeu exteriormente. Na situação de pobreza a que se reduzira espontaneamente, o trabalho já não era um dever apenas: era também um direito e uma necessidade, porque não dispunha de outros meios para viver. Sentia que a consciência lhe dava o direito de pedir e obter de Deus, em nome de sua própria lei, que aplicara -, um trabalho adaptado às suas capacidades. E quando, em consciência, se sentia autorizado a obter - miraculosamente aconteceu. Já considerava seus semelhantes como vontades nem sempre autônomas, mas movidos por motivos mais altos. Desta vez viu que realmente numa vontade superior guiava as vontades humanas. Deu-se maravilhosa convergência de circunstâncias as mais diferentes, de atos dirigidos sempre ao mesmo alvo, em sucessão, devidos às pessoas mais diversas - uma sorte tão sagaz, previdente e inteligente, que ele não podia absolutamente concluir, se quisesse continuar objetivo, e os resultados obtidos pudessem ser fortuitos. O acaso não constrói, não pode construir todo um edifício que traz uma fisionomia de evidente lógica. E tratava-se de fatos externos, combinações só mais tarde compreendidas; tratava-se não de atitudes do espírito, mas de mutações radicais, das quais derivava uma posição econômica e social - coisas que não se realizam por sugestão. Nem sempre se concretizam aspirações preparadas desde longo tempo e com sagacidade, cuidadas com atenção e esforço, defendidas por uma forte vontade e habilidade - e aqui tudo se realizava, de golpe. Um resultado complexo, apenas preparado e incertamente desejado.

Quem preparara e desejara de forma tão adaptada às necessidades, medidas com tanta precisão pela força e capacidade do interessado? Quem, em lugar dele, fizera isso por ele? O resultado ali estava, e tinha de existir uma causa. Agradeceu a Deus e concluiu que a Providência não abandona os justos e que, ao menos até agora, o Evangelho não o traíra.

A sua utopia fora confirmada pela realidade - confirmação objetiva do método experimental, demonstrada pela intervenção da divina Providência. Esta intervenção não era uma afirmação teórica e genérica, um puro ato de fé, mas um ato experimental, para ele, pelo menos, um documento indestrutível, de valor comprobatório indiscutível. Pusera o Evangelho à prova de Cristo, milagrosamente, lhe respondera: Sim.

Libertado por justiça de seus bens hereditários, em poucos meses encontrou-se numa posição social verdadeiramente justa - porque exclusivamente dependente de seu trabalho. E eis que não sofreria a falta do necessário, como receara e como, em conseqüência de sua conduta, do ponto de vista humano, se podia logicamente esperar. E agora, esse lucro era seu. Podia viver, agora, também economicamente, como era justo.

A intervenção da Providência, a presença de seu auxílio, a prova da verdade do Evangelho não se demonstraram só em fatos exteriores, mas também em acontecimentos interiores, em seu espírito. Para ele estes foram mais comprovadores. A maior transformação não realizou no plano físico, mas no plano espiritual; não na sua posição humana, mas em sua alma. Tudo lhe apareceu iluminado por uma luz diversa, que a tudo dava um sentido mais profundo. Toda a personalidade se transformara em seus meios de percepção e o universo lhe aparecia sob nova revelação. A mudança de sua posição social era coisa de valor secundário para ele. O verdadeiro resultado era este, espiritual. Aqui estava o rendimento verdadeiro de todas as provas superadas; este era o fim maior, diante do qual tudo o mais era um meio, apenas. E que significação evolutiva teriam as provas se não fossem dirigidas para o campo espiritual?

Ele semeara e já colhera. Começa, para nosso protagonista, uma outra fase de seu caminho, que vai dos quarenta e cinco aos cinqüenta anos. Este período, que é a continuação lógica e a maturação dos precedentes, assim como é a preparação dos que se deverão seguir, tem um conteúdo típico e particular de ressurreição. É, sobretudo colheita, mas é também sementeira: é conclusão do período precedente, mas é também princípio para o seguinte, em que se desenvolverá aquele destino. Por dez anos, é a nota triunfal, a que domina. Veremos depois aonde conduz este Domingo de Ramos.

As três estradas a que ele, quando jovem, se atirara, tinham sido, por vinte anos, estradas de trabalho e de martírio. E transformavam-se agora em três estradas de ascensão e de triunfo. Aqueles três motivos do seu destino invertiam-se, agora. A cada precedente negação sucedia agora uma afirmação correspondente; a cada renúncia e constrangimento - uma expansão; a cada tristeza - uma alegria. Tudo agora ressurgia no plano do espírito, tudo o que estivera sufocado no plano da matéria. E estas constatações exprimiam as leis daqueles fenômenos. Parece que a negação das coisas humanas é a condição da ressurreição nas coisas divinas.

As estradas que seguira por vinte anos juntavam-se num primeiro resultado, em uma sua e primeira solução. "Compreender, Agir, Sofrer" chegavam a um único fim.

Compreender. - O problema de consciência que ele se propusera em sua juventude, ao entrar na vida, estava, finalmente, resolvido. Continuara, depois de seus estudos universitários, a procurar nos livros, interrogando as filosofias, as religiões, a ciência. Essa fonte secara. Poucos livros tinham sentido profundo. Abandonara-os. Substituíra-os pela maceração interior, silenciosamente dirigida à intuição imediata da verdade. Sentia que apenas esta o satisfaria. Por intuição, obtivera uma visão do funcionamento orgânico do universo. Tivera deste a profunda sensação que só a persuasão oferece. Tinha posto de lado as vias da razão, impotentes diante do absoluto, e se avizinhara de Deus pelas vias da fé. Tinha feito do sistema da intuição um verdadeiro método de pesquisa.

Em seu espírito fizera-se luz completa. Resolvera, ao menos para si, o problema do conhecimento. Como acontecera isto? Conseguira-o, não seguindo as vias comuns de aquisição de cultura, mas um caminho bem diverso. Não enchera sua mente de erudição, mas conquistara um novo sentido de compreensão, como um novo olho para ver. O conhecimento era para ele uma nova forma de consciência, resultante não do estudo, mas da maturação na dor. Esta maceração produzira nele uma transformação de personalidade, levando-o a um novo estado no qual o conhecimento é como um novo sentido, uma qualidade espontânea do espírito. Estas não são coisas habituais no mundo dos outros, mas são fenômenos que, embora excepcionalmente, ocorrem. Ao passo que a cultura não seria senão uma aquisição exterior, um verniz cerebral - neste caso todo o seu ser adquirira, por maturação evolutiva, uma transformação de consciência. Em outros termos: ele se encontra no mais fundo de si mesmo, onde existe a mais completa consciência de si e do universo. Trata-se de um processo completamente diferente da aquisição de cultura com a qual o homem comum procura compreender as coisas. Consegue-se apenas através da experiência da vida, na escola das provações, na luta e na dor, pois que não é algo que vem de fora trazido para o nosso eu, mas uma revelação de sua profundidade. Só se pode conseguir através da purificação, porque é como que uma sensibilização, um mergulho à consciência dos estratos mais profundos da personalidade. O mundo de sensações e concepções latentes que ali se contém ressurge junto à consciência, pois a evolução é apenas a expansão de consciência, sobretudo nos planos internos do eu, que são os planos superiores. Deus, que é a sua meta, está de fato no interior de nós. A luta e a dor conseguiram a capacidade de sutilizar a casca física da alma, torná-la mais transparente, permitindo-lhe revelar sua íntima potência. Era este, precisamente, o fenômeno que agora se verificava. Esta descoberta de seu eu mais vasto, orientado para o funcionamento orgânico do todo, dava-lhe um indestrutível senso de equilíbrio, de domínio sobre os eventos, de independência, de paz. Divulgou, em publicações, os resultados deste seu reencontro. Foi compreendido, entendido às avessas, não compreendido, condenado - tantos são os pontos de vista humanos. Mas isto não importava. O que realmente importava para ele era ter conseguido a plena maturidade. A divulgação dos resultados interessava apenas à cultura e ao melhoramento dos outros. Ele estava agora consciente de sua verdade e isto lhe bastava.

Dentro desta mais vasta verdade, compreendera o significado do seu destino de expiação e de missão, entendera a infrangível verdade do Evangelho e o seu direito de confiar nela.

Perdera a riqueza de forma tão horrível, com tão nauseantes contatos, que não lhe ficara na alma nenhuma saudade, mas antes uma grande repugnância por ela e um sentido de piedade para os que a possuem. Portanto, a experiência dera plenos resultados e a lição fora definitivamente aprendida. Em compensação, encontrara uma riqueza inalienável e indestrutível, isto é, a libertação de tantas necessidades que a civilização impõe e ainda imensa satisfação espiritual, uma sensação de agilidade e leveza e de quase superioridade moral ante o mundo juiz e pronto a desprezar. Tornara a encontrar, muito viva em seu espírito, a sensação de Cristo e esta era a sua maior alegria. Já agora acontecesse o que acontecesse, compreendera também isso e era uma bússola sempre orientada. Sabia para onde estava destinado e para onde queria e devia seguir. Via, nitidamente traçada, a estrada que tinha de percorrer.

2. Agir. - Resolvido o problema universal, definido e enquadrado nele o seu problema particular, podia realizar-se a si mesmo, dando a própria contribuição, livre e consciente, ao funcionamento do organismo universal. Sabia que não passava de um grão de areia no deserto, uma gota no oceano, mas estava consciente e operante. Sendo mínimo, podia dar tudo e, dando-se, entrar na comunidade universal dos seres que agem e vivem na execução do pensamento de Deus. Nesta direção podia agora, conscientemente, coordenar os seus esforços aos de todas as criaturas irmãs, para subir até Deus. Tornava-se membro e parte funcional do grande organismo, como roda que, por menor que seja, é indispensável ao mecanismo imenso. Sua vida adquiria significação tanto mais profunda e tornava-se música harmonizada com as mais longínquas esferas do universo. Nesta vastíssima atmosfera, unia-se a uma imensa realização do seu mais profundo eu. Sua vida movia-se em uníssono com a vontade de Deus e seu destino se desenvolvia de acordo com a Sua lei.

A realização de si mesmo atuava também de forma mais concreta, não apenas naquele sentido, mas ainda na prática de ações humanas. Sua maturação não o levara apenas ao conhecimento, mas à consciência de si e do universo; não à simples percepção das coisas, mas a um novo modo de existir que desejava ser ativo e operante, para se realizar também externamente, nos outros, nos seus semelhantes. Se ele havia conseguido sentir-se membro da comunidade de todos os seres do universo, tal se sentia, de modo particular, da comunidade terrestre, mais próxima, onde devia especialmente agir e realizar-se. Compreendia então que o grande passo de sua transformação não dizia respeito apenas a si mesmo, por mais importante que isso fosse - mas completava-se e se valorizava com outra finalidade. Enfim, a transformação implicava a explicação de sua missão terrena que se manifestava agora pelas forças em ação no seu destino e que era a valorização prática de sua vida. Não podia guardar só para si os resultados conseguidos. Divulgando-os, podia dar imediata contribuição ao conhecimento e ao bem da coletividade humana. Suas canseiras não ficariam encerradas nele; não dariam rendimento evolutivo para ele apenas. Podia, finalmente, explodir e expandir-se também na alma de seus semelhantes. Devia dar público testemunho de suas experiências íntimas, para o bem de todos, mas também a uma atuação mais íntima o levava esse período de sua vida.

A transformação interior que o atingira, difundia-se e, naqueles dez anos, continuava a se desenvolver, fortificando-se como sensação, progredindo como poder e elevação. A realização do grande sonho da compreensão de tudo continuava, completava-se na realização daquela sensação das coisas divinas e da união com Cristo. A maceração interior que o amadurecera até à síntese do conhecimento, conduzia-o agora pelos caminhos da ascensão mística. No período de dez anos que o esperava, percorreria esses caminhos, extremamente apressado, pois desejava alcançar a mais profunda assimilação, a maior profundidade. Esta forma de agir encontrava seu desenvolvimento e assim se completava.

E todos eram caminhos de afirmação, de expansão máxima. Expansão de pensamentos, de atividade, de sentimento. Cada fibra de seu ser fora joeirada, mas dava agora seu rendimento elevado à superior potência do espírito.

3. Sofrer. - A dor, como meio havia agora alcançado seu fim. Fora posta de parte, porque era preciso assimilar os resultados conseguidos. Sem esta assimilação, as provas não teriam sentido. Vencera corajosamente e o destino lhe concedia uma trégua, pois que a lei de Deus não quer a dor pela dor, como inexorável punição, por malévola vingança. O fim não é fazer sofrer, mas fazer compreender, macerar para progredir. Através da dor ele conseguira certa purificação, alcançara luminosidade, realizara um refinamento - que lhe permitiram emergir, viver e construir, nas mesmas proporções, no plano espiritual. Agora, a negação se convertia em afirmação proporcional. Aquele destino ressurgia, demonstrando que não se sofre em vão, sobretudo quando se sabe sofrer. O passado dava seus frutos. A lei de esmagamento se convertia em lei de expansão. O Evangelho de Cristo era verdadeiro. Ele, não só se tornara douto, mas fora fartamente compensado no espírito e as coisas da terra lhe haviam sido dadas em abundância. O voto de pobreza fora substituído por uma nova posição social. O conhecimento dos grandes problemas fora alcançado e seria divulgado em triunfo. As provas tinham sido compreendidas por ele, tinham dado o seu resultado e sua personalidade encontrava-se transformada. O seu destino, superadas as dissonâncias e harmonizando-se com o universo, estava em paz. A missão de bem revalorizava agora a sua vida. A fase mística coroaria a maturação espiritual completando-se-lhe a transformação biológica. À fase de expiação sucedia agora a realização em todos os campos. As três estradas convergiam para uma completa revalorização, no plano do espírito, de tudo quanto em seu ser fora destruído no plano da matéria.

Um outro fato agravava a sua posição. Estava doente. Grave e imperdoável erro! Porque um doente é um débil que se deve expulsar ou um peso que se deve suportar - sempre igualmente detestado.

Na luta pela vida não há margem para auxílio nem repouso. E qual era a sua doença? Os médicos giravam-lhe em torno havia vinte anos, sem compreender nem concluir nada. E ele, pacientemente, se transformara em campo experimental das suas infrutuosas tentativas e em fonte de rendimento. Despesa e sofrimento, o único resultado. Há gente que acredita que para sarar basta ir ao médico e tomar seus remédios. E isto pode acontecer, sem dúvida, em muitos casos, sobretudo naqueles evidentes e bem definidos por sua natureza mais acessíveis a uma ciência necessariamente mecanizada em sua aplicação. Mas, há doenças que são um temperamento e há temperamentos que são uma doença.

Existem constituições que, por estrutura orgânica congênita, trazem consigo um insuprimível desânimo de viver, uma sensação fundamental de mal-estar ao invés de bem-estar. A dominante medicina atual agarra-se ao lado físico do indivíduo e não cura o lado espiritual que, em algumas pessoas, pode ser preponderante.

Ele não tinha lesão alguma; todos os órgãos estavam em perfeito estado, portanto, teoricamente, devia estar bom. Tinham-lhe feito os mais disparatados e inconciliáveis diagnósticos - tanto que a medicina não lhe parecia mais que uma opinião. Mas, todos se agarravam a este ou àquele órgão; ficavam de fora, eram analiticamente parciais embora sinteticamente totalitários, enquanto que a chave estava num dissídio no funcionamento mais íntimo das trocas celulares, quase um dissídio entre espírito e matéria, entre o aparelho elétrico diretor, rebelde aos que desejam dirigi-lo no metabolismo bioquímico de seu organismo. Foi-lhe afinal aconselhada uma intervenção cirúrgica: cortar para ver. Mas, certas coisas não se vêem nem ao microscópio, nem na análise química; não se percebem por métodos mecânicos ou racionais. Sentem-se apenas por intuição e alcançam-se por síntese.

Um médico que tivesse compreendido o caso especial, teria dito, honestamente, que não sabia a causa da doença e nada poderia fazer, sua origem era uma questão de temperamento e que o doente encontrasse por si e seguisse o regime mais conveniente. Mas, como se pode pretender o antibiológico, isto é, que o homem que mora dentro do médico, o homem biologicamente normal, reconheça a sua própria ignorância e o edifício construído por meio de afirmações se destrua a si mesmo para admitir a própria incapacidade? E as exceções não se podem encontrar a cada passo. Certas visitas médicas são planejadas em série sob a necessidade de lucro e feitas a um público que, pelo fato de pagar, impõe mais ou menos ao médico a sua psicologia e que oferece alterações de grande importância situadas no plano físico.

Estas visitas médicas são apenas, por sua própria natureza, um rápido exame externo no qual é o doente que, declarando os sintomas, prepara o diagnóstico. Não podem ser uma observação longa e profunda que só o doente pode fazer por estar em contato constante e direto com o fenômeno. Este gênero de auxílio médico não lhe podia trazer senão fastio. Isto se concluía pela habitual prescrição oral, ou pior, por injeções, isto é: a forma mais violenta inassimilável e mortífera.

Mas seu organismo era de ferro: resistiu durante vinte anos. Um médico tratou-o com lavagens gástricas e, para sofrer menos, ele acabou fazendo-as sozinho: engolindo um comprido tubo de borracha. Outro havia declarado uma doença do peito por vários sinais descobertos na radioscopia. O diagnóstico dependia muito da especialização do médico. Um homeopata aplicou-lhe, naturalmente, a homeopatia. Uma vez recorreu a um famoso doutor de doenças nervosas e foi tratado como neurastênico. Não lhe escapara, durante a visita, o aspecto nervoso e agitado do médico e não tinha compreendido como tal sumidade não soubera curar-se a si mesmo. Escapou por pouco de cair em uma clínica onde já se projetavam tão sábias complicações que não lhe seria fácil sair dali vivo e são.

Não se prejudicam com isto os maravilhosos e benéficos progressos da medicina, nem o mérito dos grandes que com tanta abnegação e fadiga os conquistaram. Nem se afirma que o médico seja sempre assim; mas apenas que assim se afigurara ao nosso protagonista. O leitor saberá se o caso é freqüente ou raro.

Sem dúvida, existem na medicina orientações sadias ao lado dos sistemas de equilíbrio que a natureza ensina e deseja; mas, a medicina oficial tende, com freqüência, à intervenção forçada e unilateral; em vez de se impor por meio de síntese e intuição nas leis da vida consciente do paciente, tenta convencê-lo, por via de análise e cerebralismo, não conseguido com este instinto másculo da imposição e constrangimento senão perturbar os complexos equilíbrios da natureza.

Todo o nosso tempo - também nos outros ramos da ciência, como na música, na pintura e na literatura - é uma hipertrofia de cerebralismo, de virtuosismo técnico, de mecanização, onde a luz do espírito sintético, intuitivo e criador é sufocada e extinta. Mas esta é a hora da matéria e é preciso vivê-la enquanto o ciclo não for superado.

E assim ele se enfastiou até à náusea; foi sugado enquanto teve dinheiro e seu organismo ficou saturado de medicamentos. Eis que o mundo lhe dera. Não era a ciência, a medicina - era o homem o responsável que, sob qualquer pretexto social, atirava-lhe sempre a mesma verdade biológica: lutar é a lei; ai dos fracos que não sabem se defender, ai daqueles que imploram socorro! Esta é a substância permanente, infalível, presente em todos os diagnósticos, mesmos os mais discordantes. E tal foi, portanto, a sua conclusão desta experiência: defender-se.

E um dia disse: "é melhor morrer que chamar o médico" - e manteve a palavra. Foi esta uma das primeiras vantagens de sua pobreza- a necessidade de aprender, antes de mais nada, com um sábio regime, a defender a sua saúde, pois que só ele podia conhecê-la bem, evitando o perigo de pedir ajuda, de colocá-la sob a administração de manuseio de outrem. De resto já percebera que, em qualquer assunto, aquilo que se confia à administração de outros, está perdido. Estes são os perigos da riqueza. Esta insinua que pode fazer com que se fuja da luta, do sacrifício, da disciplina das leis da vida. Tudo isto é uma insuprimível norma da natureza e o convite ao repouso e ao arbítrio não passa de mentira.

A vida é séria e dura. Cada um precisa saber defendê-la e discipliná-la por si mesmo. A tarefa da proteção da própria saúde não pode ser mediante pagamento. As leis econômicas têm um limite e o dinheiro não pode tudo. A saúde será naturalmente resguardada com a observância das leis biológicas que a outorgam - não a troco de qualquer riqueza, mas apenas àqueles que a merecem.

No entanto, ele havia aprendido a conhecer o próprio organismo: o estudo, mesmo elementar, da medicina, fora para ele muito atraente. Como em tudo o mais, desejava, antes de tudo, compreender-se. Para sobreviver a vinte anos de tratamento, seu organismo havia dado provas de uma resistência excepcional. E de fato, seu sofrimento não o impedia de estar sempre ativo, sempre trabalhando - dinâmico, criador, temperado pelo cansaço físico e intelectual, rico de uma produção contínua. Naquele corpo magro, todo pensamento, nervos, sentimento e vontade, existia um espírito extremamente rico, indômito, inexaurível, que comunicava a cada fibra do organismo a sua força e a sua resistência. Parecia queimá-lo e decerto o fazia, exigindo dele uma atividade que é natural ao espírito, mas que o corpo não pode seguir.

Esta exuberância espiritual parecia manter-se à custa do físico, ao qual depauperava continuamente. O segredo de seu sofrimento parecia estar neste desequilíbrio de proporções, nesta hipertrofia evolutiva psíquica e sensitiva - desequilíbrio que se recuperava continuamente em algum misterioso contraste no fundo do fabuloso processo da vida que é a troca das células. Ali, por certo, as qualidades espirituais do indivíduo se põem em contato com os mais complexos processos de química orgânica. É ali que as zonas inferiores do espírito, representadas pelo sistema nervoso, se confundem num estreito abraço com as zonas superiores da vida da matéria. E aí estaria, certamente, o desequilíbrio não percebido pelos médicos, não acessível à medicina. O inevitável contraste entre espírito e matéria, que estava na linha do seu destino, estava tão profundamente impresso em seu ser que se projetava ativo e sensível em seu organismo. Como a sua vida espiritual demasiado intensa não se adaptava ao ambiente humano, assim também seu organismo espiritual não se adaptava ao seu corpo físico, com o qual não estava em acordo, mas em contínua desavença.

O homem do nosso século, dinâmico e esportivo, não achará simpático que o protagonista seja apresentado como um doente, ficando justamente desconfiado com a exaltação de mentalidades elevadas em corpos doentes, o que vale para a média, pois que as criaturas normais devem ser, antes de tudo, sadias de corpo. Mas a sua não era doença no sentido comum, implicando inferioridade orgânica. Era a pseudo-doença da evolução, era o pseudo-patológico que a tantos induz em erro, caracterizado pela maior fecundidade e dinamismo construtivo, com a febre resultante da intensa maturação do espírito, pelo desequilíbrio das profundas transformações biológicas.

Realmente, no fundo de seu sofrimento estava o germe de suas mais potentes criações intelectuais e morais. A sua tentativa de superação humana tinha raízes tão profundas em toda a sua natureza que se revelava, primeiro, em seu organismo. Dos planos superiores do espírito, aos ínfimos planos da matéria - ele era um só e mesmo fenômeno, a mesma tensão do destino, a mesma transformação, alma e corpo - todo ele estava projetado para diante na evolução. No fundo, era o mais dinâmico entre os dinâmicos, o expoente do tipo século XX, o tipo do espírito que é sobretudo ativo, o tipo biológico da nova civilização do III milênio. Realmente, amava o trabalho e tinha a coragem para as mais arriscadas aventuras espirituais. Magro, ágil, sempre em movimento, resistente à marcha, à escalação de montanhas, ao calor e ao frio, bronzeado pelo sol, robusto, filhos de pais longevos - destinava-se a ser também longevo. Sempre ao ar livre, amante de banhos, tomava-os quentes e frios e a toda hora, não obstante a suposta doença do peito - nada mais que um resfriado. Detestava a calefação e vivia entre ásperas montanhas, numa choupana exposta, no inverno, a todos os ventos.

Isto não era senão um efeito. O centro de sua vida estava no espírito, como todas as suas maiores alegrias: conceber, criar, conquistar, progredir. Ele parecia a célula nervosa da sociedade, projetada para diante, especializada em funções evolutivas. Era inútil pretender que a medicina compreendesse e curasse o íntimo dissídio físico-espiritual do seu ser e que fosse possível acalmar seu tormento. Não se podia reequilibrar no plano humano. Fora construído para a luta, nascera em um século de luta e devia correr com todos e a frente de todos. Não lhe restava senão equilibrar-se na luta. No repouso não vivia. Esta era a sua natureza, das suas qualidades morais às suas características celulares. Tal era ele, alma e corpo. E se podia ter a aparência e o sofrimento de um patológico, aprendera a compreender a função biológica deste patológico, tal é a significação evolutiva daquelas aparências e as razões que justificavam aqueles sofrimentos. Estes continuavam, mas o espírito resistia. O espírito suportava, afrontava, resolvia e superava tudo. Ele deixava agir a grande sabedoria da natureza que deseja a vida e não a morte e protege a laboriosa gestação da evolução.

 

 

Durante dez anos sua vida foi uma festa de criação, uma contínua exuberância de espiritualidade, uma intensa alegria de viver, bem-fazendo e subindo, na mais profunda realização de si mesmo. Ele se harmonizara com o Criador e todos os seus atos eram um hino de gratidão ao Criador. Sua existência tornara-se um fervor contínuo de concepção e esta era a sua maior sensação da alegria de viver. Ele, que jamais pudera encontrar a alegria no plano humano, encontrava-a finalmente no plano do espírito para onde se transferira o centro de sua vida. Tudo isso representava para ele, em verdade, uma existência nova, plena de novas satisfações. Gozava dessa sensação de liberdade e de domínio que só o vôo pode dar e que os répteis não admitirão jamais como coisa possível. Parecia-lhe possuir novos sentidos, sentidos da alma, pelos quais esta podia, finalmente, revelar-se, agora que a sua casca corpórea, macerada pela dor, tornara-se mais transparente. O seu ser sentia-se como mergulhado num oceano esplendente e vibrante onde ele se multiplicava e se expandia, onde a sua consciência podia agora transpor os limites impostos à natureza humana - os limites do espaço e do tempo. Ele, que desde menino a julgara inaceitável e sufocante, sentia que encontrara, agora, as verdadeiras dimensões do próprio ser, que chegavam ao infinito, e da sua verdadeira natureza livre, que estava no espírito. Assim, intensa de embriaguez, foi essa alegria que lhe pareceu quase uma orgia - a orgia da superação e da evasão que existe na velocidade; a orgia de liberdade e de luz a que se entrega o prisioneiro finalmente liberto do cárcere estreito e escuro.Ele havia encontrado a si mesmo, as suas alegrias espirituais, as verdadeiras alegrias, a sua vida, a verdadeira vida. O paraíso não é um lugar, mas um estado d’alma. É a completa realização do mais nobre de si mesmo - e ele alcançara esta realização.

Os caminhos do mundo se abrem diante de todos, tão bem adaptados e proporcionados aos seus desejos, como caminhos de afirmação, tinham sido para ele caminhos não adaptados à sua natureza - caminhos de negação. Fora, no mundo, um desastrado, um inepto e o mundo o condenara. Rebelara-se. Destruíra as circunstâncias de vida que o ambiente tentava lhe impor, afastara-as e agora encontrara a sua verdadeira vida, que não podia ser de matéria, mas de espírito; não podia estar com o mundo, mas contra o mundo. A adversidade, afastando seu espírito da natural projeção exterior, recalcando-o para o interior, guiara-o, não à natural dispersão, mas a uma concentração dinâmica, até à compressão do explosivo - constrangendo-o àquela profunda elaboração interior de que puderam nascer as grandes maturações. Dor salutar e preciosa que o obrigara a reagir em busca de uma saída que não pudera encontrar senão elevando-se às formas de vida mais altas.

É na reação que o homem se revela. Tudo isso o forçou a demonstrar a sua verdadeira natureza e a sair, para se encontrar num mundo maior, aí conquistando a sua posição. Mais tarde havia de compreender ainda melhor as funções criadoras das provas e da dor, a cujo duro aguilhão devia o ter-se despertado em tempo e o ter percorrido um caminho que, de outro modo, jamais teria coragem de empreender. Se não fosse a dor, que outra coisa teria a força de mover e fazer avançar o homem pelo caminho exaustivo da ascensão?

Na maior parte dos casos, os seres humanos lutam com seus semelhantes e desabafam com o outro sexo. Repetia com Beethoven: "Se eu tivesse sacrificado de qualquer modo a energia vital, que teria acontecido de melhor?" Era cioso, mas em outro plano. Elegera seus termos de comparação - seu rival e seu amor - um tipo ideal e se pusera a lutar desesperadamente para alcançar o supremo amplexo na identificação. Só neste terreno sentira-se digno de combater. Tivera que triturar para conseguir superar a animalidade humana. Mas, não se pode abdicar da própria natureza, nem das afinidades fundamentais do próprio tipo e destino. Neste campo, do qual a maioria nem mesmo suspeita a existência, tivera que se mover, porque ali ouvira o apelo do destino, a única verdadeira realização de si mesmo, porque fora irresistivelmente atraído por aquela santa inveja de se exteriorizar, na qual se manifesta o choque de forças contrastantes que são a base da evolução.

Conseguira uma forma de pensamento e de ação onde não existia o frustrado, o desviado, o fora da lei, o expulso da normalidade. Havia equilíbrio e harmonia na sua lei, com a qual se impunha à atenção dos seus semelhantes. O mundo não o podia aceitar senão como um desafio. O mundo só entendia à sua própria lei de luta que impõe a rebelião aos que querem ficar destruídos.

Finalmente, um fato novo viera transformar a situação. Um fato que emergia do mistério, enviado pela divina Providência, incrivelmente determinada a proteger aquela mesma decidida fé que ele tivera nela, naquela sua vontade férrea que o mundo tanto condenara e que agora produzia frutos tão altos. E todos quantos o haviam desprezado olhavam-no agora admirados da inesperada revelação de capacidade de um inepto e interrogavam o seu rosto sem compreender. O mecanismo dos instintos é suficiente para guiar uma existência primitiva; é porém, instrumento muito impróprio para compreender o mais. Surgiam efeitos em seu ambiente que não podiam ser tocados com as mãos, mas de presença real. As causas, para as pessoas ignorantes, do complexo organismo das forças do destino, deviam permanecer um enigma. Andava agora, firmemente, pelo seu caminho, sem se preocupar com outras coisas. As novas atenções surgidas depois de tanto desprezo, deixavam-no indiferente como as anteriores, que eram de condenação. A incompreensão permanecia a mesma, na derrota como na vitória. A realidade interior e profunda da sua vida continuava sempre igualmente distante da psicologia de seus semelhantes.

Como eles não tinham podido compreender o seu maior sofrimento, que fora a razão de o seu espírito permanecer inconciliável com o mundo, nem aquele temperamento original que o impedia de participar da vida terrestre, agora não podiam compreender a sua maior alegria que era a de ter encontrado no plano do espírito o seu verdadeiro centro vital de atividade. Deste novo estado, das incompreendidas afirmações espirituais, restavam as conseqüências, restavam os fatos. E os fatos não podem, mesmo para quem não os compreenda, deixar de existir. As conseqüências sensíveis da invisível intervenção das forças da divina Providência chamavam a atenção geral. Ele tinha agora uma posição social. Escrevia e publicava; seus livros se vendiam. Estava cheio de vigor e de entusiasmo. Trabalhador incansável, dava provas de inteligência e de vontade. Em vez de ficar esmagado com seu fracasso econômico, mostrava-se muito satisfeito e corajoso, de muitos modos, provava ser um vencedor. "Caprichos da sorte", diziam alguns. "Cada um tem seu gosto", diziam outros, sem saber ir mais adiante.

O que impressiona as pessoas são os efeitos. As causas são muitas e podem ser uma opinião; mas os efeitos não se discutem. As pessoas olham, julgam e correm fanaticamente, cegamente, atrás dos que vencem. São atraídas pelo instinto, inspiradas pela lei biológica da seleção. Fascinadas, como a falena, giram em torno de uma chama até queimar as asas. Aqui estavam fatos, aqui estava o sucesso, essa coisa estupenda sobre a qual não se raciocina mais, tão admirável que não admite perguntas e indagações a respeito da procedência, do mérito que existe nela, até mesmo dos erros que possa conter. A vitória é vitória - adora-se; assim como a derrota é derrota - despreza-se. Assim é o mundo. Se o vencedor é um assassino e o derrotado um mártir, o mundo não compreende senão mais tarde, quando o mártir for liquidado sem remédio. E o mundo lhe fará um monumento, não para glorificar o mártir, mas para sufocar os remorsos de tê-lo massacrado e para melhor utilizar-se, em vantagem própria, daquele pretexto de mérito e virtude.E ele, agora, aos olhos de toda a gente, vencera. O inepto, o sonhador inútil, o miserável - sabia agora fazer muitas coisas e, portanto, os seus sonhos não deviam ser tão idiotas, se no que ele escrevia se encontravam tantas verdades, e, o mais importante era que se encontrava bem economicamente, porque o seu trabalho lhe rendia o bastante para fazê-lo independente. Os intrigantes, os que o desprezavam, começaram a levantar a cabeça e a olhá-lo, pasmados. Convenceram-se de que a realidade dos fatos era inegável e, diante da constatação irrefutável, não puderam resistir ao desejo da admiração.Não há nada mais instável do que os estados psicológicos. É o que se diz dos outros que é digno de fé. Parece que apesar de toda a mania de julgar, ninguém sabe julgar a si próprio. A admiração de terceiros, dos estranhos, aquela que vem de fora de casa, de longe, é a mais convincente. E quanto mais de longe vem, mais convincente é. E assim, para se fazer admirar e conhecer do vizinho de casa, é necessário, às vezes, que a admiração tenha feito a volta do mundo, porque, se ela vem do ponto cardeal oposto, então sim, é plausível. Se vem do exterior é interessante e se vem do outro hemisfério é irresistível. Assim, a admiração se reforça, cresce, se estende e se torna estima - isto é, aquela corrente de favor com que socialmente se circunda e se define um indivíduo.

Assim se realiza lentamente, em torno dele, a estranha reviravolta - estranha para quem atribui um sentido sério à vida, aquele que aqui se sustenta. Reviravolta que era como o lento girar para o sol dessa flor que se chama justamente girassol. E, parece mentira, ele era agora admirado e estimado mesmo por aqueles que antes haviam rido dele, mesmo por aqueles que, quando estava vencido, mais o desprezavam. Assim são as convicções humanas. Afinal, é lógico que a vitória seja tanto mais admirada e a derrota desprezada quanto mais o indivíduo que julga é fraco, vil e constrangido a mentir.

Ele olhava e sorria, sempre longe da algazarra humana. Este seu primeiro ensaio de notoriedade, em lugar de o entusiasmar, deixava-o desiludido. Os triunfos mundanos não o seduziam, porque os via dos bastidores. Via que a glória não lhe dava o amor de seus semelhantes, nem a estima, nem a satisfação de os haver melhorado. Ao contrário, o aparecer em destaque no horizonte psicológico equivalia a excitar a cupidez, os instintos de exploração, de inveja e uma secreta reação demolidora. Repudiava tais frutos como prêmio aos seus trabalhos. Ser conhecido significava, pois, perder liberdade e paz - coisas tão necessárias à sua produção intelectual e profunda vida de espírito. Quanta gente vazia que corre ao primeiro rumor, se interessava agora por ele! E essa gente julgava, media tudo - e era preciso suportar o seu vão falatório! Que atribulação, aquelas apreciações sem sentido! Depois, lembrava-se de que os livros não lhe pertenciam mais. Pusera neles sua própria alma; não podia mais nada acrescentar, evitar ou modificar, pois que fixavam, irrevogavelmente, a sua figura espiritual. A cristalização de si mesmo, vivo, num passado formal, sufocava-o. A obra concluída encarcerava, ao menos por um lado, o seu espírito, e fechava a sua vida. Ocorreu-lhe então que o homem chegado à glória é uma estrada percorrida, um cadáver de que a vida deseja se desembaraçar depressa. Seu pensamento já agora não era mais seu, era o pensamento dos outros e, movido por outra vontade, andava por onde os outros desejassem. E isso lhe bastou para sentir o amargor que está no fundo das aproximações humanas; a vaidade e a ilusão que existem nas coisas da terra. E então sentiu bem claramente que, se tivesse seguido os caminhos do mundo, não lhe restaria senão a sensação final de anulação.

Voltou o olhar para horizontes mais vastos e confortou-se na verificação de sua novas realizações espirituais. Quando humanamente triunfava, estimava-se menos que antes, quando sofria; porque aquela era a hora maior de sementeira, e esta era apenas a hora da colheita. Ele se alegrava diante do resultado de seus esforços. Os espíritos eleitos compreendiam e ele podia fazer o bem. Era uma hora de abundância espiritual. A ceifa se faz sob o sol quente, depressa, sob a embriaguez da vitória que é sempre, em todos os campos, a maior exaltação da vida. Não há tempo agora para a mente se deter a prever qual será o rigor do próximo inverno. Quando ele chegar, veremos. Agora é festa, e basta. Ele estava todo entregue à grande colheita e ceifava em grande quantidade e messe abundante, e acumulava. Tinha pressa de colher tudo. Não queria, não podia perder nada do instante intenso, mas sempre em fuga. A sua alma era um incêndio, mas ele estava ali presente em plena consciência e, embora ardendo, observava e registrava tudo. Uma grande, impetuosa, destruidora corrente de pensamento atravessava o seu espírito e ele tinha um duro trabalho para contê-la, dentro dos obstáculos da palavra, para canalizá-la na forma de redação, para discipliná-la no desenvolvimento conceptual que jorrava de sua pena.

Naqueles dez anos desenvolveu uma atividade enorme, sem repousar nem por um momento, num estado de tensão criadora que devia depois acalmar-se, pois de contrário o destruiria. Mas, a própria febre o sustentava. E, nesse estado lançou uma produção literária tamanha, que mais tarde o assombraria por ter sido capaz de tanto. Não se pode explicar o arroubo e o triunfo de certas festas do pensamento a quem não as experimentou e não está espiritualmente desenvolvido para as compreender. As orgias humanas nada são em confronto. Todo o ser tem uma sensação de expansão além dos sufocantes limites do espaço e do tempo; navega no seu elemento infinito, acima de todas as dimensões humanas de poder, de domínio, de limpidez de visão. Numa exaltação não sensorial, de superfície, mas tão espiritualmente profunda, tão mergulhada na substância do ser, que se poderia definir como um arrebatamento. A verdadeira concepção é, realmente, um êxtase e uma visão. E tal era para ele. Um turbilhão de correntes espirituais envolvia-o, arrastava-o fora de si, não sabia para onde, de visão em visão. Seu olhar interior assistia, pasmado, à dilatação dos horizontes na vastidão dos planos da intuição, levado em novas dimensões conceituais, até à sensação da grandeza infinita do funcionamento orgânico do universo. O pensamento parecia-lhe verdadeiros relâmpagos, imprevistos, vivos, cegantes como centelhas. Acompanhava-o a custo sua pobre pena; não conseguia registrar tudo e seu coração entumecia na exaltação da alegria da concepção. Parecia-lhe até que este pensamento nascia de um novo gênero de amor espiritual que descia do céu, inflamando-o como um turbilhão de fogo.

E ali estava ele, pobre escriba, mas consciente registrador, fiel e enamorado executor. Em torno, sobre a terra, silêncio. E o grande campo adormecido sob o céu estrelado. A luz débil de uma lâmpada, uma pena corre rápida e sem rumor, como sem rumor correm as estrelas pelo espaço sem fim. Não há ao seu lado senão um maço de papéis em branco. Mas por dentro há um incêndio de pensamentos, de fé e de amor. Certamente, lá do alto, o bom Deus olha e sorri, piedoso e benigno porque um desgraçado, no fundo do inferno terrestre, levanta o olhar para Ele e, cheio fé, acredita que o sente e lhe obedece. Quem sabe? Quem pode dizer qual o mistério daquelas horas sublimes? Quem pode dizer que coisas, realmente, ardiam naquele incêndio? Sabe-o a ciência? Sabe-o a religião? Ninguém foi testemunha; os metros comuns não servem para medir as expansões da alma. Ele sabia apenas de sua fé grande e sincera e na simplicidade desta fé, ardia, ansioso, somente por obedecer e dar-se. Será assim tão imperdoável culpa para o mundo o crer e dar-se? E por que se diz, então, que só a fé basta e tanto se exalta o altruísmo? Ele cria - e isto lhe bastava. E abandonou-se à infinita potência criadora da fé.

No entanto, diante do mundo prático e cético, um homem que assim age é desprezado. E a sua, não era uma fé inerte, mas feita de cansaço e sacrifício. No esforço para seguir e realizá-la, ele se dava e se consumia. Por que o mundo o considerava um ingênuo? Por que, na prática, se estimam e se exaltam aqueles que demonstram egoísmo e que são os hábeis acumuladores de riquezas, talvez tão sem escrúpulos que podem constituir um verdadeiro perigo social? Haviam-lhe lançando em rosto que seus esforços não rendiam dinheiro e retornaram ao tema de sua imperdoável inépcia... Mas ele estava absolutamente nos antípodas do tipo corrente de homem-máquina acumulador de dinheiro. Acumulava bem outros valores e no seu campo era o lavrador e o escrupuloso economizador. Se, por um princípio superior, desprezava o rendimento econômico, que rendimento moral tinha em compensação! Como se sentia hábil neste campo, e que resultados obtinha! Parecia estar em ócio; quanto mais intenso era seu trabalho, tanto mais procurava esconder-se, para não ser perturbado. Parecia repousar, e todos diziam: "Mas ele não faz nada!" - mas depois se surpreendiam vendo o resultado tão evidente brotar daquele nada e daquele ócio. Em cada passo, em cada movimento, em cada atitude que tomava, encontrava-se em irredutível contraste com o mundo. Naturalmente, não podia ser compreendido, nem admitido, porque dava ás coisas do espírito a mais extrema importância.

Por enquanto, estava protegido por um mal-entendido, graças ao qual o mundo o apreciava por efeitos secundários derivados de seu novo estado e ao qual ele não dava a menor importância. Realmente, só um mal-entendido podia servir de base a um acordo, que em verdade era fictício e breve, entre ele e o mundo. Ele podia gozar da inapreciável vantagem de ser deixado em paz. Que mais podia pedir aos seus semelhantes? O mal-entendido podia se manter e estender pelo fato de ele trabalhar em silêncio, sem fazer alarde de si, sem usar daquela propaganda que usam os que desejam figurar no mundo. Suas metas eram diversas. Movia-se não por vanglória ou por vantagens materiais, mas para obedecer à imposição que deriva da compreensão de seu destino. Nada tinha para exibir, porque nada pedia aos outros. Nada esperava dos outros, ai deles! Cuidava de construir como podia, sozinho, em plena sinceridade, crente em Deus, por íntimo sentido de missão. Também no método ele estava nos antípodas do mundo.

Mas, sob o mal-entendido incubava-se a discórdia, que era de substância, profunda e insanável. De um lado, ele, ativo no espírito, ligado ao Evangelho, progredindo sempre pelo caminho da ascensão mística, e de outro, o mundo, ativo na matéria, vivendo em desacordo com o Evangelho, sempre mais preso aos interesses terrenos. À medida que o seu destino se desenvolvia, as duas estradas se faziam mais divergentes e inconciliáveis. O desafio era, por enquanto, latente, mas era já uma semente que havia de se desenvolver e que lentamente chegaria à maturação. Muitas provas haviam tornado aguerrido aquele homem para que ele personificasse o desafio e dirigisse a batalha. Cedo ou tarde o mal-entendido deveria dissipar-se, para revelar o íntimo desacordo, e levá-lo a um embate, pois que tudo é luta na vida, também no espírito, e nada se consegue sem luta.

Sua alegria era grande e ele gozava agora um grande triunfo. Mas, no contínuo progredir de todas as coisas, meta nenhuma pode exaurir-se em si mesma e nenhuma conquista deter-se com a sua consecução. Cada vitória que, dormindo sobre os louros, não queira transformar-se em podridão; cada vitória verdadeira, sadia e positiva, contém em si o germe de uma nova batalha, é a preparação de um novo esforço. Mas somente assim ela pode ser também a preparação de um novo triunfo.