Depois das precedentes visões parciais, seguidas por nós, para nos aproximarmos mais do problema máximo, enfrentamos, agora, a visão do mistério central: Deus e o Universo

Para chegar a uma definição de Deus é necessário partir de alguns conceitos que, pela sua evidência e comum aceitação, se podem tomar como axiomas. Aceitamos, então, como demonstrado que o homem é um ser inteligente, capaz de compreender alguns conceitos; que o universo é um funcionamento orgânico dirigido por um "quid" inteligente; que tudo se desenvolve segundo o principio de causalidade, pelo qual o efeito é proporcional e da mesma natureza da causa que nele se manifesta; que em correspondência ao principio de causa e efeito, existe um dualismo universal, pelo qual se pode contrapor relativo e absoluto, finito e infinito, e semelhantes.

Querer chegar a uma definição de Deus significa reconhecer, no universo, que o homem percebe e concebe um princípio causal único que tudo rege harmonicamente. Não podendo remontar à causa invisível senão pelos efeitos perceptíveis, devemos, primeiro, verificar que o efeito exprime, não um estado caótico, mas uma ordem, pela qual tudo depende de um centro, pelo que o evidente vir-a-ser de todas as coisas tem um significado e uma meta lógica.

Assim dizendo, chegar a uma compreensão de conceito de Deus, significa atingir, do pólo relativo ou finito onde está o homem, o polo infinito ou absoluto onde está Deus O homem, com o universo que o circunda, é efeito. Ora, para poder reconstruir a causa partindo do efeito, precisar-se-ia poder observá-lo todo, isto é, no infinito do espaço e do tempo. O homem não possui, entretanto, os meios para poder conceber a natureza da causa, usando com o método indutivo, partindo da observação dos efeitos. O homem não pode, portanto, definir Deus. Não o pode, porque o próprio conceito de definição pertence ao seu mundo finito, que não é o infinito, daí querer definir Deus, isto é, o infinito, se torna uma contradição e um absurdo. O infinito não se pode limitar a atributos particulares, sem mutilar-se. Qual quer definição de Deus não pode ser senão uma mutilação. E que pode saber de Deus um ser como o homem, cujas concepções, ainda as mais abstratas, foram alcançadas através de generalizações de conhecimentos adquiridos por necessidades materiais e não são mais do que um produto destilado de percepções, um resultado sensório, um derivado mais ou menos próximo do modo de conceber que resulta dos meios de observação, e de juízo, dados pela natureza e pelo organismo humano?

Que representam então as tantas definições de Deus, dadas pelo homem? Elas não exprimem o inexprimível Deus o indefinível infinito, mas exprimem o conceito relativo de Deus que o homem faz segundo ele próprio, nos revelando a sua natureza, o seu tipo biológico, a maturação espiritual alcançada, a sua potência de concepção. Nas suas definições o homem não define Deus, mas a si mesmo, em relação a um infinito, do qual nos mostra as várias aproximações realizadas no seu concebível. Daí segue que toda definição de Deus é relativa a cada um e é mutável e progressiva com o devir de cada um. Na terra encontramos infinitas definições de Deus e nenhuma satisfatória e definitiva, evolvendo todas no relativo, sem fim. A estrutura do relativo é tal que ele não pode existir senão no movimento. A vida em forma imóvel poderá de certo estar no polo oposto do dualismo, no absoluto. Mas, em nosso finito de criaturas, a parada, ainda que conceptual, é morte. E morte não significa senão fatal destruição da imobilidade para reentrar no movimento da vida.
   
Quando, pois, um homem se põe a definir Deus, ele não define Deus, mas estabelece e exprime a sua posição em face do ponto de referência, Deus. Logo, o seu conceito será relativo, e mais ou menos avançado, conforme é a sua evolução. Com isto cada um se coloca diante de todos os outros conceitos relativos ou definições de Deus, dadas por outros homens, e pode haver com eles consenso ou dissensão, segundo a posição psicológica de cada um. Coincidirão somente as perspectivas tomadas da mesma posição. É evidente que, como de um infinito se podem tomar visões de infinitos pontos de vista, assim, as definições de Deus podem ser infinitas. As disputas sobre esse argumento não dizem, pois, respeito a Deus, mas somente aos homens segundo o conceito que de Deus cada um consegue formar. Essas definições se fazem com atributos humanos ao superlativo, o que exprime antes uma ingênua tentativa por parte do homem de criar uma idéia de Deus, uma representação segundo o próprio concebível, feita à própria imagem e semelhança. E que mais se pode pedir ao homem, além dos elementos de julgamento que ele possui no seu concebível? O que é lógico e justo. O erro está somente no querer dar um valor absoluto a essas definições. Isto é verdadeiro para os indivíduos, para as religiões, para os povos, porque tudo caminha fatalmente.

Chegar ao conceito de Deus significa haver resolvido o problema do conhecimento, dominar a visão do universo. como o conhecimento é incompleto, progressivo e inatingível, assim é progressivo e inatingível o conceito de Deus. Nesse sentido, a concordância, em muitos casos, entre os homens, é antes intuitiva e, portanto, axiomática, do que racional e demonstrável. É por uma universal tendência intuitiva que sentimos a necessidade de pensar em Deus como perfeição, como poder, harmonia, justiça e bondade. Temos uma intuitiva necessidade de encontrar em Deus a causa última que tudo explica, um imóvel em que possa encontrar razão e repouso a incessante instabilidade de todas as coisas, encontrar o elemento complementar do nosso relativo, que lhe complete a deficiência que sentimos. Deus é sentido assim, mais como aspiração e tendência para uma meta infinitamente distante, em cuja estrada se está sempre a caminho, do que como uma racional precisão em termos qualitativos.

Aplicando os conceitos acima expostos à minha presente tentativa de dar uma definição de Deus, deverei tê-la corno relativa a mim, expressão do grau de evolução espiritual por mim alcançado hoje, progredindo no amanhã para sempre melhores aproximações. Toda expressão humana é manifestação da própria alma, em relação ao grau de conhecimento conquistado. Assim podem coexistir muitas definições de Deus e, reconduzida àqueles limites, creio que a minha não poderá ofender as dos outros que não pretendo impugnar, reconhecendo-as relativamente verdadeiras, em relação a cada um, como expressão da sua alma. Com isto não posso impedir, porém, que os espíritos evolutivamente situados no meu plano de evolução deixem de corresponder por sintonia ao meu pensamento e logo lhe adiram.

Entro agora no assunto, expondo os vários aspectos em que me apareceu a divindade. Mais que diante de uma definição, sinto que me encontro diante de uma visão. Acerco-me, pois, de Deus, não como de um ignoto a ser conhecido e que minha razão queira conquistar, mas como de uma visão que me aparece, se me entrega e me conquista, que eu recebo por intuição e que me alcança vindo do alto. Tenho a sensação de uma gradual e progressiva revelação, como de um desvendar de mistério. Não concebo mais conforme os conhecidos sistemas racionais de definição de Deus e suas conseqüências. Percebo essa visão somente com os sentidos da alma, agarro a sua estrutura enquanto lhe sinto a logicidade; aí repousa o instinto satisfeito e a alma saciada por alcançar essa sua verdade, além da qual hoje não vê, que é a última de hoje, à espera de avançar mais no amanhã. A potência dessas sensações para mim é prova que a minha visão, ao menos do meu ponto de vista, relativamente à minha forma mental e grau evolutivo no momento atual, é verdadeira.

Para chegar à minha aproximação do conceito de Deus, parto de alguns dados de fato e me sirvo, como de uma escada para subir, do principio analógico que observei ser sempre verdadeiro em todo campo. (Aquele que a Cristo permitia exprimir-se por parábolas). Esse princípio me diz que o universo é um organismo de estrutura harmônica constituído conforme um esquema unitário, pelo que o modelo fundamental, que o individualiza no seu conjunto, é repetido em todo particular, que assim é individualizado à semelhança do todo. Quando houvermos compreendido a estrutura de uma individualização qualquer, particular, nela veremos refletido o universal e encontraremos a chave para resolvê-lo. Agora aplicaremos, por várias vezes, esse método.

Verifiquei, assim, que tudo é bipolar no universo. Essa lei de bipolaridade é afirmada em A Grande Síntese e desenvolvida no fim do volume: A Nova Civilização do Terceiro Milênio. Pude verificar que esta é uma lei universal, ao menos até aonde a minha observação pôde chegar, sem encontrar desmentido. Cada individualização particular nos diz que ela existe enquanto é formada por duas metades inversas e complementares, antagônicas, que se regem enquanto equilibradas no seu recíproco contraste, formando, assim, e fechando um circuito de duas forças de sinal e valor oposto. Pelos princípios da unidade dos esquemas repetidos por semelhança e derivados de um único central e pela lei de analogia, pode-se bem guardar quanto acima ficou exposto, além de que, nos casos menores observados, se repete ainda no caso máximo do universo.

Isto me guia para uma primeira aproximação do conceito de Deus. Ele me aparece, pois, como o pólo que é centro, potência, conceito diretivo, causa motriz, substância, absoluto, pólo que está nos antípodas do outro que é, ao contrário, periferia, extremo não irradiante, mas dinamicamente irradiado e conceptualmente guiado, desse modo plasmado na forma, o pólo em que o todo é feito organismo que funciona e evolui para fins precisos, o pólo dos efeitos e de relativo, no qual nós vivemos. Ora, o esquema da estrutura de cada individualização do ser, observado em casos infinitos, não me autoriza a separar esses dois momentos opostos. Ao contrário, mostra-me que o antagonismo não é senão complemento que, que o contraste é equilíbrio, que não divide, mas une, as duas partes em um mesmo ciclo. Se assim são todos os menores casos observáveis, por analogia e harmonia, que são leis do universo, assim também deve ser este O princípio do dualismo me conduz, pois, a essa concepção de equilíbrio, inevitavelmente, porque ele está em todas as coisas, e pelo qual transcendência e imanência não se podem elidir até ao absurdo de um universo cindindo contra si mesmo, mas devem, ao contrário, completar-se automaticamente equilibrando-se. A observação dos fatos me diz claramente que os dois extremos não podem ser senão opostos e complementares para formar, em estreito monismo, uma mesma unidade.

Este monismo nasce, pois, do dualismo. Assim o universo aparece, como toda individualização, estreitamente unitário, se bem que no seu intimo, de estrutura dualista. Desse modo, o monismo abraça, a um tempo, o aspecto de Deus transcendente, Eu distinto da sua criação ou manifestação, e o aspecto do Deus imanente, pulverizado em infinitos Eus menores e fundidos na sua manifestação em que está sempre presente. Vejamos, agora, as relações entre causa e efeito, entre Deus e Universo. Segundo o primeiro aspecto, a criação é instantânea, operada fora de si, e fica separada da sua causa, que é de natureza completamente diversa. Segundo o outro aspecto, a criação é íntima, progressiva, é evolução, é uma manifestação de Deus, na qual a causa permanece sempre presente e operante no seu efeito, com a qual ela permanece fundida, com igual natureza, como a alma humana com o seu corpo. Desse fato decorrem duas concepções opostas, que parecem elidir-se e, ao contrário, se completam.

Procuremos compreender as relações entre Deus e o Universo, tomando para exame, pelo método mencionado do princípio de analogia, o caso semelhante do homem que já foi reconhecido como feito à imagem e semelhança de Deus. Exemplo que cada um encontra em si mesmo. Como o nosso Universo, o homem é formado de três elementos: matéria, energia e espírito. Como no Universo, reencontramos aqui uma trindade que é dualismo nos seus dois extremos, matéria e espírito que são os dois termos inversos complementares em luta no composto humano. A analogia, que é universal, nos diz que as relações entre Deus e universo devem ser semelhantes àquelas que correm entre alma e corpo, entre espírito e matéria. A alma é independente do corpo e pode assumir diversos corpos segundo o seu grau evolutivo. Aqui temos o aspecto transcendência em que o princípio é uma individualização separável da sua manifestação relativa. Mas, a alma é, ainda assim, estreitamente fundida e conatural no corpo, que, sem ela, se torna um cadáver, no corpo do qual ela dirige a formação, a troca, a evolução (a evolução orgânica não é senão a expressão externa da evolução do espírito). Aqui temos o aspecto imanência em que a causa está sempre presente e ativa no seu efeito.

Transferimos o esquema unitário dualístico que rege a vida do homem para a dimensão máxima do semelhante esquema que rege a vida do universo. Deus é distinto do seu atual universo e  se pode separar dessa sua manifestação para assumir inumeráveis outras. Deus é, ainda, alma que rege o atual universo, fundida  nele, sempre aí presente e ativa com uma criação contínua que chamamos evolução. O princípio da imanência nos diz que se do universo tirarmos Deus, resta um cadáver. Mas, o princípio da transcendência nos diz que, se Deus se desliga do seu universo, isto é, da sua atual forma de manifestação, Ele pode, todavia, se expressar em infinitos outros universos. O universo atual não é senão uma das infinitas formas que o absoluto quis dar a si mesmo no relativo; Ele se pode libertar sempre dessa sua expressão no espaço e no tempo; o infinito é sempre senhor de romper os limites do finito em que ele se quis fechar. No entanto, ele se impôs esses limites; o relativo do universo atual é a sua causa e expressão; nesta, Deus é necessariamente imanente, e como tal, neste seu aspecto, Ele vive, isto é, luta, sofre, goza, evolui conosco e com todos os seres  Ele é motor universal, impulso que faz pressão para levar o universo à plena expressão d‘Ele, à gradual, mas completa, conquista da Sua perfeição.
   
Se, na concepção de Deus, nos limitarmos a um só dos seus aspectos, seja o da imanência, seja o da transcendência, d‘Ele teremos um conceito mutilado, incompleto. Devemos, por certo, venerar Deus transcendente, o absoluto para nós inconcebível, que exorbita de todos os possíveis limites do nosso universo; o Deus na Sua verdadeira essência, muito distante, o incognoscível, o inacessível. Mas devemos, também, sentir com amor o Deus imanente, que se deu ao ser, fundindo-se no relativo, o Deus vizinho, compreensível, que se encerrou no limite da Criatura; o Deus que sabe humanizar a vertigem do seu infinito para o tornar acessível a quem não tem a potência de alcançá-lo, o Deus Pai e amigo que assiste e socorre as suas criaturas. Digam o que disserem a revelação e a teologia, sem esse segundo aspecto, o universo se disseca, separado da sua fonte divina, a vida, não mais alimentada em cada instante pelo Deus presente, morre. Nenhuma filosofia pode mudar essas leis, que são as da vida.

Era necessário, para obter uma primeira aproximação do conceito de Deus, começar no sensível do nosso universo para remontar depois à sua causa que está além do sensível. Para dar a escalada ao inacessível, era necessário começar do acessível, estabelecendo as relações entre Universo e Deus, entre o efeito e a desconhecida causa que está além dele. Se bem que hoje se duvide de tudo, também do princípio de causalidade, todavia é evidente que as características do efeito refletem a natureza da causa. E então, dado que o Universo dos efeitos é assim incomensuravelmente vasto e complexo, assim maravilhosamente ordenado e perfeito, é lógico haja de se deduzir que semelhantes qualidades superlativas se devem reencontrar também na causa que é Deus. É assim que se formou a maior parte das definições de Deus, com um processo de multiplicação dos melhores atributos concebíveis pelo homem. N o repetiremos essas definições. Deixemos que Ele permaneça definido pela descrição das suas atividades, na qual está implícita a dos seus atributos.

Algumas referências antes de ir além. Quanto estamos desenvolvendo neste capítulo está de acordo com quanto já foi sumariamente dito em A Grande Síntese e que aqui é desenvolvido para esclarecimento do pensamento lá contido. Isto, para expor o seu verdadeiro significado, uma vez que uma inexata interpretação dele e da terminologia usada em sentido especial, provocou a condenação sob a acusação de erros teológicos, quais o panteísmo, a afirmação de uma exclusiva imanência de Deus e afins.

O referido volume, no cap. VI diz: "Podereis denominar isto de Monismo; todavia deveis cuidar mais dos conceitos do que das palavras"   "Monismo, isto é, conceito de um Deus que "é" a criação". "Lede mais uma vez antes de julgardes". No cap. VIII se lê: "A lei é Deus" - "O princípio e as suas manifestações". Isto quer dizer que o conceito de Deus não se pode isolar em nenhum dos seus aspectos, seja o transcendente de princípio, seja o imanente de manifestação. Monismo significa justamente o seu equilíbrio e fusão em unidade. Separá-los significa mutilar o conceito de Deus em um dos seus fundamentais aspectos.

A Grande Síntese, no cap. LXIII, "Conceito de criação", diz: "Podeis denominar criação um período de vir-a-ser e, só então, falar de princípio e de fim". "Tudo deve se reintegrar na Divindade, pois, se tal não sucedesse, esta seria "parte" e, portanto incompleta se existem forças antagônicas, estas não podem estar senão no seu seio, no âmbito de sua vontade, como parte do mecanismo do seu querer, do esquema do Todo" (....), "uma cisão, uma duplicidade absoluta entre Divindade e criado. Isto não pode ter cabimento neste meu monismo”.

E ainda: "Não tenhais receio de diminuir-lhe a grandeza dizendo que Deus é também universo físico, pois este nada mais é do que um átimo do seu eterno vir-a-ser — do seu tornar-se — em que Ele se manifesta" (....), "a minha mente tende a manter compacto o todo, numa visão unitária, e a fazer com que os profundos vínculos que unem principio e forma ressaltem". (....) "Deus é o princípio e a sua manifestação, fundidos numa unidade indissolúvel é o absoluto, o infinito, o eterno que vedes pulverizado no relativo, no finito, no  progressivo. Deus é conceito e matéria, princípio e forma, causa e efeito, conjugados inseparáveis, como dois momentos e como dois extremos entre os quais o universo se agita".

Este é o monismo que agora aqui explicamos. Deus é causa que se funde no seu efeito. Mas este é sempre um relativo, que tem, assim, princípio e fim, ao oposto do absoluto-causa que, como extremo oposto, tem características opostas, isto é, é imóvel, eterno, além de todo limite e medida. É assim que o atual universo tem principio e fim. Porém as criações do mesmo Deus infinito podem ser infinitas no finito, propondo-se cada uma alcançar algum fim seu, criações progressivas que se ultimam somente na sua conclusão (v. A Grande Síntese, cap. XXII fig. 2, criação a, b, c, d, etc.).

A esses conceitos é que se refere o desenvolvimento deste capítulo. Para o compreender é necessária toda a orientação geral de A Grande Síntese, e haver antes estabelecido a solução do problema da dor e do amor, ali desenvolvida nos cap. LXXX a LXXXII, a compreensão da função do bem e do mal e da solução final do seu contraste (cfr. o volume: A Nova Civilização do Terceiro Milênio, cap. XIII, "Problemas Últimos"), ter enfim compreendido os capítulos: "Evasão", "Inferno e Paraíso", "O Princípio de Unidade", "O erro de Satanás e as causas da dor" e "Porque Amor é alegria" que se desenvolvem nos volumes Problemas do Futuro e Ascensões Humanas. Não se poderia chegar ao atual grau de profundidade no conhecimento do argumento, senão por graus e preparando todos os elementos das conclusões atuais com a solução de vários problemas concomitantes. Retomemos agora o nosso argumento.

Estabelecidas, pois, as relações entre Deus e o Universo, perguntamo-nos por que Deus quis exprimir-se nessa sua manifestação e os seus significados e finalidades (admitido o universal princípio de causalidade). Encontramo-nos aqui em face de uma primeira, mas só aparente, contradição. Se de um lado, somente o conceito de um Deus perfeito, absolutamente justo e bom, sacia o instinto de nossa alma que não pode admitir outra coisa, na realidade dos fatos, em nosso mundo o vemos imperfeito, muitas vezes injusto e mau. Por que haverá este efeito, tão dissemelhante da sua causa? Repugna totalmente à nossa alma transferir para a causa essas qualidades dos seus efeitos. E então, como é que uma tão maravilhosa fonte se há depois corrompido na dor e no mal, na sua manifestação? O espirito humano se encontrou desde Os primórdios da civilização em face desse problema e tentou resolvê-lo com o mito da queda dos anjos e, pois, do pecado original. Conforme essas soluções, o nosso atual universo não seria senão uma degeneração de um outro universo perfeito que ruiu por obra da criatura que quis trair o criador. O ser seria um decaído em poder da dor e capitaneado por Satanás, um anti-Deus, rei supremo do mal. Diante de Deus ter-se-ia assim formado, na sua própria manifestação, um universo inimigo. Daqui nasce um dualismo antagônico, irresolúvel, em guerra, bem diverso do dualismo harmônico e unitário que acima havemos descrito. As duas partes formam uma cisão, uma insanável fratura dissolvedora e não um equilíbrio compensado que contrapõe os opostos, tão-só para os unificar construtivamente. Aqui ao contrário estamos defronte ao naufrágio da obra de Deus. Como podia Ele, com as qualidades que lhe devemos atribuir, falir tão miseravelmente; como podia não haver sabido prever e, enfim, ficar vencido e subjugado pela vontade da sua criatura? Isto implica algum grave defeito de origem para chegar a tão desastrosos efeitos; e, como podia, tudo isto, estar em Deus? E eis que a criatura superou o criador e o substitui na direção e, justamente, em sentido contrário, como um segundo deus invertido. Então o primeiro Deus deve modificar os seus planos imperfeitos e mal executados, com diretrizes diferentes, e socorrer o ser caído, com a Sua redenção. Disto resulta uma série de conseqüências bem conhecidas.

Dado o conceito de Deus que o instinto da alma e a sua intuição nos indicam, ela se rebela diante da idéia de um desdobramento da potência criadora, pelo qual a divindade se rompe, contradizendo-se na imersão de uma parte da sua manifestação, para acabar em uma luta dolorosa e estéril entre dois chefes que contendem nas diretrizes do criado Então, o mal nos aparece verdadeiramente como uma força negativa, o antagonista que atenta contra Deus, uma imperfeição devida a um Seu imperdoável erro que Ele, em determinado ponto, encontra na Sua obra e a que se apressa em remediar. Deus não é tudo, mas há, fora d‘Ele, um outro Deus, seja embora ao contrário, que o limita e o agride. É o bastante para fazer ruir o conceito do Deus absoluto e perfeito, o qual o instinto da nossa alma tem a intuição Permanece daquele Deus uma ruína, mutilada e vencida, um Deus relativo e finito. Tudo cai no absurdo. Para o homem ficaria uma herança de dor, sem finalidade construtiva, punição de um Deus que se torna vingativo, dor que Ele em vão procura sanar. Essa dor é devida à grave culpa do primeiro rebelde que, seja Adão, seja Lúcifer, de certo não poderia ter consciência completa do bem e do mal, por ser um primitivo (Adão) ou porque, se a tivesse tido (Lúcifer) não seria jamais induzido a tamanha revolta em seu prejuízo, expulsando-se, por si mesmo, para o reino da dor, por ele mesmo criado e não, de certo, por Deus. Como pode um inconsciente ser responsável, quando não sabe o que acontecerá e lança-se a uma tentativa, crendo ganhar o próprio bem e, sem saber, erra? E, em nome de qual justiça, Deus, que sabe tudo, que tinha a presciência de tudo, também desse erro, pode condenar esse ser que por ignorância errou, a pagar duramente na dor? Quando uma criança inexperiente cai, a culpa é do progenitor que, sabendo mais, devia prever o que o inexperiente não podia; é o pai que tem o dever de educar, antes mesmo de ter o direito de punir, e somente em proporção da experiência adquirida pelo filho. Quando o filho não tem conhecimento, o progenitor não pode punir. Se Adão e Eva creram na serpente, foi porque eram ingênuos, inocentes e não conheciam as conseqüências, pois que, ainda hoje, o mal é sempre fruto da ignorância e da ilusão que dela decorre. Ninguém também hoje faz o mal pelo mal; se o faz, é porque o reputa, na sua ignorância, uma vantagem, uma utilidade, um bem. E então que deveremos pensar de um Deus que, contrariamente aos seus princípios de lógica e justiça, se comporta dessa forma para com a sua criatura?
   
Na visão que vejo aparecer diante de mim, tudo se esboça bem diversamente. O dualismo, que é uma evidente, indiscutível verificação de fato, permanece. Mas, então, não aparece mais antagônico e destruidor como no precedente sistema e revela um mais profundo e satisfatório significado e, dessa forma, se revela, ao contrário, unitário e construtor. O universo me parece monismo, isto é, estreitamente unitário também neste caso. Em A Grande Síntese está dito que, como o pensamento humano passou da idéia politeísta à monoteísta, agora passa da monoteísta, isto é, a de um Deus só, mas distinto do Seu universo, à monista, em que Deus é tudo também o universo. O homem subiu evolutivamente e, hoje, Deus se avizinha, se torna mais acessível à nossa nova maturidade  No caso atualmente observado, o monismo do todo, a unidade universal que não permanece cindida entre o Deus transcendente e o Deus imanente, fica unidade inseparável também no seu dualismo bem-mal, Deus-Satanás. Nesta visão, o universo me aparece absolutamente unitário, porque qualquer cisão sua seria insanável fratura, ruindo a sua perfeição. Não interessa, aqui, se a palavra monismo teve outros significados e fez parte de diversas escolas humanas. Este é o sentido que aqui damos a esta palavra e prescindimos dos outros. E neste conceito é fundamental que o universo há um só centro dominador, uma só força diretriz, e não duas.

Não há um anti-Deus, não existem atritos, erros a sanar, Deus não tem inimigos, Satanás é o Seu servo e, neste sentido lhe está sujeito, logo é seu instrumento para os fins do bem que é a única lei de um Deus só, senhor de tudo, verdadeiramente bom, justo e perfeito como o instinto da alma nos diz e exige. Há assim funcionamento orgânico unitário e não uma cisão entre o bem e o mal.

Mas a dor e o mal não desaparecem por esse motivo. Por que, pois, existem e os quis Deus, único senhor de tudo? Esta visão não destrói o fato inegável que dor e mal existem; dá-lhes apenas uma explicação lógica, a única que não ofende o conceito de Deus, que a nossa alma exige e não ofende a Sua perfeição. Tínhamos já, no volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio, tratado do problema do mal, da sua função construtiva a serviço do bem, da sua destruição final dependente da estrutura negativa do seu próprio sistema. Mas aqui não é da natureza do mal e de sua sorte que nos queremos ocupar, mas da sua posição na estrutura unitária do universo, para compreender como ele não o ofende absolutamente; representa ao contrário uma função positiva e construtora, solidária com a do bem. Vemos, assim, o mal e a dor aparecer-nos com um significado mais profundo e bem diverso do precedente, como partes do mecanismo criador, como elementos negativos somente na aparência, mas, em substância, positivos, não maléficos, mas benéficos. Somente assim eles podem estar, na divindade, e não contra ela, que é bem a afirmação criadora e nunca pode ser maléfica. No atual novo impulso para Deus, Satanás, de um tremendo inimigo de Deus e nosso, tornou-se um ignorante que faz o mal porque não sabe e, justamente por isto, acaba por fazer o bem, no seio da infinita sabedoria de Deus que tudo abarca, inclusive a obra de Satanás. E então, a nossa vida não é mais condenação, exílio, punição de culpa originária, mas alegria, em ascensão para o bem, também nas quedas e na dor, é sempre uma bênção de um Deus, verdadeiro Pai amoroso, é, a todo momento, ascensão e conquista para a nossa felicidade. Nesta visão, vejo Deus abrir sempre os braços para atrair todos, alegria suprema. Vejo uma exaltação dos valores positivos da vida, acima dos negativos do temor, dominantes na nossa anterior concepção de Deus, pelo que, além do antagonismo do bem contra o mal e ao contrário, aparece a lei de absorção do mal no bem, de modo que a vida não é uma falência, mas, contínuo triunfo de Deus. A Sua obra já é substancialmente perfeita, e se ainda, na sua expressão, não o é toda, vai sempre mais se aperfeiçoando, justamente para sempre mais exprimir exatamente a íntima perfeição. No sistema do universo a vitória cabe ao bem, ainda que, para atingi-lo, for necessária a luta contra o mal. A evolução nos leva para Deus, isto é, para a alegria, se bem que, para subir, seja necessária a dor. Assim, a existência deve aparecer em cada caso, e se não é felicidade, sempre há um encaminhamento para a felicidade, mau grado todo o cansaço da dor. Este conceito da grande unidade do todo, que vivificará a nova era do mundo, a vivificará porque a unidade é a meta da vida e a unificação é o processo evolutivo para aí chegar, pois a felicidade está na superação em Deus de todo antagonismo e cisão. Eis o significado da idéia do monismo, sustentada em A Grande Síntese. Não mais um universo cindido entre dois senhores, representando a falência de Deus na Sua criação, mas um universo unitário, triunfo absoluto de Deus. A sombra da dor e do mal aí fica, mas somente como sombra que não lesa, antes valoriza a luz. Esta visão me parece exprimir, como uma boa nova ao mundo por parte de Deus que, numa grande curva da história, pratica um novo gesto para tudo atrair a Ele. Estes conceitos se animam, então, se vivificam e se iluminam num magnífico incêndio de paixões.

Observemos, porem, sempre mais de perto, esta visão monística do universo. Se Deus, pois, aparece perfeito, absolutamente bom e justo, por que existem na sua obra essas sombras que são o mal e a dor e qual é a sua função? Como podem essas forças negativas funcionar afirmativamente, esses ímpetos destruidores fazer parte do mecanismo criador? A perfeição de Deus não importa em que Ele haja criado um universo já perfeito como é Ele próprio. Ele pode ter construído um universo perfectível, isto é, que evolui sempre mais para a Sua perfeição, um universo que, no tornar-se, é ascensão para esta, e que no entanto, nesse progressivo caminho de conquista, exprima uma perfeição de meios e de método. Isto corresponde à observação de realidade e explica o dualismo transcendência-imanência, bem-mal, Deus-Satanás, porque o universo é uma projeção de Deus para o polo oposto a Ele, do imóvel para o tornar-se, do absoluto para o relativo, do perfeito para o imperfeito. E aqui surge a grande pergunta: por que essa projeção? Eis o nó da questão. Deus era perfeito, completo em si, causa sem causas. E eis que Ele se lança na concatenação sem trégua da causa e efeito, no laborioso trabalho de um tornar-se evolutivo, lança-se na imperfeição para criar fora de si uma perfeição semelhante a Ele. Por que isto? Há aqui, verdadeiramente, uma ruptura em dois da unidade divina, pelo que Deus se projeta e vem a existir não mais somente na substância, mas também na forma; assim se encerra na limitação, submete-se ao esforço de uma ascensão, pulveriza-se no particular e se sujeita a atravessar os oceanos do mal e da dor. Que há no fundo desse caminho, no fim de todo o processo? Há um universo de seres que conquistaram a consciência, isto é, a verdadeira existência, retornando a Deus por quem foram gerados. A cisão, assim, no fim se anula e a unidade é reconstituída. Cisão, pois, transitória e puro meio, condição de uma unidade ova e mais ampla, na qual Deus terá realizado uma criação nova, de inumeráveis falanges de humanidade que n‘Ele reencontram a sua unificação.

A causa motora de tão imensa obra? O Amor. A criação é uma autodoação de Deus. Daqui a imanência necessária além da transcendência, que exprime por si só a divindade, não no ato de se dar. Mas este dar-se é expressão na forma, isto é, limitação, por isto, sacrifício. É Deus mesmo que, em primeiro lugar, por amor para com as suas criaturas, se cinde em sacrifício, dando-se a elas. Assim, o Um se rompe, se fragmenta no dualismo, para recompor-se depois em unidade, enriquecida, porém, em um grande amplexo em que Ele atraiu a si todas as criaturas. Eis em que consiste e a que tende essa criação contínua que é a evolução. Antes da criação, Deus era o todo e perfeito, mas lhe faltava a aplicação do amor. Ele estava sozinho. Para poder amar, Ele cria Suas criaturas, nelas se transfunde, animador, com elas trabalha para as livrar da forma, não as quer como autômatos, conquanto perfeitos, mas semelhantes a Ele, livres e conscientes, senhores do bem e do mal e, portanto, os assiste na longa experimentação que através do erro e da dor conduz a essa grande sabedoria, a única que pode tornar a criatura semelhante ao criador. Adão, primeiro homem, não podia possuí-la e errou. Possuí-la-á o último ser da última humanidade, que não pecará mais, porque terá compreendido e portanto estará livre do mal.

E eis que aparece a dor, sábio instrutor, instrumento de Deus, dor feita somente para ser superada na alegria, que é a essência de Deus. Desse modo dor e mal são progressivamente eliminados até serem todos reabsorvidos em Deus, que os quis como meios de Sua construção. Assim a criação é contínua, presume a constante presença da causa operante, é ato ininterrupto de um Deus sempre criador que, através dos contrastes necessários para uma conquista livre, fica infalível e alcança sempre os seus fins, que, conforme Sua natureza perfeita, são sempre para o bem. Eis o universo, ordem perfeita, não obstante a sua desordem transitória e a sua imperfeição de superfície, eis um Deus que se serve da falência no particular, para triunfar no conjunto, em uma obra de amor que termina com a criação progressiva de criaturas que o compensam do seu imenso sacrifício, retribuindo o amplexo no fim do caminho evolutivo. Eis a ordem e a lógica, conforme as quais me aparece esta visão, satisfazendo sem contradições tanto as leis da economia da natureza, quais as vemos em ato, quanto o instinto da alma que tudo quer harmonicamente resolvido, seja para a inteligência, seja para o coração. Eis o verdadeiro Deus, Pai e Amigo, sempre benéfico, perto de nós, o Pai anunciado por Cristo, o Deus do amor que dominará a nova era do espírito.

A medida que vamos observando esta visão, aparece-nos mais claro o conceito de Deus. Se no Seu aspecto transcendente Ele é separável, independente da criação, imensamente distante de nós, no seu aspecto imanente, Ele está fundido e presente na criação, imensamente perto de nós. Então se compreende como cada fragmento do criado possa refletir a estrutura do todo. É este repetir-se do universal esquema único nos infinitos esquemas menores, todos do mesmo tipo, que justifica o principio da analogia, que usamos. Podemos muito bem, pois, ver Deus refletido em todas as coisas. O absoluto se repete ao infinito, no relativo. Deus nos aparece como a atmosfera em que o universo está imerso, tudo nos fala d‘Ele, nos faz sentir a Sua presença. Mas não é só. A manifestação de Deus é progressiva, proporcionada ao grau de evolução alcançado. E a toda nova aproximação do ser no Seu conhecimento, Deus se manifesta sempre melhor, justo, perfeito. Assim se compreende o conceito de evolução, qual retomo do ser à  fonte que o gerou, qual lei de ascensão continua e fatal para esse divino centro que tudo atrai. Vemos fechar-se o circuito do movimento dualístico, antes centrífugo ou projeção da causa para a periferia ou forma, sua expressão, e depois na atual fase, centrípeto, de reabsorção na causa do centro-Deus, fase na qual a forma se adelgaça, ficando sempre mais visível o espírito animador. Eis o significado da ascensão moral, da elaboração e formação progressiva da consciência, da catarse, dos conceitos de dever e de virtude. Eis como, com a evolução, a forma deixa mais transparente a animadora presença de Deus.

Assim tudo se esclarece e se explica. É assim que Deus se torna mais logicamente compreensível, mais satisfatório o conceito que d‘Ele alcançamos; caem, assim, as contradições, tudo se torna de imperfeito, perfeito, embora fique a condição da imperfeição do nosso mundo atual. A nossa consciência nos diz que Deus não pode errar e nos desagradava a hipótese de que a realidade nos mostrasse que Ele houvesse errado. A nossa alma não pode deixar de sentir-se elevada e satisfeita por essa salvação da idéia de Deus, qual ela a sente, satisfeita de poder finalmente afirmar que, não obstante tudo, Deus e a sua obra são perfeitos. Ele jamais errou e agora não recorre absolutamente a retoques do seu plano para sanar faltas imprevistas que acusariam a sua ignorância, e no-lo mostrariam como um ser zangado e arrependido, embaraçado diante da sua criatura que não obedeceu a Ele. O nosso universo não é feito com as escórias de uma catástrofe não prevista. Foi desejado, assim como ele é, porque assim ele é perfeito; não no sentido que a perfeição esteja já atingida, mas no sentido que Deus quis um universo que atingisse pouco a pouco, por evolução, a sua perfeição. Neste sentido, como foi desejado, tudo é perfeito, isto é, no sentido não de uma criação completa, no instante da origem, e naquele momento tivesse já alcançado os seus escopos, a qual verificamos que não é, mas no sentido de uma criação que os vai progressivamente atingindo, através daquela elaboração, vir-a-ser inegável de que é feita a vida do ser e que compenetradamente é a substância do existir. Daqui a necessidade também do Deus imanente, qual inteligência diretriz deste tornar-se. É imensamente maior do que a anterior esta idéia do Deus perenemente ativo e presente, é mais justa, melhor, mais humana, mais confortante. A vida não é mais alguma coisa de negativo, uma punição, um derivado de erro, mas é ato positivo de conquista, guiada por leis perfeitas. Deus está verdadeiramente conosco, é nosso amigo, quer a nossa felicidade e de tudo faz para no-la dar. Mas quer também que aprendamos, procurando-a, fatalmente destinados, no fim, a encontrá-la. Deus assim vive conosco, em amor, o nosso duro esforço de ascensão. Que mais evidente exemplo disto do que a descida de Cristo à Terra? Assim Deus se manifesta sempre mais, em todo nosso progredir, estimulando-nos a superar as deficiências; atraindo-nos, ajudando-nos, mas não arrastando-nos gratuitamente, a fim de que, depois, a vitória seja justamente nossa. A sua sabedoria atinge assim dois escopos que parecem opostos: a criatura, mesmo guiada e ajudada por quem sabe mais do que ela, tem pleno direito à sua felicidade, porque a ganhou com a sua fadiga. O Criador tem direito ao amor daquela criatura porque lhe esteve sempre vizinho, a socorreu, deu-lhe o máximo consentido pela necessidade de não a tornar preguiçosa, tem sofrido com ela. Somente assim se poderia alcançar a criação de um ser consciente e perfeito, mesmo através de uma cansativa ascensão, com o direito ao eterno amor de Deus. Se, pois, a lei suprema parece marcar-nos duramente hoje, não nos rouba em nada, mas nos compensará com tantas alegrias, que então todos poderão compreender a verdade do ditado de São Francisco: "Tanto é o bem que espero, que toda pena me é muito amada".

Não posso deixar de me inebriar com a beleza desta visão resplandecente de justiça e de bondade. Que alegria o poder restituir a Deus os seus atributos de perfeição e de amor, que paz existe no sentir a alegria além da dor, o bem além do mal, uma ordem perfeita quando superado o caos humano! Que sabedoria, uma imperfeição, meio de perfeição, uma dissonância feita para reordenar-se em harmonia! A dura luta pela vida não é senão uma elaboração para conduzir à fraternidade. O esforço criador de Deus está sempre presente e faz parte do sistema. Deus é perfeito. O Seu plano é perfeito; é somente a sua manifestação que parece imperfeita porque, partindo do imperfeito, tende ao perfeito, e partindo do caos, chegará à ordem. O caos originário não foi erro, mas foi desejado como ponto de início. A obra da criação consiste na progressiva elaboração da desordem, na reordenação do caos na ordem. E este processo de harmonização gradual que forma a sinfonia da vida, a conquista, através da prova, da felicidade que constitui o seu escopo. O Deus transcendente, não obstante Ele operar como imanente em meio às suas criaturas, não cessa de resplandecer no centro, tudo atraindo ao seu seio. A sua imanência consiste justamente nessa irradiação que tudo penetra, satura e arrasta para Ele. O sol, como sistema analógico (o esquema é sempre único em tudo) arde no centro do seu cortejo planetário, mas está ainda em todo ponto, aonde chega irradiando, onde pára e fecunda. Transcendência e imanência não são, pois, senão duas posições, senão as duas metades de um circuito de uma mesma unidade.

Então todas as formas de existência tendem para Deus e todas devem, cedo ou tarde, sublimar-se para chegar a Ele, para restituir-lhe o amor que as criou, encontrar n‘Ele a salvação final. A vida não pode ter outros escopos. De outro modo ela perde todo o sentido e valor, é caos e mal, e o criador da dor sem salvação, torna-se maldade. Uma infinita sabedoria, que tem presciência do erro da criatura e conhece a possibilidade de terríveis conseqüências, se é boa como deve ser, não a pode haver criado desta forma. Criando, Deus não pode haver desejado senão uma coisa: a salvação da criatura, salvação final, não importa se para a alcançar são necessárias gravíssimas provas justamente proporcionais às insensibilidades de cada um, se são necessárias penas que se devam sentir também como eternas e sem ter jamais esperança, se isto é necessário para abalar e fazer subir, enfim, para chegar a Deus. Na realidade Ele está mais ansioso de nos dar liberdade e felicidade que nós de as alcançarmos Mas seria muito perigoso para o homem que Deus desse liberdade a um ser não ainda sábio e consciente, nem seria justo dar a felicidade senão como merecido prêmio a um trabalho ultimado. Como tudo pode ser nosso se não for ganho? Tudo isto negaria as qualidades de bondade e justiça de Deus, que Lhe sentimos necessárias. O dar gratuito não é justo em benefício de quem não pode dele usufruir. O homem deve colaborar. É  guiado e sustentado por Deus, mas o esforço deve ser seu. Eis por que, como em outra parte havemos examinado, a Divina Providência não socorre senão ao extremo, mas nos salva sempre. Trata-se, não de uma redenção gratuita, mas de uma colaboração entre Deus e o homem, na qual cada um dos dois termos complementares põe a sua parte. Mais do que os resultados, são levados em conta o esforço e a boa vontade. Logo que tenha sido feito todo o possível, acontece milagrosamente a realização. Deus dá todos os meios, mas nós devemos trabalhar e aprender com esses instrumentos. Deus resplende sempre sobre nós como o sol irradia sem descanso. Cabe-nos saber tomar o mais que possamos deste sol. Quanto mais aprendemos a usar a liberdade, tanto mais nos é ela concedida. Mas sempre somos, em proporção, responsáveis por ela, a qual, se nos vergasta ou premia, se se oculta de nós ou se a nós se mostra, será sempre para nos atrair a Ele, para nos fazer alcançar, por Seu intermédio, a nossa salvação. A lei soberana que rege o universo, não obstante as aparências contrárias e as condições relativas e transitórias, é o amor. O dualismo Deus-Satanás não é separação senão no tempo, com fins criadores, desejada para o bem, por um só senhor de tudo, que não admite inimigos senão como servos, destinada a ser sanada no fim. De outro modo a obra de Deus seria, ou maldosa, ou falida.