(Santa Maria dos Anjos - Assis, 14 de março de 1948).


Precisemos agora melhor as nossas observações localizando-as em um caso particular24 . Quando acontece um fenômeno que sabe a milagroso, todos acorrem para ver e julgar. Um caso fora do comum, que parece situado alem dos limites ordinários das leis da vida, nos chama a atenção para o sobrenatural. Frente ao extraordinário, somos levados a procurar a solução interpretativa que mais corresponde a nossa própria forma mental, aos instintos e necessidades,  às vezes também aos interesses, não só individuais como coletivos. Nesta interpretação influem, pois, não só a natureza de cada tipo biológico, mas também a da raça e dos eventos de um particular momento histórico, os quais podem fazer pressa o sobre este juízo. Este é, por conseguinte, a resultante também de fatores psicológicos interiores.

Mas eis que ao lado do juízo dos indivíduos e da coletividade, dado pela corrente formada pela maioria existe também um outro juízo: o da ciência e o da autoridade. Há indivíduos diferenciados, que observam o fenômeno munidos de cultura, de métodos racionais, de instrumentos científicos e também de autoridade espiritual. Tal observador não é instintivo ou fanático. Ele procura, por todos os meios de que dispõe, ser objetivo, querendo ser racional e prudente. É lógico, pois, que o indivíduo e a multidão apelem, em última analise, para a ciência e a autoridade. Mas isto não impede que eles o influenciem, fazendo pressão sobre estes na direção para que pende a psicologia coletiva do momento, a qual arrasta mais ou menos, a "todos".

Do lado oposto dessa tríplice ordem de espectadores, isto é, indivíduo, multidão e ciência-autoridade, está o fenômeno, seja ele a aparição de Lourdes, de Fátima, ou outra qualquer. No caso presente, trata-se da enorme mole da estátua de Santa Maria dos Anjos. Move-se ou não se move? Para muitos ela se move. Eis o que multidões vão ver para julgar, deduzir, comover-se, crer ou não, cada qual segundo o seu temperamento. Alguns realmente não vêem. Por que eles não vêem? Um movimento real da matéria, situado na matéria, todos vêem se não forem cegos. Mas quem tem olhos para ver, vê segundo precisas leis óticas. Parece, pois, que aqui deva intervir outro fato mais sutil, além do das leis óticas. Qual é ele?

Já coligimos os vários elementos do fenômeno. Se este de um lado respeita á matéria, do outro lado concerne a cada uma e a todas conjuntamente, com recíproca influência, das três unidades psíquicas, que se encontram no extremo oposto do próprio fenômeno. Este está assim situado em parte no campo das leis físicas e dinâmicas do mundo exterior ao homem, em parte no campo das leis psíquicas e espirituais do mundo interior do mesmo homem. Daí uma conseqüência importante. Quem observa apenas o lado físico, ignorando o psicológico, não vê mais do que a metade do fenômeno. E nada vê, quando o fenômeno físico, segundo o exame objetivo, é inexistente.
   
Façamos a aplicação. Diz-se que foram colocados aparelhos sismográficos na estátua e que estes nada registraram. Esta é a primeira fase, a mais elementar e material da observação. A Igreja, em tais fenômenos de sua jurisdição, de acordo com a lógica, não recorre à hipótese do assim chamado sobrenatural e miraculoso, senão depois de excluída toda e qualquer explicação que pode ser dada pelas leis normais da física, de nós conhecidas. A precedência cabe assim à ciência e ao seu materialismo. Mas, se por tal método de indagação nada se encontra nesta primeira e mais baixa ordem de fenômenos então é evidente que, se não quisermos permanecer aéreos, impõe-se que abandonemos uma sabedoria da matéria que nada mais pode nos dar, apelando para a ciência do espírito, capaz de, com outros métodos, permitir-nos um juízo sobre uma outra ordem de fenômenos. A primeira observou, por todos os seus meios, se existe ou não uma oscilação física e se é possível dar uma explicação do fenômeno, segundo as suas fórmulas. Foram praticados controles de caráter elétrico e ótico, mas nem os eletroscópios, nem os galvanômetros, nem a imagem fotográfica nada revelaram. Excluídas as causas físicas, elétricas, óticas, refração etc., foram excluídas também as causas radiantes. Todo controle no sentido de descobrir uma causa física ou dinâmica teve resultado negativo. Logo, na realidade objetiva, situada no mundo das leis cientificamente conhecidas, a estátua não se move. Para os aparelhos de registro, desprovidos do lado espiritual, que está, na alma humana, o fenômeno não existe. Chegados a este ponto, o fenômeno foge a ciência atual, que deve retirar-se declarando a própria incompetência.

Estamos agora aqui em um campo inteiramente diverso. A ilusão ótica também está excluída, tratando-se de um fenômeno coletivo e objetivo, de movimentos parciais e intermitentes, visíveis de qualquer ponto, próximo ou distante, independentemente de fatores atmosféricos. Entramos então no campo das ciências psicológicas. Mas estas também não conhecem a técnica de funcionamento da personalidade humana. Elas permanecem no campo nervoso e central, com uma psicologia superficial, que não atinge as profundezas do espírito. Os termos psicose, alucinação etc., são mais palavras do que conceitos, mais complicações do que explicações. Chegados a este ponto, em que justamente se deveria começar a explicação científica do caso, como acima dizíamos, não se enxerga mais nada e se penetra em cheio no sobrenatural e miraculoso, no mistério inexplicável. O fenômeno, desta maneira, nos foge para o incognoscível, autorizando, desta maneira, os incréus a negá-lo. Ora, Deus nos deu a mente para usá-la, para raciocinar e não para renunciá-la. E pela mente a conclusão do inexplicável não é conclusão, mas fracasso. Não porque se queira contrariar o ato de fé e de sentimento com o qual as massas, por instinto e intuição, tudo resolvem de improviso, para não cair no perigo oposto, ao da incredulidade, que é o do fanatismo, criando por fantasia fatos e milagres. Não queremos, de modo nenhum, renunciar  à fé. Mas queremos, não sendo nem ingênuos nem fanáticos, ser verdadeiros crentes, isto é, acreditar em plena consciência e com a solidez da razão clara.

Se o fenômeno indubitavelmente existe e se a sua objetiva realidade não está, como demonstram os controles, situada na estátua, essa realidade deve estar em alguma outra parte. Ora, o milagre não é menor, se a sua sede for transferida de um movimento físico, espiritualmente sem nenhum valor, a um movimento de almas. E aqui é o caso de crer que, se os aparelhos sismográficos tivessem sido postos na alma das multidões, ao invés de na estátua, eles teriam registrado oscilações normais. Mas a ciência não possui sismógrafos capazes de registrar tais movimentos Deve-se crer mesmo que, se as máquinas fotográficas tivessem podido gravar a imagem psicológica espiritual da estátua na alma dos observadores, teriam registrado imagens bem diversas das estáticas. Mas tais máquinas fotográficas não existem. É certo que se o fenômeno não é solúvel no plano físico, deve sê-lo no espiritual. É certo também que existem realidades interiores, sólidas e objetivas, poderosas e resistentes, tanto quanto as exteriores, se não mais Não é mais fácil mudar a forma de uma montanha que a de um tipo de personalidade?

Com tudo isto, exauridas todas as hipóteses científicas, a realidade objetiva do fenômeno permanece e se apoia em fatos bem sólidos quanto os da realidade exterior, que parecem negá-lo. Deixemos a matéria entregue às suas leis. O espírito não tem precisão dela, a não ser, quando muito, como ponto de referência para fixar a atenção e as idéias. Mas a causa, o motor, não está na matéria, mas no espírito. Em um artigo não é possível expor mais do que as conclusões. Neste caso o movimento não é de caráter físico, mas está repleto de sentimento e de significação moral, qualidades ignoradas na matéria.

Observa-se na estátua um arquejar doloroso, as mãos se estendendo como por amor, enquanto a coroa e toda a matéria circunstante permanecem imóveis e indiferentes. O fenômeno, pois, projetou-se também na matéria, está e tem origem nas almas, mesmo que estas tenham a necessidade de projetá-lo em uma realidade exterior, onde pode ser reconhecido e encontrado. Toda a técnica das imagens corresponde a esta lei. O fenômeno não é menos extraordinário por isso Ao contrário, justamente por estar situado nas almas e revestir-se de um caráter espiritual, representa a via lógica e natural da comunicação do. homem com as forças superiores da divindade. O fenômeno se torna realmente miraculoso, quando pensamos que é tão poderoso este contato das massas com Deus, e de tal ordem o movimento espiritual, que invade mesmo a matéria e a arrasta consigo. Isto é o que confere a esta, no fenômeno, a parte de efeito, e não como se acreditou, a de causa.

As multidões acorrem, vêem, choram, convertem-se. A matéria da estátua, de per si muda e inerte, modela-se assim em uma forma de pensar e exprime uma idéia superior de santidade, de bondade e de fé.Esta idéia, que é viva nas almas, torna viva a estátua inerte. Esta forma de vida fê-la mover-se, por vias interiores que podem mesmo chegar a atingir a solidez das leis físicas. Fez também com que ela fale, e a alma docemente ouve. Mas não é a estátua que fala. É a voz de Deus que se fez ouvir pelas almas, por vias interiores, através de um canal sensório aparente, necessário para firmeza e atenção dos espíritos habituados a perceber quase que só a do exterior. Então a alma das multidões ouve a Mãe de Cristo dizer-lhe: "Na hora tremenda que te aflige e que tu no teu instinto sentes aproximar-se pavorosa, Eu aqui estou para te proteger com o meu amor. Vem a mim. Crê. Vem Eu te salvarei". Isto corresponde também aos profundos instintos da vida, que nas horas apocalípticas recorre às idéias mães da estirpe e às forcas biológicas salvadoras, que não são a do homem conquistador-destruidor, mas as conservadoras da mulher-mãe.

Desta maneira se iniciou o colóquio entre Deus e as multidões. Os dois interlocutores se falam e se aproximam cada vez mais. É a hora histórica tremenda, que aguça nas massas a sensibilidade para o divino. A tragédia está nas almas. O temor da aproximação dos sem Deus provoca, por natural lei biológica de reação, uma automática frente de resistência dos homens que estão ou estarão com Deus. Assim, pois, de acordo com o que se é vê-se ou não se vê. Cada um de conformidade com a própria alma. E é lógico, porque esta não é uma visão dos olhos, mas uma visão da alma. Só assim tudo se explica: a imobilidade física da estátua, o seu movimento espiritual, invisível para muitos, porque é inexistente em sua alma. Explica-se, desta maneira, como tais fenômenos, antes tão raros, agora se verificam repetidamente, em momentos tão calamitosos. Deixemos, pois, à matéria o que da matéria é e demos ao espírito o que ao espírito pertence. E é no espírito que devemos venerar o milagre de Deus, que em momentos tão excepcionais se faz sentir tangivelnente presente.

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24 Este capítulo é extraído de um artigo do mesmo autor, publicado em "La Nazione" de Florença, em 4 de agosto de 1948. (N. do A.)