Os mesmos atos que, para o homem civilizado, entram no campo da delinqüência, eram, na fase de vida do homem primitivo, atos normais, lícitos, segundo as leis da natureza. Roubar e matar ainda são para os selvagens a espontânea expressa o das leis fundamentais da luta pela vida e da seleção do mais forte. O valor do indivíduo, naquele plano da evolução, somava-se no teor de capacidade para o mal. O inepto — o menos mau — era inexoravelmente repudiado. A natureza, que procura alcançar contínua e impiedosamente, as posições ocupadas pelos valores intrínsecos, não sabia se exprimir, naquela fase involuída, numa forma de justiça mais completa.

Numa sociedade primitiva, o indivíduo não existe senão para si mesmo. A unidade, a consciência, a função coletiva são elementos que ainda não apareceram e não se desenvolveram no germe da vida. As correlações sociais encontram-se no estado caótico; as sementes da convivência se chocam sem piedade na sua fase primordial, antes de encontrarem a via da coordenação. As células individuais não sabem ainda organizar os seus movimentos e funções em relação à  finalidade superindividual, a qual encerra vantagens e realizações mais altas.

Existe, todavia, um grande impulso interior na vida, uma espécie de vontade e de sabedoria latente que fazem pressão de dentro para fora, a fim de atingir com mais evidência o campo das manifestações. Deste mistério, em cujas profundezas reside Deus, emerge a evolução incessantemente acossante e eterna construtora de formas de vida sempre mais altas. Deste modo, a primeira e mais feroz expressão da lei de justiça, regida por equilíbrios rudes e violentos, se adelgaça e se aperfeiçoa. A natureza retoca e completa o impulso primordial da seleção e eleva a sua lei a um plano mais elevado, pois que a tendência objetivamente verificada, no fenômeno da evolução, é a da passagem de um estado de desordem para um estado de ordem. O processo da civilização, que se encontra no âmbito daquele fenômeno, consiste na harmonização e na organização; tende a transformação do caos originário num organismo coletivo. O homem alcança a percepção do fenômeno da delinqüência somente quando se congrega em sociedade e concebe o interesse coletivo; nasce, então, a função social da circunscrição dos atos lesivos a ordem pública. Não é mais lícita ao indivíduo a ignorância do interesse de seu semelhante. A ordem pública regula-se por uma consciência nova, antes ignorada, porque ainda não nascida; na consciência coletiva todos os indivíduos se encontram a si mesmos, fiscalizando-se mutuamente. A medida de civilização é dada pelo grau de transformação dos impulsos caóticos primordiais, que integra o indivíduo e suas funções no organismo social, aperfeiçoando-se a forma de luta, como elemento da seleção.

As suas raízes são de ordem biológica. A natureza quer alcançar os seus fins supremos: a conservação do indivíduo e da raça. Se encontrar obstáculos no seu caminho, procurará desembaraçar-se deles com violência. Se lhe faltar o necessário para atingir a estes fins, ela procurara obtê-lo com qualquer meio. O trabalho é dividido entre o macho e a fêmea em duas formas inversas e complementares. O primeiro é feito para a luta, encarrega-se do mister da reprodução e da conservação, pelos quais arrisca e morre, se necessário; a segunda é feita para a maternidade, soma em si as finalidades da reprodução e da conservação, por estas também arrisca a vida e morre. Ambos possuem o seu heroísmo inverso e complementar.

Estes dois sustentáculos da vida, quando degeneram, tornam-se fatores da delinqüência. Quem passa por cima da Lei e deseja alcançar a satisfação pela fraude e pelos atalhos mais cômodos, é criminoso na sociedade hodierna. Viola-se a lei da justiça, quando o macho se furta ao trabalho e quando a fêmea se forra ao dever da maternidade. Algumas vezes tal criminalidade nasce da injustiça social que oprime algumas classes e impede a expansão das leis naturais. A mesma insaciabilidade humana que faz com que o homem aspire latentemente a ser o dono do mundo e a mulher a ser a rainha de todos os amores, impele a planta e o animal que desejariam, se não fosse a limitação dos obstáculos, cobrir com a sua espécie toda a superfície da terra. As mulheres e os homens são os próprios vigias das expansões das outras mulheres e dos outros homens; donde nasce a virtude que, no fundo, não é senão o ciúme da própria expansão. As funções de ordem pública são confiadas ao instinto e nascem deste primeiro controle de polícia natural. A reação do interesse de todos sobre o indivíduo completa os seus instintos. Se,  primeiramente, ele compreendeu que o dinheiro é útil e em seguida procurou obtê-lo, de qualquer modo, aprendeu, depois, através das sanções sociais, que o dinheiro não é verdadeiramente útil, se for roubado. Semelhantemente se disciplina o instinto do amor que aprende, sujeito à  fiscalização coletiva, a não se satisfazer senão para proliferar. Assim, o campo social contém em si mesmo os elementos da sua vida, da degeneração, da correção e da evolução.

É vão tentar a compreensão e a solução de tais problemas por simples construções ideológicas e por sistematizações filosóficas. A expressa o exata das questões sociais e sobretudo do fenômeno da delinqüência não se pode obter senão cavando até às raízes biológicas, colocando-nos em relação com a fenomenologia universal, para a qual é necessário orientar o próprio pensamento. É naquela profundidade biológica que encontramos a realidade do conceito diretivo dos fenômenos; não nas destilações cerebrais dos eruditos distantes da vida. Somente poderemos compreender a substância dos fatos se os observarmos em função desta força evolutiva íntima que transforma continuamente a natureza. A evolução animal. antes exclusivamente orgânica propensa a construção de formas físicas, encontra-se no homem atualmente na fase complementar, afeita à construção de formas psíquicas. Neste campo estamos ainda no período paleontológico, de explosões passionais violentas de construções ideológicas monstruosas. Ao defrontar-se com a disciplina deste novo mundo do espírito, nos seus atuais esboços iniciais de civilização, o homem se encontra oscilando entre duas leis, a da animalidade e à  da super-humanidade, duas fases, numa posição de transição em que aquelas duas formas de vida disputam o campo. A delinqüência pertence à primeira fase involuta da incompreensão e da ferocidade que atavicamente retorna e sobrevive em desacordo estridente com o ambiente atual que luta pela sua destruição.

Unicamente este conceito de transição e de oscilação entre as duas fases diversas nos explica o contraste, a luta e o fenômeno da delinqüência. Somente aquele conceito nos esclarece a evolução de formas que tendem a um aperfeiçoamento até que se extinguem. Explica-nos como o mesmo ato homicida, que é punido como supremamente anti-social, quando explode no âmbito interno de uma sociedade e, ao invés, considerado heróico e merecedor de prêmio quando surge na defesa de uma sociedade contra um outro grupo social. Isto demonstra o quanto é absurdo invocar neste campo os princípios abstratos de justiça e como a punição penal corresponde sobretudo a um princípio de defesa e de interesse coletivo.

Esta é a primeira base jurídica, isto é, a primeira legitimação da ação do direito penal pois que a natureza impõe, para realizar os seus objetivos superiores, certos deveres à vida — defesa desta e de tudo quanto lhe pertence. As ideologias são neste campo superconstruções a posteriori. Não se discute a necessidade de defesa. Unicamente esta base possui a solidez concreta das razões biológicas. Isto legitima a defesa e transforma-a gradativamente em direito.

O código penal do indivíduo isolado e no estado primitivo está nos seus braços. Ele se defende como pode, o melhor que pode contra todos. O código penal de uma sociedade evoluída é um sistema de normas em que aquela defesa é disciplinada em virtude da finalidade que promove o interesse individual a uma necessidade mais vasta e mais complexa.

O conceito da evolução da criminalidade se complica e se completa com o conceito da evolução do direito penal. Falo sempre em evolução, porque os fenômenos sociais recebem a seiva de que se nutrem de raízes biológicas; é preciso vê-los como são, isto e, não como conceitos estáticos, imóveis, de categorias fixas, mas como um dinamismo, um transformismo perene, dinâmico, como um contínuo turbilhonar. Portanto não mais podemos dissociar a evolução da criminalidade da evolução do seu antídoto social. Ataque e defesa, em técnica bélica, relacionam-se mutuamente e evoluem juntos. A criminalidade varia no tempo e no espaço, como todos os fenômenos sociais,, varia com a evolução da psique humana que participa da evolução biológica. Um impulso primordial e comum, que faz tudo avançar, até a ciência e as religiões, modifica continuamente a forma de ação criminal e, paralelamente, a forma de seu corretivo o direito penal.

A delinqüência tende a aperfeiçoar-se psiquicamente, e passar da zona da violência e da ferocidade para a zona da astúcia; a apoiar-se paralelamente, no fenômeno guerra, nos recursos sempre mais complexos, inteligentes, orgânicos. As condições mais refinadas de vida moderna, criadas pela ciência e pela máquina, tornam mais sutil a forma de expressão do mesmo instinto fundamental. A forma reagirá todavia sobre a substância, modificando as características do instinto. Esta mudança de forma é então o primeiro passo para a evolução da psicologia criminal.

O direito penal prevê e segue esta transformação. Os códigos envelhecem se não acompanham a evolução da forma de expressa o dos delitos, se não se modificam em relação a estes. Os códigos modificam-se à medida que a reação social evolui e melhora; operam mais lógica e substancialmente e agem em profundidade, dirigindo-se sempre para as raízes psíquicas, do fenômeno da delinqüência.

Destarte, ação e reação tendem ambas a se deslocarem no campo psíquico. O encontro de dois antagonistas em luta se dá em zonas sempre mais profundas. O choque tende a perder a sua nota de brutalidade à proporção que a vida se torne menos física e mais psíquica. O criminoso torna-se astuto para se evadir; a norma punitiva toca uma sensibilidade mais excitada que exige tratamento diverso. Compreende-se, então, a inutilidade das penas cruéis; aprende-se que a ferocidade dos sistemas punitivos é mais efeito dos tempos do que meio apropriado ao objetivo de suprimir a criminalidade. As formas mais violentas como as torturas, pena de morte, supressões cruéis, caem por terra em desuso ao longo da via do progresso, como folhas mortas, escórias abandonadas ao passado. As normas do direito tornam-se então fatores ativos na construção dos instintos humanos, os quais se adaptam a novos hábitos. E o hábito é transmissão ao subconsciente, reação de automatismo, de novas qualidades da natureza humana. Donde se conclui que a verdadeira e a mais substancial função de um direito penal inteligente é a de educar o homem, função mais importante e elevada do que o mal — mal necessário — que é a legítima defesa da coletividade. Função preventiva e criativa que não é sendo uma fase do mais vasto processo em que se desenvolvem todas as instituições de um povo, a transformação da força em justiça no processo evolutivo da harmonização geral. Trata-se, em resumo, de um sistema de domesticação da fera humana, de um imenso trabalho educativo que se opera por coação pedagógica, inteligentemente aplicada, do pensamento das células sociais mais evoluídas às camadas mais baixas da sociedade.

O contraste entre ataque e defesa tende progressivamente a esmorecer e o direito penal encontra nisto a sua mais alta justificação ética. A evolução comum realiza a obra da pacificação e da civilização interna. Somente dentro desse conceito a missão ética e primitiva do direito encontra a sua plena justificação. O jus14 que não assume as funções de um ascensor para as mais altas formas de vida individual e coletiva e permanece no campo utilitário, mesmo sendo socialmente útil, não pode chamar-se legítimo diante das leis da vida. A justificação destas nasce das necessidades da evolução. Deste modo o direito penal ascende da reação individual vingativa à função coletiva de proteção preventiva, até atingir a função universal ética e educativa. Torna-se menos reivindicatório, mais eficiente protetor de ordem e legítimo impulso evolutivo. É sempre menos força, arbítrio, violência; mais justiça, ordem, pacificação. Deparam-se-nos a progressiva exaltação do direito penal no campo ético, a posse sempre mais ampla de valores morais e a ascensional harmonização do mundo social.

A primitiva justiça, grosseira no seu direito de defesa, evolve para a justiça que permite a justificação do direito de punir. Quanto mais a balança da justiça substitui a espada da vingança, tanto mais pesa a responsabilidade moral do culpado e tanto menos a própria tutela egoística. Na sua evolução, o jus de punir penetra mais a substância das motivações e o legislador inclina-se para o culpado em ato de compreensão, a fim de enriquecer a função social da defesa de funções preventivas e educativas, porquanto o dever das dirigentes é o de auxiliar o homem involuído na sua ascensão.

As duas ferocidades — da culpa e da punição — abrandam-se, aproximando-se os extremos e harmonizando-se no seu choque. Antes de invectivar o involuído devemos ajuda-lo a evolver, antecipando desta maneira a demolição dos focos de infecção, agindo sobre as causas antes de tiranizar sobre os efeitos, prevenindo antes de reprimir. Há no balanço social um tributo anual de condenados, segundo uma lei que as estatísticas exprimem. É preciso compreender esta lei e depois extirpá-la até as raízes. Existem os deserdados cujo crime foi o terem sido marcados, no nascimento, pelas taras hereditárias. Outros são os falidos na luta pela vida, freqüentemente com a mesma psicologia e valor moral dos vencedores. A delinqüência é um fenômeno de involução. É necessário demolir todos os fatores, coadjuvantes dela. A sociedade possui um dever bem mais alto do que o de se defender e de se isolar em segurança: o dever de fazer progredir consigo, de arrastar na sua marcha ascensional as suas células mais jovens e atrasadas. A alma coletiva tem também as suas tarefas e a sua missão. A posição primitiva satisfazia ao materialismo de outros tempos, mas não pode jamais contentar e bastar à mais alta civilização do futuro.

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14 Jus (do latim jus, juris - ou ius, iuris:) direito. (N. do T.)