O exame crítico do fenômeno social, a observação de seus impulsos e efeitos consequentes, explica-nos e demonstra-nos logicamente as afirmações do Evangelho e alguns limites que novas concepções modernas, aplicando-o sem querer, impõem ao direito, antigamente ilimitado e sem disciplina, de uso e abuso, das pessoas e das coisas. A evolução social consiste exatamente nesse contínuo e progressivo enquadramento das forças da vida, para na ordem coletiva transformá-las cada vez mais em concerto de harmonias e não em desencadeamento de vitórias e violências. Nesse campo, o pensamento social de Cristo antecipou de dois mil anos as tendências atuais e indicou tudo quanto, socialmente falando, apenas hoje começamos a compreender. Tais concordâncias corroboram estas nossas explicações, concordâncias, aliás, bem naturais porque o princípio da vida é um só e na verdade não pode mudar, embora expresso, ontem, hoje e amanhã, sob forma científica, religiosa ou social.

Nas páginas precedentes desenvolvemos o cap. 91 de A Grande Síntese (“A lei social do Evangelho”). Acrescentemos agora algumas observações aos dois capítulos seguintes (92 - “O problema econômico” e 93 – “A distribuição da riqueza”). Este último já o comentamos em parte, no que diz respeito à propriedade, no cap. 2 deste volume: “O homem involuído e a propriedade”. Vejamos como o Evangelho está de acordo com tantas aspirações modernas e antecipa os novos ordenamentos de nossos tempos. O advento da justiça social, grande realização a que o século XX aspira, o Evangelho anunciou-o e preparou-o do modo mais substancial. Comecemos pela distribuição da riqueza, o mais atual e angustioso problema, o problema prático e básico da vida coletiva de todos os tempos. Como Cristo reequilibra os desajustamentos econômicos tão debatidos? A solução do problema da distribuição equitativa, Cristo no-la dá sob forma substancial, completa e definitiva, porque equilibrada, e não sob a moderna forma de luta de classe, que não resolve pois é desequilibrada. O método da luta não representa nada de novo e de resolutivo; não passa de comum e velho método de enriquecimento por substituição. Esse método não chega a solução alguma como sistema, pois se limita a substituir pessoas e classes sociais nas mesmas posições e antigas. Por isso, desperta profundamente o interesse de pessoas a quem aproveita, dando-lhes vantagens pessoais; não interessa, porém, ao progresso social, a que importa a estrutura orgânica da sociedade e não a utilidade pessoal; renovar o ordenamento das posições e não as pessoas que as ocupam; eliminar os velhos erros e explorações ao invés de continuar repetindo-os em proveito alheio. A moderna luta de classe não passa da velhíssima luta biológica que, legitimando-se e assumindo funções de distribuidora de justiça, procura adquirir prestígio. Velho mimetismo, que não subsiste em face das verdadeiras forças da vida. Isso não é equidade. A equidade nesse caso é apenas um pretexto. O método empregado pela violência e pela prepotência no fundo revela o mesmo abuso, fonte das costumeiras e intérminas reações. E o homem, fascinado pela miragem do bem-estar, continua acreditando na possibilidade do absurdo, isto é, que a usurpação possa produzir frutos estáveis e baste disfarçar a força com as vestes da justiça para obter aqueles resultados definitivos que, por sua natureza não pode dar. Assim, os homens mudam, mas os erros continuam.

Apenas a equidade pode oferecer solução estável e conclusiva, com a adoção de um sistema de equilíbrios e não por meio de novas usurpações com que, em nosso proveito, acreditamos corrigir as anteriores. Isso não é justiça, mas egoísmo. E quando a verdadeira justiça não se faz presente, as mesmas razões que hoje nos autorizam a, no domínio e bem-estar, substituir os seus detentores, vão amanhã autorizar que outros nos substituam e assim por diante. For-ma-se então a muito conhecida e resistente cadeia de ações e reações intermináveis. Se queremos chegar a alguma conclusão, essa equidade não deve ser apenas aparente, mas substancial, nem estar somente nas formas, mas também nas almas. Noutras palavras: torna-se necessário introduzir, também no mundo econômico, o conceito do equilíbrio, da ordem e da harmonia, fundamental em qualquer campo de forças e, por isso, inclusive no da riqueza, que não passa de caso particular. De acordo com ele, do mesmo modo que o ódio só termina se lhe contrapusermos o amor, e a ofensa, se lhe opusermos o perdão, e a violência, se lhe antepusermos a paciência, assim também o desajustamento e a luta não findam senão contrapondo-lhes a verdadeira equidade e justiça.

Cristo não diz aos pobres: rebelai-vos. O sistema é radicalmente diferente do sistema do mundo. Todavia, a este, que não compreende coisa alguma senão à luz crepuscular da vitória-derrota, Ele dá a entender que não vê no pobre um derrotado. Se não diz: “rebelai-vos”, muito menos: “sofrei passivamente”. Diz, pelo contrário: “Vós, vítimas da injustiça, tolerai, tende paciência”. Por que isso? É o que nos perguntamos. Como sempre, a filosofia de Cristo se completa num mundo ultra-terreno, na íntima realidade das coisas em que se completa e justifica toda aparência percebida por nós. A razão, diz-nos Ele, reside em que a injustiça que vos oprime é apenas humana e, por isso, temporária, presa tão-somente a esta vida na Terra, não passa de pequena injustiça secundária, incapaz de violar, como de fato não viola, a bem maior justiça divina, a que transforma o oprimido em credor. Ficai, pois, tranquilos, se ainda hoje sofreis, injustamente como pode parecer-vos. Deus é justo e a injustiça do momento será compensada, reequilibrada; vosso direito é verdadeiramente justo, vossa consciência não se engana e será ouvida. O sistema do universo é perfeito, lógico, equilibrado, absolutamente estável. Mas o tipo normal, isto é, o involuído não sabe enxergar tão longe e leva essas promessas em brincadeira. Culpa de sua miopia.

A nova afirmação irrompe gritante no início do Sermão da Montanha, enunciando-lhe de um só golpe os temas fundamentais. Em suas antíteses se percebe a inversão das posições, o jogo das forças opostas, o dualismo do binômio de que esses argumentos constituem os extremos e servem ao equilíbrio das forças. Eis o texto (Lucas, Cap. 6):

“Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus.

Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis fartos. Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir.

Mas ai de vós, ricos! porque já tendes a vossa consolação.

Ai de vós, que estais fartos! porque tereis fome. Ai de vós que agora rides, porque lamentareis e chorareis”.

O problema resolve-se através das beatitudes. Quer dizer: os pobres, os famintos, os atribulados, além de fraternalmente lastimados e reconfortados como o reconhecer-se-lhes o direito a serem compensados, são considerados incontestavelmente bem-aventurados, isto é, vencedores, afortunados; por outro lado os que o mundo inveja como vencedores são tidos na conta de vencidos, de desgraçados. Esse é o juízo de Deus, que se coloca no lugar do juízo humano. É assim que Deus julga. Por isso, ó pobres, não vos arrogueis o direito, que só a Ele pertence, de fazer justiça. E justiça já vos foi feita. Querendo alcançá-la por vós mesmos, violentamente, perturbais o equilíbrio já existente. Tendes razão e ides colocar-vos ao lado do erro, das culminâncias dos vencedores vos precipitais na miséria dos vencidos, da harmonia dos planos divinos ides mergulhar no marasmo das baixas competições humanas. Perante Deus já tendes razão. Bem-aventurados sois. Que mais podeis desejar? Se não esperardes que a justiça venha de Deus, mas de vossa violência e de vossa revolta, então passareis da parte dos credores para o lado dos devedores. Não tenteis legitimar vosso roubo, dizendo que a propriedade é um roubo. De acordo com esses argumentos, que coisa seria vossa propriedade atual? Não vedes, porém, que exatamente o vosso furto presente legitima o furto passado e estais no mesmo plano e imitais exatamente aqueles a quem acusais? Por que razão apenas o vosso furto se justificaria e o dos outros não? E vós, improvisados distribuidores da justiça, é essa a justiça que distribuís? Não. À filosofia do interesse falta lógica; quando pretendeis passar por justos, mentis. Não. Jamais é lícito roubar, nem mesmo dos ladrões, como facilmente acreditamos. Então, ao invés de justiceiros, também sois ladrões e pagareis por isso. A culpa é mal infinitamente maior do que a pobreza. Antes de mais nada, merecei, pois, sem merecerdes, nada podereis possuir com segurança e, por isso, gozar (cap. 6 deste volume: “A lei da honestidade e do merecimento”).

Assim esclarecidos e confortados os pobres, depois de, colocando-os num pedestal de grandeza, havê-los protegido contra os juízos humanos, depois de exortá-los a conservar a vantagem dessa preciosa posição, Cristo dirige-se aos ricos, aos afortunados e, com relação a eles mudando completamente o tom do Sermão, mostra-lhes sua própria miséria, não lhes concede salvação e trégua, indicando-lhes as graves obrigações inerentes à sua posição e ameaçando-os com as consequências de seu inadimplemento. Desse modo, lógica e naturalmente, sem novos excessos e novas desordens, o mundo econômico se reequilibra completamente, confiando a solução do problema não a sistemas sociais exteriores e coativos, mas ao simples, real e espontâneo funcionamento das forças íntimas da vida. E logicamente o reordenamento começa no indivíduo e em sua íntima convicção, ao invés de na coletividade e na coação; começa no ato generoso de dar e não no de tomar, que é furto e violência. Só o “dar” livre e convicto reequilibra e saneia, o “tirar” não; só mudando, antes de nada mais, as diretrizes psicológicas do caso particular conseguimos estável transformação coletiva. Os sistemas do mundo de hoje são muito variados e, se correspondem a forte necessidade de justiça e exprimem a tendência da evolução social na fase presente, estão muito longe de possuir os requisitos necessários para poder instaurar a sério a justiça social. Partindo da injustiça da violência, não podemos chegar à justiça, mas apenas a nova injustiça. Existe, pois, outra economia política, não baseada no “do ut des” das trocas do “homo oeconomicus” ou no princípio hedonístico, mas assentada nos equilíbrios das forças em ação no funcionamento da vida. Essa é a economia do Evangelho. Se sua base passar de simples relação de egoísmos humanos a relação muito mais vasta, de impulsos biológicos, conseguem-se resultados imensamente maiores, quer quanto à profundidade, à vastidão e à estabilidade.

Observemos agora o pensamento de Cristo em relação à propriedade. Ele não enfrenta e resolve os problemas sociais isoladamente, como muitas vezes fazemos, mas enquadrando-os em soluções mais vastas e profundas e, por isso mesmo, mais completas. O preceito “ama o teu próximo como a ti mesmo” implicitamente contém e resolve todos os problemas sociais. Esse enquadramento limita-se a amplitude dos direitos da jurisprudência romana, coordena-os no plano social, freia o individualismo, em benefício do coletivismo, traçando tendência precisamente igual à dos tempos modernos. O Evangelho já estabeleceu um princípio que se manifestará mais tarde sob a forma de lento movimento em direção ao arbítrio, da liberdade incontrolada, do abuso, movimento que, iniciado por Cristo, continuou e continuará até que se cumpra inteiramente. Assim, o absolutismo do poder público e o da propriedade privada se substituem por formas mais suaves e equilibradas. O “jus etendi et abutendi” (“direito de usar e abusar”)dos pagãos, egoisticamente ilimitado, racionalmente sofre cada dia maiores restrições em homenagem ao reconhecimento da utilidade pública, conceito que é conquista moderna na concepção orgânica do Estado. Mas o Evangelho, com dois mil anos de adiantamento, avançara muitíssimo, fazendo, por motivos de utilidade pública e como limitação, pesar sobre a propriedade até mesmo a pobreza do próximo, de que não é lícito desinteressarmo-nos. O conceito de utilidade pública estende-se assim até abranger, além dos interesses do Estado e da coletividade, também os interesses do indivíduo infeliz; chega, assim, a conquistar conteúdo biológico protetor, assume o caráter de função conservadora da vida, torna-se expressão de leis e forças universais. Que sentido e alcance diferentes agora tem o programa de igualdade econômica, isto é, o que visa à defesa do direito fundamental de todos à vida!

Desse modo, o interesse coletivo não se detém e, com utilidade geral, se avantaja sobre o interesse egoístico do indivíduo. A propriedade privada subsiste, cada vez menos como império arbitrário e cada vez mais como função social disciplinada, como serviço público. Mas é exatamente o fato de as bases utilitárias da propriedade privada se espraiarem na coletividade e a sua completa garantia de solidez, que antes, com a alternância de abusos e reações, ela não podia possuir. Quem jamais pensaria em atacar riqueza e propriedade de que todos tiram vantagem? O peso dessas limitações se compensa, em face dos equilíbrios da vida, com a estabilidade e o sossego; o não esquecer o próximo, para o rico, se transforma em força protetora; o sacrifício aparente fica bem pago com nova garantia de gozo. Assim, essa cessão à utilidade coletiva reduz-se à vantagem que recai sobre o particular. O pensamento evangélico caminha muito à frente das incompletas reformas modernas, fazendo do rico, não mais simples proprietário, que trabalha em proveito próprio, mas administrador em proveito alheio. E o Evangelho não chega a soluções tão radicais através de sistemas distributivos artificiais e coativos, mas através do individualismo mais completo e livre. Cristo não apela para as coações estatais, mas se dirige, tão-somente, à pessoal, íntima e convicta maturação e ao irresistível funcionamento das leis vitais. No Evangelho a palavra “verdade” suprime e substitui a palavra “sanção”. O grande abismo entre os dois sistemas, o evangélico e o coletivista moderno, é o mesmo que vai da substância à forma. O primeiro emprega a paz, é equilibrado e resiste; o segundo utiliza a guerra, é desequilibrado e não resiste. Em todo o sistema de Cristo não se fala em guerra e, por isso, sendo equilibrado, é solidíssimo. O princípio dissolvente, o que prega a desordem e a luta, foi dele completamente evoluído, como terrível força desagregadora que, antes de tudo, deve ser a qualquer custo mantida bem longe, se quisermos construir com solidez. Por essa razão toda agressão, toda violência, todo ódio e todo choque, seja qual for a finalidade, deve sempre ser considerado como absolutamente negativo, destruidor e, por isso, anti-social. O verdadeiro inimigo, o que impede a solução de todo problema coletivo, está dentro de nós mesmos, em nossos sistemas nascidos de nossos instintos, em nossa posição de desequilibrados, no caminho que seguimos para resolvê-lo. As leis da vida são o que são. Não há outra escolha: ou cumprimo-las e gozamos-lhe das vantagens ou descuramo-nos delas e sofremos as consequências.

Daí se vê como a luta de classe constitui o meio menos adequado a esse objetivo. Menos danoso é o sistema de coação estatal. O único sistema perfeito é o socialismo convicto e espontâneo de Cristo, que não agrava a situação, pondo em choque os interesses egoístas, mas começa pela afirmação e tomada de consciência da unidade espiritual que não parte, como o socialismo humano, dos direitos e da luta, mas dos deveres e da paz. Não se nega, por isso, a dura necessidade dos sistemas humanos, pois parece que sem coação nada se possa conseguir de involuídos; verifica-se tão-somente constituírem eles péssimo sucedâneo, de que nada de bom e conclusivo se pode esperar senão na percentagem do produto genuíno contida no referido sucedâneo. O objetivo é sempre a justiça social; os métodos para consegui-lo é que diferem. Porém, aí onde predomina a intervenção do Estado, e ninguém pode desconhecer-lhe a necessidade e a utilidade, torna-se necessário não esquecer o individualismo cristão, de raízes profundamente mergulhadas nas leis da vida e apto a suavizar, contrabalançar e completar o trabalho do outro sistema. De fato, individualismo e coletivismo são apenas os dois extremos do mesmo problema social e dois modos de resolvê-lo que não se podem reciprocamente ignorar; são, como homem e mulher, dois termos inversos e complementares e a sociedade pode desenvolver-se apenas à custa do concurso e da colaboração harmônica de ambos. De fato, ninguém é mais coletivista que o individualista cristão; em nenhum programa há tanto coletivismo como no programa social de Cristo. Por isso, é mais fácil chegar ao coletivismo verdadeiro através do individualismo que do próprio coletivismo. Ninguém discute a importância construtiva do senso orgânico representado pelo Estado moderno; porém, neste livro também se afirma que, sem a concomitante maturação íntima do indivíduo, esses sistemas exteriores e coativos, e, por isso, desequilibrados, podem, abandonados a si mesmo, reduzir-se a asfixia, mentira, reação, instabilidade. Nada consegue durar, se não conseguirmos também persuadir e educar. O indivíduo, se não for persuadido, embora sofra e obedeça, poderá refugiar-se na inviolável liberdade do espírito. Ao contrário, todos os sistemas humanos fundados na coação, naturalmente produzem as reações já descritas. Torna-se necessário, quando nos dispomos a construir, levar em conta, não só no campo moral, como também no social e utilitário, aqueles equilíbrios de forças que o Evangelho demonstra conhecer profundamente. Se não for assim, o método humano ficará na situação de retardatário relativamente ao de Cristo e quem praticar este último, representativo de superamento da força, tornar-se-á independente de tudo quanto dela se origina. A estratégia cristã, baseada na verdade e na justiça, pertence a um plano superior ao plano humano da força e do império e, por isso, é mais poderosa e vence o combate travado entre os dois planos, como acontece, na luta entre involuído e evoluído. Assim, os exércitos mostram-se impotentes para defender Roma, enquanto a Cristandade, desarmada, colocou-se a postos e venceu.