"Et multum laboravi quarens Te extrame, et Tu habitas in me”. (E muito me fatiguei, procurando-Te fora de mim, quando te encontras em mim.)

(S.AGOSTINHO)

Fundimos em um estreito monismo, em um só sistema, o Todo, desde o seu polo espírito, até o polo oposto, matéria. Terra e céu assim se tocam e se fundem em um único universo, em que o espiritual e o material não passam de momentos ou posições da mesma Substância. Podemos agora dizer ao homem imerso nas trevas: desperta e sentirás que Deus está a teu lado, está dentro de ti, é a tua vida, a vida de tudo. Esta é a grande descoberta, que desloca o eixo do ser e que a ciência nem de leve sabe conceber: descobrir a própria imortalidade, o divino que está em nós e com ele aprender a viver eternamente; despertar a própria consciência adormecida, para compreender que somos filhos de Deus, imensamente amados por Ele; capacitar-se de que a causa de todos os nossos sofrimentos não reside na defeituosa construção do sistema, mas em nossa incompreensão da sua perfeita construção; convencer-se de que o tremendo destino de dor que nos aflige depende sobretudo de nossa ignorância e que ele pode transmudar-se em um destino de glória, somente se soubermos superar os nossos baixos instintos e evadir-nos de nossa natureza animal inferior; entender que a vida não pode estagnar, sem avançar, a guerra não terá fim, enquanto o homem não empreender formas de luta e seleção mais evoluídas; compreender que Satanás, o qual gostamos de seguir porque nos engoda, é antes inimigo de nossa felicidade, e que Deus, o Qual relutamos em acompanhar, porque primeiro exige de nós o justo trabalho para depois nos dar a alegria, é o nosso primeiro amigo, que outra coisa não quer e procura, senão cumular-nos de felicidade.

Até aqui temos procurado explicar, com o máximo de clareza, o fim do mal: a autodestruição. As teorias não são nossas, mas as lemos no livro da vida e o Evangelho (Lucas, 11: 17-18) no-las confirma, quando nos diz: "Todo reino dividido contra si mesmo será destruído, e as casas cairão umas sobre as outras. Se, pois, Satanás está dividido contra si mesmo, como subsistirá o seu reino?" (. . . .). O mal, portanto, como provém do anti-Sistema, com força negativa, está condenado ao aniquilamento pela própria natureza e qualidade. O espírito de separatismo que anima Satanás o desagregará também pela mesma lei fatal das coisas. E com Satanás se extinguirão a dor e a morte, com a vitória da vida, vida cujo centro se situa no espírito, centelha pela qual Deus se manifesta em tudo o que existe. Não deve a compreensão de tudo isso encher-nos de alegria, de um otimismo fecundo em meio a qualquer dor? Esta é a psicologia da superação que vai além do miserável contingente e nos dá a paz das coisas eternas e a segurança do amanhã.

Tudo isto está largamente exposto no Evangelho e foi por nós tentado racional e cientificamente demonstrar nos esquemas expostos, a fim de conseguir tornar compreensível esta boa nova, já proclamada por Cristo e que aqui repetimos identicamente, porque ela é a maior alegria da alma. Deus está conosco. Quando uma espiga de trigo se multiplica em centenas de espigas e as messes aluíram os campos para dar-nos o pão, Deus está conosco. Quando os rebanhos se multiplicam e os animais, que nos fornecem alimento, se desenvolvem e tudo na terra germina e cresce fecundamente, Deus está conosco. Quando nossos filhos se tornam grandes, Deus está conosco. Deus é esse irrefreável impulso de vida, mesmo que ele possa ser feroz nos graus inferiores, porque os seres não sabem ainda aprender lições mais refinadas. Avançamos, contudo, no caminho ascensional. Já muitos homens têm terror desta vida inferior, em que muitos se sentem bem. É fatal que a evolução avance e produza um novo e mais civilizado tipo biológico humano. Ele talvez seja, como hoje, dado apenas por um em um milhão. Amanhã estará na proporção de um por mil, depois será um em cem, e assim por diante, até que o homem novo seja maioria e se afirme. A natureza procede por graus e antes de realizar o novo em grandes séries, experimenta-lhe os exemplares em poucos casos, explorando o terreno.

Quando os judeus quiseram lapidar Cristo - narra João - (cap. 10:33-34) a acusação era de blasfêmia: (. . .) "lapidamos-te por blasfêmia, porque sendo tu homem, fazes-te Deus. Jesus lhes replicou: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: Vós sois Deuses?" Quando descobriremos a grandeza desta nossa natureza divina, que se filia a Deus? Quando os místicos falam de união, provam que atingiram, ou pelo menos se avizinharam dela. No íntimo de nosso ser, no espírito, há uma profundidade de infinito, para o qual a evolução progressivamente nos desperta. E neste infinito que O nosso pequeno “eu sou” funde-se com: o “Eu sou” do Todo. Quando descobriremos que somos Deuses, que somos, mercê de nossa centelha originária, hoje decaída nas trevas, formados da mesma Substância de que Deus é formado? Como poderia deixar de sê-lo um filho do Pai? E que mais, além disto, poderia significar a imanência?

O Evangelho é uma contínua luta para fazer-se compreender pelos seres inferiores. E os judeus pensavam, como tantos outros ainda hoje, em um Deus déspota, que é obedecido porque pode mais do que nós e que nos faz pagar a desobediência, um Deus de uma outra raça que nos domina, nada tendo em comum conosco. Há, contudo, um denominador comum, um fundo comum, ainda que muitíssimo remoto entre Deus Pai, Cristo e o homem - é esta natureza. divina. Somente que, no ser humano essa íntima Substância se aprofundou tanto na inconsciência, após a queda, que o ser dela nada mais sabe e não consegue imaginar Deus, seu pai. e amoroso amigo, senão antropomorficamente, tal feroz senhor, qual ele seria, se porventura viesse a tornar-se Deus. Não é possível ao ser formar de Deus uma imagem superior a que o grau de compreensão atingido pela sua evolução pode permitir-lhe. Assim, esta não é a psicologia dos judeus apenas, mas do tipo humano involuído, que hoje impera.

Quando imergimos o olhar na essência das coisas, vemos revelar-se-nos um mundo inteiramente diverso do que comumente nos aparece em superfície são esses novos continentes do espírito que estamos descobrindo nestes volumes, traduzindo o que tão natural e evidente surge ao olho da intuição, em linguagem racional e científica, reduzindo tudo à forma mental corrente, a fim de tornar-nos compreensíveis, mesmo por aqueles que não sabem enxergar senão com os olhos da razão. Encontramo-nos diante das mesmas dificuldades que na Terra encontrou o Evangelho, na mesma luta por se fazer compreendido. O atual homem comum está tão habituado a conceber qualquer manifestação do ser somente na sua extrema forma exterior e sensória, está tão convencido de que esta é a realidade e toda a realidade, que quando deseja orar a Deus, projeta Dele uma imagem material, a que ele poderia formar de Deus, e a adora. Ela não é mentira consciente. É uma tradução da linguagem espiritual, que lhe é incompreensível, em uma linguagem concreta, a ele acessível. Assim pode ver e tocar as imagens de Deus. Esta é uma ingênua necessidade de involuídos, que não conseguem pensar e orar a não ser com o corpo, e com os sentidos. Mas certamente, para quem sente Deus em Sua universal presença e potência, isto pode parecer uma profanação, ainda quando, nos casos mais felizes, constitua um lampejo capaz de reavivar a centelha da arte.

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Assim foi que da visão dos grandes problemas cósmicos, chegamos à do problema espiritual  do homem nas relações da sua alma com Deus. Agora podemos formular uma nova e solene pergunta: onde encontrar Deus? E se é verdade que Deus está no íntimo do ser, então por que não buscá-Lo dentro de nós e não fora? E como se pode alcançar Deus por essa via? Tratemos agora de resolver o problema da procura de Deus, um dos mais árduos e importantes para o ser. Como subirmos ao Pai que nos gerou e pormo-nos em comunicação com Ele?

Para bem compreender, reportemo-nos às primeiras origens, conceito que depois desenvolveremos (Cap. XVII: Imanência e Transcendência).

Deus, antes de realizar o ato criador, era o Uno-Todo, Que deveria ainda tudo tirar de Si. Sobrevindo a criação dos espíritos, o sistema desmorona, como já vimos, e com ele, de certa forma, desmorona também Deus, Que, sendo o seu íntimo animador, não podia e, por Amor, não devia separar-se dele, houvesse o que houvesse. Por isso nasceu de Deus o aspecto de imanência, que o torna presente no anti-Sistema ou sistema desmoronado, como igualmente vimos. Mas em Seu aspecto transcendente, Ele está além de qualquer criação Sua e dos fatos a ela referentes. E a sua divisão nestes dois aspectos representa juntamente a divisão do Todo no dualismo, que será depois a característica desse Todo, cindido daí por diante em sistema e anti-Sistema, entre Deus e Satanás que, então, nasceu como tal, o antagonista. O partir do pão na Eucaristia, já vimos que significa exatamente a divisão do Uno no dualismo, prelúdio da imanência, pela qual o princípio fundamental e originário do Amor não pode subsistir a não ser como sacrifício. Eis a lógica concatenação que liga a divisão do pão à paixão de Cristo, cuja descida à Terra, em corpo humano, é um caso e prova fulgurante da imanência de Deus no anti-Sistema, em que nos encontramos. Sem imanência, não poderia existir a paixão e redenção maior que Deus realiza em todo o nosso universo, como já expusemos. E a Eucaristia, para o caso particular de nossa humanidade e do Cristo que a preside, representa justamente esta imanência Isto quer dizer que Cristo não quis descer à Terra por uns poucos anos apenas, mas aí quis ficar permanentemente presente em espírito, na Eucaristia, que expressa a imanência de Deus em nossa humanidade, com finalidade regeneradora (redenção).

E esta, que é a via da descida, representa também o canal da subida; o fio de comunicação com a divindade. Que significa imanência, senão que Deus permaneceu no fundo de nosso ser como espírito, a animá-lo e fazê-lo evolver, reconduzindo-o a Ele? O espírito, como já afirmamos, é o fundo comum entre Deus Pai, Cristo e o homem e só através desse fundo comum é possível a comunicação. Isto confirma ainda que Deus realmente não pode ser alcançado senão quando descemos conscientes à profundeza de nosso espírito. Veremos a seguir o que significa - conscientes.

 Ouçamos as confirmações que nos enviam as grandes almas, as que souberam percorrer esse caminho de retorno. Diz-nos Agostinho: “Est Deus superior summo, interior intimo meo” . E acrescenta, falando de Deus: “Et multum laboravi, quaerens Te extra me, et Tu habitas in me”.  Agostinho testemunha, portanto, que Deus está na intimidade do ser e que não deve ser procurado fora, mas dentro de nós. Paulo afirma a respeito de Deus: "In ipso vivimus, movemur et sumus" (. . .) - S. Paulo em Atenas -Atos, 17: 28.

A Beata Ângela de Foligno ouviu Cristo dizer-lhe: "Eu sou mais íntimo de tua alma do que ela de ti mesma". Os místicos cristãos, experimentados em semelhantes indagações; dizem que: "Deus é a nossa superessência”, isto é, algo de tão íntimo e profundo a ponto de parecer a nossa própria sublimação.

Eis a palavra que nos traça a via de retorno: sublimação, isto é, purificação e elevação de nossa personalidade. Esta é a estrada que reconduz o ser ao ponto de partida, lá onde, após determinados períodos, a ascensão atingirá a meta que é o ponto de chegada. Então o Deus imanente, que por Amor se mostra prazerosamente no sacrifício, lado a lado com a criatura, com ela carregando a cruz, terá refeito todo o caminho da descida. E assim o ciclo será completado e o Deus, do aspecto imanente, terá alcançado o Deus do aspecto transcendente, o imperfeito ter-se-á tornado perfeito, poderá fundir-se nele, o Uno ter-se-á reconstituído e a cisão do dualismo estará sanada.

É evidente que hoje o Todo está dividido em duas partes: o perfeito, que ficou como recordação no fundo do "eu" qual anelo e instinto fundamental dele; e o imperfeito, que evolve para a sua perfeição. Ora, se o imperfeito avança sempre para o perfeito, na progressão para o infinito, ele deverá reduzir as distâncias a quantidades cada vez mais infinitesimais, até sobrepor-se e coincidir com o perfeito. Isto porque, se Deus de um certo modo desmoronou no Seu aspecto imanente, Ele permaneceu perfeito, sem desmoronar, em seu aspecto transcendente. Este é o ponto de chegada que aguarda o imperfeito. Este é o eixo íntegro de todo o sistema, aquele que deve salvá-lo, mesmo no seu momento negativo de anti-Sistema.

Como se vê, o problema da ascensão espiritual ou sublimação tem suas raízes no cosmo e não é solúvel a não ser em função do grande problema do ser. Há, pois, um grande fio condutor para a ascensão dado pela imanência de Deus, que deriva da Sua transcendência, o imperfeito que deriva do perfeito. Ora, este último termo do ciclo, no qual o dualismo é sanado e as duas metades do Uno se reúnem, está no fundo de nós mesmos e é nesta direção que devemos caminhar se quisermos atingi-lo. E como se deve proceder para caminhar em direção à profundeza de nós mesmos? Isto significa o que antes já havíamos dito em outras palavras, ou seja, "descer conscientes na profundeza de nosso espírito". Palavras igualmente sibilinas, que não sabemos como traduzir no mundo da ilusão a que chamamos realidade! Trata-se de passar de uma linguagem verdadeira, onde tudo se faz com o espírito - única realidade - para uma linguagem falsa, onde tudo se faz com o corpo e com os seus sentidos, construtores da ilusão. O leitor, todavia, vê como estamos assediando e envolvendo a fortaleza em que o problema se entrincheira, até poder finalmente penetrar nela. Primeiro o encaramos do alto das posições máximas do ser. Abordamo-lo agora de baixo, partindo de nosso corpo físico.

A primeira qualidade do existir, que chamamos de vida, é o sentir. A insensibilidade é característica da morte, ausência do espírito. A sensibilidade é atributo do espírito, que é o existir. Espírito significa o que é. Onde falta o espírito, não há existência, porque Deus é espírito, isto é, a plenitude do ser. A sensibilidade, ou seja, a aptidão de perceber, como nós a possuímos, é qualidade exclusiva da alma. Uma vez esta destacada do corpo, este não mais sente, ainda que os seus órgãos estejam intactos. O místico, arrebatado em êxtase, não percebe mais através dos sentidos, porque a alma está ausente deles. Quando estamos distraídos, a mensagem sensória chega regularmente à alma, mas esta não a registrou e, assim, vendo, não enxergamos, escutando, não ouvimos. Sabemos que os nossos vários órgãos sensoriais nada mais são do que aparelhos de captação e transmissão de ondas, não mais. Isto implica que existe um ponto de chegada da transmissão a que estão ligados esses aparelhos. O sistema central (cerebral) para o qual converge o periférico, é apenas um órgão de seleção e coordenação, ainda situado na dimensão espacial, enquanto o “eu” possui a faculdade de juízo e de síntese, próprias de outras dimensões, a que não pertencem nem o sistema central, nem o periférico. Trata-se de um “eu” princípio unitário de todo o organismo e que, como tal, permanece inalterável, não obstante o crescimento e envelhecimento deste, que está sujeito a um contínuo transformismo. Nesse princípio está o abstrato, o supersensório, algo de qualitativamente diverso da vibração transmitida, qualquer coisa que pensa, quer e reage depois, por meio de outros órgãos. Eis o espírito, que se une a Deus. Ele põe-se em comunicação com o mundo exterior por intermédio dos órgãos do corpo, os quais lhe transmitem sinais que ele interpreta e que lhe permitem registrar uma limitada gama de vibrações (som, luz, calor), necessárias à sua vida terrena, além das quais ele nada percebe do mundo exterior. O resto do universo terá também ele a sua sensibilidade, pois que é igualmente animado de vida, isto é, de espírito, de Deus imanente. Mas qual seja ela, não o sabemos. Não podemos saber se a matéria, quem sabe de que maneira, sente a sua estrutura atômica; se um cristal percebe a sua vibração molecular; a célula, o seu metabolismo; uma planta, o mundo exterior. Não podemos penetrar nessas formas do ser tão distanciadas de nós, semelhantes e aproximadas, apenas, de nossa vida biológica.

Ora, a evolução é uma espiritualização, isto é, um despertar para a vida do espírito, que é interior; é um aguçamento, uma precisão, um aperfeiçoamento da sensibilização. Isto é caminhar para a vida, sentindo que se vive cada vez mais intensamente. Significa uma acentuação da vida, isto é, uma revelação crescente do espírito. São qualidades que não podem nascer do nada, mas que constituem apenas um despertar consciente do que estava adormentado no inconsciente, qualidades que representam um progressivo revelar-se de capacidade sensitiva, que forma a divina essência do espírito, o qual, por esta via do despertar, se põe em união com Deus. Certamente, entendemos aqui sensibilização no sentido lato, não só sensório, dado que pode receber novas mensagens do exterior, mas também espiritual e, sobretudo, moral, pela qual se impõem normas de vida cada vez mais aderentes à Lei de Deus.

É por intermédio deste processo que conseguimos sentir em nós, e nas coisas, a presença de Deus. Compreendida de maneiras extremamente diversas no contingente, esta é a essência e o último significado da evolução: despertar em nós o Deus imanente, oculto na profundeza do espírito; tornar de novo consciente e vivido aquilo que, havendo-se invertido pela queda, tornara-se inconsciente e morto. Todo o trabalho da vida, o sucesso ou insucesso, a alegria ou a dor, através de infinitas provas, tudo se reduz a isto. Chama-se catarse ou sublimação, sensibilização sensória, psíquica ou moral, maceração ou maturação evolutiva, superação da treva ou da ignorância pela luz ou conhecimento - trata-se sempre do mesmo fenômeno de infinitas formas. A hierarquia dos seres é dada pelo grau deste despertar, pois ele que marca o seu valor, representado pela capacidade conseguida de vibrar, é dada pelo grau de consciência alcançado, que os avizinha mais ou menos de Deus.

As almas vão, assim, lentamente despertando, compelidas pela Lei, que expressa a imanência de Deus entre nós. Os involuídos não passam de pobres adormecidos.  Entretanto, Deus está tão próximo, que realmente é o "interior intimo meo"! Como fazer, então, compreender isto a seres que O sentem, ao invés, tão distante, chegando mesmo ao ateísmo? Em que consiste essa proximidade e distância? A verdade é que esta sensação possui um sentido interiormente espiritual e não espacial. Não é em quilômetros, como na Terra, ou em anos - luz, como para as estrelas, que se podem medir essas distâncias. O espírito não vive na dimensão espaço, mesmo que venha a manifestar-se nele.

Para compreender é preciso reportar-se à natureza do espírito, que não é matéria espacial, mas um imponderável, definível, por conseguinte, por outras mensurações. A presença de Deus no universo é dada pelo estado cinético, que vimos ser a nova posição que Deus assume do absoluto imóvel, projetando-se na gênese. A vida do universo se manifesta como estado mais ou menos complexo e evoluído, mas sempre com tal íntima natureza. A vida do espírito é representada, então, por um estado vibratório. E a vibração, pois, mais ou menos complexa e evoluída, é também a medida que o define. Ora, a proximidade ou distância entre uma alma e Deus é dada pelo grau de afinidade de vibração atingido por ela em relação a Ele. Em outros termos, a vizinhança é uma sintonização, uma vibração do mesmo diapasão, que, para os místicos, termina na unificação. Ora, o involuído não vibra de modo algum com a vibração do divino, isto é, não está fundido na Lei com toda a alma e, se vibrar, vibra ignorando Deus, frequentemente contra Deus. Eis no que consiste a imensa distância.

Daí os místicos sentirem a sua personalidade desfazer-se em Deus, no Qual se anulam como egocentrismo separado, porque vêm a assumir, cada vez mais, a vibração do Centro. E assim, quanto maior o progresso neste sentido, tanto mais difícil se torna distinguir-se como "eu", mas em compensação o "eu" se sente viver mais como Deus, isto é, como vastidão, potência e unidade.  Por isso Paulo pôde dizer: "Não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim "20. E assim que a divindade pode despertar em nós. Eis os resultados da evolução. E quanto mais ela avança, tanto mais o egocentrismo separatista do "eu", filho da fragmentação do Uno, se atenua, irmanando-se em unidades coletivas cada vez maiores, e tanto mais se reconstitui a grande harmonia unitária do sistema, rompida na queda.

Eis o que significa o despertar de Deus dentro de nós. A vibração Dele, estado cinético da vida, mantém-se em inatividade no involuído e com isto a verdadeira vida está apenas latente, em estado de inércia, à espera de desenvolvimento, como um instrumento musical, cujas cordas estão mudas. A vida do involuído é uma vida animal, inferior, que a cada passo é contida pela morte e pela dor. Não é a vida verdadeira. Trata-se aqui de um despertar de consciência, que é justamente o estado cinético, qualidade do espírito; trata-se de entrar cada vez mais nesse estado cinético, o que significa desmaterializar-se (sair da inércia da matéria), para espiritualizar-se (entrar no dinamismo do espírito). E retornar ao espírito significa retornar ao divino, nosso estado originário, volvendo a ser consciente, vivo, vibrante, até na profundeza em que está Deus. Eis qual é a via para reencontrar Deus. Quando o homem tiver se tornado consciente da presença de Deus em si, o caminho da evolução estará completado, o edifício desmoronado estará reconstruído, a natureza rebelde terá volvido ao Criador.

O homem comum está em poder do jogo das suas ilusórias sensações de superfície e ignora que maravilhosos tesouros repousam inexplorados na intimidade do seu ser. Mas aqui estão descritos de forma racional as profundas mutações ocorridas na alma, quando um homem se torna santo. Poucos as reparam porque a maioria vive de sensações a que escapam tais interioridades. Estes não estão em grau de compreender e admitir, em absoluto, uma distância qualitativa, evolutiva, de igual natureza, do tipo de vibração, uma imensa distância de algo que, no entanto, nos é tão íntimo. É inútil, pois, falar de uma incompreensível imanência de Deus em todas as coisas e, sobretudo, na profundidade de nossa alma. Quem não possui meios para registrar uma vibração, acredita-a inexistente e a nega. Essa incompreensão, porém, explica-se facilmente. É difícil da periferia mover-se à procura de Deus, onde se está situado em posição invertida A ciência, em última análise, nada mais faz do que tentar essa procura. Ela não o sabe, embevecida pelas habituais miragens, mas, na realidade, é esse o seu verdadeiro e substancial objetivo. Na periferia, todavia, em meio a um sistema esfrangalhado em uma infinita poeira fenomênica, ela se perde no particular, condenada ainda à ausência de uma síntese total. Para voltar a encontrar Deus, seria necessário reconstituir no Uno essa infinita pulverização do ser, o que é impossível. Não é, pois, à ciência que podemos pedir tais resultados. São necessárias outras vias para que isso se dê.

Assim, tudo o que existe, inclusive os homens, escalona-se por degraus ao longo da escala evolutiva, representando a reconstrução dos vários planos do sistema desmoronado. A escala do que conhecemos vai da matéria ao super-homem. E tudo está a caminho. O termo fixo de comparação, o absoluto que, na relatividade do Todo, permite estabelecerem-se as distâncias, é Deus. No mineral, o divino está tão profundamente sepultado em estado de inconsciência que não se pode, de maneira nenhuma, falar de consciência e espírito, pois que eles jazem como que anulados. Sem liberdade de escolha, nem luz de compreensão, o ser ai se movimenta no determinismo que a Lei, completamente ignorada, impõe. Todavia, a individualidade atômica, molecular, química, planetária ou galáctica, tem as suas características inequívocas, que lhe conferem como que uma personalidade. E esta exprime uma estrutura tão complexa, que o homem ainda não a decifrou. Há, pois, aí também, um grande pensamento, que não pode deixar de ser o de Deus imanente, porque ao certo essa individualidade o ignora por completo. Não poderemos admitir que o átomo saiba calcular a sua velocidade interior e trajetória. Ele é ligado a uma lei de ferro, da qual não tem consciência. Estamos nos antípodas do centro-Deus, onde existe a plenitude da liberdade e da consciência. O ser deve reconquistar essa plenitude, que, neste caso extremo, se inverteu em uma carência completa; deve, evolvendo, reconstruir-se. E assim se sobe gradativamente. Na progressiva conquista de mobilidade e de sensibilidade, há uma liberação. A consciência, qualidade divina, revela-se cada vez mais, por graus, até o plano do homem e do super-homem. Mas nós vemos que a inteligência de Deus existe mesmo nos graus ínfimos do ser. Só existe esta diferença com as formas mais evoluídas: estas, quanto mais ascendem; tanto mais vêm a tornar-se participes dessa inteligência que já existia, mas da qual, embora ela existisse dentro deles, esses seres estavam excluídos. E que mais significa esta, senão tornar-se consciente, isto é, o despertar no ser do Deus Que, com o desmoronamento, permaneceu nele imanente, mas sepultado na inconsciência?

É grave e de transcendental importância a conclusão deste capítulo, especialmente para quem está em condições de senti-lo inteiramente, porque a atingiu por si mesmo, através da própria maturação e visão. Constitui uma descoberta revolucionária chegar a saber que, na profundidade do próprio "eu", se possui o divino e que Deus, Que o animal ignora e o ignorante nega, está tão junto de nós. E deveras emocionante saber-se eterno cidadão do universo! E uma conclusão de incomensurável alcance, mas por isso mesmo perigosa, se não for encarada sabiamente, motivo pelo qual não pode ser dita indiscriminadamente a todos e manuseada pelo involuído. Quem não estiver preparado, não pode receber a luz da verdade, tão excessivamente ofuscante. A verdade deve ser dada proporcionadamente a quem a recebe. Tais conceitos, postos na mente do involuído, são transviados, podem ser entendidos às avessas no que se refere à sua posição de modo que, ao invés de estimularem uma anulação do próprio egocentrismo, na fusão com Deus5 podem levá-lo a exalçar-se, erigindo-se em anti-Deus. A primeira rebelião está sempre pronta a explodir de novo no anti-Sistema. O indivíduo pode, assim, ser levado a crer-se Deus. Esta, embora uma interpretação invertida, satânica, da conclusão verdadeira, será quase certa. E por esta razão que o conhecimento de um fato de tal alcance, como é a presença do divino em nós, é vedado à maioria, enquanto não houver alcançado o grau de evolução necessário. Ai de quem entender em sentido inverso a presença de Deus em nós, porque, então, tudo isto, ao invés de servir para a ascensão, contribuirá para a descida ainda maior. O místico jamais se ensoberba com essa descoberta; pelo contrário, vê nela um motivo a mais de obediência e humildade. É  necessário fazer Deus crescer em si, não pelo caminho oposto da exaltação do "eu". Deus está em nós como princípio de Amor, para que façamos Dele o nosso centro, e não para que façamos de nós um centro contra Ele. Então Deus se negará cada vez mais, em lugar de dar-se, e o ser precipitar-se-á ao invés de subir.

Estamos na Terra, em um reino periférico do anti-Sistema, onde é comum subverter a verdade no erro. Assim é fácil, neste reino, conferir à nossa fé e intuição da imanência de Deus uma interpretação de panteísmo impessoal, confundindo-o com o unilateral, que exclui de Deus o aspecto pessoal e transcendente. Esta foi efetivamente a interpretação que emprestaram aos volumes precedentes, especialmente em A Grande Síntese, da qual este e os demais tomos não são mais do que o desenvolvimento e a explicação. Ora, Deus estar em nós, como presente em todos os seres, porque sem Ele nada pode existir, é uma certeza, uma realidade que jamais poderá renegar quem a atingir por intuição. Depois, se corretamente interpretada, ela não leva a uma soberba deificação do nosso “eu”, ou da natureza, mas determinará a fusão de nossa alma e do criado, com o Criador aí imanente, sem o que tudo estaria órfão. Os conceitos acima expostos não levantam o "eu" contra Deus, mas tendem a diminuir o "eu" para deixar que Deus desperte nele e viva nele em lugar do "eu" separado, filho do desmoronamento. Não é mais o "eu" rebelde que agora predomina, mas o "eu" em sacrifício, aos pés da Lei. "Os últimos serão os primeiros", isto e, quem quiser ser o primeiro no sistema, deve ser o último no anti-Sistema, ou seja, servo do próximo, não em soberba, mas em obediência e em humildade. Desta maneira não se aumenta a cisão, mas a unificação, não se caminha para o triunfo do "eu", mas de Deus. É evidente que a via acima traçada não é a que leva a Satanás, mas a que conduz a Deus.

E assim evidente também o que diz o Evangelho sobre a necessidade de decidir-se na escolha, porque não é possível servir a dois senhores ao mesmo tempo, isto é, prosperar concomitantemente no sistema e no anti-Sistema. Se quisermos realmente vencer, é de nosso interesse seguir o primeiro e não o segundo. É natural, pois, que Cristo e o mundo sejam inexoravelmente inimigos, mas também que Cristo, Senhor do sistema, vença o anti-Sistema. Cristo não sofreu porque fosse fraco ou vencido, como acreditou a estupidez dos seus algozes, mas em razão de livre e deliberado sacrifício de Amor. A paixão de Cristo se situa logicamente no plano de salvação do universo, no plano da reconstrução do sistema com o anti-Sistema em que ele desmoronou.

Senhor deste plano, desdenhando os pobres meios humanos de ataque e defesa, Cristo, o Cordeiro pacífico e inerme, venceu o mundo.