A Nova Civilização do Terceiro Milênio

Essa visão também podemos entendê-la como expressão do drama do imponderável. Mais do que pessoas, falam-vos forças ativas, mais sábias e capazes que as pessoas. Essas forças, de acordo com o pensamento da Lei, enquadram-se e movem-se disciplinadamente como soldados; influindo e por sua vez recebendo influência, como binômio de ações e reações, funcionam organicamente e dirigem-se ao objetivo determinado. Conforme a sua natureza e poder, coordenam-se como se fossem sinfonia orquestrada para numeroso conjunto musical. Também na luta guardam proporção; seus desequilíbrios desaparecem em novos equilíbrios, sua dissenção se resolve em harmonia. Essa circunstância dá sensação de musicalidade ao desenvolvimento do sistema. Toda força tem personalidade inconfundível; é fenômeno distinto, embora combinado com outros; entrelaça-se, sem misturar-se; reage de acordo com trajetória e lei de desenvolvimento próprias e obedientes à lógica fornecida por sua natureza, potência e objetivo. Aí estão a matéria e o espírito, a Igreja e o homem, Cristo e a multidão, o bem e o mal, as forças biológicas e o destino do mundo. E esse drama emerge do fundo da evolução humana e dos destinos da vida em hora histórica apocalíptica.

Daí se vê como o imponderável pode oferecer-nos novos motivos a explorar, desde que a arte queira apossar-se do imaterial, onde o espírito pode em qualquer terreno fornecer modelos de primeiro plano, segundo o conceito de elevada estética. Poder-se-iam assim expressar os dramas do abstrato, em que as forças imponderáveis agiriam como seres vivos e funcionariam como realidade objetiva. Todo progresso, inclusive o artístico, apenas pode consistir em aproximarmo-nos cada vez mais das fontes da vida e, como o objetivo da arte consiste na expressão, em exprimir cada vez mais claramente o pensamento divino existente na intimidade das coisas. Nova arte, a do imponderável, poderia, desse modo, penetrar cada vez mais profundamente na realidade e revelar-lhe cada vez mais os íntimos mistérios. Exprimir, revelar, tornar perceptível tudo o que, na imaterialidade do espírito, escapa aos sentidos sempre constituiu função da arte. Portanto, tudo isso para ela não passa de consequência natural de seu desenvolvimento lógico. Compete-lhe dar expressão ao inexprimível, tangibilidade ao imponderável, tornar perceptível o evanescente mundo das forças e das ideias. A arte será tanto mais legítima quanto mais fielmente cumprir essa função de transportar o céu para a terra, de criar contatos com o divino. A isso se reduz todo o seu valor educativo no sentido mais elevado do termo, isto é, evolutivo, instrumento de espiritualização. Depois do atual período de iconoclastia artística, a nova arte do imponderável será à arte da nova civilização do espírito. O homem sensível poderá assim roubar aos céus novas belezas e trazê-las para o mundo, tornando mais compreensíveis as sutilezas das coisas espirituais. A gênese de tudo está na parte interna, no espírito, em Deus; as coisas excelentes e poderosas brotam das profundas nascentes da vida. A técnica está na periferia, na superfície, na forma. A inspiração vem do centro, da profundidade, da substância. A análise destrói, a síntese constrói, a forma causa a morte, o espírito vivifica.

Mas essa visão podemos entendê-la ainda sob outro aspecto, quer dizer, como plano de combate. O espírito não vence por acaso. O milagre de sua vitória aqui fica logicamente explicado, estudadas as forças em que essa vitória se baseia, a estrutura de seu sistema e a lei de seu desenvolvimento. Esse drama representa apenas um momento do imenso drama humano da luta entre o bem e o mal. Vemos o passado e o futuro, o involuído e o evoluído se defrontarem em batalha decisiva, que o evoluído ganha por força dos próprios princípios da Lei e da vida, tais como os expusemos nos capítulos precedentes. Isso constitui a nota dominante deste trabalho, de que essa visão pode considerar-se o ponto culminante. Também aqui se vê o mal posto a serviço do bem, isto é, funcionando como resistência excitadora de reações, que faz o triunfo nascer no campo oposto. Assim, a Lei, sem constranger-nos, nos induz a conquistar o nosso próprio bem à custa de nosso próprio esforço; assim, o mal, reabsorvido e anulado, se transforma finalmente em bem. Notemos, por último, que a nova civilização do espírito não nasce sem defesa, mas armada com novas armas, pois a luta, elemento vital, subsiste, embora se tenha transformado ao transferir-se para plano mais elevado. Todos necessitam de armas e defesas; porém, como a nova técnica difere da atual! A que vimos vencer no momento crítico da primeira manifestação da nova civilização será a mesma a defendê-la, mais tarde, no decurso de seu desenvolvimento e execução. Trata-se de novo princípio defensivo, de método e estratégia diferentes dos que hoje seguimos; trata-se de novo modo de conceber a vida e guiar-lhe as energias. Assim centuplicamo-lhes o rendimento. A conversão dos homens de armas não significa apenas reação destrutiva por parte das forças protetoras da vida, nem apenas a exaustão de uma fase a que se deve retomar, depois de percorrido o período oposto; representa, isso sim, revolução biológica, degrau mais alto da conquista evolutiva; não é conversão momentânea de alguns homens, mas a conversão da força à justiça, da matéria ao espírito.

Observemos agora a posição e o significado dessa visão no desenvolvimento conceitual deste volume e em relação aos demais com que se relaciona. Aliás, já no prefácio foram todos reunidos em duas séries ou trilogias. A primeira compreende: 1) Grandes Mensagens e A Grande Síntese; 2) As Noúres; 3) Ascese Mística. A segunda: 1) História de um Homem; 2) Fragmentos de Pensamento e de Paixão; 3) A Nova Civilização do Terceiro Milênio. A primeira trilogia encerra-se nas últimas páginas de Ascese Mística com a previsão da guerra atual. Esse ciclo é, pois, de preparação e representa o prenúncio do cataclisma e o esquema da nova civilização. O segundo podemos chamá-lo executivo e reconstrutivo e aprofunda esse esquema no que diz respeito ao seu aspecto humano. Trata-se de dois pensamentos diversos, de duas perspectivas diferentes, a do “antes” e a do “depois”, a de quem se prepara para a prova e a de quem já vai saindo dela. A guerra mundial de nossos dias se situa no meio das duas trilogias. Desse modo, para nós essa guerra tem valor mais profundo que o de simples acontecimento político, pois, em sua substância biológica, nos mostra seu verdadeiro significado e objetivo. É mais fácil intuir o atual conflito, em suas causas íntimas, do que compreendê-lo racionalmente, em seus aspectos exteriores; isto é, concebemo-lo no seu sentido moral e evolutivo, bem mais elevado do que os demais dizem e sabem. A guerra nos aparece, assim, como um assalto do mal a serviço do bem, desejada pela ignorância humana e permitida por Deus como útil prova; deve, assim, entender-se como destruição reconstrutiva, condição de renascimento e preparação da nova civilização do terceiro milênio. O conflito permanece, pois está ambientado no desenvolvimento histórico da época, do qual forma o acontecimento culminante e decisivo. O próprio conceito de “vitória” assume aqui significação muito mais vasta do que a comum, devendo ser compreendida como vitória no espírito. Eis o significado da visão: a vitória final não dos homens, mas de Deus. Nos equilíbrios da vida apenas o resultado político não basta para justificar tantas dores dos povos, tantas perdas de bens para todos e tão violento esforço da humanidade. A vida nada faz sem finalidade e o objetivo que deve atingir deve ser proporcional ao trabalho por ela desenvolvido. Isso é consequência evidente na lógica da Lei. Esta nos diz que a vida não fracassa, não perde tempo e, de acordo com sua economia, proporciona os resultados e o esforço necessário para atingi-los. O homem é ignaro e se guia pela eterna sabedoria de Deus. Já o demonstramos à saciedade. Todas as dissenções e lutas do homem são apenas fadigas evolutivas; suas dores, provas; suas vitórias e derrotas, provações para conquista de consciência; vencedores e vencidos não passam de colaboradores do progresso humano e lutam entre si apenas para criar na luta a atividade formadora, do mesmo modo que, bem ou mal, todos são, para felicidade geral, servos de Deus. Para o bem geral porque, no caso-limite do malvado incorrigível e por isso condenado à dor eterna, a Lei, movida por piedade suprema, inseriu a autodestruição na estrutura mesma do sistema; assim, o rebelde empedernido acaba como tal sendo reabsorvido por aniquilamento.

Dois conceitos predominam na primeira trilogia: 1) a iminência de tremendo cataclisma mundial e de período de grande dor e destruição; 2) a preparação de nova civilização do espírito, à qual tanta ruína material dará nascimento. O primeiro acontecimento (anunciado quando ameaça alguma pendia sobre o mundo e as comodidades da vida serviam de fundamento à concepção materialista) verificou-se plenamente, com todas as tintas carregadas com que foi descrito. O segundo acontecimento, que parecia anacrônico quando anunciado como problema de vida e de morte e colocado como fundamento de A Grande Síntese, está hoje tornando-se atual, pois, convulsionadas as velhas diretrizes, o mundo procura outras. Hoje que o ciclo da espera foi superado por experiência viva, convém, porque estamos no limiar de nova civilização, reler o pensamento dos volumes da primeira trilogia, extraindo os trechos mais convincentes desse argumento. Foram extraídos de publicações impressas, com data conhecida e são documentados por elas.

Grandes Mensagens. “Mensagem do Natal”, 1931: “Grande revolução se aproxima na história do mundo(...) Vosso progresso científico(...) acumula energias, riqueza, meios para nova e terrível explosão”(...) – idem: “Observo lento, mas constante, aumento de tensão, como prelúdio da inevitável queda do raio(...). Já se foi o tempo em que, como os povos viviam isolados uns dos outros, os cataclismas da história podiam ficar circunscritos; hoje não.” – “Mensagem  da Ressurreição”, 1932: “A psicologia coletiva pressente confusamente grande mudança de diretrizes”(...). - idem: “Ousai, abandonando velhos atalhos, porém não ouseis às doidas e exatamente nos pontos em que não tendes motivo para ousar; ousai em direção dos céus e nunca tereis ousado demais. De vossa crise dolorosa e profunda, nascerá o novo homem do 3º milênio(...). Neste resto de século se decide o 3º milênio. Ou vencer ou morrer”. - “Mensagem aos Cristãos”, por ocasião do XIX centenário da morte de Cristo, “vossa união forme barreira contra o mal que está na iminência de desfechar tremendo assalto. Grandes lutas exigem grandes unidades” - idem: “A humanidade caminha inexoravelmente para as grandes unidades políticas e espirituais”.

Reportemo-nos agora a A Grande Síntese, primeiramente publicada em capítulos, em Ali del Pensiero, de janeiro de 1933 a setembro de 1937. Cap. 5: “A mente humana procura um conceito que a impressione vivamente, conceito elevado e mais profundamente sentido, capaz de orientá-la rumo à iminente nova civilização do 3ª  milênio”.– Cap. 10: “Conseguireis produzir a energia necessária para a desintegração atômica, isto é, a transformar a matéria em energia. Vossa vontade conseguirá penetrar na individualidade atômica, alterando-lhe o sistema”. –  Cap.  42: “A nova civilização do 3º  milênio está iminente; urge, por isso, lançar-lhe as bases conceituais”. – idem: “Há um superamento imposto pela evolução da humanidade neste momento histórico de que está para nascer a nova civilização do 3º milênio”. –  Cap. 97: “As leis da vida, adormecida em ritmo igual durante milênios, receberam repentino choque e estão hoje despertas para lançar-vos rumo à nova civilização do 3º milênio” - Cap. “Despedida”: “Este é desesperado apelo à sabedoria do mundo(...). A civilização moderna lança a semente com vertiginosa velocidade e espera a fabricação intensiva de sua futura dor. Será a dor de todos. Poderá tornar-se maré montante que destruirá a civilização. Os meios estão prontos para que hoje um incêndio se torne mundial... Se um princípio coordenador não organizar a sociedade humana, esta se desagregará no choque de egoísmos. Falei em momento crítico, numa curva da história, na aurora de nova civilização(...). Enquanto na terra existir um só bárbaro, tentará rebaixar a civilização até ao seu próprio nível, invadir e destruir para aprender. As raças inferiores logo não se impressionarão mais com a superioridade técnica europeia e se apossarão dela para, em seguida, agarrar o velho patrão pelo pescoço(...). Que os justos não temam”.

Estes conceitos se desenvolvem e afirmam no volume As Noúres, Cap. 4: “O momento histórico é grave, solene, rico de valores em putrefação e de germes em febril desenvolvimento, como os tempos messiânicos(...). Percebo as correntes espirituais do mundo e tenho a nítida sensação de próximas e novas diretrizes do pensamento humano, que levarão de vencida as resistências de todos os misoneísmos” – idem: “Toda a Europa se arma e, todavia, treme diante do espectro de uma guerra que poderia, percebe-se, marcar-lhe o fim da civilização(...). Uma fronteira dividirá de ponta a ponta a Europa em duas partes, a da ordem e a da desordem, em cuja defesa lutarão de maneira concreta as forças cósmicas do bem e do mal. Se as forças desagregadoras do mal vencerem as forças construtivas do bem, então as portas da Europa desorganizada ficarão escancaradas diante da ameaça imensa da Ásia, dragão gigantesco e terrível que já levanta a cabeça, espreitando a presa suculenta. Cega-o, porém, a luz que vem de Roma, centro espiritual do mundo”. Idem: “Percebo a iminência de grandes e tremendos acontecimentos mundiais, ouço longíquo fragor de tempestade, imensos vagalhões que ameaçam a grande civilização, embora pouquíssimas pessoas o vejam e saibam. Implorei que soubessem e vissem. Nesse ar pesado de ameaças em que o mundo se debate às tontas, meu espírito acabrunhado não encontra repouso” – Cap. 6: “O momento histórico é grave. Tempo algum jamais viu preparativos de maturações tão solenes como os dos dias atuais. Estamos numa curva da história do mundo(...). A humanidade está lançando as bases do novo milênio, está pondo na mesa a carta de sua salvação ou de sua ruína(...). É necessário dar de novo à Europa a consciência da unidade de civilização e de destino”.

No volume Ascese Mística, Cap. 14 (Primeira Parte): “Vejo as ameaças que pendem sobre esta hora; eles, porém, as ignoram”. – idem: “Porque nova civilização deverá nascer e é necessário sacrifício para prepará-la; será novo ciclo histórico que formará nova raça” – Cap. 13 (Segunda Parte): “Antigamente, em épocas de calma, de inércia espiritual, podíamos silenciar e viver de acomodamentos; mas, hoje não, com o inimigo às portas. Estamos em armas. A História prepara tremenda descarga de dor. Não é destruição, mas renovação. Não temamos”(...). – Idem: “Espiritualmente o mundo já está em chamas. Nestes momentos não é lícito cruzar os braços e permanecer como espectador, pois a tempestade atinge a todos. Os neutros acabarão sendo envolvidos e terminarão como escravos”(...). – Cap. 17 (Segunda Parte): “Ouço a perseguição da hora, o iminente precipitar dos equilíbrios, a tempestade raivando às portas, ouço a voz de Deus que anuncia a maturidade do tempo. Gritam os sinais interiores(...). No céu da história aparecem as procelárias preanunciadoras, as sentinelas da vida acordam e dão o brado de alarme.” – idem: “Ouço profundo rufar, cadenciado, incessante; ouço o passo do tempo que marcha com cadência fatal(...). Estamos atravessando momentos muito graves(...). Já passou o tempo de explicar e demonstrar. Esse trabalho já acabou. Chegou a hora do embate físico e tangível, que a todos atinge e a todos envolve(...). Torna-se necessário que o mundo aprenda novamente a orar, confraternize-se na humilhação e na desventura e reencontre seu Deus já esquecido(...). Aqueles que têm Cristo no coração não devem temer. A tempestade purificará.” – Idem: “É indispensável, pois, o infortúnio para que o espírito tire até o último véu e apareça nu diante de Deus?(...). Então, o destino bate às portas da história... Desfeita, a ordem ética levará à ruína”. – Idem: “não posso ficar quieto porque minha alma ouviu as notas do clarim, o grito de guerra!(...). Nas grandes curvas da história a terra deve ser dolorosa e profundamente revolvida, a fim de ficar preparada para nova sementeira”. idem: “Hoje já esvoaça nos espíritos vago pressentimento da nova civilização do 3º milênio, em que a Igreja se tornará de fato poderosa e invencível, pois nessa ocasião será formada apenas de espírito”.

A parte final daquele volume, Cap. 26 (Segunda Parte), citado no prefácio do volume seguinte – História de um Homem, nos afirma cada vez com mais certeza: “Esta hora é de intensa atividade para todos. Não pode parar. Preparada há tempos, precipita-se agora. Tenho medo de olhar(...). Agora se desenrola diante de mim a visão da terra e do céu(...). a terra treme convulsa no pressentimento de indescritível tufão(...). Vejo um turbilhão de forças que se projeta em direção da terra e vejo, também, a terra dilacerada, descomposta, submersa em mar de sangue. É escura a hora da paixão do mundo(...). As forças estão prontas para desencadear-se no choque fatal. Aproxima-se a hora das trevas do mal triunfante, da provação suprema(...). O drama aproxima-se, percebo-o(...). Nesse momento senti a terra tremer. Dentro de mim está a visão do real. Senti, mesmo, a terra tremer”.

Essa sucessão de visões e previsões cada vez mais angustiosas, inclusive esta última, escrita em fins de 1938, conclui com o testamento espiritual do protagonista de História de um Homem, concluída em começos de 1942. É a primeira parte da segunda trilogia, isto é, do ciclo da reconstrução. Naquele momento, tendo-se já desencadeado a tempestade prevista, a visão do autor sobe acima dela para, ao invés, contemplar a nova aurora, explicando seus primeiros sinais e dando-nos do drama a solução que hoje se prepara. Esse testamento espiritual diz (Cap. 30): “Estudai no grande livro da dor; sabei sofrer se quiserdes progredir(...). É bom que o mundo sofra; assim, poderá aprender e avançar(...). Fora da dor não há salvação. Ninguém escapa desta lei fundamental. Mas, depois da paixão e da cruz vêm a ressurreição e a vitória do espírito. Deixo-vos o aviso de que a aurora da nova civilização do espírito está na indispensável paixão do mundo.” E assim conclui o prefácio acima referido: “Este volume (História de um Homem), escrito em meio à tempestade prevista, se encerra, pois, com o prenúncio da aurora de novo dia. Depois da destruição, a reconstrução; depois da dor, a alegria de vida mais sublime; depois da indispensável paixão da guerra desponta a nova era do espírito. Este livro é, pois, o da ressurreição. Se é o livro da provação e do sofrimento, é também o da esperança, da vitória do espírito e do bem. O fatigante labor da ascensão neste livro toma grande impulso; transforma-se, para o indivíduo, na história do protagonista e, para o mundo, na consciência da atual situação apocalíptica. Ao contrário, na cena de terror e de paixão que encerra o livro Ascese Mística, este volume conclui invocando e chamando, das entranhas das maturações biológicas, o homem novo, de espírito consciente, e anunciando e saudando a aurora da nova civilização do 3º milênio. (Natal de 1941)”. “Porque é fatal”, conclui  o volume “que a ascensão se realize, não obstante toda a inconsciência e resistência do mundo; é da Lei de Deus que o espírito vença a matéria, a luz vença as trevas, a alegria vença a dor, o bem vença o mal, Deus triunfe sobre Satanás”.

Aqui terminam as citações. Agora poderíamos observar: os acontecimentos históricos, desenvolvendo-se, se transformam de tal maneira que seus próprios artifícios devem aos poucos afastar-se da orientação primitiva e acabam muitas vezes por chegar onde não imaginavam. Cada ato do drama suscita novos e inesperados fatos e aspectos, que desfazem os planos humanos, revelando-nos novos misteriosos fios da História, impossíveis de total entendimento senão quando o ciclo se completa. Podemos, então, perguntar- nos: o homem dirige a história? Muito bem. Como pode fazê- lo, porém, se ignora os futuros desenvolvimentos e seus planos muitas vezes não têm valor algum? Não. O homem não dirige, apenas tenta dirigir a História. Outras forças inteligentes dirigem-na; são os seus planos que atuam. Existem, naturalmente, diretriz e planos próprios; tanto assim que os vemos tão logo um acontecimento se processa. Acreditamos caminhar rumo a determinado objetivo e, no entanto, vamos em direção de outro, de cuja existência nem suspeitamos. Mas outros hão de sabê-lo por nós. Em consequência, a História se desenrola e tem lógica, não pertence aos homens que acreditam elaborá-la. Então, ignoram-se quais os objetivos que de fato buscam, não passam de simples instrumentos. Acontecimentos aparentemente contraditórios não têm esse caráter no plano divino tão cheio de finalidades que nos escapam à percepção. Ao lado da História aparente há outra, mais profunda, História substancial, que só muito tarde conseguimos ver, quando não acontece não a vermos jamais. No caso de nossos dias certo é haver a guerra, através da dor, provocando um processo de sofrimento espiritual condicionador de grandes renovações. Não é nesse sentido, porém, que estamos falando. É lícito perguntar-se: na complexidade de maturações que derivam de fenômeno tão profundo como o atual conflito, os homens, através do que acreditam estar fazendo, sabem o que de fato estão fazendo e aonde vão acabar chegando? Além do plano humano por eles dirigido, conhecem o plano divino que os dirige?

A espera não se prolongou muito. As altas tensões ou se transformam ou se rompem. Golpeada violentamente pelo lado de fora, a porta abriu-se. Escancarou-se. Fortíssima ventania entrou pela basílica a dentro, raivando, como se a mão do ódio percorresse aquele oceano de cabeças à procura de vítimas; algo explodiu do lado de fora e foi quebrar-se contra o arco de círculo que circunda a praça. Depois, opressivo silêncio.

O homem, de braços abertos em cruz, avançou lentamente e transpôs a porta. Os demais seguiram-no. Colocado à esquerda da cruz carregada pelo irmão, ele abria o cortejo. Exatamente as forças do mal, escravas das do bem, tinham escancarado as portas para o cortejo sair a céu aberto. Assim, o cortejo atravessou o átrio e desembocou na praça. Enquanto isso, vários homens de armas em pé de guerra recuavam, às tontas, para os lados do átrio. As portas tinham sido abertas por eles a fim de que se começasse a matança; para isso, fizeram avançar vários carros blindados, com a intenção de fazê-los penetrar no interior da basílica; pensavam que a multidão ignorasse o cerco da basílica e, assim, essa inesperada surtida de gente ordeira e desarmada os colhera de surpresa. Não compreendiam essa nova e estranha coragem de homens desarmados, que afrontavam calmamente indiscutível perigo. O medo de alguma oculta insídia os mantinha suspensos. O inimigo não esperava essa mudança tão imprevista de situação. Na grosseira máquina psicológica, que estava dirigindo os homens da matéria, tardou muito a acender-se o relâmpago do pensamento, que, ao contrário, profunda e velozmente, iluminava a mente do homem que estava perto da cruz. Houve um momento de hesitação. Bastou esse pequeno atraso da ação, essa momentânea incerteza de diretrizes para reforçar e firmar a corrente de pensamento oposta e representada pelos homens do cortejo; na praça espalhou-se no meio dos inimigos sensação de místico terror. Algo, a que obedeciam, embora desconhecessem, os imobilizou; e os petrechos de guerra, potentes, tecnicamente perfeitos e prontos para a ação, ficaram paralisados a partir do primeiro motor: o espírito.

Avolumando-se à medida que saía do templo, o cortejo, progredindo pela direita de quem sai, ia-se escoando ao longo do pórtico. Na frente caminhava o homem, ao lado da cruz e de braços bem levantados. Da multidão muitos lhe imitavam o gesto, como invocação suprema. Ele havia entoado em voz alta um ritmo grave e solene, repetindo a palavra-síntese daquela cena e daquele momento, da espera e da defesa: “Cristo”. Esse brado ecoava na multidão, que, repetindo-o em todos os tons e através de milhares e milhares de vozes o transformava em poderoso clamor, que investia contra as colunas da praça e os muros da basílica, derramava-se pela cidade eterna a fora e, finalmente, parecia explodir bem lá em cima. Milhares de mãos se erguiam, suplicando. Algo, como risonha bênção de Deus, parecia relampejar nos céus, brotada do hino de intermináveis legiões de anjos. E as armas calavam.

Nesse meio tempo, os homens de armas, em sua lógica psicologia simplista, já haviam decidido sustar momentaneamente a ação, para melhor divertir-se à custa de inimigo inerme, sem necessidade de pressa porque a presa estava garantida ou, numa palavra, por grosseira curiosidade de saber qual seria o fim de tudo aquilo; o homem perto da cruz percebia tudo e mantinha completo controle sobre si mesmo, pois conhecia muito bem, e dirigia, o fenômeno espiritual de que era o centro. De cabeça alta, cabelos ao vento, braços abertos e levantados para cima, como antenas receptoras, auscultava as correntes de pensamento. Primeiro, registrava as ondas longas, extensas e lentas, das radiações diurnas da luz solar, da terra, dos tijolos dos edifícios, da exuberância puramente animal dos homens de armas, da vida vegetativa da multidão, tudo isso nas entonações mais variadas. Não era, porém, essa a voz que ele procurava cuidadosamente sintonizar; de fato, concentrava toda a sua atenção nas ondas curtas e rápidas do pensamento, com elas sintonizando-se em alta frequência. Abria-se-lhes, com grande receptividade, e elas lhe chegavam com voz sutil e clara, que se elevava, como luz nas trevas, acima dos tons baixos e profundos, escuros e densos das outras vibrações mais materiais. Podia, desse modo, ouvir a voz, não percebida pelos outros, da alma dos homens de guerra; e, como não era ouvido por ela, podia controlar o perigo, logo à sua primeira manifestação - o pensamento, sem o qual nada se põe em movimento. Assim, percebera também a decisão do Pontífice, que impusera a seu séquito a sua firme vontade de descer para junto do povo. E percebera, além disso, que outro cortejo, o do papa, se pusera em movimento, convergindo em direção da porta do templo, onde os dois cortejos se encontrariam. Por isso, o homem se sentia profundamente comovido por aquele brado da multidão, que repetia em coro a sua invocação: “Cristo, Cristo, Cristo”, só uma palavra, nada mais, uma palavra clara e abrasadora, repetida em ritmo forte e tenaz, uma palavra em que a vida parecia gritar sua vontade de progredir para o alto. Em plena tempestade, acima dos séculos, ele perscrutava através do Tempo para, finalmente,  exultar com a futura vitória de Cristo, aquela vitória pela qual, dando-se a si mesmo, também lutava. Haviam afrontado a morte e agora Deus os salvava. Esse exemplo constituía apenas o primeiro passo da grande e pacífica revolução espiritual. Esse exemplo mais tarde se multiplicaria e a fé sairia do interior dos templos, da prisão dos claustros, do cárcere das formas. A conquista de cada nova fase evolutiva significa expansão de Deus nos corações, é primaveril desabrochar de flores. Diante do exemplo de Roma, outras igrejas abririam as portas e deixariam sair outras multidões. O homem compreendia as consequências e o imenso alcance de sua atitude. Julgava-se tudo e, ao mesmo tempo, nada; bem no centro do turbilhão e do drama e, no entanto, só; sentia-se perdido, mas vitorioso; exausto e, apesar de tudo, fortíssimo. A debilidade residia em sua pobre condição humana; e a força, na visão de Cristo, que, invisível, o guiava.

Assim, o cortejo chegou ao fim da praça e desfilou diante do grosso dos carros blindados e dos canhões. Então, o homem que lhe estava à frente escutou mais atentamente e pôs em jogo sua receptividade no sentido de melhor compreender a psicologia do inimigo. Percebia que até mesmo os homens da guarnição dos carros blindados e dos canhões pertenciam à vida, eram vida e sofriam o império de suas leis. Advertiu que a natureza desses homens de tal modo se saturara de vibrações maléficas que eles mesmos lhe sentiam a perturbação, como peso contra o qual, por força da lei de equilíbrio, a vida reagisse, como negação contra o ser que, instintivamente, rebelava-se, desejoso do próprio progresso e não de autodestruição. Percebia, no subconsciente daqueles homens, ferverem vibrações antagônicas, de onde subiam para a consciência ideias contraditórias. Naqueles ânimos duas correntes de pensamento se digladiavam. Queriam vencer, mas odiavam aquela vida de bestas-feras. Não aguentavam mais. Nem a insensibilidade nem o hábito os defendia mais. As forças maléficas empregadas por eles saturavam-nos ao ponto de envenená-los; e a vida até mesmo neles queria viver. Tantos males e tantas dores haviam eles semeado, lançando-os contra tanta gente, que agora se voltavam contra eles mesmos, agredindo-os e sufocando-os. Por isso, naqueles ânimos a reação se estava elaborando. Ao mesmo tempo, o imponderável exercia pressão no sentido dessa mudança. O homem do cortejo ouvia esse tempestuoso choque de forças, essa trágica maturação de almas. Tinha a impressão nítida de que o fenômeno estava quase atingindo seu ponto crítico e, dentro de uma fração de segundo, esse sistema de forças estaria decomposto; percebia que para lá desse ponto crítico, o fenômeno assumiria nova forma, isto é, o dinamismo se inverteria e as forças componentes se aplicariam em direção oposta. Essa precipitação de equilíbrios era iminente. Num átimo se desencadeariam as consequências exteriores e materiais.

O fenômeno já estava maturado. Eis que de repente o imponderável pareceu explodir e a luz se fez nas almas dos inimigos. A corrente construtiva da vida e do bem reconquistara a superioridade sobre a corrente destrutiva da morte e do mal. Aqueles homens não puderam resistir por mais tempo e renderam-se ao cansaço de seu mau modo de agir, sentiram nojo de si mesmos, compreenderam a inutilidade do homicídio, a estupidez em que o ódio se transforma, se considerarmos os objetivos da vida e a alegria de existir e amar. Compreenderam, então, havê-los iludido e traído o mal em que haviam acreditado; terem sido vítimas de miragem; e que o mal muito mais depressa envenena quem o pratica do que a pessoa que o recebe; aí, perceberam como a vida por eles escolhida era a vida de demônios e só seria muito mais bela na proporção em que a paz substituísse a guerra, o ódio se transformasse em amor e o mal em bem. Aquele singular cortejo, a desfilar-lhes diante dos olhos, lhes falava desse outro mundo mais belo, em que agora até eles mesmos se esforçavam por entrar, e, também, do tipo de conduta, mais civilizado, de que se sentiam expulsos. Comparavam-se com os fiéis, que, desarmados, mas possuídos de coragem inaudita, afrontavam a morte, em paz, rezando; comparavam sua férrea disciplina militar com a disciplina livre e consciente daqueles homens convictos; e procuravam saber qual a força capaz de, sem armas, mantê-los assim unidos. Teriam podido exterminá-los. Então, por que não faziam funcionar as máquinas de guerra? Por que a  inusitada estratégia daqueles homens inermes triunfava e a força armada se tomava inoperante? Alguma coisa os paralisava. Que era? Onde estava e em que consistia esse imponderável a bloqueá-los assim? Sentiam-se enojados de si mesmos e das máquinas; indefinível descontentamento os impelia a odiá-las e a odiar, não os homens inermes e pacíficos que confessavam aquele Deus de todos, tanto de vítimas como de agressores, mas os petrechos de guerra e os inventores dessa maldita técnica de destruição e da morte. Não mais se sentiam convencidos da força que não vence pelo livre convencimento, mas oprimindo e sujeitando, ao observarem o espetáculo de seres livres, mantidos espontaneamente em estreita união por força totalmente diferente. Os homens de armas e os homens do cortejo representavam duas experiências humanas opostas; e os primeiros percebiam, face a face com os últimos, que iriam precipitar-se no mais trágico e absurdo fracasso. No entanto, mesmo sem armas, que coisas grandiosas não se poderiam fazer apenas com o poder da fé e do amor! Aquela mesma praça, onde se encontravam, servia de exemplo. Os dois sistemas opostos de conduta humana ali estavam em plena ação e se defrontavam, desafiadoramente. Esse não passava de simples episódio da grande luta entre o bem e o mal. Este sentia, em presença do bem, a íntima contradição que o inferiorizava.

“Por que atirar contra homens inermes? Com que fim?” Os homens de armas diziam de si para consigo: “Não são mais corajosos do que nós? Não seríamos covardes, se os matássemos? Não temos a mesma coragem que eles nem somos capazes de fazer o que fazem. São, pois, mais fortes. Contudo, que força é, pois, essa sua que lhes permite não dar atenção à nossa, ao ponto de enfrentar-nos, completamente desarmados? Procuremos, pois, contato com eles e, se for possível, conquistemos essa nova força cujo segredo não sabemos. Esses homens não nos odeiam, não querem ser e nem mesmo são nossos inimigos. Mas, então, por que esse absurdo de odiar quem não nos odeia e agredir quem, sem alma alguma, expõe-se a nossos golpes? Não! Basta. De agora em diante, não matemos mais, não odiemos mais. Como eles, também nós temos alma. Daqui por diante, não seremos mais apenas número, instrumento, máquina, escravos do terror!” Assaltou-os, então, irresistível necessidade de encontrar algo mais inteligente, mais vital e consciente, mais elevado, mais livre e adequado, irresistível necessidade de autonomia, de ouvir novamente a voz das grandes ideias que constituem a base da vida e o apelo de Deus. Novo desejo galvanizou-os; as forças do mal que se derramavam na hora histórica, naquela multidão, no mundo, derramavam- se também sobre eles. O imponderável, que tudo movia, também os envolveu e arrastou. O instinto vital movimentou-os, impeliu-os. Saíram dos carros, abandonaram canhões e metralhadoras, aproximaram-se, incorporaram-se ao cortejo, acompanhando a cruz sob a universal invocação de Cristo.

Agora  o fenômeno tendia lógica e espontaneamente para a conclusão. Engrossado cada vez mais por novos adeptos e depois de haver feito a volta completa do pórtico, o cortejo já se aproximava do átrio e da porta principal, a fim de reentrar na basílica. O homem, que estava à testa do cortejo, chegou primeiro. O Pontífice, tendo descido ao templo, esperava-o de pé, sozinho, destacado de seu séquito, na porta da basílica. Quando o homem, acompanhando a cruz, chegou bem perto, o Pontífice disse-lhe, estendendo-lhe os braços:

“Meu filho, você salvou a Igreja”.

“Pai”, respondeu: “Cristo fundou hoje a nova e universal civilização do espírito. Trago-vos a legião dos que primeiro o afirmaram, os voluntários do sacrifício, a fim de a conduzirdes ao túmulo de Pedro, ao altar de Cristo”.

Disse e ajoelhou-se diante da soleira da porta e beijou-a perto dos pés do Pontífice, que o abençoou. Depois, pondo-se de lado, perto do estípite direito, assim falou:

“Irmãos! Antes de separar-me de vós, quero deixar-vos estas três ideias:

“1°) Minha missão está cumprida. Deixai-me desaparecer na sombra. Da sombra saí e para a sombra retorno. Não penseis em mim, que não passei de miserável instrumento. O importante é apenas que a semente atirada ao solo germine e frutifique.

2°) Respeitai a autoridade, como superior princípio orgânico e, por isso, elemento de vida e de evolução; dai exemplo dessa ordem em que consiste o futuro do mundo. Respeitai, também, por isso, a autoridade da Igreja. Não julgueis. Deixai a Deus o encargo de julgar os homens. Não penseis neles, meros instrumentos, mas em Deus que tudo dirige, nem naquilo que dizem ou fazem, mas naquilo que Deus diz ou faz, por meio deles como por meio de toda a humanidade.

3º) Ide pelo mundo, ó voluntários do sacrifício, homens da primeira hora, fundadores da nova civilização do III Milênio. Fostes escolhidos porque enfrentastes a prova e a vencestes. Sede sacerdotes do espírito. Não busqueis a força. O poder da justiça é poder que a supera; não há fraqueza maior do que a injustiça. Se fordes justos a força irá ao vosso encontro; caso contrário, trair-vos-á. Vossas armas de conquista devem ser: retidão, bondade, sacrifício, amor. Os imponderáveis do espírito tornar-se-ão verdadeira potência dentro de vós, se, ao invés de pregá-las apenas com palavras, viverem em vosso exemplo, se seguirdes Cristo, vibrando apaixonadamente na vida ativa. Semeai com entusiasmo e não com incerteza e desânimo. Antes de dar torna-se necessário possuir e para possuir é preciso já ter conquistado vitórias dentro de si mesmo e através de esforço pessoal. Vivei no mundo, mas seguindo a Cristo. Falai como Ele, isto é, pelo exemplo. Hoje vencestes a matéria, pois desarmados enfrentastes a morte. Começastes pelo exemplo; continuai dando o exemplo. Não adianta parecer; é preciso ser. Se a consciência nos condena, de nada nos vale haver conquistado os aplausos do mundo. Não sejais ricos por fora e pobres por dentro; sede, isso sim, ricos por dentro e pobres por fora. O objetivo da vida é ascender. Conquistai qualidades, que constituem tesouros inalienáveis, e não bens materiais, que se perdem. Ascendei e ajudai a ascensão alheia. Sede sempre construtores, afirmando, e jamais destruidores, negando. Não é com máquinas de guerra nem com as armas da lógica e da polêmica que vencemos o inimigo, mas compreendendo-o e abraçando-o. Antes de exigi-los dos demais, exigi de vós mesmos a fadiga, o dever e a prática das virtudes. Primeiro, reformai-vos; depois, isso, sim, podeis pensar na reforma de vossos semelhantes. Seja esse o segredo de vosso poder. Mantende-vos ágeis, ligeiros, vivos no espírito, bem próximos das fontes; temei as incrustações, as cristalizações, as deformações, os acomodamentos, o farisaísmo que é moléstia psicológica de todos os tempos, a fossilização senil de todas as religiões. A forma não deixa de ser necessária, mas acomoda e adormece. Primeiro, buscai a substância, que é a alma de todas as coisas. Do contrário, sereis apenas cadáver, foco de infecção que propagará a morte. Só o espírito é vida. Lembrai-vos disto: jamais mentir, manter-se vigilante; jamais pactuar com o mal, jamais acomodar-se. Quem mais possui mais sabe e mais autoridade tem e, em consequência, não tem mais direitos do que os outros, e sim mais deveres. O mundo tem fome de verdade: deveis nutri-lo, vivendo a verdade. Sede instrumentos da criação, operários de Deus, Seus colaboradores na construção e no progresso. Semeai e a semente germinará, produzirá novas sementes e através delas nascerá de novo. Ide pelo mundo e semeai no tempo a nova civilização do espírito”.

O homem calou-se e mostrou o Pontífice aos fiéis, a fim de que estes o seguissem. Em seguida, afastou-se e desapareceu no meio da multidão. O Pontífice recusou-se a sentar de novo na sede gestatória, em que chegara até à porta do templo, fê-la afastar-se juntamente com o seu séquito e a pé, mais triunfante ao lado da cruz de madeira, colocou-se à frente do cortejo, que voltou vitorioso à nave central. E assim até ao altar-mor. Aí, o Pontífice mandou tirar a cruz de ouro e prata que brilhava no centro do altar e pôs no seu lugar a pobre cruz de madeira, vencedora da grande batalha. Depois, devagar, porém, com entusiasmo, executou até o fim o ritual sagrado, como estava previsto.

O cortejo dos voluntários vitoriosos havia-se enfileirado ao redor. Todos os que o compunham tinham entrado no templo: homens, mulheres, jovens e velhos, de todas as classes, de educação, cultura e posição social diferentes: doutores e ignorantes, homens de ciência e de fé, patrões e empregados, humildes e poderosos. Havia também religiosos e religiosas de todas as Ordens, militares de todos os postos, expoentes de todas as castas. Aí estavam os voluntários do clero oficial, saídos das fileiras grupadas na abside da basílica. Estavam representadas as nacionalidades e as religiões mais diferentes. Havia também os adesistas da última hora, que aumentaram as fileiras e, finalmente, os homens de armas, saídos das máquinas de guerra e pelo exemplo convertidos ao amor de Cristo. O apelo fora universal e, assim, todos reentraram no templo, seguindo a Cristo e agora unidos sob a Sua cruz.

Essa concórdia do mundo, que após dois mil anos de luta, e quase no limiar do terceiro, mais uma vez reencontra a Cristo; o espetáculo dessa multidão, a princípio massa confusa, agora reconstituída de acordo com nova ordem e unidade mais vasta; esse triunfo final do anjo sobre a besta e do espírito sobre as armas embotadas da matéria; tudo isso constitui o último lampejo da luz em que, em gloriosa apoteose, esplende esta visão. No esplendor desse último lampejo, a visão deteve-se, imóvel, pequena fração de segundo. Depois, como cometa que riscou o firmamento, a luz se apagou lentamente e desapareceu, deixando atrás de si luminosa esteira.

O fenômeno de renovação já mencionado neste livro não deve ser entendido isoladamente sob um só de seus numerosos aspectos, seja social, político, religioso, econômico, intelectual, moral, artístico etc. Devemos entendê-lo, isso sim, no vastíssimo sentido de fenômeno biológico. Quer dizer, trata-se de maturação evolutiva do tipo humano, a qual lhe permitirá a exata apreciação do imponderável, que agora lhe escapa e produz a falência do espírito no trato das coisas humanas. Não se torna necessário criar mais coisíssima alguma. Os elementos já existem entre nós. Trata-se apenas de orientá-los, de saber dirigi-los com a lógica hoje inexistente, isto é, de reordenar a desordem. Sabe-se que o método e a organicidade permitem muito maior rendimento a qualquer trabalho, poupando-o a tantas dispersões e atritos. Atualmente, estes custam dinheiro, fadigas, dores imensas. A compreensão mútua, quer dizer, o desarmamento mental que nos permita olharmo-nos sinceramente nos olhos, não para enganarmo-nos mas para compreendermo-nos, essa compreensão significaria a maior liberação jamais conhecida pela humanidade. Quando o ser superou determinada fase evolutiva, a lei relativa a essa fase torna-se-lhe como prisão de que necessita liberar-se, fugindo-lhe. Nessa prisão vai-se transformando cada vez mais a moderna concepção social do homem, que está fazendo esforços titânicos para escapar. A lei de seleção do mais forte não lhe foi inútil no passado e, de fato, permitiu à raça humana o domínio material do planeta, através do método bestial da subjugação violenta. A lei permitiu que o homem adotasse esse método. Esse fato demonstra como em certo período tal método se tornou útil e necessário. Hoje, porém, a posição do homem mudou. Tornou-se senhor do planeta e agora luta mais contra os semelhantes do que contra os elementos e as feras. Atingiram-se os objetivos da seleção animal; por isso, esse método não corresponde mais às finalidades da vida, agora diferentes e mais nobres. A evolução elevou-os bem mais alto, diz respeito a outros objetivos, empreende outras construções e não pode retardar-se no caminho já superado. Hoje caminhamos para a organicidade, é o fim que a Lei pretende fazer-nos atingir. Ora, o método de luta para seleção do mais forte é anti-orgânico por excelência e realmente não corresponde mais ao objetivo: representa regime de desordem justamente aí onde deve com toda a urgência impor ordem. Trata-se de fenômeno natural de retificação e ordenamento que, conforme verificamos, se processou até mesmo no mundo astronômico e geológico, depois do período caótico da formação. O mesmo fenômeno deverá processar-se também no mundo social. A lei da luta para seleção do mais forte serviu até agora para o animal e para o homem-animal; não servirá para o novo tipo biológico em preparo. No atual plano em que está entrando esse novo tipo, tal seleção, ao invés de beneficiar, prejudica, visto como não representa progresso, mas regressão a tipo superado ou em vias de superamento e que hoje não significa ascensão, mas queda. Torna-se, pois, necessário novo princípio e novo método seletivo, adequado aos novos objetivos a atingir, isto é, diferente forma de luta para novo modo de seleção, não dos melhores, unicamente sob o ponto de vista da força, mas dos melhores em inteligência, sensibilidade, consciência, bondade e sabedoria. Se esses elementos não se faziam necessários para o tipo vencedor-destrutivo, imperador de escravos, são indispensáveis ao novo tipo biológico, o do homem orgânico e, por isso, consciente. Os princípios que orientam a luta e a seleção pertencem à lei de evolução e não podemos destruí-los. Mas, se o homem quiser libertar-se da animalidade, deve assumir agora conteúdo diferente, quer dizer, formas e objetivos diferentes.

Observemos mais de perto esse fenômeno de transformação biológica evolutiva. A vida é criação contínua, obra de forças invisíveis que trabalham internamente, dentro de formas exteriormente caducas e sujeitas a incessante metabolismo renovador. Todas as coisas se movem e se mantêm permanentemente vivas por causa dessa inexaurível fonte interior, que se chama Deus, centro dinâmico e conceitual do universo. Tudo se alimenta, se mantém e se origina do espírito imortal alheio às vicissitudes da forma. Através da evolução, a forma se sutiliza, se torna transparente, de modo a que a divina essência das coisas possa tornar-se cada vez mais evidente. Assim, essa criação contínua constitui renovação evolutiva, que, agindo através da maceração da forma, vai elaborando-a incessantemente tomando-a cada vez mais adequada a exprimir à íntima substância animadora e dando sempre maior sensibilidade e atualidade à manifestação da Lei. Desse modo, evolução significa espiritualização e palmilha a estrada que sobe até Deus. De semelhante progresso nascerá o novo tipo biológico, base das humanidades futuras. A mesma natureza do fenômeno nos indica quais as suas características, aliás redutíveis a uma só palavra: espiritualização. Isso significa tornar-se mais dinâmico, percuciente, sensível ou, seja, menos rude e obtuso. É um aumentar de potência, penetração e compreensão, um desmaterializar-se e refinar-se, com perda das características negativas. O novo tipo representará forma cada vez mais nervosamente selecionada e eleita, na progressiva exaltação das características elétricas da vida, em detrimento das características puramente físicas. A pesada musculatura animal, sempre mais inútil nas novas condições de vida, há de ser substituída por poderosa estrutura psíquica, cada dia mais necessária ao novo mundo do futuro. O novo tipo biológico, se socialmente será o homem orgânico, individualmente será o homem do espírito. A vida e o progresso que a intensifica residem no espírito. Na intimidade imponderável do ser, aí onde ele atinge as divinas origens da vida, existem inexauríveis capacidades de desenvolvimento. O universo é semente desejosa de desenvolver-se em direção a Deus e incapaz de resistir ou ceder nem à pressão interna do espírito, que tem pressa de manifestar-se, nem à divindade interior, desejosa de exprimir-se sob formas de perfeição crescente. Há novos continentes a desvendar, novas minas a explorar, novas fontes de energia a descobrir e empregar. Nossa involução é que traça limite a nosso domínio. O universo, junto de nós, inexaurivelmente rico, dispõe-se a ceder-nos as suas riquezas, mas, como é lógico e justo, nega-as aos primitivos, incapazes de fazer bom uso do poder. O universo não responde aos inconscientes, que não sabem tocar-lhe nas cordas mais sensíveis. Não o compreendemos, não lhe conhecemos as leis; rebelando-nos, ferimos a ordem, movidos pela pretensão de substituirmo-la por nós; e não responde com amizade e doçura, mas com rebeldia e hostilidade. Pomos de lado e maltratamos as forças espirituais, exatamente as mais importantes. Nada podemos ignorar em organismo onde tudo se relaciona. O poder e o futuro residem na sensibilização e na desmaterialização, ou melhor, no domínio de forças cada vez mais sutis, aliás as mais poderosas. O poder sedia-se na profundeza, na imaterialidade, e conquistamo-lo caminhando rumo às raízes do ser e às origens da vida, isto é, caminhando em direção de Deus.

Observemos, para compreender melhor, este caso de sutilização da forma por meio de elaboração evolutiva, quer dizer, este caso de sensibilização e espiritualização. A princípio, e do ponto de vista biológico, a mão do homem foi um dos membros que o tronco produziu para facilitar a marcha, e isso já era  a primeira manifestação de vontade interior dirigida para objetivo elementar. Depois, esse membro se destacou da terra e se transformou em órgão apreensor e instrumento de ação e de trabalho, como manifestação de vontade mais complexa e mais inteligente, embora presa ainda à forma material da estrutura óssea-muscular, de que estava em estreita dependência. Hoje a mão se vai sempre transformando de instrumento físico em instrumento psíquico, vai tornando-se tentáculo nervoso cada dia mais ágil e sensível e passando de agente físico a órgão dirigente de outras energias, inclusive da muscular. Assistimos a processo de desmaterialização, sensibilização e espiritualização, a que responde progressivo aumento de poder em extensão e profundidade. Continuando no mesmo caminho, a mão, gradativamente transformada de instrumento de marcha em órgão apreensor e, depois, em órgão diretor de forças, a mão se transformará em meio de recepção e transmissão de vibrações dinâmicas e psíquicas, antena para comunicar e receber energia e pensamento. Então, o poder interior do espírito terá podido aflorar de tal maneira da profundidade do ser que há de permitir ao homem comunicar-se e viver em comunhão com as infinitas energias do espaço.

O mesmo processo se repete relativamente à visão, à audição, a todas as vias sensoriais, ao sistema nervoso que as dirige, ao cérebro que as centraliza, enfim a todas as vias através das quais o espírito comunica, recebe e se manifesta. O espírito exerce pressão de dentro para fora com o fito de tornar menos densa e romper a casca material da forma humana e, desse modo, ampliar as vias sensórias já conhecidas e descobrir outras a fim de em melhores condições, mais abundante e profundamente, servir à circulação das ideias. Assim, os sentidos, que o espírito produziu, cada vez mais por força dele se ampliam e se abrem às infinitas vibrações do universo; também pouco a pouco o ser se espiritualiza, isto é, evolui do estado físico ao estado vibratório, sai da forma material definida e assume forma etérea radiante. A evolução consiste realmente na maceração da forma material, que, a princípio vestimenta e veículo, se transforma depois em obstáculo e prisão; por isso a evolução é continuamente superada e renovada. Este princípio, válido no passado humano, deve continuar com o mesmo valor no futuro. O desgaste da forma não constitui debilidade do sistema, e sim dura necessidade evolutiva apenas, simples processo de libertação que ao espírito aí preso permite manifestar-se. Por isso, a maceração física e moral é criadora, embora em nossa vida nos pareça tão destrutiva; e a caducidade das coisas humanas, que tantas lágrimas nos causa, manifesta-se apenas na forma e constitui a condição necessária para que a vida perene surja de dentro da forma. Por isso, os golpes dolorosos conduzem-nos à vida, ao invés de, como parece, levar-nos à morte.

O espírito quer fugir da prisão; o progresso apenas pode consistir em contrariá-lo. Isso significa contrariar o impulso fundamental do universo: liberação da forma e manifestação de Deus. Quando a centelha interior ainda não está preparada para desenvolver-se, a evolução se manifesta através da única via utilizável, a via dos sentidos; eis como surgem os gozadores, epicuristas e sensuais. Todo ser possui as vias que merecidamente ganhou. Nesse caso são escassas e o espírito, insatisfeito, reclama. Mas o involuído não dispõe de outras saídas e agarra-se desesperadamente às disponíveis; quando chega a morte, desespera-se; perdendo-as, perde tudo, pois, desprovido de órgãos físicos, é incapaz de receber e transmitir, acostumado como está a vibrar apenas sob as formas mais grosseiras da matéria. Sua vida prende-se estreitamente ao corpo e o indivíduo, para sem ele não permanecer morto, busca-o de novo por ocasião de novo nascimento físico, como única forma de vida. Ao contrário, o espírito, esclarecido pela evolução, superou os meios sensoriais e lhes despreza a pobreza; tornaram-se-lhe mais os meios de seu aprisionamento que de sua manifestação; são agora insuficientes para saciá-lo; quando morre, perde-os sem amargura e não os procura de novo por ocasião de novo nascimento físico em nosso mundo. Quem se tornou mais sensível, espiritualmente falando, dá naturalmente muito menor valor ao mundo sensorial. Também como estrutura biológica o evoluído difere do involuído, e não apenas do ponto de vista moral e social. O involuído representa centelha espiritual ainda mal acesa, envolta por densos véus, encerrada em envoltórios de trevas e, por isso, centelha ainda fraca e rudimentar perdida na enorme casa do corpo. O evoluído, ao contrário, representa centelha de incêndio, que queima os véus e funde os envoltórios da forma; por isso, é poderosa e complexa unidade espiritual angustiada na casa do corpo. Da vida físico-sensorial o primeiro receberá, assim, alegre senso de expansão e o segundo, senso de dolorosa compressão; e onde este há de sentir-se vivo e flamante, o outro olhará emudecido e sem capacidade de compreender. A vida é totalmente diversa, embora a forma externamente visível seja a mesma e nela muitas vezes se baseiem os juízos humanos e as leis sociais. A vida pode ser, para quem vale menos, muito mais cômoda e bela do que para quem vale mais. Hipertrofia espiritual e excessivo desenvolvimento interior podem significar incompatibilidade com o ambiente e impossibilidade de adaptar-se-lhe. Então, o criador ultradinâmico parece maluco aos olhos dos estúpidos dorminhocos; é claro: quem fica dormindo se mostra muito mais equilibrado do que quem caminha ou voa. Assim, para os que jazem tranquilos na inércia, o evoluído talvez pareça explosivo e perigoso; quem enxerga longe perturba os pequeninos cálculos aproximados e seguros, é aventureiro e revolucionário, incomoda e ameaça. O involuído condena-o e combate-o, mas sem ele, sem essa centelha animadora, permaneceria pobre e débil; sua segurança, se de um lado é tranquila, de outro lado é anticriadora, é o sono dos mortos. A evolução, que espiritualiza, naturalmente, também dinamiza; assim como caminha em direção à vida e a conquista cada vez mais, assim também caminha rumo à potência.

A inquieta agitação de nosso tempo, embora desordenada e confusa, apresenta-se sempre como manifestação de dinamismo, que pode derivar tão-somente da pressão interna do espírito. Individual e coletivamente, o divino princípio quer plasmar-se em novo homem e novo mundo, numa forma que mais se adapte a outra manifestação sua, mais elevada. Estamos ainda na fase caótica da tentativa, dos resultados provisórios e incompletos, da experimentação enganosa; mas o dinamismo provém sempre de impulso interior, é sintoma revelador. Na desordem das organizações apressadas, sente-se hoje o orgasmo precursor. O involuído começa a acordar bastante confuso. É ação inicial descomposta, mas de massas, pouco profunda, porém muito extensa. Por isso, damos hoje tanta importância à quantidade expressa pelo número. O certo é que o mundo hoje não está dormindo e na vida nenhuma agitação é vã. Quando está saciada, vemo-la em repouso; e quando tudo está calmo, nada se cria. Quando, de acordo com seu grau evolutivo, o ser se aproximou o mais possível da divindade, não se agita mais e seu dinamismo fica em suspenso, pois seu funcionamento não tem mais razão de ser. Mas, em conformidade com o ritmo da Lei, apenas se retome o ciclo ascensional e nova maturação o acompanhe, isto é, o espírito mais desenvolvido exerça pressão de dentro para fora, então, para superá-los ele começa a chocar-se contra os antiquados limites. Assim, a evolução, embora contínua, se manifesta por transformações periódicas em que se concentra a expressão de longas e lentas maturações subterrâneas. A vida deve e quer obedecer e, se não pode ou falha, chora na dor de não poder ou na desilusão de não ter sabido ascender, chora a traição que praticou contra a Lei e paga com a própria ruína. A música de Mozart exprime a harmonia e o equilíbrio que seu plano atingiu em seu século; fala, por isso, de paz, é tranquila e sacia. A música de Beethoven nos fala das tempestades e dos titânicos esforços criadores daqueles tempos. A música de nossos dias, desarmônica e desequilibrada, exprime o desmoronamento deste mundo e um dinamismo levado à máxima exasperação, em busca de novo mundo que estamos esperando e ainda não sabemos encontrar. Todo estado de plenitude é calmo e todo estado de vácuo é insatisfeito e agitado. O evoluído tem estases em que as forças se equilibram e repousam. Trata-se de fase de maturidade da combinação dessas forças em sistema. Mas, apenas a alcança, o impulso interior da vida continua a movimentar essas forças, tentando combinações mais elevadas e complexas. Daí resulta novo desequilíbrio a ser reequilibrado, nova lacuna a preencher e assim por diante. Os períodos de saciedade satisfeita representam objetivo atingido e os de desequilíbrio insatisfeito significam objetivo a ser atingido. Os primeiros já chegaram e agora repousam, os demais acabam de partir e estão correndo ainda. Os primeiros se constituem de espíritos demolidores, críticos, inovadores. Representam a felicidade em que se resume a beatífica ignorância de sermos felizes. Porém, tão logo começam o desequilíbrio e o desacordo, a luta e a dor aparecem; então, analisa-se a felicidade, que, analisada, desaparece. Ela, porém, torna-se consciência e base construtiva de felicidade mais completa. Como esta nasce da dor, como a ciência se originou do sofrimento, assim a grandeza e a força nascem da fragilidade e da riqueza. Nossa época mostra-se inquieta, analista, dolorosa; possui, sob forma destrutiva e em sentido negativo, tudo quanto, sob forma construtiva e em sentido positivo, deverá conquistar mais tarde.

Com esses poucos traços esboçamos vários aspectos do futuro tipo biológico e enquadramos, no fenômeno evolutivo universal, nossa época e sua criação biológica. Desse modo desenvolvemos alguns conceitos de A Grande Síntese. A título de referência, reportamo-nos aos principais. Cap. 43: “A maturação dessa super-humanidade constituirá a maior criação biológica de vossa evolução, pois representa passagem para lei de vida superior.” –  Cap. 52: “Tudo que nasce deve renascer cada vez mais profundamente”. – Cap. 75: “Eu lhes disse que vocês estão na grande curva da vida do mundo; a Lei, que a maturou durante dois milênios, hoje nos impõe essa revolução biológica. Os fatos, que sabem fazer-se ouvir por todos, hão de obrigar vocês também. Trata-se de movimentos mundiais de massas e de espíritos, de povos e de conceitos, movimentos profundos a que ninguém escapará. Mas, antes de os fatos falarem e de se desencadearem as forças mais baixas da vida, deveria falar o pensamento, dever-se-ia avisar a fim de que quem pudesse entender entendesse”. – Cap. 66: “A lei do progresso impõe a contínua dilatação do psiquismo. A evolução se dirige irresistivelmente ao superconsciente, ao supersensível”. Idem: “Desde que cresce cada vez mais o campo que dominamos no âmbito do consciente, desloca-se progressivamente o limite sensorial, o sobre-humano torna-se humano; o superconsciente, consciente; o concebível, inconcebível(...); o meio material se aperfeiçoa e se torna tão sutil que atinge as raias da desmaterialização”. – Idem: “O homem desse modo cada vez mais se afasta da forma animal, através de contínua desmaterialização de funções que leva a progressiva desmaterialização de órgãos. A vida humana se concentra cada vez mais na função psíquica diretora”. – Cap. 62: “Evolução biológica para nós significa evolução psíquica”. “É absurdo conceber as formas como fim de si mesmas, evoluindo sem objetivo, sem continuidade, justamente onde as precede eterno transformismo”. – Cap. 51: “Observem como nossa entrada no mundo biológico se processa justamente por via das formas dinâmicas. Com a eletricidade, situada no vértice dessas forças, não chegamos apenas à forma, mas ao princípio mesmo da vida, ao motor genético das formas(...). Tocamos(...), não a evolução dos órgãos, mas a própria evolução do Eu, que as adiciona e plasma para si, como instrumento da própria ascensão”. – Cap. 63: “Vejam como tudo quanto existe se origina de princípio que não age sempre de fora para dentro, mas de dentro para fora, princípio encerrado no íntimo misterioso do ser” – Idem: “Esse é o princípio que se desenvolve internamente, exteriorizando-se a partir desse centro profundo em que vocês devem verificar a existência da essência das coisas e o porquê dos fenômenos. Deus é a grande força, o conceito que opera na intimidade das coisas e daí se expande”.

Concluindo com este argumento, poderíamos dizer que o homem atual está para o futuro tipo biológico assim como o pré-histórico pitecantropo está para o homem atual. Do mesmo modo que o pitecantropo, porém, o homem atual se encontra no ambiente adequado. A diferença nasce quando, dentro da própria fase, retardamo-nos. A marcha da evolução é harmonia, desenvolvimento sinfônico de infinitas forças, maturação orgânica. Já observamos o evoluído, como antecipação hoje ainda excepcional. Mas a evolução caminha para a generalização desse tipo mais adiantado. Quem se atrasar, quem abandonar sua fase, retardado na maturação de todo o concerto de forças, em verdade será inferior a todo o resto. O futuro tipo biológico é, pois, o evoluído. O estudo que a cada passo, sob tantos aspectos, dele fazemos neste volume, serve para dar-nos dele o retrato de corpo inteiro; neste capítulo apenas o descrevemos sumariamente. O atual involuído poderá negar, rir, rebelar-se; tem essa liberdade. Apenas verificamos, objetivamente, como funcionam as leis da vida. Contudo, hoje com certeza o mais pisado pela dor é ele, e não o evoluído, que já se desprendeu da terra; os mais golpeados e destruídos são os tesouros terrenos do primeiro e não os espirituais do segundo; àquele competirá, pois, encontrar solução e saída que lhe convenham, porque este já as encontrou. O evoluído nada mais tem a perder ou temer na Terra, pois suas riquezas são invulneráveis. Por meio da sabedoria e da comunhão com Deus já conseguiu o único paraíso possível na Terra; não perde mais tempo e trabalho correndo atrás de paraísos, irrealizáveis como o sabem os que compreendem a Lei.

Neste capítulo, ao delinear o perfil do futuro tipo biológico, falamos principalmente a respeito de sensibilização nervosa, exatamente porque em especial sob o aspecto biológico foi que estudamos esse fenômeno evolutivo. Sabemos, porém, que essa via biológica de ascensão se relaciona com a via moral, é até mesmo condição desta e meio de atingi-la. Trata-se, na evolução biológica, de elaboração orgânica que caminha rumo ao imponderável. A sutilização e a desmaterialização do invólucro físico torna-o cada vez mais transparente e, por isso, evidencia mais a manifestação do espírito. E é no plano espiritual que o dinamismo da vida consegue esse refinamento, capaz de permitir-lhe o aparecimento em sua forma moral. Tudo isso que é evolução e sensibilização pode apenas conduzir, por isso, a evolução e sensibilização moral. A bondade e a sabedoria do futuro tipo biológico, por isso, podem também ser atingidas através do metabolismo orgânico, capaz de permitir transformação lenta da estrutura celular. Todos os aspectos da vida se relacionam reciprocamente e todas as suas maturações caminham lado a lado. A transformação evolutiva é orgânica, nervosa, psicológica, conceitual e ao mesmo tempo moral, refinamento de estrutura celular, sensibilização, bondade, compreensão. Essa passagem da fase involuída para a evoluída constitui, assim, profundo processo que se apossa de todas as qualidades humanas, da extremidade física à extremidade espiritual da vida, elabora completamente o ser e, por expansão interna, plasma de novo a forma, tornando-a cada vez mais apta a exprimir o espírito. Nisso se revela a organicidade da natureza e o princípio unitário, monístico, do universo. Parece que durante essa passagem todas as fibras da vida vibram e, em todos os graus evolutivos, ela responde ao novo apelo dos tempos e se move sintonizando seu ritmo com a harmonia do universo. Assim, a ordem biológica ascende ainda até Deus, que aí se revela ainda mais; assim, a vida exulta ao aproximar-se novamente do objetivo e as consciências ouvem o canto perene da fonte, cada vez mais claro. Nova revelação de Deus o atinge profundamente e o desperta, para criar, criar mais, formas cada vez mais próximas da perfeição. Ascender é ser feliz. Treme o grande ritmo do tempo, suspenso em solene espera. O homem novo vai nascer. A vida quer falar-nos de Deus cada dia mais claramente, pois ela é Sua glorificação.

Todo capítulo deste livro, como todo capítulo da vida, é quadro diante do qual paramos contemplativos. Esses quadros, que estamos desenvolvendo, se poderiam também chamar contemplações. No último deles o universo apareceu-nos como floração de vidas. Seu transformismo evolutivo é desenvolvimento contínuo em que parece reproduzir-se em dimensões gigantescas a técnica expansionista da semente, a lei de desenvolvimento do indivíduo, o mecanismo da maturação da vida, como se no ciclo vital de toda criatura se repetisse em ponto pequeno o mesmo esquema do ciclo vital do universo, máximo organismo coletivo. De fato, até mesmo os universos nascem, crescem, envelhecem e morrem, para, como todo ser vivo, renascer e morrer de novo. Também eles passam por alegre juventude e cansada velhice, desenvolve-se de um germe e, ao morrer, deixam seus despojos mortos. Todos os fenômenos parecem desenvolver-se de acordo com um só esquema, cuja aplicação gasta todas as coisas, consome toda força, encerra todo ciclo, exaure e extingue toda vida.

Mas agora voltemos as vistas para outra contemplação, de índole diferente. Para que, depois da tensão conceitual prolongada até agora, o leitor descanse alguns momentos; para satisfazer outras exigências espirituais, diferentes das intelectivas racionais, e também outras da fantasia e da paixão; para, finalmente, expor os mesmos problemas, não mais sob forma racional e abstrata como até agora, mas dramatizados em cena bem sintética, relatemos a visão que em meio de emoções turbilhonantes e na profundidade de ensurdecedor silêncio, tivemos em luminosa manhã de maio. Aqui a reproduzimos com objetividade cinematográfica, tal qual, emergindo das profundidades da consciência, se nos revelou, na roupagem teatral com que o pensamento abstrato se concretizou no sonho, se ao menos em substância não lhe podemos chamar intuição ou pressentimento profético. Os fenômenos de visão interior examinamo-los no cap. 24 deste volume, a respeito da vida dupla. Vamos por algum tempo mudar a forma mental, a fim de podermos falar à inteligência e ao coração e alimentar, também, essa outra qualidade da alma humana. Todo tipo de leitor encontrará neste livro a linguagem que se lhe adapte. O tipo racional, mais capaz de pensar do que de chorar e amar, poderá escolher os capítulos racionais. No vasto complexo humano, além das ressonâncias do intelecto há outras, todavia, pelas quais podemos comunicar-nos. E todo leitor reage, segundo personalíssima capacidade de vibração, quando sente tocar na sua corda sensível, e isso mais por mera sintonia do que por atividade do raciocínio. Do contrário, mostra-se surdo não sendo tangido, permanece imóvel, não sabe responder e toda demonstração se mostra inútil. Que coisa é a convicção, além de espontânea e uníssona vibração? Essa vibração pode nascer mais facilmente de persuação e da paixão pessoal do que do frio raciocínio. A convicção não é processo lógico, mas estado vibratório; não nasce, por isso, do raciocínio, mas da radiação psíquica; não resulta de argumentação cerrada, mas de acordo vibratório por sintonia do pensamento. O processo não deve ser coagido, mas espontâneo. Pelo contrário, nada, como a presença da vontade que tenda a impô-las, afasta tanto assim a compreensão e a convicção; e nada nos persuade e arrasta com tanta força como a existência, naquele que fala, de sentida e sincera convicção. Daí se depreende quanto o velho sistema de coação lógica se revela absurdo e ilusório, se com ele pretendermos resolver o problema da convicção das consciências. Esse método coativo mais ou menos se origina da luta, constitui a transferência, para o plano psicológico, do sistema do involuído, diante de quem a força significa vitória. Mas o pensamento está bem mais acima e seu valor escapa-lhe. Assim, o desejo de proselitismo, ao invés de atrair, costuma repelir, pois provoca desconfiança; o desejo de conquista excita resistência. Por isso, quando argumentarmos, convém limitarmo-nos sempre a expor, sem jamais pretender forçar a persuasão, simples ato de adesão espontânea; sendo assim, toda atitude que lembre a força e a imposição tende a resultados absolutamente negativos. Não é a astúcia raciocinadora, nem a tramoia sutil, nem o desejo de fazer prosélitos, que me fornece substância ao pensamento e me anima a palavra, mas a flama da fé e a sua profundeza, a evidência e a intensidade da própria visão. À guisa de disco fonográfico, as palavras registram-lhe escrupulosamente a radiação e assim a reproduzem ao leitor. A palavra falada ou escrita não passa de vibração fonética ou graficamente expressa, vibração dirigida à formação de outras vibrações. Se ela, embora brilhantemente vestida, é substancialmente falsa, apenas poderá gerar vibrações falsas. Por isso, o silogismo e a retórica constituem elementos negativos para o pensamento e traição contra o espírito.

Relatemos a visão, mas antes aqui ficam duas observações: 1) Este volume, como está mais bem especificado no cap. 22 – “Tempestade”, foi iniciado e continuado até este ponto, na primavera de 1944. Essa visão eu a tive na manhã de 12 de maio de 1944, sexta-feira, isto é, 33 dias após a manhã de Páscoa, coincidência percebida só mais tarde. Essa visão registrei-a imediatamente por escrito e vou reproduzi-la agora sem modificação alguma. É a pura verdade. 2) A visão pode assumir vários significados, superficiais ou profundos, conforme a capacidade de compreensão do leitor. Nela existe, afora o sentido superficial, de mera narração, o sentido espiritual, mais potente, simbólico, que à índole mais ou menos madura do leitor cabe saber discernir. Ou, mais claramente, o relato da visão podemos lê-lo conforme três níveis, três planos, correspondentes aos três planos evolutivos de nosso universo, quer dizer: matéria, energia e espírito. Em outras palavras: podemos “vê-la” como forma, na aparência exterior com que surge em cena, na periferia, como fato material, enfim; ou, então, “senti-la” como dinamismo motor dessa forma e dessa sucessão de cenas, mais internamente, como vibração animadora do fato material; e, finalmente, “intuí-la” como princípio espiritual, que do centro dirige os movimentos desse dinamismo e, reunindo-os na mesma trajetória, os guia de acordo com pensamento e finalidade bem determinados. Essa penetração progressiva, encaminhada da superfície à parte mais profunda e da periferia ao centro, exemplifica o modo por que, de conformidade com sua estrutura, podemos compreender o universo. Eis a narrativa:

Na  basílica de São Pedro em Roma, templo máximo da Cristandade, imensa multidão se reunira junto ao túmulo de seu fundador, o primeiro entre os apóstolos. Ninguém saberia dizer que pressentimento levara tanta gente a assistir a um ritual por si mesmo tão comum. O instinto das massas, reconheçamo-lo, percebe a aproximação das horas apocalípticas da vida; fazia alguns dias que havia qualquer coisa no ar, angustiando as almas. Seria, talvez, a sensação confusa da extraordinária gravidade da hora; ou, quem sabe, a espera de novos acontecimentos, de algo decisivo naquela conjuntura histórica; ou, então, maus pressentimentos, que nenhum fato concreto poderia justificar racionalmente. Disso tudo nascera em tantas pessoas a necessidade de se aproximarem, de se encontrarem de novo, de se reunirem e de novo travarem conhecimento; e isso precisamente naquele templo, cujo poder de atração parecia dever-se à sua ligação com o estado apocalíptico das coisas. Naquele momento, a basílica assumia particular significado, talvez mesmo único quanto ao sentido finalístico, significação sobre-humana capaz de permitir o restabelecimento dos contatos, há tanto tempo perdidos, entre o homem e Deus. Assim, em plena noite espiritual dos séculos  o tempo surgia como luminosíssimo farol. Por isso, se era ordinária a forma ritual, aquele momento se revelava extraordinário para a vida do mundo. A guerra acabara, deixando-nos, após longos anos de tormento, comprida esteira de dores maiores ainda. Tantos sofrimentos haviam amadurecido os espíritos para novas atitudes, tornando-os dispostos a novos superamentos. E instintivamente a alma do mundo esperava, para renovar-se, que de Deus viesse a primeira centelha, como prova, exemplo e estímulo; esperava o sinal que indicasse e abrisse o novo caminho.

O templo estava repleto. Jamais se vira tanta afluência de povo. Irresistível impulso levara tanta gente a acorrer de todas as partes do mundo e, no entanto, poderíamos seguramente dizer que o templo máximo da Cristandade naquele momento abrigava os maiores e melhores expoentes de toda humanidade. Segundo parecia, a Cristandade, mais do que ao apelo formal, obedecera ao apelo apocalíptico da hora, à irresistível necessidade de naquele momento dar solene testemunho de fé, reunindo-se unanimemente em torno do Pontífice, aos pés de Cristo. A dor cavara tão fundos sulcos nos espíritos, a alma do mundo martirizado descera a desespero tão negro ao ponto de perceber-se em todos os espíritos a reação contra o absurdo, o insuportável, o impossível que era ter de empregar ainda o antiquado binômio, ao ponto de sentir-se a necessidade, a fatalidade e a iminência de total modificação do mundo atual. Mas, como? Aquela massa humana ignorava. Havia na multidão a confusa vontade de continuar a viver, mas de modo melhor, com mais elevação e mais lógica, mais bondade e mais rendimento, de reconstruir-se, de sair do abismo em que o mundo caíra, de reformar-se inteiramente, remontando às origens. Havia em toda aquela gente o instinto vital que cerca todo campo e, juntando-se em última análise ao erro e aos desastres do erro, retorna às grandes ideias-mães, com que durante séculos e séculos se alimentam, para nelas haurir nova força e nova luz e encontrar salvação. O espírito adormentado pelo bem-estar e pela ilusória filosofia do bem-estar agora despertara; o imponderável, antes repelido e negado, voltava de novo ao mundo, atendendo ao apelo do homem provado pela dor. Essa própria multidão já constituía manifestação desse imponderável. A voz de Cristo ecoara de novo nos corações e muitos, tendo-a ouvido, acudiram: os capazes de salvar-se, para salvar-se e salvar os capazes de salvar-se. O povo reunido no templo representava e simbolizava o homem cansado da vaidade de suas construções, conquistas e experiências filosóficas, sociais, políticas, econômicas e científicas, o homem que, depois de tantas tentativas, finalmente se afogara na imensa dor de guerra de extermínio total, traído pela força e pela riqueza em que acreditara. (A Grande Síntese, Cap. 75: (...) “vocês confiam apenas na riqueza e na força – elas, porém, acabarão traindo-os”). As ilusões fáceis, a simplicidade pueril, as loucas esperanças, tudo se desvanecera diante da realidade. Agora, a humanidade se encontrava em posição diversa daquela antes da guerra: posição de quem, percorrida a fase de prova, percebe haver cometido erro e amargamente se volta para dentro de si mesmo, a fim de refletir e, em seguida, compreender, reconstruir, ascender. Aquela multidão, mesmo sem o saber, exprimia tudo isso e tinha vindo testemunhá-lo. Nova e desconhecida ânsia a constrangia a reaproximar-se das eternas fontes da vida, a retomar o perdido contato com o divino centro de todas as coisas, que, eternamente criando, nutre. A nota dominante na psicologia daquela massa de povo se constituía da invocação apaixonada e retumbante dirigida ao céu. Sob esse impulso maior e mais significativo, ondeavam na massa variegados impulsos menores, vórtices de terror, chamas de esperança, de fé e amor, zonas crepusculares de dúvida e desencorajamento, manchas lívidas de ódio ou de treva. Mas o dinamismo dominador se representava por abrasadora sede de bem e de justiça e se elevava como purpurino cálice de ofertório, projetado para o alto como resplendente cone, para dar e receber, arremessado contra as fechadas portas do céu, à procura da potência que as reabrisse dando para o inferno terrestre, e prometesse luz salvadora em meio das trevas acumuladas pelo mal. O grande número, a violência do desejo, a intensidade da aparição, a substituição do indivíduo pela massa, em que todo impulso individual se reforçava, combinando-se e somando-se com outros, tudo isso formava irresistível corrente de pensamento, de alta tensão, retilínea e ascensional, vibração sonora e penetrante, imensa e poderosa oração, que crescia e transbordava como se fosse maré montante, avançava tempestuosamente e em meio de relâmpagos subia, turbilhonando, em direção ao céu.

Nossa narração começa quando, nesse dinamismo central e predominante, inesperadamente se enxerta outro e ambos se combinam, excitando reações e encaminhando soluções. Esse novo dinamismo é o dinamismo particular do drama que agora começa. O momento, já de si grave, tornava-se cada vez mais grave. O Pontífice já devia ter descido há duas horas a fim de celebrar o rito na basílica. A multidão dava mostras de cansaço, depois de espera tão prolongada, e de apreensão por motivo do inexplicável acontecimento. A tensão crescia sempre mais, a preocupação continuamente se agravava. No seio daquela massa enorme se propagava ligeiro murmúrio, que, apesar do respeito devido ao local, se ia tornando mais extenso e profundo. Na psicologia coletiva começava a caracterizar-se e a fixar-se o pressentimento confuso, mas crescente, de perigo desconhecido (quem sabe que perigo!), mas grave e pendente sobre a cabeça de todos. A intuição popular percebia o imponderável, indicando a aproximação de imenso perigo, de terrível ameaça que, embora invisível, advertia de sua presença.

Aonde vão as massas buscar intuições? Talvez à interpretação lógica de algum sintoma, embora exagerado pela imaginação, como, por exemplo, um atraso, um gesto, um passo nervoso, um diz-que-diz. O senso do perigo e do medo é o mais antigo e profundo do organismo humano, e corresponde a instinto dos mais ativos e arraigados por dura experiência. A maior atenção das defesas físicas dirige-se para a conservação. Nas multidões, talvez algum sensitivo funcione como antena receptora em relação à massa, que desempenha o papel de caixa de ressonância, de amplificador, aumentando desse modo o volume do dinamismo e reforçando, com a quantidade de energia representada por ela, a qualidade fornecida pelo sensitivo-antena. De fato, em dado momento da maturação do fenômeno, isto é, quando se atinge determinado potencial, a faísca incendiária explode e alguém, desempenhando o papel de faísca, e mais intérprete do que criador, encaminha os movimentos da massa; assim se desencadeiam correntes incontroláveis. Alguém percebe antecipadamente aquilo que mais tarde todos perceberão, demonstra-se sob forma sensível e então os demais o reconhecem. Se o pioneiro do movimento de fato não ouviu e compreendeu a voz do imponderável, a multidão por sua vez nada ouve e por isso ninguém o acompanha, se o pioneiro não revela o que todos já sabem existir, se a dele não é voz coletiva, mas individual, a multidão não o entende e abandona-o. Trata-se de registro e ampliação, de fenômeno de ressonância. Primeiro alguém vibra e em seguida sensibiliza a íntima e vaga intuição geral, revela-a e comunica-a; os demais recolhem essa voz; controlam-na, caso corresponda à sua íntima intuição; e só nesse caso a aceitam e perfilham, aderindo a ela e dando-lhe contribuição de forças. Numa cadeia de intuições, os indivíduos, inconsciente e instintivamente, se auscultam e controlam mutuamente; desse íntimo contato intuitivo nasce o consenso coletivo. “Espontaneamente”, dizem. Produzido por todos em geral, e não por alguém em particular, esse consenso resulta da lei do fenômeno que nesse momento revivemos e da vontade das forças que o dirigem. Na multidão como no povo, em todo fenômeno de psicologia coletiva toda célula componente contribui com sua ressonância, recebe e transmite, alimenta-se da vibração coletiva e nutre-a por sua vez, restituindo-a multiplicada por si mesma e reforçada pela própria energia. Desse modo serpenteiam, se formam, oscilam, se definem, se acentuam, se impõem correntes de pensamento e isso obedecendo inconscientemente à lei do fenômeno, nascendo de bagatela aparentemente sem importância, quando no íntimo todas as coisas estão maduras e saturadas e, finalmente, crescendo como avalancha que tudo altera e destrói com terrível potência.

Nisso passou mais uma hora sem que o Pontífice aparecesse. A ansiedade e o desentendimento iam-se tornando cada vez mais profundos e começavam a manifestar-se por intenso murmúrio, por agitação confusa, pelo crescimento daquele bramido de oceano com que se parece a voz das massas, pelo crescimento daquelas ondas encapeladas que são os movimentos populares. Viam-se na superfície assim como que rodamoinhos e, em seguida, vácuos, correntes, ângulos remansosos e, nas passagens estreitas, corredeiras. Aquela multidão palpitante interrogava a si mesma. Queria sair, libertar-se, dilatar-se no espaço. Queria dispersar-se, visto como vinha a faltar-lhe o objetivo representativo da força de coesão que a mantinha unida. Assim, criara nojo de si mesma, de ser multidão, de ser unidade que não tinha mais razão de existir como tal; e, como acontece em organismo desfeito, todo elemento componente queria separar-se dos demais. Diminuía o impulso unificador e a multidão tendia a dispersar-se. Algo, porém, a impedia: algum obstáculo contra o qual o dinamismo dominante se erguia cada vez mais ameaçador. Ninguém abria as portas. Não se abriam nem podiam ser abertas. O tardio da hora tornava lógica e desejável a volta para casa. Por que as portas não se abriam? O desentendimento aumentava; a agitação das ondas fazia-se ameaçadora; o pânico alastrava-se; o ímpeto inconsciente da alma irracional da multidão convergia irrefreavelmente em direção das portas, erguia-se terrível contra aquela inexplicável clausura, aumentava, subia, chocava-se contra os muros, embolava-se, agigantava-se, concentrava-se na clausura e potenciava-se, preparada para o que desse e viesse, para subverter fosse lá o que fosse, desencadeando-se como furacão.

Em meio dessa tempestade, sozinho no meio de tanta gente, um homem.


Guiado até aquele lugar pelas sábias combinações de forças da Divina Providência, aparentemente fortuitas e a que nossa ignorância dá o nome de acaso, esse homem, indiferente e com a aparência de quem estava muito longe dali, mas de fato presente e ativo em plena tempestade, esse homem escutava. Ressoava nele o rugido psicológico da multidão; mais de perto, porém, impressionava-o a voz interior que, acima do turbilhão e vencendo-o, lhe falava. Parecia-lhe estar no centro do turbilhão, que era superado pela voz. Debatia-se arrastado pelo poder dessa voz, a que sua razão, lutando desesperadamente, debalde tentava resistir. Eis o colóquio íntimo em meio da tempestade:

A voz: “Vamos. Chegou a hora. Está na hora de cumprires tua missão. Vamos. Agora ou nunca”.

O homem: “Senhor, não vão compreender. Já to disse várias vezes. Não me seguirão. É tolice tentar de novo. Seria o mesmo que semear nova desordem; é imprudente excitar multidão agitada, não quero ser o causador de males. Além disso, sinto-me cansado, incapaz, ignorado e só. Não posso dominar forças tão gigantescas”.

A voz: “Está na hora de cumprires tua missão. Agora ou nunca. Deixa-me ir na tua frente. Segue-me ou então vou sozinho ao encontro do inimigo”.

Na multidão preocupada consigo mesma ninguém prestava atenção àquele homem; ninguém o notara ainda, ninguém o conhecia. O furor da luta íntima causava-lhe ansiedade. O deslocamento das pessoas tinha-o levado até quase ao centro do templo, perto do altar-mor. De repente, achou-se ele diante de espaço livre, voltado para o centro da balaustrada. Impulso proveniente da multidão o atirou aturdido naquele espaço e como que um relâmpago o cegou. À luz do relâmpago lhe apareceu a figura de Cristo. Estava à sua direita e na sua frente. O homem então exclamou: “Domine, quo vadis?” (“Aonde vais o Senhor”) . E, dirigindo-se ao povo, gritou ainda: “Cristo, Cristo! Eu vi o Senhor!”

A multidão voltou-se estupefata, ouvindo o grito inesperado, e ficou perplexa. Então, em pé, diante do cancelo da balaustrada, com a mão direita bem levantada, o homem falou. A multidão voltou-se para ele, ouviu, entendeu, escutou. Pouco a pouco a calma se transmitiu até aos mais distantes. E ele disse-lhes com voz retumbante:

“Irmãos! O caráter excepcional da hora exige métodos excepcionais e nos impõe segui-los. Nos tempos normais a forma domina a substância; nos momentos supremos a substância domina a forma. De fato, este momento é excepcional. Falo-vos em nome do Cristo. Ele me trouxe até aqui e vive em mim, mais forte que eu. Não consigo resistir-lhe. No instante em que eu saía do meio da turba, os meus olhos viram o Senhor e Lhe perguntaram, como Pedro quando fugia de Roma: “Domine, quo vadis?” E o Senhor me disse: “Segue-me ou Eu então irei sozinho ao encontro do inimigo. Hoje é o dia de minha batalha e hei de vencê-la desarmado. Em verdade, só desarmados é que vencemos os inimigos, sejam quais forem”. Cristo, aqui presente, é nosso guia. Esta hora não é a da forma, mas a da substância; é a hora de distinguir entre a fé criadora dos mártires e a fé cansada e aparente dos adormecidos. O momento exige essa distinção. Quem está do lado do Cristo, não importa qual seja a forma humana, desde que verdadeiramente cristão, quer dizer, para a vida e para a morte, esse dê agora testemunho. Saia da multidão, entre em fila no corredor central, que está livre, e prepare-se para seguir Cristo, nosso guia”.

O homem respirou fundo; depois, continuou:

“ Não sabeis. Mas em duas palavras vos direi o que está acontecendo. Estamos presos neste templo. Suas portas estão fechadas por fora. Não podemos sair. Os que nos sitiam nos creem ignorantes do sítio e colhidos de surpresa. No entanto, percebo as forças que nos cercam. Executando hábil e rápido plano, queriam apanhar hoje aqui reunidos o Pontífice e os maiores representantes da Cristandade, dentro de seu maior templo, para de um só golpe destruírem o primeiro, o segundo e o terceiro. Destruição física, símbolo da destruição moral da Igreja, lábaro da revolta a ser entregue ao mundo, primeira fagulha da nova barbárie do Terceiro Milênio. As forças do mal uivam às portas do templo, querendo entrar e destruir o germe, aqui presente, da nova civilização do 3° Milênio. Lá fora a praça está cercada de carros blindados, de canhões e de metralhadoras; os primeiros, prontos a avançar e adentrar pelas portas, esmagando-vos e ceifando-vos no interior mesmo da basílica; os segundos, em condições de derrubar a cúpula e os muros; as últimas, prontas para metralhar na praça qualquer sobrevivente”.

Gritos de terror explodiram na turba. Calmo, o homem continuou:

“Não temais. Cristo aqui está para defender Sua Igreja. Percebo o ânimo dos agressores entranhado nas máquinas de guerra, sua única força. Percebo em vosso ânimo o turbilhão do terror e o incêndio que minhas palavras provocam em vós. Percebo o ânimo do Pontífice, que conhece esse perigo e gostaria de descer à Praça e afrontá-lo antes de mais ninguém, gostaria de vir para junto de nós a fim de morrer conosco; mas foi impedido pelo seu séquito que, por natural e acertada medida de prudência, deseja pôr-lhe a salvo a augusta pessoa. Percebo, enfim, o vórtice de potência que desce do céu e exerce pressão sobre mim e sobre vós. É verdadeiro exército de forças inteligentes chamadas anjos. Precedem-vos, circundam-vos, defendem-vos. Eis que o imponderável se manifesta. Percebo o milagre iminente de nossa vitória nesta nova guerra travada sem armas. É o resultado lógico, natural e fatal da natureza e poder dos elementos em choque. Venceremos”.

O Espírito está agora conosco no templo e a matéria está às suas portas, para destruí-lo. A dor despertou o espírito. Nós, que sofremos, sabemos disso muito bem. A batalha vai começar. A matéria assalta o espírito por meio da força e da morte. O espírito afronta a matéria, através da justiça e do amor. Este é o momento da suprema decisão. Aqui dentro está o Cristo; lá fora, o Anti-Cristo. Estão frente a frente, cada qual com suas armas. Vencer ou morrer. Civilização ou barbárie, durante milênios. Estamos em cima da hora e este momento vai decidir. Chegamos ao momento supremo em que a História vai iniciar nova época com outra vida, nova fase evolutiva; estamos no instante exato da passagem de uma civilização a outra. Nossa adesão e o impulso de nossa vontade livre constituirão a gota que fará transbordar o cálice, um grão de areia que reequilibrará a balança e estabelecerá novo equilíbrio no mundo. Podemos escolher. Podemos aderir-lhe ou repeli-lo. Mas ao nosso destino gritamos: agora ou nunca. Se negarmo-nos a decidir, durante milhares e milhares de anos choraremos sobre nossas vidas fracassadas. O momento, supremo, nos exige essa oferta; o mundo espera esse impulso a fim de passar dos caminhos da matéria aos novos caminhos do espírito. Ai daqueles que agora desertarem, ai de nós e de nossos filhos, se recuarmos covardemente”.

“Avante! Sigamos Cristo. Demos o primeiro passo no caminho da ascensão, demos o primeiro lance rumo à nova civilização. Este primeiro passo, porém, pode começar apenas aqui, no túmulo de Pedro, em Roma, na Ideia de Cristo, da universalidade e unicidade dessa ideia central no mundo. A primeira centelha não é civil, mas religiosa, nasce da maturidade e não do enquadramento; não se origina do homem, cujos caminhos são exteriores e coativos, mas de Deus, cujos caminhos são interiores e espontâneos. O primeiro momento, o do impulso inicial, só pode ser místico: é contato direto com o Alto. Assim, recebido o impulso, a ideia universal, que emanou do Cristo, irá depois materializando-se pelos caminhos do mundo, diferenciando-se segundo formas particulares adaptadas aos diversos povos, será confiada aos cuidados de administradores cuja tarefa consiste em, segundo o espírito, acompanhar, organizar, plasmar a matéria. Mas sem esse elevado princípio regulador e sem essa força moral, os Estados serão organismos sem alma; os povos, arcabouços de ossos e músculos, mas desprovido de cérebro; e a organicidade moderna não permanecerá íntima e vital, mas exterior e opressora”.

“O velho mundo da força bruta encontra-se lá fora, com poderosas armas homicidas. Aqui dentro, o novo mundo, com a dinamite do pensamento, o poder do exemplo, a superioridade do espírito. O bem e o mal, o espírito e a matéria, hoje vão travar batalha decisiva. Deus é o bem. Satanás, o mal, porém, não prevalecerá. Não passa de instrumento de Deus e, esgotada sua função, se destruirá nas mãos Dele. Eu grito: Venceremos. Deus está conosco. Eis que o espírito sai dos recintos fechados das igrejas do mundo, impregna todas as coisas, invade e conquista todas as expressões da vida. Finalmente, o ciclo da matéria encerrou-se. A matéria cansou-se de tanta destruição. De acordo com sua própria lógica, percebe que os desastrosos resultados obtidos a colocam do lado do erro. Já percebe, embora confusamente, a própria debilidade e sente a reação iminente. Percebe o desejo que a vida manifesta de reequilibrar-se, atingindo de novo as fontes do espírito, e agarra-se às suas máquinas de guerra, ao ouro, aos mais baixos sentimentos humanos. Tudo isso, porém, completa e impiedosamente trairá aqueles que impiedosamente não creem senão no direito do mais forte. Quem semeou loucura colherá loucura. Esta é a hora apocalíptica de sua destruição. A alma do mundo está despertando. A lei de Deus hoje diz: Basta! E prende de novo a besta em seu inferno. Vamos. Com o espírito venceremos”.

Assim falou o homem. A multidão, que escutara, sucessivamente atônita, comovida, conturbada e extática, a multidão calava. Por fora, calma absoluta, mas o fragor do tumulto das almas ensurdecia. A multidão hesitou um instante só; em seguida, com muita ordem, calma e segurança, começou a entrar em fila ao longo do corredor central. Os voluntários do sacrifício eram homens, mulheres, jovens e velhos, de todas as classes, de cultura, educação, posição social, nacionalidade e, até mesmo, de religiões diferentes. O apelo fora feito a todos, sem outra exigência senão a de ser simplesmente discípulo de Cristo, e muitos o atenderam: doutos e ignorantes, homens de ciência e homens de fé, patrões e operários, humildes e poderosos. Muitos. Até mesmo religiosos e religiosas, de várias Ordens, militares de todos os postos hierárquicos, campeões de todas as modalidades. Mesmo das fileiras do clero oficial, agrupado na abside do templo, alguns haviam entusiasticamente acorrido. Enquanto o multiforme cortejo se ia formando, o homem que havia falado olhava-o, rezando.

Antes de mover-se do lugar, ajoelhou-se diante do altar, em seguida pediu uma cruz ao clero do templo, não metálica, mas de madeira como a de Cristo e, assim, o mais pobre possível. Não encontraram; por isso, com duas tábuas improvisaram uma. Abraçou-a, beijou-a e começou a andar. Enquanto ia atravessando as fileiras dos que haviam respondido ao apelo, estes se iam colocando atrás dele, em silêncio e em ordem. Assim se formou o cortejo dos voluntários, dispostos a enfrentar o perigo desarmados, em nome de Cristo e em defesa do espírito, com o ânimo heroico e pacífico dos primeiros mártires cristãos. Não se tratava de enquadra mento sob coação, mas de adesão livre e espontânea de homens convictos. Todos iam acompanhando o homem que carregava a cruz e, caminhando lentamente, já chegara ao fundo da igreja, de modo a ficar em frente da porta principal, fechada por fora. No momento as forças do bem eram prisioneiras das forças do mal. Aí o homem parou, voltou-se para o mais próximo dele e disse-lhe: "Ajuda-me, irmão, a carregar a cruz, pois me faltam forças físicas e vou acabar caindo ao longo do caminho. Vou na frente. Minha cruz não é de matéria, é a cruz invisível do espírito”. O irmão compreendeu e apertou a cruz de madeira. Então o homem caminhou até encostar a mão na grande porta principal, virou-se e encostou-se nela, abriu os braços e ficou como se crucificado. Fitou a multidão, fitou o templo, elevou os olhos até à cúpula, orando e invocando, à espera. Nada. A multidão esperava a ordem de abrir a porta, do lado de dentro. Nada. Suspensos, todos esperavam um sinal, uma ajuda, a realização do impossível. Nada. Inopinadamente, porém, dos olhos do homem saiu um relâmpago que se transmitiu à multidão como se fosse descarga elétrica. Seus olhos fixaram-se em determinado ponto, em frente e à sua direita; pareciam estar vendo alguém; e começou a falar-lhe lenta e submissamente. Disse, chorando, três frases, mas nem mesmo os mais próximos o escutaram. Em seguida, afastou-se da porta, ajoelhou-se, beijou o chão, levantou-se e com voz retumbante gritou, dirigindo-se à multidão: "Cristo está conosco. Guia-nos. Sigamo-lo". Em seguida, voltou-se de frente para a porta, abriu de novo os braços, levantando-os bem e olhou para cima. E a multidão, em resposta, vibrava, acentuava e, como caixa de ressonância, ampliava tudo quanto sentia, multiplicando-o e difundindo-o pelo imenso templo. Assim, a invocação, que o homem dirigira ao céu, se tornou potente e se agigantou até ao ponto de transformar-se em irresistível turbilhão de forças. A terra parecia tremer. Não mais, porém, por causa de impulso destrutivo, mas pelo ímpeto do mundo a caminho da ressurreição.

No capítulo precedente destacamos o fenômeno das ascensões humanas do fundo da dinâmica universal. Enquadrar os fenômenos, reordenar o pensamento, disciplinar a ação constituem-nos a tarefa; quer dizer: nossa tarefa é construir. Caminhemos, pois, em direção da ordem, rumo a Deus; das duas estradas da vida, a involutiva e a evolutiva, sigamos a que sobe. O sistema de forças do universo é, pois, bipolar, quer dizer, resultado do contraste entre dois sistemas inversos: o sistema do espírito e o da matéria. Ambos são deterministas, ou seja, o universo, sendo inteiramente perfeito, apresenta completo determinismo nos seus dois termos componentes. Se no sistema de Deus apenas perfeição pode existir, necessariamente não pode haver então determinismo. A liberdade existente no homem consiste somente na possibilidade de escolha entre os dois sistemas. Estes, porém, se constituem de tal modo que, escolhidos, envolvem o ser em suas espirais, incluem-no em seu sistema de forças, prendem-no à sua lógica e tudo isso de modo a arrastá-lo até às últimas consequências, até à plena realização do sistema, isto é, à plenitude de vida em Deus, de um lado, e, de outro, à autodestruição. Quem ascende tende sempre mais a substituir sua vontade isolacionista pela divina vontade universal; quem regride é levado cada vez mais a substituir a divina vontade universal por sua vontade isolacionista. O primeiro cresce sempre mais e se agiganta; o segundo se comprime e se fecha em si mesmo, diminui e se asfixia. Mas em ambos os casos o estado de livre arbítrio tende a anular-se, ou no determinismo do sistema do espírito, pela fusão consciente na vontade de Deus, ou no determinismo do sistema da matéria, pela obediência inconsciente do cego à vontade da Lei.

Antes de passar a outros argumentos, vejamos alguns corolários do capítulo precedente. A civilização materialista atual entra de novo no sistema de forças da matéria. Seu termo final, implícito no sistema, é a autodestruição. Tamanho progresso econômico e material deverá, pois, acabar fatalmente na autodestruição, como aliás está acabando. As verdades que a ciência descobre são certas, pois não passam de verdades da Lei. Errada é, isso sim, a direção seguida pela ciência nas pesquisas; errado, o método utilitário com que a ciência as aplica. O pecado capital dessa ciência consiste em dirigir-se à matéria ao invés de ao espírito, em querer substituir Deus pelo eu, em pôr-se na posição de presumida independência da Lei e de revolta contra ela. Trata-se, pois, de progresso às avessas, progresso que nega e, por isso, negativo. Depois de tudo quanto dissemos, as consequências tornam-se evidentes. Esses sistemas de forças nos tolhem completamente. O homem acredita realizar grandes conquistas porque desvenda segredos da natureza e em seguida sabe desfrutá-los. A posição da ordem fica nesse caso subvertida. O homem acredita que desse modo acumula poderes e se torna senhor da vida. Não. Trata-se de poderes de rebelde; apenas podem levar à autodestruição. O homem, hoje tão orgulhoso de si mesmo, com essa ciência sem sabedoria não passa realmente de elemento expulso do sistema de forças da Lei, de isolado, de abandonado por Deus, de indivíduo posto fora das fontes vitais. Seu grande edifício lhe cairá em cima, não porque deixe de ser grande e belo, mas apenas por causa da direção errada em que o construíram. A Lei destruirá a ciência rebelde que a negou e a civilização criada por essa ciência. Esse é o termo fatal do mundo de hoje. Por isso, nova e verdadeira civilização somente das ruínas dele poderá nascer, depois dele ser destruído, não podendo ter por fundamento senão princípios completamente diferentes. Assim, a nova civilização do 3° milênio poderá ser a civilização do espírito.

Ainda podemos compreender algo mais. A Lei reage contra quem agride, expulsando-o de seu sistema de forças (aliás grandemente protegido para quem nele se refugia) e o transforma em abandonado por Deus. Assim, o homem permanece fora, isolado, à mercê das forças opostas ou, seja, do mal. Eis por que o erro e a culpa, significativos de desordem contra a Lei e, por isso, de expulsão e abandono, causam dor, significativa de regressão. Nas páginas precedentes pudemos observar como e por que a Lei reage, isto é, a forma e o motivo dessa reação de que antes não se podia explicar a relação com a dor. A Lei, quando alguém a transgride, expulsa da sua ordem e da sua ajuda o transgressor; nega-lhe tudo, o conhecimento e o poder, a proteção e o alimento. Essa a razão por que todo golpe contra a Lei constitui golpe que o rebelde inflige a si mesmo, autopunição, dor por ele sofrida. Eis por que encontramos a dor no caminho da involução, caminho de rebeldes. Eis por que desordem, rebelião, inconsciência, erro, culpa, dor e queda se relacionam. O universo é criação contínua e se mantém apenas em virtude dessa criação. Ela deriva de dinamismo central, inserto na intimidade das coisas, profundamente ligado ao universo e a Deus, em que se situam as fontes da vida. Tudo isso dá nascimento a sistema de forças tendentes a reconstruir continuamente. Quem é posto fora desse sistema porque se rebelou contra ele, ou não é mais alimentado por essas forças criadoras ou ainda recebe pequena quantidade de alimento, isso quando não se rebelou completamente, e proporcionalmente à sua obediência residual. A verdade, porém, é que por esse caminho o rebelde caminha para a morte. Eis por que o rebelde está automaticamente condenado à autodestruição e com suas próprias mãos se colocou fora da vida. Deus, a Lei, a Ordem significam vida; Satanás, a rebelião, a desordem significam morte. Desse modo, esgotamos a análise do problema do bem e do mal, levando-os até à sua conclusão. Assim, observamos racionalmente, de um lado as terríveis e automáticas consequências a cujo encontro vai quem escolhe o caminho que se afasta de Deus e, doutro lado, como a verdadeira felicidade se torna possível e nossa herança natural e de que modo essa felicidade apenas pode residir na consciente e ativa obediência à Lei. Tudo se reduz a adquirir a consciência dessa Lei e a superar a ignorância, a compreendê-la, coisa tão simples e lógica, ou, seja, que Deus apenas pode querer, e quer mesmo, nosso bem. Se o homem não fizer tão simples descoberta, todas as maravilhosas descobertas científicas hão de submergir na destruição. O grande mal, que nos engana e trai, consiste nessa ignorância, a iludir-nos com miragens, mostrando-nos a felicidade na revolta, exatamente onde não está nem pode estar. Em que se cifra o maior desejo do homem, senão na sua felicidade? Qual o maior desejo de Deus, senão a felicidade do homem? Só a ignorância humana a respeito do pensamento de Deus pode tornar divergentes duas vontades que tendem ao mesmo objetivo. Se lutam, é exatamente porque desejam ansiosamente abraçar-se e unir-se. Por isso, vivemos na experimentação e na dor. De fato, através de provas e mais provas, se adquire essa consciência em que consiste a única solução do problema.

Apliquemos ao atual momento histórico tudo quanto dissemos. Nossa civilização materialista, se considerarmos os princípios que lhe deram origem e lhe dirigem o desenvolvimento, sofre agora o inexorável processo final de autodestruição. Significa tentativa de instaurar o reinado humano da matéria, sem e contra o reinado do espírito; de substituir Deus pelo eu; de estabelecer ordem humana, em que só o homem dá ordens, em lugar da ordem divina, em que, não o homem, mas apenas a Lei dirige. Foi ato de revolta e agora vão-lhe sendo eliminados os resultados. Nessa fase a nota dominante é a destruição causada pela guerra, com que a técnica, primeira conquista da civilização, destrói a própria civilização. Isso é lógico e fatal. Hoje Deus abandonou o homem ao destino que ele quis preparar para si mesmo. Deus lhe diz: “Você pensou que sabia agir e quis agir sozinho. Agora você vai fazer isso até o fim. Você é livre, mas responsável. Faça experiência. Você há de compreender à sua custa”. Hoje, o homem está perdido e abandonado no meio de cataclismos mundiais, em pleno oceano de forças incompreensíveis para ele e sem a capacidade de conduzir-se deste ou daquele modo. O poder que possui serve-lhe apenas para ferir-se. Parte da negação e da dúvida e chega à inconsciência e à destruição. A dor constitui a primeira consequência do sistema que se move em sentido involutivo, afastando-se das fontes vitais. Essa dor, que acreditávamos saber dominar, acabou sendo o verdadeiro resultado atingido; e a felicidade (tão seguros estávamos de consegui-la!) transformou-se em miragem. A subversão do sistema produz resultados contrários. Hoje, as forças da Lei devolvem ao homem os golpes que dele receberam. A dor, porém, não significa vingança de Deus, mas apenas reação salvadora, dirigida pelo intento de reconduzir o homem à estrada que há de levá-lo à felicidade. Como não compreendeu e não seguiu espontaneamente o caminho certo, por amor, e gozou da liberdade de experimentar o caminho errado, agora o prendem e o obrigam a palmilhá-lo à viva força. A dor constitui espécie de violência indireta contra sua liberdade; o determinismo da Lei, absolutamente desejoso do bem, é que pelo bem do homem executa essa violência. É tentativa honesta de salvamento com que estamos vendo, antes de ausentar-se completamente, abandonando o rebelde à autodestruição, as forças do sistema continuam presentes, mas sob forma negativa, e procuram, exatamente como dissemos, com a reação sanar a falha e curar o mal pelo emprego do remédio da dor. Assim, aquilo que à luz da psicologia corrente parece derrota e falimento, constitui o mais útil trabalho realizado neste ciclo histórico, pois representa a obra de arrependimento, de retificação, de nascimento de consciência e sabedoria, obra saneadora dos erros cometidos. Dor acabrunhadora, mas salutar, que nos tira do caminho da autodestruição e nos impele ao caminho da construção. Estamos, pois, vivendo um momento decisivo das teorias supra expostas. Poderíamos dizer que hoje estamos vivendo o período corretivo, de retificação das posições subvertidas pelo homem. Não podemos fazê-lo atuar senão através da subversão total dos atuais valores dominantes. Tivemos hipertrofia de meios materiais e, no bem-estar, atrofia do espírito; eis-nos, pois, nas posições inversas, quer dizer, com pobreza de meios materiais e a dor que nutre e enriquece o espírito. Assim, através da privação de tudo quanto anteriormente abundou, com poucos frutos no sentido evolutivo, chegamos ao desenvolvimento de tudo quanto anteriormente faltou, e isso com frutos para o progresso espiritual. Se quiséssemos definir o tipo da nova civilização e o comparássemos com o atual, poderíamos chamá-la civilização retificada. Tanto bastaria para que a imaginássemos. Essa retificação descreve-a continuamente em tudo quanto vimos dizendo nestas páginas.

Daí se vê não ser o homem, mas a Lei, quem dirige a história e a vida. O homem agiu loucamente, transportando desordem, mas a Lei sabiamente o reconduz à ordem. Hoje a realidade da vida grita aos ouvidos do indivíduo, como aos dos povos, esta necessidade inelutável e suprema: maceração na dor. A distinção humana entre vencedores e vencidos não tem, quanto a isso, importância alguma. A ciência encarou o problema do mundo material, mas ignora o do mundo espiritual; escapa-lhe o cálculo dessas poderosas forças do imponderável que hoje golpeiam o homem. A erudição contemporânea não basta para compreender o que está acontecendo ao mundo de nossos dias. Descobrimos leis da natureza e dominamos algumas de suas forças, mas fizemo-lo egoisticamente, estupidamente, contra a Lei, isto é, contra nós mesmos. Quanto bem obteríamos, se houvéssemos sabido dirigi-las com inteligência! Acima da loucura humana se coloca a sabedoria divina e agora nos impõe a reconstrução do equilíbrio perturbado, imergindo-nos em ganho de penitência. Na passagem se encontra a dor amiga para salvar-nos. Mas o homem não lhe compreende a função e ainda se revolta, cada vez mais. Com essa ilusória forma mental, sem preparo algum para a vida áspera das horas apocalípticas, o homem está absolutamente fora do caminho. Colocou-se fora das fontes espirituais do ser e falta-lhe o poder que sustenta os que sabem atingi-las. Em última análise, estamos no ponto mais baixo da onda histórica e precisamos percorrê-lo antes de podermos ascender novamente. Para o homem, a verdade e a sabedoria estão além desse trajeto. É duro, mas devemos percorrê-lo; chorando e sangrando, necessitamos chegar. O mundo acreditava que, com seus métodos conceituais e materiais, podia organizar a felicidade em série, em máquinas, e estava a ponto de atingi-la; no entanto, encontra-se em face de realidade cruel e bem diferente: o poder de criar que a dor tem. Alguns, todavia, compreendem, aceitam e ascendem. Constituem minoria sábia e silenciosa, abafada pelas vozes dominantes. Muitos, porém, não compreendem, continuam a rebelar-se, maldizem, reagem à dor por meio de novo mal e assim, ao invés de se afastarem do redemoinho da regressão, cada vez mais se afundam e lhe aumentam o poder. Assim, os bons tornam-se melhores e os maus, piores; a distância entre os dois aumenta, até se separarem completamente. Formarão dois turbilhões de forças, um voltado para cima e outro para baixo. Este último agarra o outro, procura prender-se-lhe para arrastá-lo ao fundo consigo, busca despedaçá-lo a fim de aniquilá-lo; mas todo sistema contém em sua própria natureza o termo final de sua trajetória. O princípio da ascensão, a amizade com a Lei levarão os justos cada vez mais para cima, até à salvação, mesmo através de obstáculos e provações; e farão os rebeldes se precipitarem cada vez mais para baixo, até a autodestruição. O atual espírito de destruição parece universal e poderá atingir a todos nós; mas, finalmente, terminará prejudicando apenas quem o pôs em ação, acredita nele e o merece. Hoje os homens podem escolher: sobrevivência ou destruição. A dor impõe a solução da crise e o superamento da fase. Os sábios transformam-na em instrumento de vida para si mesmos, os estultos rebeldes transformam-na em instrumento de morte.

Este livro foi escrito em meio dessa tempestade, nessa atmosfera apocalíptica, nessa hora trágica em que o mundo desmorona e se recompõe. Não poderia nascer senão nesse terreno e nesse momento. Enquanto o pensamento se inflama, a alma geme; os próximos bombardeios põem vibrações no ar, as cidades se reduzem a escombros, a civilização vacila, a propriedade torna-se insegura, vivem somente na saudade a segurança do lar e a vida civilizada. A morte passa e torna a passar por perto, sem deter-se ainda; Deus desce até perto de nós e nos fala. É o momento sublime e terrível das grandes maturações. Cada vez mais se encarniça e se torna cego em orgia de ferocidade; e cada vez menos sabe o que faz; e o bem, tranquilo e tenaz, enquadra a desordem e, como sabe o que faz, espera e modifica os resultados. As destruições da guerra são a força que o mal momentaneamente aplica a serviço do bem. A Lei conclama os inferiores a funcionarem como instrumento de dor. Mas a dor tem capacidade criadora e a sua atual presença entre nós, e em proporção assim tão grande, prova a iminência e a amplitude da transformação do mundo e constitui o precedente necessário para gerar nova civilização. Nas mãos da Lei tudo isso se reduz a severa verificação e, em seguida, a extraordinária progressão da vida rumo a futuro melhor. Contra todos os negadores, o espírito, para explodir, faz pressão de dentro para fora. O mal pode suicidar-se; não pode, porém, destruir o eterno e divino impulso criador. Nossa hora exige renúncia, liberação e desenvolvimento. Ascensão, através da dor.

Deus tira os bens das mãos de quem os conquistou e não sabe usá-los, tanto assim que de seu emprego só lhe resultam danos e nenhuma vantagem, e concede-os novamente apenas quando houver aprendido a utilizá-los. O homem, então, deve reconquistá-los com ânimo novo, de modo a transformar o dano em vantagem. Assim, a pobreza sucede à riqueza. É lógico, e até mesmo constitui benefício quem faz mau uso de determinado meio adorando-o como se fosse um fim, perdê-lo e ser reconduzido à ascensão, único e verdadeiro objetivo da posse. É também lógico e justo que apenas os dignos possam dispor dos bens e só os amadurecidos possam mandar e dirigir. Quem a Deus antepõe os ídolos acaba sendo expulso da vida. Todavia, quem está com a Lei está com a vida. Pois bem. Aproxima-se a hora da transformação do mundo. O super-homem pode nascer apenas de lutas e dores assim titânicas. Será a transformação do herói da matéria, do super-homem nietzschiano. Mostrar-se-á valoroso na prática do bem, na capacidade de dar, de amar, ao invés de mostrar-se endurecido no mal, na agressão, no ódio. A bestial virilidade do Homem, no plano físico asfixiante da guerra, se refinará e aumentará de poder na virilidade mais apurada do homem no plano espiritual. A luta não se travará mais por causa da seleção animal do mais forte, seleção em que ainda alguém crê, mas em favor da seleção do mais justo e consciente; as guerras e as vitórias serão diferentes, baseadas em princípios diferentes e conduzidas também com métodos diferentes. As batalhas do homem do futuro serão bem diversas. Esse homem será o soldado da paz que substituirá a guerra do ódio pela guerra do amor, muito mais difícil e profícua. Que consciência, organicidade e poder espiritual deverá ele possuir para saber vencer sem ódio e sem armas, perdoando e dando! Espiritualmente falando, nossa sociedade assemelha-se a campo inculto, a bosque intrincado e selvagem. Torna-se necessário orná-lo em plantação racional e de rendimento intensivo. Precisamos em todo o campo, onde existe o caos, introduzir a ordem e fazê-la substituir a desordem; isso, porém, com métodos diferentes dos de domínio, nos quais todas as diversificadas tendências humanas se igualam. É preciso fazer que os outros compreendam e sintam, por livre convencimento e paixão. Para todos nós a dor atual constitui grande escola de maturidade. Manifestam-se sistemas substanciais, e não sistemas formais; agimos mais por vias internas e espontâneas do que por vias coativas e externamente enquadradas. Não adianta mudar nomes e programas. Importa, isso sim, o senso da vida e a motivação diretora; importa operar na substância e fazer o homem. A consciência coletiva não passa de frase sonora, mas sob ela se esconde quase sempre apenas a inconsciência coletiva. O tufão limpou o terreno. Vamos, agora, ará-lo, semear, tratar, fazê-lo produzir. O ódio destrói. O amor deve reconstruir. Essa é a linha de desenvolvimento de nossa época. Primeiro, a paixão; depois, a ressurreição. O involuído esgotou sua missão. Agora chegou a vez do evoluído. Os amadurecidos são chamados para o trabalho e, mais do que nunca, agora sua vida se transforma em missão. Esgotaram-se as vãs tentativas dos experimentos materiais e verificou-se que os expedientes atuais não resolvem o problema. Nada mais lógico, pois, que agora, a título de reação e compensação, e por meio de expedientes de tipo oposto, inicie-se outra qualidade de experimento, o do espírito.

Apenas começamos a caminhar rumo ao bem e à sua realização na Terra, assalta-nos o pensamento de que talvez se trate de utopia. Isso, naturalmente, acontece porque nos afastamos da dura realidade da Terra e sabemos consistir o objetivo da evolução justamente nesse afastamento. Vimos que o mal pode constituir grande obstáculo, terrível resistência e, no entanto, o bem é o verdadeiro e definitivo senhor. A realidade quotidiana do mal desmente a aparente utopia do bem; esconde, como véu, a verdade mais profunda, esconde-a dos violentos e até mesmo dos astutos; não a esconde, porém, dos justos. A estrada é longa; mas a ascensão, fatal; e o mal não prevalecerá. Nem a insipiência, nem a traição, nem o erro, nem o abuso, nada pode deter a maré montante do progresso. No sistema se prevê que toda queda e todo mal tem remédio. As multidões são, certamente, ignorantes e cegas, sujeitas àquilo a que pode reduzir-se qualquer governo inepto, isto é, a serem esmagadas pela força e exploradas pela astúcia. Mas os povos se iludem, quando crêem que a orientação necessária possa ser-lhes dada pela liberdade dos chefes, ao invés de provir de consciência coletiva; e esta os povos podem conquistar apenas à custa do próprio esforço e através de duras provações. Os povos, como os indivíduos, devem aprender por si mesmos, por meio de seus erros e dores. Toda nova experiência política apenas serve para passarmos cada vez mais de estado de inconsciência a estado de consciência coletiva. Todavia, no fundo da atual inconsciência se percebe o sentido da vida e obscuro instinto que, embora confusamente, indica às massas o caminho certo e lhes confere a capacidade de responder às vozes da verdade; mas isto, se forem verdadeiramente sinceras, e o evoluído, que vive cumprindo missão na Terra, mesmo à custa do próprio sacrifício souber gritar bem alto essa verdade. A iniciativa da ascensão pode ser sua apenas. Todos os valores humanos vão sendo continuamente explorados e subvertidos em favor de vantagens pessoais. À custa do próprio sacrifício deve o evoluído repô-los no lugar certo, restituir ao homem tudo quanto lhe roubaram, opor-se, com o poder do vidente, à força bruta e, com a honestidade, lutar contra a exploração.

Mas o futuro não depende apenas dos homens de boa vontade. Preparam-no as leis da vida. A História é escrita por elas e não pelos líderes que aparecem em cena, e que constituem meros instrumentos de quem mais sabe e muitas vezes mais obedecem do que comandam; apenas desobedecem ou se tornam inúteis, a Lei liquida-os, retirando- lhes a função a eles confiada. Os homens tão-somente exprimem forças da vida, que se dirigem a objetivos muitas vezes incompreensíveis para eles. Quando soar a hora da plenitude dos tempos, os amadurecidos ouvirão dentro de si os apelos da vida, se sentirão galvanizados e fortalecidos e hão de ver que o imponderável os impele à ação. Assim, a Lei, apelando para o íntimo de cada um deles, chama um por um os instrumentos da ascensão, os desperta e os põe em função. Chega a vez dos involuídos destruidores, convocados nas horas negras da violência, e chega também a vez dos evoluídos construtores, chamados nas horas luminosas do sacrifício. Estes e aqueles, imperceptivelmente, atraem-se e, quando sopra o vento que os maneja, confundem-se, cada qual com seus iguais, para somar esforços. Vimos e continuamos a ver a hora dos primeiros, que deverá contudo esgotar-se. Para refazer o equilíbrio da vida, vai chegar a oportunidade dos evoluídos. Também estes vão atrair-se e juntar-se. Ao primeiro olhar, hão de reconhecer-se como colaboradores do mesmo ideal, sentir-se-ão homens da mesma estirpe e se compreenderão mais. A revolução desta vez não é formal, mas substancial. Não se trata da costumeira luta para, com os mesmos métodos, substituir os velhos ocupantes das posições privilegiadas. A luta do evoluído não se destina ao predomínio deste ou daquele interesse, mas é luta de deveres em favor da evolução.

Para refazer o mundo, tudo deve fazer-se contra a vontade do mundo. Por isso, antes de mais nada, método de vida despretensioso, sincero, honesto, novo estilo, acima de tudo, interior e constituído de fatos e não de palavras. Os fatos não são necessariamente como aqueles hoje em dia observados, quer dizer, grande número de aderentes e muito barulho. O número e o barulho estão naturalmente na razão inversa da profundidade; e neste caso a ação se processa em profundidade. O primeiro trabalho se desenvolve no íntimo das pessoas, onde penetramos persuasivamente e não no exterior delas, onde dominamos à custa de coação. Por isso, não necessitamos da costumeira força dos dominadores, mas de convicção e de exemplo. Os novos homens não exibirão sinais exteriores, que o vestuário possa mudar, mas sinais interiores impressos no coração e na mente. Nem as funções, nem as condições sociais, nem a hierarquia, nem qualquer outro motivo capaz de atrair o espírito humano, ávido de poder e repleto de ambição, servirá mais do que uma vida bem vivida, para estabelecer distinções entre os homens. O posto mais alto pertencerá a quem mais dá, embora menos possua, a quem se sobrecarrega com mais trabalhos e obrigações. Principalmente, saibamos viver o mais possível desprovidos de riqueza, para tornarmo-nos invulneráveis aos ataques do involuído, que a deseja sobre todas as coisas, e para o mantermos afastado de nós, pois não sabe viver em atmosfera de pobreza e sacrifício. As potências espirituais devem estar em condições de substituir qualquer bem da Terra. Não é verdade que a riqueza e o poder se tornem absolutamente indispensáveis para a execução de qualquer tarefa. Os grandes meios utilizados pelo mundo são quase sempre meios fornecidos pelo mal e de que o bem pode prescindir. Mas em compensação necessita de entusiasmar-se, primeiro fazer para depois mandar que façam, de sentir e viver integralmente a paixão do bem. O que se leva em conta é o ânimo, o valor intrínseco do indivíduo; não se lhe leva em consideração o poder econômico, a posição social, a condição externa. Grandes meios podem reduzir-se a bagatelas e títulos pomposos camuflar nulidades. Não mudamos nada do que está do lado de fora e carece de importância. O evoluído, em extremo sensível, reconhece e classifica os homens, mas observando-lhes o íntimo. Por isso, nada de agressividade contra formas indignas de nos causarem a fadiga de combatê-las, mas apenas respeito e paz relativamente àquilo que para os demais assume tanto valor e, no entanto, para nada presta. Então, aviva-se mais o contraste; não destruímos as coisas valorizando-as pelo combate que lhes movemos, mas negando-lhes importância e incentivo. Jamais o evoluído é negativo e destruidor, mas sempre positivo e construtor. Assim, tudo quanto se torna inútil por si mesmo se destrói. Toda a energia do evoluído se aplica em favor do bem. Tanto basta para em todas as formas infundir calor, espírito e valor novo.

Essa nova classe de homens se distinguirá por meio de características biológicas e poderemos chamá-la classe dos sacerdotes do espírito. O fato de nos desmaterializarmos na função espiritual aumenta-nos a capacidade de penetração e potência. Quanto mais a forma é imaterial tanto mais é invulnerável e resistente aos esmagadores ataques exteriores e às fraudulentas explorações interiores, ambos verdadeiras traças que roem o ideal. Aqui o sistema de forças protetoras se apoia no imponderável e o princípio fundamental difere do comum. Não se trata de falar e parecer, mas de ser e dar o exemplo, de não pretender pregar moral antes de poder dizer: eu também faço assim. Não se trata de proselitismo superficial, que começa nos outros, mas de conquista profunda, começando em si mesmo. Mais do que de uma determinada convicção religiosa, trata-se de certa espécie de ordenamento biológico, onde automaticamente se enquadra o indivíduo amadurecido, que aí permanece enquanto, por causa dessa maturidade, consegue resistir; desse ordenamento está automaticamente excluído quem mente, explora ou furta. A regra pertence à Lei; aceita-a e segue-a apenas quem lhe apreende o sentido e compreende a vida. Do mesmo modo que a gratidão, os prêmios e o progresso, as sanções e as exclusões são automáticas. A polícia de controle está confiada às forças da Lei, que usam peso justo; quem vale mais e mais possui deve dar mais e ter mais responsabilidade. Trata-se de leis biológicas a que não podemos fugir; não falham e inexoravelmente atingem o indivíduo, onde quer que esteja. A polícia de Deus se compõe de imponderáveis contra os quais não adianta rebelarmo-nos, pois são invisíveis e poderosos; funciona com exatidão e segurança, não esquece e a todos com suprema justiça castiga ou premia.