A economia do evoluído deriva diretamente da sua própria psicologia. Assim como o Evangelho revoluciona o mundo, a forma mental do evoluído transforma a do involuído, porque se trata precisamente de passagem da inconsciência para a consciência, da ignorância à sabedoria. As duas formas mentais representam os dois extremos da fase humana de evolução, que lutam. Baseiam-se nelas, duas escalas de valores opostos. Acima de todos eles, o involuído coloca os bens materiais e o evoluído, os espirituais. Segue-se daí que o primeiro não faz caso destes e o segundo daqueles, ligando-lhes bem pouca importância. Um sacrifica tudo à riqueza, até o próprio espírito; outro sacrifica tudo ao espírito, até mesmo a riqueza. Este adora a matéria e por causa dela prostitui o espírito; aquele adora o espírito e a ele submete a matéria. O evoluído, que conquistou o conhecimento, sacrifica o valor menor ao maior; o involuído, que ainda não adquiriu compreensão e vive de ilusões, sacrifica o valor maior ao menor. Dessa psicologia se infere que o primeiro dá toda a importância aos valores morais, geralmente menoscabados, e muito pouca aos valores econômicos, em geral elevados às nuvens. A economia do evoluído, que referimos acima, é consequência também dessa psicologia, em razão da qual ele, espontaneamente, dá à riqueza valor relativo e subordinado, em lugar de valor principal; se deve administrá-la, administra-a porque é seu dever e não por apegar-se-lhe avidamente e, quando e se pode, livra-se delas, antepondo-lhes o estado de pobreza protegido apenas pelas forças da Divina Providência. É lógico que, no mesmo campo em que o involuído, diametralmente oposto, representa a máxima afirmação, o evoluído deva representar a negação máxima, e ao contrário. Por causa do natural antagonismo das duas posições, uma exclui a outra e tende a tudo absorver. Ninguém pode servir a dois senhores ao mesmo tempo. Há uma lei que diz: naturalmente, quem cuida das coisas espirituais não pode mais ocupar-se das coisas materiais, porque não as quer mais e até mesmo lhes tem repugnância; e quem trata das coisas da matéria se absorve de tal modo nelas que fica surdo às do espírito. Daí se deduz que, como o homem do mundo tende a desinteressar-se das coisas do espírito, isto é, tende à amoralidade, o homem do espírito tende a desinteressar-se das coisas da matéria ou, seja, tende para a pobreza. Porque os dois extremos são inversos e rivais, parece impossível, sem a correspondente pobreza espiritual, atingir-se a riqueza material e, sem a correspondente pobreza material, atingir-se a riqueza espiritual.

Trata-se de dois mundos diferentes, cujas leis já analisamos, de dois métodos de vida, de dois sistemas, que uma vez escolhidos nos arrastam fatalmente, na lógica de sua estrutura, até às suas últimas consequências. O sistema em vigor, da riqueza obtida pelo método da força, tem como consequência imediata a incerteza dos resultados. De fato, no mundo econômico as crises são contínuas e, segundo parece, irremediáveis. A conclusão daquele sistema é absolutamente negativa, de modo a podermos dizer que a pobreza é, neste mundo, a única forma de riqueza segura. A instabilidade e o risco participam do sistema e não podem ser eliminados senão destruindo o próprio sistema. Outra consequência é a conexão entre a riqueza e o emprego da força. A instabilidade requer defesa contínua, isto é, luta, guerra. Mesmo sob este outro aspecto a conclusão do sistema é negativa, quer dizer, não pode existir paz na riqueza, mas apenas na pobreza. Todo desenvolvimento econômico importa aumento de bem-estar, em exuberância vital, que desemboca nos expansionismos imperialistas; em outras palavras, toda aquisição de riqueza apenas serve para alimentar novas cobiças, para despertar a insaciabilidade humana. O sistema de forças termina sempre em guerra e destruição, que reequilibra o processo desequilibrado. Essa é a nêmese1 das conquistas terrenas: crescer para devorar-se. É a mesma nêmese que vimos no que elas se mancham: a autodestruição. Ai de quem constrói sem equilíbrio e com injustiça. Cava diante de si mesmo o abismo em que se precipitará. Tal é a fase, cheia de erros e de dores, de quem na Terra ainda deve aprender.

Se essa fase, porém, se torna necessária para os primitivos de hoje em dia, o evoluído não pode adotar esse sistema. Ele, que superou essa espécie de prova e, tendo-lhe assimilado os resultados, desfez a ilusão, não pode acreditar mais em riqueza que se pode perder, que é pretexto de lutas continuas e, para terminar em traição, envilece e sacrifica só para si, roubando as melhores energias vitais ao mundo espiritual. Toda a atenção da alma do evoluído prende-se a coisas bem diferentes; sua luta e sua atividade criadora se desenvolvem em plano mais elevado, acima do campo das competições humanas. Não pode cansar-se em competição para ele já improfícua; não pode gastar-se mais para proteger riqueza que já não lhe interessa; seu instinto leva-o; pois, a abandoná-la. Não é só, porém. O evoluído é impelido a detestar essa forma de atividade humana por que se podem sacrificar, e se sacrificam, os mais altos valores espirituais. Nasce-lhe, desse modo, não só o senso de indiferença, mas também o de repugnância pela causa de tantos males. Nas mãos do homem moderno o poder da riqueza logo se torna guerra e, por isso, destruição; torna-se ódio e delito e se funde com as forças do mal. Então, o evoluído se rebela e, ao invés de participar na luta contra o homem para conquista da riqueza, faz guerra à riqueza a fim de conquistar mais altos valores humanos. Os bens da terra são, no entanto, dádivas de Deus. A riqueza é grande força, mas o homem conspurca-a e isso a inutiliza. O mau uso que muitas vezes dela se faz, o modo com que a empregam, os fins para que se dirige, o mal, o ódio e, portanto, as dores que se lhe ligam, tornam-na um dano que o evoluído deve evitar e não uma vantagem de que possa utilizar-se. Ele toca, por isso, o menos que pode nos bens da terra. Retira-se, pois, com repugnância dessa afirmação de ferocidade para conquista da riqueza e refugia-se na pobreza. Isso não significa desprezo dos bens de Deus nem desconhecimento do valor dos meios materiais e do rendimento que poderiam dar, se fossem manipulados com maior sabedoria. É, isso sim, terror do involuído, da baixa psicologia com que ele dirige a própria atividade e contamina tudo aquilo em que põe as mãos. A riqueza pertence ao involuído, diz-lhe respeito, é sua. Isso basta para torná-la inaceitável. O homem a relaciona com as forças mais baixas da vida e, assim, ela satura-se de mal. Tanto basta para torná-la detestável. Trata-se de sensibilidade espiritual, isto é, depende do Deus que adoramos no degrau mais alto da própria escala de valores. Quem venera as coisas do espírito não pode suportar mais nada que por qualquer motivo as ofenda.

Por esses motivos o evoluído prefere a sua economia à do involuído, mais em voga. Levamos em consideração neste livro os dois casos extremos, entre os quais se coloca o caso intermediário do administrador e organizador honesto, que da riqueza usa e não abusa, e não a transforma em mal, mas em bem. Esse tipo, porém, ainda não é tão numeroso que possa ditar lei e tomar as rédeas da economia humana que, no conjunto, é aquela acima descrita. Essa é a revolta pacífica do evoluído, de acordo com o método evangélico da não-reação. Despreza quanto pode a riqueza, embora compreenda e admire aqueles que, imbuídos do espírito de pobreza e de honestidade, empregam-na para o bem e não a possuem para vantagem e desfrutamento egoísticos, mas para cumprimento de função social ou missão. O evoluído muitas vezes, até se mistura com eles, mas toca na riqueza apenas por sentimento de dever, como peso que se carrega por amor de objetivos mais altos e com absoluto desprendimento e desinteresse. Essa atitude é tudo quanto precisamente o distingue dos demais. Enquanto estes, geralmente, procuram avidamente a riqueza como fim em si mesma, o evoluído não a busca e, se acontece possuí-la, transforma-a em meio e a emprega em finalidades mais altas. A Terra e seus bens não se lhe apresentam sob a forma positiva de atração, mas sob a forma negativa de repulsão; para si, o mundo não é mais lugar de conquista e de alegria, mas de dor e trabalho missionário. Tudo quanto não se refere ao espírito não lhe interessa, porque vive em função do espírito e não em função da matéria. E para o evoluído representa vitória aquela mesma pobreza que causa medo ao involuído e se lhe apresenta como derrota. A seus olhos essa pobreza assume significado afirmativo e criador, sensação triunfal de alforria e poder, torna-se escola de dominação, campo de exercícios heroicos. O espírito nutre-se dessas anulações na matéria; isso é lógico quando se trata de processo de aniquilamento. Por isso, podemos assim balizar a sucessão desses momentos: “empobrecer, sofrer, refletir, compreender, reconstruir, progredir”. Assim os equilíbrios da Lei corrigem os excessos humanos na vitória da matéria, invertendo as posições com a derrota material, de que nasce a vitória no espírito. Este, na pobreza dos meios terrenos, enriquece. O evoluído percebe esse fenômeno, adquire esse senso de enriquecimento e não liga mais à imagem da pobreza a sensação de derrota, mas de conquista, nem a de mal-estar, mas a de bem-estar. O Evangelho baseia-se na lógica dessas inversões, que parece desapiedada e terrível, mas que é, na verdade, simples e natural. Se, considerando-se o que o homem tem sido até hoje, toda posse mais ou menos impõe a necessidade da guerra, torna-se evidente não poder possuir coisa alguma quem, de acordo com o Evangelho, proclama o amor ao próximo. Essa é a lógica do sistema, que de modo algum podemos negar. E o próprio Evangelho nos mostra, na pobreza, as conclusões derivadas dessas suas premissas. Entre Cristo e o mundo não há possibilidade de acordos. Os dois sistemas são opostos e reciprocamente incompatíveis. Ou um ou outro. O espírito (o evoluído) está colocado num extremo da vida humana; o mundo (involuído), no outro. O primeiro quer vencer o segundo. Recusa qualquer coisa em comum, nada aceita em comum, quer e deve ser pobre. Mas essa pobreza não é miséria, mas rebelião dos ricos de espírito contra a miséria moral dos outros, pelo menos enquanto e até onde a riqueza não for guiada pela sabedoria. O verdadeiro amor evangélico não pode permanecer egoisticamente rico enquanto houver miséria. Quem não compreendeu e escolheu essa pobreza não pode ser verdadeiro sacerdote do espírito.

Disso tudo se pode concluir também que o problema da riqueza não é apenas, como hoje se crê, distributivo, nem, se o entendermos desse modo, deixa intactas todas as cobiças humanas, que são as verdadeiras raízes do dano; nem se resolve no plano econômico, em que hoje se coloca, e sim no plano psicológico e moral. Não basta o advento da justiça social pela qual tanto lutamos em nossos dias. Torna-se necessário construir também o homem. A solução consiste em conquistar a consciência que nos leve a fazer bom uso da riqueza, transformando-a de mal, a que se reduziu, em bem. Enquanto não chegar esse dia, o evoluído poderá dizer: não aceito, não me interessa, recuso o bem que vocês envenenaram. Repilo a forma de luta que vocês adotaram e nos degrada. Para o evoluído a pobreza franciscana, ao invés de utópica, representa dura consequência da conduta humana; não é atitude negativa, mas atitude de vigilante espera; não é definitiva, mas transitória e será superada quando, como todas as fases, sua função estiver esgotada e a evolução torná-la desnecessária. Então, a riqueza, restituída à sua pureza, se tornará aceitável como aquilo que exatamente é, quer dizer, como dádiva de Deus.

Tudo isso pode causar espanto ao homem do nosso mundo, que não percebe o valor das coisas do espírito com a mesma intensidade com que a sente o evoluído. Para este último, porém, a vida assume significado bem diferente. Sente, sem sombra de dúvida, o perfume da pobreza a impregnar todas as coisas em que toca. Percebe a beleza moral dessa pobreza, simples, honesta, laboriosa, confiante e tranquila, não dessa pobreza colérica e envenenada do mau, mas dessa agradecida pobreza do justo. Em suas mãos ela espiritualiza-se e aureola-se de bondade e fé, que a transformam em instrumento de ascensão. Desse modo, a pobreza quase se santifica e chama para junto de si a presença de Deus. Então, quem perdeu tudo percebe que, de fato, ganhou tudo e o paraíso desce até ele. E quanto mais se dá mais se recebe, a pobreza torna-se, então, meio de enriquecimento; do mesmo modo, nas mãos do involuído a riqueza pode tornar-se meio de empobrecimento. E agora, aquela que para o mundo significa miséria pode tornar-se beatitude, como o era para São Francisco. Não nos podemos doutro modo explicar-lhe a psicologia. Poder-se-ia objetar que é censurável deixar de lado a administração da riqueza, que no entanto, como produtora de bens, tanto poderia frutificar. Não. Cada um em seu nível. A esse trabalho já se destinam os honestos administradores da terra (o homem do 2º tipo) e esse trabalho lhes toca. Têm a função de reordenar o ambiente terrestre e exatamente por isso é que são organizadores de coisas humanas. O paraíso na Terra constitui-lhes a meta e procuram laboriosamente prepará-lo. Mas o evoluído (o homem do 3º tipo) deve desempenhar função mais alta: dar a esse trabalho a orientação necessária. É precursor que intui, dá as grandes diretrizes do espírito e indica-lhe objetivos sobre-humanos. Os olhos dos primeiros são analíticos e míopes, aptos a verem as coisas próximas da terra; os dos últimos são sintéticos, enxergam longe e podem ver as longínquas coisas celestes. O objetivo final dos primeiros está na terra e aqui o alcançarão, transformando-a de inferno em paraíso. O objetivo final dos últimos está colocado no céu e o conquistarão, afastando-se da Terra para caminhar em direção a humanidades mais evoluídas, a pessoas de sua raça.

Tudo isso pode causar estranheza ao homem de nosso mundo. Mas este último é o termo derradeiro, o caso máximo. Trata-se de homem que compreendeu e vê o funcionamento da economia da natureza, sabe que a vida é protegida e a Lei de Deus o segue passo a passo para salvá-lo; sabe que a defesa não é confiada a ele, mas àquela Lei todo-poderosa. Sabe que ela é boa e perfeita. Adquirida a consciência de estado de fato tão maravilhoso, de sua vida desaparece toda sensação de temor, que envenena as efêmeras vitórias humanas da força. Ele sabe que será provido, pois a Divina Providência é apenas um momento de todo o sistema de economia do universo, em que toda vida, em razão do que ela custa, não pode ser desperdiçada, mas deve ser utilizada em favor de finalidade adequada. Sabe que lhe basta enquadrar-se no grande organismo, obedecer à Lei, desempenhar dentro dele a própria função, fazer sua a vontade de Deus, para viver em paz e em segurança. Quem o observa só por fora, julga-o pobre e se engana, porque se o visse por dentro, haveria de compreender que é imensamente rico; rico porque não possui mais os bens na periferia tempestuosa, sob forma caduca, mal protegidos pelas garantias humanas, mas os possui no centro, em substância, seguros, lá onde eles com justiça emanam do poder de Deus.

Quando chegamos a esse plano, divina beleza ilumina e aquece interiormente até o ato mais humilde na vida. Tudo se torna, então, meio para comunicação com Deus; tudo quanto obtemos nos vem de Suas mãos, até a esmola mais insignificante assume as proporções de presente principesco feito pelo Senhor, presente que nos fala Dele; qualquer ação nossa não se motiva em nossa vontade, e sim na de Deus. O homem desse modo se sente circundado de luz e ouve o universo responder aos próprios anseios. Grandíssima experiência. Tudo quanto lhe chega às mãos vem por meio de caminhos tão elevados que se transforma completamente, assume o valor de presente divino. Então, até um pedacinho de pão assume o aspecto de prodígio, adquire o sabor das grandes coisas da eternidade e do espírito, torna-se excelente porque o amor de Deus o tempera com a paz de espírito paradisíaca. Todas as coisas parecem desmaterializar-se em significados profundos e o mundo transformar-se em paraíso. Poder-se-á sorrir amargamente, levando tudo isso à conta de poesia e sonho. Não. Esse é o espírito do Evangelho; não poderemos compreender esse espírito, se não houvermos também entendido tudo isso. É milagrosa essa transformação a que ninguém poderá chegar sem que primeiro a si mesmo se transforme; e, no entanto, trata-se de felicidade que muitos seres superiores conseguiram.

Tudo isso, porém, não é apenas supremamente belo, vitória da estética moral, mas também afirmação de poder espiritual. Atrás de toda aquisição, conseguida pelo sistema em voga, está a força ou a astúcia, muitas vezes a própria avidez e o dano do que foi vencido, e por isso a destruição e o ódio; assim também, por trás de toda aquisição conseguida por esse outro sistema, está a honestidade, a bondade, a justiça e, por isso, paz e amor. Atrás de qualquer aquisição aparece a figura de Deus e palpita a Lei protetora que amorosamente aumenta as dádivas da vida. Das alturas celestes Deus desce até nós e torna-se nosso companheiro e ajuda-nos em nossas necessidades. Manifesta-se, então, presente e ativo em tudo quanto está dentro e fora de nós. Sua Lei nos fala e trabalha por nós. O infinito desce à nossa relatividade, que desse modo adquire sentido de eternidade e de absoluto. Toda a nossa vida, como consequência, se eleva e aumenta de poder. Torna-se ação humilde em que ressoa o pensamento de Deus e se cumpre a Sua vontade. Essa vida humilde, transformando-se de rebeldia em função, harmoniza-se no funcionamento orgânico do universo; nele essa vida não é mais a ação isolada de rebelde, mas fato relacionado com dinamismo esgotado, com o qual se comunica, dando e recebendo. Nossa vida pode atingir, então, as imensas fontes de energia e de sabedoria que outra coisa não querem senão entregar-se. Apenas nos tornemos dignos delas, Deus nos aumenta de súbito o poder, de cuja conquista o verdadeiro caminho é o merecimento. Isso de acordo com a lei de justiça e como parte da economia da natureza que deseja todo o seu rendimento, quando tiver sido verdadeiramente conquistado. Não há poder humano que se iguale a esse poder. Eis a grande defesa do evoluído que se reduz à pobreza e abandona as armas de ataque e defesa: ter Deus consigo. Então se torna imenso. Nossa respiração reproduz a do universo, com a qual se confunde. Que importa, pois, que por fora sejamos pobres, se por dentro somos ricos? Quanto mais pobres são esses que, ricos por fora, por dentro nada possuem! Quando somos vazios, permanecemos insatisfeitos em meio a seja qual for a riqueza; quando, porém, estamos plenos da graça divina, em meio à miséria mais completa nos sentimos abastados e satisfeitos. Eis a perfeita alegria franciscana, concedida apenas aos ricos de espírito.

Esse conceito e essa posição da vida finalmente nos aparece sob o aspecto utilitário. Desse modo, a vida adquire alcance imenso, que toca as fronteiras da eternidade, torna-se interminável sucessão de conquistas, de felicidade crescente, de contínua ascensão em resposta ao chamamento divino. Mas, querendo limitar a vantagem às necessidades materiais, eis a Divina Providência pronta a ajudar, desde que haja merecimento e necessidade. São essas as duas condições fundamentais de seu funcionamento. O evoluído, que compreendeu a lei do fenômeno, não lhe deposita confiança inutilmente, porque tudo obtém com segurança. Sabe que, em face do merecimento e da necessidade, o homem faz jus ao auxílio, ato da justiça divina com que o justo pode e deve contar. Por isso, obtém por direito e por justiça e não a título de esmola imerecida. Por isso não é a pobreza, mas apenas a baixeza, que arranca do homem a dignidade de filho do Pai. A generosidade da Providência, mesmo assumindo a forma de esmola, sempre constitui comunhão da alma com Deus e, por meio dela, o benfeitor humano eleva-se ao papel honroso de instrumento de Deus.

Em nossos dias torna-se muito difícil fazer com que compreendam o sentido sutil dessas vantagens imateriais. No entanto, até mesmo em relação aos efeitos da estabilidade e duração, da segurança e gozo pacífico, não é indiferente que as nossas aquisições sejam ou não dádiva de Deus e os nossos bens se elevem na força ou na justiça, estejam saturados de ódio ou de amor. Se impregnarmos a riqueza com as forças do mal, estará como vimos relativamente ao mal, fatalmente condenada. A grande revolução consiste em substituir a revolta pela obediência à Lei, a desordem pela ordem, o desequilíbrio pelo equilíbrio, os choques estúpidos e dolorosos pela harmonia e pela lógica. Essas afirmações espirituais são comuns à vida prática, em que repercutem. A solução dos males que atormentam nosso mundo não vamos, é lógico, encontrá-la no retorno aos esquemas do passado, impotentes para solucioná-los, conforme bastantes vezes verificamos experimentalmente. Torna-se necessário basearmo-nos em princípios diferentes, que se encontram nos antípodas dos precedentes e realizá-los com métodos totalmente diferentes dos atuais. Nisso consiste a nova civilização do espírito. Trata-se de adquirir consciência da Lei, para em seguida enquadrar-se nela e agir de acordo com ela. Trata-se de incorporar em nós mesmos o senso da Lei. Não basta explicá-la; é necessário que nos coloquemos em condições de senti-la. A razão é formação primária, exterior, de superfície e não satisfaz. A consciência é formação mais profunda, interior, que não faz cálculos, mas intui e sente. Essa consciência adquire-se com a dor. De outro modo não se pode construir, em sistema de liberdade e experimentação, isto é, de possibilidade de erro e, por isso, de dor. Não basta explicar e compreender racionalmente. A custa de muito trabalho é que conseguimos nossa própria maturação, porque nada se obtém senão através do sofrimento. Só assim o homem pode passar da fase de involuído à de evoluído, da posição de inconsciente à de consciente. Então, compreende que a vida tem elevadíssimos objetivos e ele, exatamente pelo fato de que existe para atingi-los, tem direito à vida. Compreende, agora, aquilo que hoje, confiando em si mesmo, demonstra nem sequer imaginar, isto é, que, por força da própria estrutura teleológica de todo o sistema do universo, sua vida deve ser necessariamente protegida.