A luta entre o involuído e o evoluído não passa de momento da luta universal entre o baixo e o alto, o passado e o futuro, o mal e o bem; e vice-versa. O problema se espraia, desse modo, no problema muito mais vasto do bem e do mal, os dois termos contrários em que se divide e se funde a grande unidade do universo. O mal representa o baixo, o passado, a desordem, o inferno, a revolta contra a Lei, o nosso afastamento de Deus. O bem representa o alto, o futuro, a ordem, o paraíso, a obediência à Lei, o aproximarmo-nos de Deus. Como a evolução é apenas a ascensão do primeiro para o segundo posto, o involuído não passa de retardado e do mesmo modo o evoluído é tão-somente certo involuído que progrediu. Como os dois termos contrários, mal e bem, se digladiam, assim o fazem também o involuído e o evoluído, que pertencem, respectivamente, ao primeiro e ao segundo termo. Para compreensão de qual deverá ser o resultado da luta, analisemos a natureza e a estrutura dos dois sistemas de forças, confrontando o do mal com o do bem. A análise nos indicará também, implicitamente, o resultado fatal da luta entre o involuído e o evoluído e ao contrário.

Analisemos o fenômeno do mal. É evidente tratar-se de sistema de forças por natureza negativo, quer dizer, cuja característica fundamental reside na negação. Satanás é representado como o espírito que nega, como o princípio da revolta no fundo do abismo. O Fausto de Goethe desenvolve essa psicologia em profundidade. Aí, onde o bem afirma “sim”, isto é, construir, harmonizar, progredir; diz o mal: “não”, ou seja, destruir, desarmonizar, regredir. Isso significa possuir natureza inadequada, desenvolver atividade em direção errada, constituir sistema de forças que apenas pode atingir resultado falso. Tudo isso está implícito no sistema, por força de seu próprio princípio e estrutura. Desse tipo são a natureza e a atividade do involuído, vandálico por princípio, enquanto o evoluído é por natureza construtor e anti-destruidor. A psicologia diferente e o método de ação constituem exatamente a nota fundamental que os distingue. Essa natureza do involuído, como acontece ao mal, importa em atividade em direção errada, isto é, permanecer fatalmente ligado à estrutura mesma do próprio sistema de forças, de modo a atingir apenas resultado falso. Assim, quem por princípio destrói acaba, como destruidor, agindo contra si mesmo; quem constrói acaba construindo para si mesmo.

Da natureza negativa das forças do mal resultam três consequências importantes: 1ª – Por parte do mal, absoluta impotência de construir para si mesmo e capacidade de desenvolver apenas atividade negativa, isto é, de embaraçar o trabalho construtivo alheio. Portanto, o mal subordina-se ao bem e existe apenas como forma de negação do bem, quer dizer, é função dele, como da luz depende a sombra. O mal, desse modo, nasceu escravo e seu domínio não passa de domínio negativo, desagregador. 2ª – Sua irresistível tendência para auto-destruição. 3ª – A subversão de todo o rendimento de sua atividade, que assim, na realidade oposta às mentirosas aparências, não se resolve a seu favor, mas a favor do termo oposto – o bem. A destruição levada a cabo pelo mal se transforma, assim, em construção no campo de forças, inverso e contrário.

Observemos os três pontos. Trata-se de três momentos do mesmo processo, de três funções tendentes ao mesmo resultado: a vitória do bem. Conclusão: o mal parece e, no entanto, não é inimigo. Representa apenas a negação que condiciona a afirmação. Sua posição é de divergência, mas subordinada; o sistema destrutivo está combinado de modo tão sábio que deve acabar transformando-se em construção. Particularidades momentâneas poderão causar-nos impressão contrária, mas a ação do mal, em conjunto, representa apenas contribuição para a vitória do bem. Quem considera o mal como inimigo não compreendeu a perfeição da Lei. No capítulo anterior vimos os empreendimentos do involuído, considerado como órgão de destruição. Examinando mais intimamente agora, podemos compreender de que maneira, em última análise, eles não passam de colaboradores do evoluído, de órgãos de construção. Tudo na Lei deve ser construtivo, mesmo lá onde assume aspectos negativos, até mesmo sob as aparências de oposta forma. O estudo do problema do mal faz-nos compreender melhor a verdadeira função do involuído no quadro da vida; como sua atitude de revolta se transforma em obediência; como, apesar de tudo, ele é apenas escravo da Lei. Tão sabiamente se acham combinados a natureza e o desenvolvimento das forças que tudo termina se pondo a favor da evolução. A revolta, ofendendo a Lei, excita-lhe a reação, que para o homem significa dor, isto é, experiência, entendimento, redenção. Os que afirmam e os que negam, todos trabalham em prol da Lei; como, através da dor, esgotando-lhe as causas, anula-se a dor e se cria a felicidade (já vistos); como o mal fracassa ao manifestar-se, tende para a autodestruição e, no entanto, trabalha pela vitória do bem; assim, aos poucos, a evolução absorve a involução; e o involuído, transformando-se, desaparece ao subir.

O primeiro dos três momentos do processo de desenvolvimento das forças do mal nos mostra o aspecto negativo da sua função. Por si mesmo, considerando-se a sua natureza negativa, representa força esgotada, equilíbrio instável e provisório, posição falsa e insegura, apenas capaz de triunfos efêmeros. O tempo, de fato, constitui o grande inimigo do mal, sempre apressado porque reconhece a instabilidade de suas posições. Sozinho, pois, nada pode concluir de duradouro. Embora sabiamente executadas, as construções do mal parecem tender irresistivelmente ao desmoronamento. Por mais perfeitas que sejam, falta-lhes o equilíbrio completo, única base estável e resistente. O que é resultado de negativas e destruições não pode afirmar-se e construir, mesmo no mal. Se a função do mal é para si mesma negativa, torna-se positiva em favor dos outros, embora contra estes também se dirija em sentido negativo. Desde que o princípio da subversão esteja na base do sistema, é claro que, desencadeada força em si mesma negativa, esta ao chegar deve apresentar-se invertida, isto é, positiva. O trabalho maligno, de embaraçar a atividade construtiva alheia, transforma-se, desse modo, no exercício da útil função de resistência necessária à explicação do esforço humano, função de controle e verificação do experimento com que se conquistam exatamente as qualidades necessárias à evolução; e no da função de elemento secundário e indispensável para contrabalançar as forças dos dois termos opostos do binômio, necessários para a luta de que nasce a evolução. Dessa maneira, a função do mal se transforma na de estimular e acelerar a atividade das forças do bem, isto é, tornar-se, embora em sua posição negativa, necessário e útil fator de progresso. Portanto, o mal, sem querê-lo, torna-se útil ao bem. Assim, Judas, contra a própria vontade, não trabalha para a desejada destruição de Cristo, mas para seu triunfo. No plano da criação, o mal submete-se ao bem e, como seu servo, deve, sem sabê-lo, cooperar na consecução de suas finalidades. A mentira engana a si mesma; o impulso egoísta nada pode fazer sozinho e, sem compreendê-lo, presta serviço a seu rival.

No segundo momento do mesmo processo, verificamos o agravamento do aspecto negativo da função do mal, agravamento que prejudica ao próprio mal. Não somente o mal pode construir-se por si mesmo, porque é escravo do bem, como, em face de sua própria natureza negativa, arrasta-se inexoravelmente para a autodestruição. Tal é a triste posição de todos os destruidores, de quantos trabalham no  campo de forças do mal. Por mais que a negação do mal pareça projetar-se contra o bem (não o atingindo, porém, senão sob forma positiva  retificada), a verdade é que na sua forma negativa ela se projeta contra o próprio mal, que, desse modo e paralelamente à função positiva em prol do bem, submete-se a processo de auto-eliminação. A natureza negativa das forças do sistema importa em que seu desenvolvimento se traduza em demorado autodesgaste e progressivo esgotamento. A negação do mal não pode desenvolver-se e agir senão em duas direções, num dúplice processo: com resultado positivo para o bem e negativo para si mesma, isto é, construindo o bem e destruindo-se. Segundo parece, em relação a si mesmo o mal não sabe fazer outra coisa senão gerar o micróbio que o mata. As próprias bases e a lógica do sistema implicam em que a vida do mal possa apenas consistir num suicídio, o suicídio de Judas, sua fatal autopunição. Não obstante, Judas foi utilizado em favor das finalidades do bem.

O terceiro momento do mesmo processo mostra-nos, ao lado do aspecto negativo da função do mal, o aspecto positivo; quer dizer, mostra-nos como o mal, além de escravo, nada absolutamente pode fazer para si mesmo, estando condenado à autodestruição, como, por inversão ocasionada pela natureza de seu próprio princípio animador, pode tornar-se construtor até mesmo no oposto campo do bem. Chegado ao terceiro momento, o processo de desenvolvimento das forças do mal nos mostra, paralelamente ao aniquilamento dele (segundo momento), sua ressurreição, embora em posição invertida. Eis que, ao lado da função do mal, sempre exercida contra ele, aparece outra, mais verdadeira, função inversa, ou seja, afirmativa e construtiva, que atua sempre em favor do bem. Tais são as consequências da estrutura negativa do sistema: danos para si mesmo e vantagens para o inimigo. Terrível condenação. A mentira do mal não pode, logicamente, terminar senão por enganar a si mesma, dissolvendo-se em favor da vitória do bem. O próprio método do mal, de travestir-se em mil e uma ilusões, leva-o a transformar em positivo seu próprio impulso negativo. Mas, embora querendo mentir aos outros, o mal, se quiser continuar sincero para consigo mesmo, não pode ser senão autodestruidor. Como nenhuma afirmação pode existir em campo negativo, como nesse campo nenhum desenvolvimento pode verificar-se senão em sentido destrutivo, então o mal não pode, em última análise, afirmar-se e desenvolver-se, com o caráter de força, senão contra si mesmo e em favor de seu contrário, isto é, em campo positivo e a favor do bem. Eis que o princípio anticriador, o anti-Deus, por si mesmo se destrói, se trai e se torna servo de Deus, princípio-criador. O mal não funciona apenas como obstáculo que serve para adestramento no campo das provas, como catalisador nas reações, desse modo ajudando a evolução, mas é também a principal fonte dessa dor que é exatamente causa de reequilíbrio, instrumento de redenção para o mal e de evolução a caminho do bem, isto é, a força devoradora do mal e a construtiva do bem. Então, o escravo torna-se útil colaborador, o que parecia elemento destrutivo é, na realidade, instrumento que serve para construir, é condição de progresso vertical e de realização do bem; é amigo, ao invés de inimigo. Assim se explica a necessidade desse agente determinador de provas, a utilidade das perseguições, a significação do atentado destrutivo por parte do involuído. Assim se explica como o progresso se nutre dessas resistências, ao invés de permanecer bloqueado por elas, pois se transformam, enfim, em impulsos favoráveis. Assim se compreende porque o Evangelho nos aconselha a que não façamos frente ao mal. Em universo perfeito, onde tudo possui significação própria, se o mal existe deve ter objetivo, rendimento certo, exercer uma função. Nos equilíbrios da Lei até o mal se torna útil. Já vimos que construção orgânica é a Criação. Qualquer coisa fora de lugar, ou sem razão de ser, ou sem função, constitui enorme absurdo. Quem não compreende pode clamar contra os erros e os defeitos; quem o compreende vê, por isso, como tudo está em seu lugar certo, admira a perfeição com que todas as coisas, o mal e o bem, operam em harmonia com a Lei, a favor do bem.

O bem possui, pois, grande aliado, o mal, cujas forças trabalham contra si mesmas e a favor do bem. De modo que, em resumo, os impulsos do mal se adicionam aos do bem e, então, sob as aparências de desordem e rebelião, tudo é ordem e obediência a Deus. Quando penetramos além da superfície das coisas e observamos mais profundamente, surge uma realidade diferente e maravilhosamente perfeita. Ficamos atônitos, então, em face da inesperada sabedoria da Lei. As resistências se transformam em impulsos construtivos, as dificuldades estimulam e os ignaros impulsos do mal gentilmente se prestam, à custa do próprio dano, a trabalhar pela vitória do princípio contrário. O mal é enquadrado a serviço do bem. Satanás goza de liberdade até o ponto que Deus quer e está prostrado e amarrado a Seus pés. Escolha o homem a posição destrutiva ou construtiva, funções da resistência ou do impulso na ascensão, tudo se resolve em aplainar a estrada da evolução e se resume em obediência à Lei. O estridor infernal da desordem é indisciplinado apenas no seu campo e interiormente; mas para além dos limites estabelecidos, tudo se enquadra no concerto das harmonias divinas. Assim, nas mãos de Deus, o próprio Satanás destrutivo se transforma em construtor, embora sem sabê-lo e querê-lo; de tanto negar e mentir, acaba por fazer o contrário daquilo que pensa estar fazendo; de tanto enganar, acaba sendo enganado. Judas desejava ganhar e matou-se; pensava trair e tornou-se instrumento da Paixão de Cristo, colaborador da redenção, negativo, mas útil. Todos os ataques do mal, também nesse caso, permanecem subordinados ao bem, tudo coopera na vitória de Cristo. Isso nos mostra podermos ser derrotados mil vezes; o que decide a vitória final é estarmos do lado da verdade. Nisso se resume a história do mundo. Em última análise, Satanás não existe senão para involuntária e inconsciente missão benéfica, fora da qual lhe resta apenas autodestruir-se. Cumprida a missão, aniquila-se. A essência da destruição do mal conserva-se latente dentro dele e é imposta inexoravelmente pela natureza mesma do organismo de forças de que ele se constitui. O mal carrega consigo o germe da própria destruição, posto nele para que tal aconteça. Representa o impulso central do sistema, que o levará fatalmente à pulverização final. No universo, tal como está construído, é absurdo que o mal finalmente vença e o bem seja derrotado. Vemos, ao invés, que tudo se move em direção evolutiva, isto é, rumo à perfeição. A única razão que mantém vivo o mal é exatamente sua função benéfica. Assim, ambos se encaminham para o mesmo objetivo; por força da sabedoria divina os dois inimigos colaboram para obtenção do objetivo comum; ambos criam, o primeiro destruindo e o segundo construindo. Satanás acaba sendo (suprema ironia) escravo do bem e operário de Deus. Portanto, qualquer pessoa, demolidora ou construtora, involuída ou evoluída, tem de, queira ou não, dar-lhe contribuição construtiva.

Através dessas considerações apareceu-nos o verdadeiro rosto do mal. Conseguimos avaliação mais aproximada e compreensão mais harmônica do fenômeno, de modo que o mal, como muitos pensam, não constitui mistério, censura à bondade de Deus ou inexplicável imperfeição de Sua perfeição. O fenômeno se torna mais compreensível se o concebermos como sistema de forças em ação. Há de chegar o dia em que essas forças poderão ser percebidas e calculadas por tipo humano a isso sensível por ser mais evoluído. Então, ao invés de demonstração racional, ele poderá provar experimentalmente tudo quanto havemos afirmado. A quem vê as coisas só pelo lado de fora, tudo isso pode parecer absurdo; mas a verdade é que o mal nasce para o bem. Se o mal nos faz mal é porque lhe pertencemos; faz-nos mal na medida e nos pontos em que somos coniventes, quer dizer, na proporção em que já se encontra dentro de nós mesmos ou, melhor, é desordem nossa, tal como livremente a desejamos e incorporamos em nós mesmos. Nossa qualidade e posição é que nos torna vulneráveis à sua capacidade destrutiva. Retornamos por outros caminhos aos princípios, já considerados, da lei da honestidade e do merecimento. Se formos culpados, o mal desempenhará em relação a nós o papel de justiceiro; mas se formos inocentes, nos transformará em mártires e promoverá nossa apoteose. Só para os malvados o mal é apenas mal. Para os bons constitui o bem. O mal poderá semear a ruína dentro de nós apenas se lhe houvermos invadido o campo e descido em seu terreno. Doutro modo, nada poderá contra nós. Noutras palavras: o mal retifica posições, é mestre que só intervém para corrigir onde há erro. Lá onde a ordem já se estabeleceu, o mal fica sem ação porque não encontra ponto de apoio algum. Se em nós não existe falha alguma, o mal não sabe por onde entrar. Portanto, apenas proporcionalmente à nossa imperfeição é que estamos sujeitos ao mal e sofremos; se a imperfeição abre as portas para a dor e permite que o mal ataque, acaba sendo corrigida e saneada automaticamente pela dor e pelo mal; e isso de tal modo que, façam o que fizerem, sua ação tende sempre a preencher automaticamente a falha através da qual entraram e a transformar-se em bem. O universo, portanto, contém em si mesmo o princípio de ressaneamento de todo erro.

Esses conceitos podem, enfim, mostrar-nos racionalmente o significado lógico desse tão raramente aplicado método evangélico de não-reação: “Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu vos digo, porém, que não resistais ao mal (ao maligno); mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mateus, 5:38-39). Assim falou Cristo no Sermão da Montanha. Não se trata apenas de ato de amor, mas de método de vida logicamente colocado no sistema universal, em que a defesa do justo é fato automático. Para quem não conhece a lei isso é absurdo. Não obstante, nossa miopia nos torna vítima de ilusão, quando nos faz acreditar que reação significa defesa. Agora estamos em condições de compreender que reação não quer dizer isso; não fecha, mas abre as portas ao mal, que acaba sendo bloqueado por outros meios; no seu próprio campo de forças introduz o mal, quando recebe e devolve a violência. O sistema da Lei já é de si mesmo justo; não precisa de intervenções humanas para tornar-se tal. Só a Deus compete julgar e distribuir justiça. O justo é automaticamente protegido pela Lei. Quando somos injustos e merecemos ser prejudicados, a defesa que promovermos de nada nos valerá sem a de Deus. O evoluído, que compreendeu a Lei, segue o método de não-reação preconizado por Cristo. O involuído segue o do mundo animal: olho por olho e dente por dente. O primeiro, confiando-se à justiça de Deus, defende-se com o merecimento. O segundo tem a seu favor apenas a força. Por isso, é mais débil e inseguro. O método do evoluído, contudo, lhe parece forma de debilidade e vileza, quando o evoluído é, isso sim, indivíduo consciente. Mas na atuação dos dois métodos há esta grande diferença: o primeiro importa na necessidade de sermos honestos.