Para compreender ainda melhor os princípios expostos nos capítulos precedentes, façamos uma aplicação deles (que é puro controle) aos acontecimentos de nosso tempo: ou seja, observemo-los concomitantemente de dois pontos de vista, o humano e o das verdadeiras diretivas, dadas pelo pensamento e pela vontade da História.

 

Vimos o que são as revoluções. A História recente e contemporânea ofereceu-nos dois grandes fenômenos desse gênero: a revolução francesa e a russa. Colocadas em sua realidade concreta, na perspectiva de espaço e de tempo, partindo de posições e desenvolvidas em condições desiguais, ainda que semelhantes, diferentes nas formas, nos objetivos e nas populações em que atuaram, podem essas duas revoluções parecer dois fenômenos separados, e não duas fases do mesmo fenômeno. No entanto, foi assim, na unidade do pensamento diretivo da História, em que há apenas uma realização a executar: a da evolução, ou seja, da ascensão do homem a formas mais livres de vida, mais orgânicas, mais evoluídas. Este é o impulso biológico incessante, que nasce da essência profunda da vida, que aspira à subida, para regressar à perfeição em Deus.

 

A incondicional supremacia do mais forte e, portanto, os governos absolutos, a organização social, filha da guerra e baseada no domínio e exploração dos povos vencidos, até a instituição da escravidão, foram, nos primeiros tempos, uma necessidade biológica, proporcionada ao grau de involução da humanidade, da qual nada mais se podia pretender. E a História nada mais pedia. Por isso, deixou funcionar essas formas de vida, as quais, entretanto, com a evolução, se tornavam cada vez menos adequadas e aceitáveis. Havia no âmago um trabalho intenso de amadurecimento, escondido e silencioso, que a História oficial vê e registra só quando ele aparece visível, do lado de fora, no momento de suas explosões. É a esse trabalho intenso que se deve a ascensão contínua das classes inferiores que querem evolver, tomando o lugar das superiores, logo que estas tenham esgotado sua função de vanguarda do progresso. Isto pertence a todos e todos têm direito a isso, e nisso tomam parte, cada um com sua função particular, por meio de sua realização pessoal. O verdadeiro fio condutor do longo caminho da História é um irrefreável e instintivo anelo à liberdade, a que todos aspiram e os governos prometem; a humanidade concorda e espera, porque exprime a superação da inferioridade e a libertação da prisão em que caiu o homem, como vimos.

 

É assim que as revoluções, que são os períodos mais ativos da História, e mais criadores, renascem continuamente, não só para sacudir o jugo dos poderes constituídos, edificados sobre os resultados das insurreições precedentes, mais velhas e superadas, como também para colocar em lugar daqueles outros governos que sejam baseados em concepções mais vastas e livres, nos quais seja cada vez menor o número de pessoas que sofra o peso da escravidão e da limitação, e cada vez maior o número dos que gozam a liberdade, a dignidade e os direitos da vida civil. Eis aí, então, o fio que liga as duas revoluções, a francesa e a russa. Em substância, são apenas dois degraus do mesmo processo evolutivo. Sua verdadeira força genética, o impulso que as determinou, estava no âmago da História, ou seja, era um amadurecimento da vida social, que se formara através de longa elaboração psicológica dos povos. A ideia, preexistente à sua manifestação nos fatos, é a causa e a substância das revoluções. O resto é execução quase mecânica.

 

Essa ideia era uma dinamite, comprimida no terreno, pronta a explodir, porque já pronta e completa. Esperava apenas uma chama mínima que a acendesse. Essa chama podia aparecer e acender a revolução pouco antes ou pouco depois, aqui ou ali, não importa. Às diretrizes da História, não importam esses pequenos afastamentos de tempo e espaço, pois nada mudam no essencial, mas somente as modalidades da execução. Quando tudo estava intimamente maduro, começou a pressão invisível a tomar forma nos fatos, pois só estes são visíveis a todos e podem fixar o pensamento da História na realidade concreta. Então começou essa pressão interior a experimentar o ambiente, à procura do ponto de menor resistência, a fim de abrir uma brecha para explodir, e achou-a na França, com  o inepto Luís XVI e sua corte corrompida e decaída; achou-a na Rússia com o fraco Czar Nicolau e sua aristocracia incapaz e atrasada, assim como nos resultados da guerra europeia de 1914-1918. Mas, estes são pormenores históricos. É verdade que a França de então, como a Rússia de hoje, eram o terreno mais propício para a manifestação do fenômeno. Mas se esse terreno tivesse aparecido alhures, alhures se teriam desenrolado as duas revoluções; se a ocasião se tivesse apresentado em outro momento elas teriam aguardado, e em outro momento se teriam manifestado.

 

Isso tudo faz-nos compreender que, nestas duas revoluções, a França e a Rússia são dois efeitos, ao invés de duas causas; dois cenários históricos, dois elementos absolutamente não necessários, que deram seu colorido ao fenômeno histórico, só por motivos contingentes. Por isso, em sua substância, podem muito bem as duas revoluções ser destacadas da França e da Rússia, e ser colocadas em seu verdadeiro sentido, que é movimento mundial, e que não pertence a um povo, como monopólio seu, mas a toda a humanidade. A substância era a ideia, que é universal, e o que a decidiu, foi ter ela atingido seu amadurecimento. O feto estava desenvolvido e tinha que nascer, não importa onde. As próprias ideias da revolução francesa ferviam na América do Norte e em todo o mundo ocidental. Se não houvesse essa preparação do mundo de então, para aceitá-las, teria sido inútil a revolução, porque ninguém a teria compreendido, e ela não teria podido difundir-se, e muito menos frutificar. E, não tendo então uma tarefa, segundo a lógica da História, não teria podido ocorrer. Tanto é verdade que, enquanto a França voltava à monarquia, e a Europa à Santa Aliança, os Estados Unidos se apoderavam das novas ideias e as punham totalmente em prática. De tal forma que se poderia dizer que a revolução francesa serviu mais para os Estados Unidos que para a França. Esta, como a Rússia, teve sua função como lança-projéteis. O que interessa é o projétil, que é acompanhado em seu caminho e à sua chegada, ao passo que o aparelho que o lançou é esquecido, desde que perdeu toda a sua importância histórica para o progresso da humanidade, tendo, com isso, esgotado sua função.

 

O ponto de partida e a causa determinante das duas revoluções foi igualmente um estado de escravidão. Em ambos houve igual esforço de libertação de condições de vida que não eram mais aceitáveis pela natureza humana, dado o nível atingido pelas classes dominantes e o confronto com elas feito. Se bem que as classes mais elevadas jamais pensem nisso, não obstante realizam uma obra de educação, pois que mostram, com seu regime de vida, às classes mais pobres que as observam atentamente, as formas de existência mais apuradas, as quais, por lei de evolução, os deserdados querem avidamente imitar. Tudo isso faz parte da mecânica da ascensão, que começa das bases materiais, para que destas suba às espirituais. Quando as classes dirigentes formarem uma aristocracia de espírito, a imitação dos inferiores tomará essa outra direção. Mas nem uma nem outros estão hoje maduros para poder fazer tanto, e cada coisa vem a seu tempo.

 

Na Rússia, como na França, o ponto de partida da revolução foi um estado de feudalismo, com classes sociais separadas em compartimentos estanques, hereditariamente fixadas para sempre, inacessíveis por baixo, com privilégios próprios, com um poder central absoluto e a escravidão nos estados sociais inferiores, sem possibilidade de redenção: uma gaiola de ferro sem porta de saída senão pela explosão. Só uma revolução podia sacudir esse jugo, libertar dessa prisão. Assim, os componentes da classe aristocrática foram chamados tiranos, e a revolta contra eles surgiu como um ato de justiça, ao passo que, antes que tivesse sido atingido o novo amadurecimento, o mesmo ato de revolta teria sido considerado o maior crime. O autor de um atentado inócuo à pessoa de Luís XV foi esquartejado com grande pompa e concurso do povo. Luís XVI foi guilhotinado diante de todos e ninguém reagiu. Por isso, as despesas feitas por Luís XIV e pagas pela França pela construção de Versalhes, não excitaram nenhuma revolta, ao passo que as outras, muito menores, feitas por Maria Antonieta, pareceram um esbanjamento escandaloso. A razão é que Luís XIV desempenhava a função social de criar um modelo de vida mais apurado, antes desconhecido, um modelo que as cortes europeias imitaram e o povo olhava para aprender a elevar um pouco mais alto o nível da vida civil. Quando, com efeito, a corte de Luís XV e Luís XVI serviram-se dele só para gozo egoístico, todos gritaram que era escândalo, e só pararam quando conseguiram suprimi-lo e abrir uma estrada para eles mesmos, substituindo-se a eles e imitando-os.

 

Se esses foram os mesmos pontos de partida para as duas revoluções, semelhantes devem também ser os pontos de chegada; ou seja, a expansão da ideia nova no mundo, a formação de novas correntes diretivas da vida social, desprendida do país em que nasceu, país que perde seu domínio, porque a ideia se torna de todos. E a ideia, como semente lançada ao vento, chega longe e frutifica nem se sabe onde, mas exatamente ali se lhe apresenta o terreno propício, enquanto, na pátria da revolução, só permanecerá a honra de ligar seu nome às páginas da História por meio dela. Se assim foi para a França, é lógico e provável que será assim também para a Rússia. E a ideia comunista, como uma semente levada longe pelo vento, não se sabe aonde chegará e germinará, numa forma que talvez em nada recorde sua origem russa.

 

A ideia é universal, pertence à humanidade. O povo, só porque foi escolhido como instrumento para o arremesso, acredita que a coisa seja sua, será posto de lado quando não mais servir aos objetivos da vida. O que vale, no pensamento da História que dirige o mundo, é a ideia e seu desenvolvimento, e não acidentalidades contingentes de sua manifestação e de seu desenrolar-se. Em seu progresso, a História tem seus planos preestabelecidos, e para sua execução vai escolhendo os elementos que aos poucos vai achando, prontos e adequados, em seu caminho no tempo. Ora, a ideia central que, em seu desenvolvimento, constitui o fio condutor da História - aquilo que liga uma revolução à outra - é o supracitado princípio da liberdade, ou seja, de uma libertação progressiva do homem, para alcançar formas de vida mais elevadas em todos os sentidos. As aristocracias caminham adiante como antenas, exploram, criam os modelos, e as massas, ávidas por imitá-las, as invejam e se põem a lutar para tirá-las do poder e substituí-las na experiência das novas formas de vida. Através desse jogo de forças e impulsos, desenvolve-se a mecânica da evolução. O motivo dominante, a direção do caminho, os primeiros móveis, são sempre os mesmos: libertar-se da inferioridade para subir. Subir em todos os campos. Começa-se das conquistas mais elementares. Libertar-se da escravidão para atingir a liberdade física: não viver mais acorrentados. A revolução francesa quis conquistar a liberdade política, a igualdade de direitos, suprimindo os privilégios e as classes. Todos são   iguais diante da lei, que deve ser igual para todos, e não mais leis separadas, de acordo com a situação social. E isto já foi muito para aquela época. Mas deixou em pé a desigualdade econômica e formou uma aristocracia diferente, a do dinheiro, e uma nova classe, a burguesia. Sentiu-se, então, a necessidade de aperfeiçoar mais a conquista da liberdade, completando-a sob outros aspectos ainda não realizados. E nasceu a revolução russa, para conquistar a liberdade econômica.

 

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Mais tarde, veremos como poderá continuar esse caminho e até onde poderá chegar. Mas, antes, observemos de perto o fenômeno russo, para compreender seu significado. Embora tenha a Rússia dado um grande passo à frente, ao menos como potência industrial, dado o ponto zero de sua partida, representado pelo sistema feudal czarista, absolutamente medieval, não obstante, nos trinta anos aproximados do governo comunista, a Rússia - por mais que tenha querido correr nesse sentido - está ainda longe de ter atingido o nível de vida e de cultura das civilizações ocidentais. Mas, o que é pior, é que não atingiu sequer a realização que se propusera, da proclamada liberdade econômica. Neste sentido, se o Comunismo atraiu as massas, - o programa da justiça social e dos melhoramentos econômicos corresponde ao instinto daquela ascensão que a vida quer agora realizar - todavia, sua experimentação até hoje foi infrutífera e isto o desacreditou diante dos mais inteligentes, mais aptos a compreender o logro de uma exploração de necessidades e instintos.

 

Mas, há outro fato: a distância entre o ponto de partida da revolução russa - o feudalismo, já superado na Europa há muito - e seu ponto de chegada, é uma ideologia que presume um amadurecimento ainda raro no mundo. Isso significa que o Comunismo verdadeiro ainda pode realizar-se na Rússia; aí nasceu apenas para emigrar para outros países, que vai se civilizando e se transformando. Nenhum povo ocidental jamais o aceitará senão à força e transitoriamente, como é ele hoje na Rússia. E a natureza do povo é coisa que nenhum exército e nenhum domínio podem vencer. Podem matar-se os chefes, pode destruir-se o poder, escravizar as massas, transplantar cidades inteiras, mas não se consegue matar um povo, insuperável barreira demográfica que fica de pé, para continuar de acordo com sua natureza. Ora, os povos ocidentais lutaram durante séculos para conquistar a liberdade política, e não estão dispostos a renunciar a ela, custe o que custar. Eles fizeram a revolução francesa, que a Rússia não quer levar em conta, sofreram para sair desse degrau, e isso é fruto seu, inalienável. O Comunismo russo, acreditando levianamente que pode transplantar-se no Ocidente, não sabe a que reações se expõe, quando as massas descobrirem a mentira das promessas feitas e, ao invés da liberdade econômica e de uma elevação do nível de vida, se acharem diante de um sistema de dominação escravista. O próprio instinto de ascender, que agora impulsiona as massas a aceitar o Comunismo, quando se vir traído, fará levantar as mesmas massas enfurecidas contra os que as traíram. Ai de quem agride e destrói a vida, em seus sagrados objetivos. Ela reage e corrige, mediante contra-revoluções, os erros dos que executaram suas revoluções, ou melhor, ela as continua, não no sentido egoístico, mas derrubando o que eles fizeram, isto é, endireitando-o no sentido construtivo, benéfico, como o quer a Lei, que dirige tudo.

 

Na Rússia sempre foi diferente. Aí as massas jamais conheceram liberdade política, estão habituadas e treinadas há séculos à escravidão, hábito que o Ocidente já perdeu. Na passagem do regime czarista ao comunista, permaneceu o mesmo fundo escravista, inadmissível alhures, mas tradicional na Rússia. Se lá o cidadão não goza de liberdade política, ele não se queixa muito, porque jamais a teve, portanto, nada perdeu. Mas é diferente, quando o Comunismo sai daquela terra e pretende implantar-se alhures. As nações ocidentais também querem a libertação econômica. Mas, quando percebem quanto lhes custaria ela com o Comunismo, isto é, a perda de uma liberdade mais fundamental e necessária; quando veem que o proclamado bem-estar se reduz, de fato, a uma forma de escravidão e que assim, para ter um aperfeiçoamento de liberdade, esta seria de todo perdida, então essas nações só podem rebelar-se. Até hoje, tudo vai bem, enquanto só se trabalha com promessas, pela propaganda, e a realidade russa está longe. Mas, que ocorrerá se se passar aos fatos e se a realidade russa entrasse verdadeiramente em casa? É este, com efeito, justamente o ponto fraco do Comunismo soviético, a ameaça que está iminente sobre os povos, e contra a qual se insurgem as reações. As massas inconscientes, presas dos demagogos, compreenderão isso amanhã à sua custa, se o novo regime as atingir.

 

Ao contrário, o ponto forte é a beleza teórica do programa. No fundo, ele é o Evangelho de Cristo, mas só em teoria, porque na prática o método da violência e da escravização da individualidade humana, o subverte. Mas, certamente, não é esse lado evangélico que seduz as massas. O que faz impressioná-las é a autorização - primeiro passo da legalização - para apoderar-se dos bens de quem quer que seja. Mas, que se possa destruir o instinto da propriedade só em dano dos outros, acreditando que depois ela possa ficar de pé apenas em benefício próprio, só então pacífica, porque protegida pelas leis - condição necessária para poder gozar o fruto de qualquer furto - é tão grande utopia, que só os ingênuos e primitivos podem acreditar. Por isso, os sonhos de vitória do proletariado expõem-se a terminar sua escravização aos pés do capitalismo do Estado. Quanto terão que sofrer ainda as massas, antes de aprender a compreender por si mesmas, o que é possível e o que é impossível, o que é verdadeiramente direito e o que é promessa irrealizável! Mas, também as massas têm os chefes que merecem. Com efeito, ouvem os demagogos que as enganam, e os ouvem porque a promessa é bela e agradável, ainda que não venha a realizar-se. Cristo, que disse a pura, mas dura verdade, foi crucificado.

 

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Como terminará o fenômeno comunista russo? Ele contém em si os germes de sua própria destruição, embora justificado e provocado em seu nascimento: pelo acumular-se de séculos de injustiças e opressões, tal como para a revolução francesa; por seus excessos em sentido oposto e por seu materialismo, que o faz ignorar vitais leis biológicas, pela supressão da individualidade; por sua violência e pelo absolutismo, que suprime justamente aquela liberdade que ele proclama e que a vida quer conquistar. Se a vida permite tudo isso, sem dúvida para utilizá-lo a outros objetivos seus, mais tarde terá que apressar-se a destruir tudo o que é antivital. Pode-se subjugar com a força, oprimir, escravizar, destruir. Mas tudo tem um limite e, quem se coloca contra as leis da vida, está perdido. Justamente quando esta quer dar um passo à frente, que êxito pode ter a tentativa contrária de dar um passo atrás? Só este, de ser liquidado e arrastado pelas forças da vida, que são as mais poderosas. É natural, que um regime se propõe subverter a ordem, só possa ter funções destrutivas, enquanto que as construtivas são confiadas a outros povos. E é natural também que os elementos da desordem - como ocorre com todas as revoluções - sejam depois eliminados, sob os impulsos da vida. Neste caso, eles são representados pelo regime soviético russo. Com efeito, a vida não admite desordem senão como fase de transição e com objetivo de progresso. Resulta de tudo isso, também, que os verdadeiros objetivos do fenômeno russo não estão na Rússia, e que o Comunismo se transferirá daquele país, para transformar-se alhures. Diz-nos isso a lógica do pensamento da História, que não funciona fechado num dado lugar ou tempo, apenas a serviço de determinado povo, mas se desenvolve por longuíssimos ciclos, em todo o mundo.

 

O problema da expansão ideológica de uma doutrina é muito árduo, porque deve considerar a história e a psicologia de cada um dos povos, no âmago dos quais queira penetrar. E isso constitui uma barreira à expansão do Comunismo soviético, tal qual ele é hoje, pois não pode evitar de ser russo. Então, precisa contar com as diferenças, e logicamente com as resistências étnicas. Observemos o fenômeno particularmente em relação à raça latina, que tem uma história e qualidades tão diferentes das dos povos nórdicos. O sistema da força bruta e do terrorismo não poderia resistir por muito tempo em contato com a inteligência e o espírito individualístico de independência dos latinos, frutos de milênios de elaboração, que os povos nórdicos não viveram. Enquanto estes constituem de imediato um chefe, ao qual depois obedecem cegamente, os latinos possuem uma autonomia de julgamento que os torna rebeldes à obediência. Por isso os nórdicos, sobretudo os alemães, parecem-nos organizados e disciplinados, e os latinos desorganizados e indisciplinados. Consideremos um exemplo clássico. Um alemão, antes de agir, reflete muito e organiza um plano estudado em todos os pormenores, mas depois o executa teimosamente até o fim, mesmo se, mudadas as circunstâncias de ambiente, ele se torna suicida e absurdo. Pode chamar-se a isso coerência, tenacidade, fidelidade. O italiano, entretanto, não faz plano algum, mas estabelece um a cada passo, de acordo com as circunstâncias, e o abandona logo que este não lhe seja mais útil, para então organizar outro melhor. Pode chamar-se a isso incoerência, volubilidade, infidelidade. Mas, para a mentalidade italiana, o primeiro sistema parece simplesmente estúpido. E o é especialmente na guerra que, partindo do princípio de que o mais forte tem o direito de esmagar o mais fraco, não pode pretender dar-nos lições de moral.

 

A razão dessa coerência, tenacidade, fidelidade, disciplina e organicidade na ação alemã, é a falta de uma inteligência de indivíduo isolado, embora exista uma inteligência como coletividade. Acontece assim que o alemão obedece muito mais por princípio, por respeito ou por temor, do que por convicção. O italiano obedece apenas se está convencido. Parece rebelde, porque só aceita o que quer. Afora o caso da coação pela força, em que não se pode falar de obediência, ele jamais obedece cegamente, mas examina, discute a ordem, quer colocar-se, ao menos psicologicamente, no mesmo nível de seu chefe. É por isso também que o alemão pensa, age e funciona sobretudo coletivamente. Ao passo que o italiano pensa, age e funciona isolada e individualmente, coisa que o alemão custa para fazer. O instinto alemão é o grupo, o instinto italiano é a independência. Do sistema alemão, de funcionar o grupo sob um chefe, obedecido cegamente, em perfeita disciplina, deriva o fato de que, se o chefe é inteligente, a fidelíssima máquina funciona à perfeição, e o pastor poderá conduzir suas ovelhas aonde quiser. Mas se o chefe é desassisado, todas as ovelhas o seguirão até o fundo do precipício, fidelissimamente, e se deixarão matar por ele. Vimo-lo na última guerra. Os italianos, ao contrário, se o chefe é inepto, todos o percebem imediatamente, porque ele é observado e controlado por todos continuamente, e a revolta é imediata, o chefe é liquidado, e o reajuste, sem pastor, é pronto, porque cada ovelha sabe, mais ou menos, agir também como pastor. Nenhuma delas será jamais tão simples, que siga alguém sem juízo até o fim, para deixar-se matar por ele.

 

Por isso, é diferentíssimo o modo de comportar-se dos dois tipos biológicos nas mesmas circunstâncias. Os alemães preveem tudo, mas ao primeiro obstáculo ou revés, não tendo capacidade para recuperar-se, não contornam a dificuldade, mas param diante dela, detêm-se para derrubá-la, batem com a cabeça e, se a não conseguem sobrepujar, morrem ali mesmo. Os italianos, diante do obstáculo que lhes fecha o caminho, acham cem outros, transformam-se, mimetizam-se, emborcam as situações, convencem-se de que, sem dúvida, queriam andar em direção oposta, e deixam o obstáculo para trás. Tudo isso pode parecer ilógico, incoerente, falso e mentiroso, mas salva a vida, que quer e deve ser tão elástica, que saiba adaptar-se a tudo, contanto que retome o caminho e continue, que é o mais importante.

 

Isto tudo é apenas um exemplo, que se pode ampliar aos povos nórdicos de um lado e à raça latina do outro. Ora, a expansão comunista tem que levar em conta as diferenças étnicas, que representam uma barreira mais forte do que a cortina de ferro. Ao terem que defrontar-se tipos biológicos tão diferentes, quem levaria a pior? Que pode fazer o coletivismo russo, em que o indivíduo desaparece (o que só é possível na Rússia), posto em contato com o superindividualismo latino, conquista biológica que jamais abdicará de seu trono? E uma civilização mais primitiva, como a russa, não se arrisca a ser absorvida por uma civilização mais madura? Nos embates de massas, as resistências étnicas representam as forças primordiais e irrefreáveis da vida, cujas reações é difícil deter.

 

Deduz-se de tudo isso que a vida hoje aceita e quer pôr em prática a ideia da justiça econômica, porque esta se encontra na linha de seu desenvolvimento, essa ideia só poderá emigrar de seu berço, quando despida de todas as superestruturas russo-soviéticas. A tarefa da Rússia, pois, é diferente do que se pensa. Sem dúvida, esse povo despertou de um sono secular. Poderá ajudar a Ásia a despertar. Mas o primeiro é negócio interno, o segundo é fenômeno de imperialismo, em que o Comunismo não entra. O verdadeiro merecimento da Rússia de hoje, é o de haver imposto, com suas formas violentas, à atenção do mundo, o problema da justiça econômica, que assim teve que ser tomado em consideração, a sério, em escala bem ampla. Ainda que tudo isto não estivesse nos planos do Comunismo, todavia foi seu efeito mais importante. Assim, a Rússia teve o merecimento de haver despertado os que dormiam, os que há dois mil anos dormiam sobre o Evangelho. Acordou-os com um forte solavanco, com uma ameaça que todos compreendem. Parece que o homem só compreende o que se lhe apresenta sob forma de batalha. Quem mais ouvia as brandas e estereotipadas palavras do Evangelho, há vinte séculos repetido mecanicamente? Mas o assalto é coisa diferente: assusta, atinge os interesses. Então, apresentam-se as defesas, estuda-se uma estratégia e com isso o problema se torna vivo e atual. Este é o merecimento da Rússia: ter denunciado as injustiças econômicas do mundo, tê-lo colocado em posição de réu, e tê-lo coagido a um exame de consciência. Dessa forma, hoje, entre as nações não-comunistas, no seio mesmo do Cristianismo, existe uma nobre porfia de beneficência, não tanto por amor aos pobres, mas para chegar primeiro a conquistá-los e assim afastá-los do enquadramento comunista, com que a Rússia hoje está pacificamente penetrando nos outros países, desfrutando, com seu pleno absolutismo, a liberdade das democracias e do sistema eletivo, para vencer guerras de invasão, sem o risco de realizá-las. Ter imposto ao mundo essa corrida à realização da justiça social, é o maior mérito da Rússia de hoje, é a verdadeira forma de expansão comunista, a única de que poderá permanecer algo. Esta, porém, é a expansão da ideia da justiça social, e não a do Comunismo russo.

 

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É lei universal de equilíbrio que, logo que se defina novo impulso em determinada direção, surja o paralelo contra-impulso que o equilibre. Assim, nascido o grande capitalismo norte-americano, surge-lhe contra, o Comunismo russo. E, surgido, este, o capitalismo americano reagiu, fortificando-se e armando-se. Assim a grandeza gera inimigos e o assalto fortifica o adversário. Determinou-se assim a luta entre capital e trabalho, são definidas as recíprocas posições e direitos, e preparam-se para resolver seus contrastes. Existem as classes sociais do capital e as do trabalho. Este é apenas o capital em formação; o capital é o extrato concentrado do fruto do trabalho. Um precisa do outro. Mas, ao invés de colaborar, lutam para sobrepor-se. Se cada um permanecesse em seu lugar, tudo daria seu devido fruto. Mas, ao contrário, eles gostam de trabalhar destruindo-se mutuamente. O resultado é a paralisação de ambos. Afiam-se as armas: o capital explorando com salários baixos; o trabalho rebelando-se com as greves. Nesse ponto chega o Comunismo. Os demagogos aproveitam-se disso, os operários alimentam esperança e assim a coisa se mantém e caminha. Estes últimos gritam que o capital rende cem vezes mais que seu trabalho, e chamam a isso exploração. Mas, é também verdade que o capital representa a inteligência, que, biologicamente, vale muito mais que o trabalho manual. Portanto, pode ser justa uma compensação maior. Mas, é verdade também que a cobiça, muitas vezes, cresce com a riqueza e que nem sempre esta se conquista com o trabalho, mas muito frequentemente apenas com golpes de sorte, se não pior.

 

De fato, discute-se muito, na teoria, acreditando-se nos sistemas. Mas as raízes do problema descem até o terreno moral. Na realidade, nem o capital nem o trabalho são culpados disso, mas é o homem, esteja ele de um ou de outro lado. É o mesmo homem, com os mesmos instintos egoísticos, que faz mau uso de tudo. Com esse tipo biológico, dará maus resultados qualquer sistema econômico, de modo que o Comunismo, arauto da justiça econômica, nada resolve, como nada resolveu na Rússia, onde permanece a opressão e a injustiça de antes. O capital é uma força, tal como a máquina. Enquanto não nascer o homem superior, que saiba ser senhor deles, pelo bem, e não servo, por sua cupidez, nem um nem a outra libertarão o homem, mas o tornarão cada vez mais escravo. Dessa forma, o capital, ao invés de ser considerado ajuda benéfica, é tido como meio de exploração, apto a congelar a riqueza em poucas mãos e a fechar o caminho ao trabalhador. É necessária uma nova consciência colaboracionista, um modo totalmente diferente de conceber a vida, baseando-a, não no utilitarismo individual ou de classe com prejuízo dos outros, mas tão vasto que abarque todos. Isto, porém, faz parte de outra revolução, que o homem fará amanhã, quando estiver mais maduro. O problema é bem diferente do que é equacionado hoje. Os sistemas sozinhos não resolvem. São produtos humanos, com finalidade de experiência, e, portanto, podem também servir de meio para resolver. Mas, não representam a solução, que depende das atitudes da alma, porque a raiz de cada ato e sua forma dependem da motivação.

 

Esse elemento moral é um princípio de ordem, a que se prende o pensamento da História, que é muito diverso ao do homem que acredita dirigir tudo. Olhemos a primeira guerra europeia de 14-18. A Alemanha queria conquistar espaço e domínios, e ao invés disso gerou um filho completamente diferente: o Comunismo na Rússia. Seu pai foi um alemão, Carlos Marx. A Alemanha impulsiona a divulgação de suas ideias na Rússia, com o auxílio de Lênine. Hoje a Alemanha sofre o jugo comunista russo. Outro fato. A Europa e a América do Norte, ajudando a Rússia a vencer, criaram um inimigo e uma ameaça permanente. Eis como acabam os cálculos das astúcias humanas. A História, ao contrário, segue outro pensamento: o de uma justiça que faz recair o mal nas costas de quem o cometeu. Este princípio, que vimos em prática nas revoluções, que comem seus próprios filhos, e que vemos ainda hoje realizar-se na Rússia, levaria à conclusão de que também os Estados Unidos deveriam pagar, recebendo em suas cidades tantas bombas quantas lançaram na Europa, e isso, naturalmente, para efeito benéfico de libertação também para eles.

 

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Que nos estará reservado, pois, no futuro, segundo o recôndito pensamento da História, na direção dos acontecimentos humanos? Retomemos o conceito de onde partimos neste capítulo e que é seu "leitmotiv": o fio condutor do longo caminho da História é um irrefreável e instintivo anelo à liberdade. Exprime o superamento da inferioridade e a libertação da prisão em que caiu o homem. Ora, de que forma poderá continuar a manifestar-se esse impulso da vida? Em outros termos, na cadeia progressiva das revoluções, que funções e finalidades terá a próxima? Conquistada a liberdade política com a revolução francesa, a econômica com a divulgação dos princípios sociais impostos ao mundo pelo Comunismo (excluída a Rússia e seus métodos), concluída a grande revolução técnica operada pela ciência, com suas últimas conquistas sobre o tempo e o espaço (libertação do limite) e com a máquina (libertação do trabalho material), qual outra liberdade poderá o homem procurar conquistar?

 

A grande palavra das Democracias, que as opõem à da justiça econômica, proclamada pelo Comunismo, é: Liberdade. Estamos nos antípodas da concepção totalitária. Mas, ambos os sistemas têm seus defeitos. Deixemos de lado os programas teóricos de justiça econômica ou de liberdade, e olhemos a substância, que está por baixo deles. Os sistemas totalitários de um lado, filhos, embora degenerados dos sistemas de comando por investidura divina - ainda que agora Deus seja eliminado deles - exercem um poder absoluto, a mais antiga e primitiva forma de poder, partindo do pressuposto de que o chefe possui uma verdade indiscutível, porque ele é superior e não erra. Na realidade, isto é apenas uma tentativa de justificação teórica, para cobrir a crua realidade, que é o domínio do mais forte que venceu. Segue-se daí que os princípios proclamados são obrigatórios para todos, todas as consciências estão amarradas a eles e têm que aceitá-los pela imposição. Sistema primitivo, o mesmo das teocracias, necessário nas primeiras fases mais involuídas da humanidade, quando o indivíduo ainda não tinha nem uma personalidade autônoma, nem capacidade de justiça. Sistema ótimo, se o chefe e a classe dirigente fossem verdadeiramente perfeitos. Mas o são eles na prática? Sem dúvida a verdade deveria descer do Alto, mas existirá de fato uma aristocracia superior, uma elite biológica, capaz de personificar esta função de captar e representar uma verdade que desce do Alto? Ou tudo isso, na realidade é apenas uma pretensão teórica?

 

Doutro lado, o sistema das Democracias, embora reapresentando uma fase mais avançada de vida, com formas mais livres de convivência social, presume maior consciência e autonomia pessoal, superior capacidade de julgamento, necessária para dirigir a nova liberdade mais vasta. É necessária uma consciência política para saber usar o direito do voto. É indispensável uma maturação e educação que se não improvisam. Com efeito, o povo russo, que não viveu a revolução francesa e lhe não assimilou os frutos, permaneceu sob o mesmo poder absoluto, pouco importando que agora o chefe supremo esteja vestido de vermelho. Tantas liberdades não podem ser concedidas aos povos menos evoluídos, e para eles um governo absoluto pode ser uma necessidade. Mas também no Ocidente, as massas, em parte, não estão preparadas para usar desse novo poder a elas concedido. Entretanto, usá-lo já é um meio para aprender a usá-lo. E enquanto o povo não aprender, é lógico que ele também suporte as perdas, sendo explorado pelos demagogos e depois sofrendo as consequências.

 

O sistema liberal tem, além disso, outro defeito. Se é adiantado no terreno da liberdade política, é atrasado no da liberdade econômica, problema que, enfrentado e desfraldado em cheio pelos países comunistas, embora atrasados estes no campo da liberdade política, é quase ignorado pelas democracias, em que esta liberdade pode resultar na outra, e livremente morrer de fome. É assim que, enquanto as democracias acusam de escravismo o regime comunista, este intitulando-se protetor dos pobres e paladino da justiça, prometendo, ainda que só com palavras, o bem-estar, que é aquilo a que as massas mais aspiram, pôde conquistar adesões que a concessão do direito do voto está bem longe de obter. Ao povo interessa mais resolver o problema de sua vida material que o de sua vida política. O primeiro representa uma realidade concreta, que cada um vive de perto. O segundo produz frutos remotos, coletivos, em que o indivíduo desaparece; frutos problemáticos, porque entregues em confiança a homens nem sempre conhecidos de perto, em que se tem uma fé relativa. Isto porque, desde que o mundo é mundo, parece que os homens de governo tenham querido fazer convergir numa só direção a atividade educadora dos povos, ou seja, em ensinar-lhes, com o exemplo - o que mais persuade - a má-fé dos governantes, por um hábito próprio inveterado, que considera o poder, não como função social e missão, mas como meio de exploração em prol do benefício único egoístico e pessoal dos chefes.

 

Como se vê, o maior defeito não está tanto no sistema ou forma de governo, mas no valor mesquinho dos homens que o ocupam. Quando só se dispõe, para construir um edifício, de lama mole, é inútil escolher e mudar projetos. Com qualquer plano de construção a casa ruirá. Isto não significa, entretanto, que não se possa construir um bom governo também com o sistema do poder absoluto, desde que se tivesse um grande homem como chefe. Às vezes a natureza os gera, e isto poderia chamar-se um verdadeiro caso de investidura divina. Um homem de grande valor pode dar sua característica ao seu século e, se for dirigido por uma consciência superior e pelo senso de missão, o poder absoluto poderá ficar em suas mãos, sem perigo de abusos e a benefício de todos. E é verdade também que, ao menos teoricamente, o poder deveria descer do alto, de uma verdadeira aristocracia do espírito, isto é, de homens superiores, biologicamente selecionados, para que possuíssem eles as mais altas qualidades da estirpe, verdadeiros antecipadores da evolução e, portanto, os mais aptos a guiar e educar, que é a verdadeira tarefa do poder. E é verdade também que o sistema da representação pela escolha eleitoral, por parte das massas, eleva a juízes e árbitros, todos os elementos da nação, inclusive os inconscientes, os rebeldes à ordem, os indesejáveis. Não pode dizer-se que basta ser a maioria para representar o verdadeiro e o justo, para ter razão e poder melhor realizar. A demagogia, a mecânica eleitoral, a psicologia do momento, podem criar maiorias de valor mínimo para o bem coletivo. E então o sistema eleitoral só é justificável como meio de expressão de tendências, quaisquer que sejam elas, porque podem manifestar-se livremente e lutar; ou então expressão de correntes de pensamento, que se formam no subconsciente coletivo ou psicologia da massa, a qual inconscientemente exprimiria o que o pensamento da História exige que se faça naquele momento. Mas, esta última justificação faria do cidadão votante uma molécula ignara, transportada pelas correntes coletivas, que seriam as únicas que verdadeiramente exerceriam o voto.

 

Dados estes defeitos do sistema parlamentar, perguntamo-nos então: por que neste caso não preferir o poder absoluto? Será, porém, que existem homens superiores, que justifiquem essa prática, dando-lhes sua superioridade, garantia de bom uso do mesmo? Não. São raríssimas as exceções. Eis então qual é a função do sistema representativo: a de suprir as deficiências de um indivíduo, com um sistema de controles; de evitar abusos com uma definição de atribuições, e de evitar, pela multiplicação dos detentores do poder, os erros, e com isso conseguir, ao menos, uma compensação a eles, e talvez sua eliminação. Então, teremos que considerar o sistema representativo não como um sistema que possa resolver tudo, em vista do que hoje é o homem, mas como o sistema que possa suprir melhor as naturais deficiências da natureza humana. A dificuldade consiste em procurar suprir a estas, com a bondade do sistema, de tal modo que se possa construir um método, em cujo enquadramento se consiga fazer funcionar até nulidades. Isto é o máximo que se pode pedir a um sistema. Mas, seu valor sozinho, jamais será suficiente para fazer tudo, e jamais poderá substituir-se ao valor intrínseco da matéria prima, que é o homem, que é, e permanecerá sempre, o elemento fundamental de toda construção política e social.

 

Considerado, portanto, como é o homem em geral, levado a abusar do poder em seu favor e em favor de seu grupo, os sistemas totalitários são hoje inaceitáveis, praticamente. Para conseguir-se dano menor e obter-se uma aproximação menos remota de um Estado perfeito, só há hoje o sistema representativo. Com efeito, ele traz a vantagem de respeitar o indivíduo. Enquanto os sistemas totalitários procuram invadir até a alma dos cidadãos, impondo-lhes pensar de determinado modo e acreditar em determinada verdade, os sistemas democráticos respeitam a individualidade, pedindo ao cidadão, apenas, a realização de um mínimo ético, isto é, o que seja indispensável para a convivência social e a manutenção da ordem, na vida coletiva. Assim, aqueles sistemas deixam o indivíduo livre em sua fé e em seus pensamentos, até o ponto em que essa liberdade não prejudique a outros ou seja motivo de desordens. O enquadramento é muito menos de coação e menos apertado, a liberdade muito mais extensa. O que se condena nos Estados totalitários, é justamente o regime policial, o sistema terrorístico, a sufocação da liberdade, a supressão de toda iniciativa pessoal, a quase-abolição do indivíduo, reduzido a máquina de produção e a função de Estado. Tal disciplina poderá representar um futuro Estado mais perfeito, como foi alcançado por algumas sociedades animais, por exemplo, as abelhas. Mas isto pressupõe uma elaboração biológica precedente, longa e dirigida a uma especialização de funções e a sua coordenação, e a vida para o homem se está agora apenas preparando para essas realizações. Essa disciplina formará o superior mundo coletivo do futuro, mas presume uma adesão livre a ele, em virtude de haver sido atingida a consciência de sua utilidade, numa forma que, se é vantajosa para todos, também não suprime a personalidade do indivíduo nem seu rendimento. Sem essa adesão, espontânea porque incorporada à própria natureza, torna-se essa disciplina uma agressão à vida e um atentado às suas manifestações e rendimento. Torna-se então contraproducente.

 

As democracias têm a grande vantagem de deixar a vida livre de manifestar-se, desenvolver-se e formar-se segundo suas leis, e não conforme a vontade de um só homem, que oferece a probabilidade de ser um intérprete nada perfeito daquelas leis, mas somente a expressão de sua egoística vontade de domínio. Entretanto, o absolutismo pode ser suportável, e até mais adequado aos povos imaturos, que não saberiam usar a liberdade, porque ainda estão privados da consciência, que é indispensável para saber usá-la bem, e porque estão habituados a viver apenas na escravidão. É natural que, quanto mais involuído estiver um povo, tanto mais é necessária a força para dirigi-lo e tanto menos liberdade se lhe pode conceder. É sua maturação evolutiva que leva o homem dos regimes de absolutismo e força, à disciplina jurídica dos direitos e deveres de cada um, e até à livre aceitação por compreensão e adesão, sem mais necessidade de leis coletivas: evolução do ser humano, que aparece em todas as manifestações políticas, sociais e também religiosas. O poder absoluto e despótico do Deus de Moisés, pôde, assim, transformar-se na ordem amorosa de Cristo, e se transformará ainda mais, na livre adesão de homens convictos, por haver compreendido a bondade e sabedoria da Lei de Deus.

 

O grande problema para as democracias situa-se na escolha dos dirigentes, de uma elite do pensamento e da ação, a quem confiar as delicadas e difíceis funções de comando. O clássico sistema das aristocracias fechadas, animadas apenas de egoísmo de classe, atentas apenas a desfrutar as vantagens das posições conquistadas, e a caminho de esgotamento por falta de elementos renovadores, de fora de seu círculo estreito, está bem longe de resolver o problema. Infelizmente é o grau de evolução da maioria que forma as correntes diretivas que são impostas também aos dirigentes. Não se deve acreditar que os governos possam tudo. Eles são apenas uma das forças que governam, e têm que prestar contas a todas as outras. Poderão eles ser o cérebro, mas de certo não são os membros, não são o ambiente social nem o momento histórico. Podem ser a parte melhor da máquina. Mas esta pode não segui-los. Eles mesmos devem compreender o que esta pode dar-lhes, se ela sabe e se pode obedecer, e até onde pode obedecer.

 

Daí ser necessária uma certa afinidade entre chefe e povo que, para segui-lo e obedecer-lhe, há de achá-lo, sem dúvida, mais evoluído que ele, porque só assim sente sua superioridade; mas, ao mesmo tempo, não muito distante de si, porque então não o compreenderia mais. É necessário que o chefe saiba ter os pés em terra, na realidade de todos, mesmo se isto implicar algum defeito que, aliás, é o que o aproxima da compreensão das massas. Estas, em seu atual grau evolutivo, exigem, antes de tudo, uma manifestação de vontade e de força, pois isto lhes dá a sensação do pastor capaz também de defender seu rebanho. Um santo, um homem apenas de grande engenho, sem qualidades de dominador com que se imponha, seria rapidamente liquidado. Na mentalidade de muitos, é especialmente o chicote que incute respeito, é particularmente o poder material que gera a estima. Há uma harmonia de equilíbrios na vida, pela qual os povos têm os chefes que merecem e os chefes têm o povo que merecem.

 

Diante desse problema da escolha dos governantes, de cuja solução parece tudo depender, observemos que, não obstante, ele tem uma importância relativa. Acreditam os homens que são eles que guiam os acontecimentos, e apenas o fazem em parte; acreditam que sejam os chefes que decidem a sorte de uma nação, ao passo que, muitas vezes, são apenas forças concomitantes. Quem já compreendeu que é a inteligência da História que verdadeiramente dirige tudo, dará valor relativo às formas de governo e ao problema da escolha. Na prática, nos fatos, esta escolha se realiza igualmente, qualquer que seja a forma de governo, por seleção do mais adaptado e por eliminação dos rivais. E quando um chefe não corresponde mais à sua função, qualquer que seja a forma de governo, as leis da vida livram-se igualmente dele liquidando-o, se este não lhes serve mais para seus objetivos. As formas de liquidá-lo poderão mudar, mas o princípio permanece: a vontade da História manda mais que os chefes, escolhe-os, confia-lhes tarefas, tira-os do posto, sempre em vista de seus objetivos. Esta verdade fundamental permanece verdadeira em qualquer regime. Portanto, em substância, o problema da escolha dos dirigentes é mais um problema da vida que um problema do sistema representativo. Muda a forma, mas fica a substância igual, em qualquer regime. Quando soou a hora de ser posto de lado um chefe, não há regime totalitário, absoluto ou policial que o salve. Será afastado por morte violenta ou pela revolução, se isto for necessário, em vez de sê-lo pela falta de maioria de votos, mas será afastado da mesma forma. Temos que convencer-nos da relatividade de todos os regimes, sistemas e expedientes humanos, diante da sábia direção de Deus. Temos que convencer-nos também de que, quando um homem é necessário ao momento histórico, quando é apto a desempenhar uma função vital ou missão, e ele a aceita, qualquer que seja o regime escolhido, a vontade da História achará o modo de, para alcançar seus objetivos, fazer chegar esse homem ao devido lugar, para dar cumprimento à sua missão necessária, como o quer a História.

 

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Observemos, em seu significado, a revolução francesa e depois a russa. Vimos que o fio condutor que as liga e as guia numa direção única, é a conquista da liberdade, aos poucos, segundo a evolução atingida pelos povos. E é justamente levando em conta este conceito acima exposto, do domínio da vontade da História, que podemos prever qual será o novo passo à frente, que ela vai querer que a humanidade dê, no caminho da conquista dessa liberdade. A revolução francesa, abolindo os privilégios, na igualdade, deu ao mundo a liberdade política. A revolução russa, combatendo os abusos da riqueza com a justiça, dará ao mundo a liberdade econômica. Se o caminho da História é um processo de libertação, que vai da escravidão a uma liberdade cada vez maior de que tipo poderá ser a liberdade que a nova revolução quererá conquistar? A lógica, que forçosamente está no desenvolvimento do pensamento diretivo da História, dar-nos-á a resposta.

 

A terceira revolução já começou. As revoluções podem levar até séculos de preparação. O progresso técnico da ciência está preparando as bases materiais, em que se apoiará a nova liberdade. São elas a superação dos limites de espaço e tempo e a libertação do homem do trabalho material, por meio da máquina. A nova conquista da liberdade elevar-se-á sobre as já realizadas pelas duas precedentes: a liberdade política e a econômica. O homem ficará libertado da ideia fixa da preocupação econômica e será servido pela máquina, acionada pela energia atômica. Mas poderá ele, chegado a esse ponto, deter-se e dormir sobre os louros? Não. A vida não pode parar, e com estes novos meios, que se movem de novos pontos de partida, ela continuará a avançar por novas estradas não exploradas. Dominado o planeta, eliminadas as guerras, alcançada a ordem e a paz num governo mundial único, sistematizado a serviço do homem o ambiente externo, será iniciada a penetração no mundo do imponderável, do supersensório, onde jazem inexploradas as minas do espírito, os continentes do mundo interior, as forças mais sutis, penetrantes e poderosas do ser. A revolução será pacífica, mas será a maior e a mais decisiva, porque deslocará o eixo, em torno do qual gira o pensamento humano, porque ela ocorrerá no profundo, mais próximo à substância das coisas e, avizinhando-se da fonte primeira do ser, que está no espírito, transformará nossas formas de vida individual e social.

 

O edifício da liberdade irá elevando-se, assim, cada vez mais alto. As faculdades de raciocínio, que se vão sempre mais afirmando, em larga escala nas mentes do mundo civilizado, já preparam o homem, mesmo no fundo da decadência atual, para que possa compreender claramente as verdades, que até agora só foram reveladas e que permaneceram escondidas nos mistérios. E o homem poderá ser religioso por compreensão direta, e não apenas pela fé. A revolução é complexa, com mil aspectos, repercussões e consequências práticas. Realizar-se-á na profundidade da alma, e realizar-se-á porque os tempos estão maduros, e a vida quer subir ainda, e não poderá deter-se. Após as duas últimas revoluções, a liberdade foi conquistada em todas as direções, menos nesta, que é a única em que ainda não se desenvolveu. Se o progresso, que é lei fatal, quiser continuar, só poderá seguir esse caminho. Tendo sido conquistadas as outras formas de liberdade, só há estoutro tipo, para continuar a inevitável ascese da evolução.

 

Utopia? Mas que utopia maior que esse contínuo desenvolvimento do ser e seu progresso em direção a formas de vida mais altas? E, no entanto, esta utopia se está realizando permanentemente no tempo. Os critérios que o pensamento diretivo da vida segue, são diferentes dos humanos, e quando algo está escrito no livro da Lei, qualquer milagre tem que acontecer e é lógico que a utopia se realize. No momento em que iniciou a guerra, não parecia utopia que a Alemanha a perdes-se? Há cem anos não era utopia o rádio? A utopia existe nas aparências exteriores, que são os únicos elementos que a razão humana, em geral, leva em consideração, mas não o é na lógica da História.

 

Falar de uma nova civilização do espírito poderá parecer, hoje, uma loucura, diante da ameaça do colosso russo que adumbra o mundo. No entanto, o colosso tem os pés de barro. Parece senhor, mas está acorrentado ao seu sistema, que não é o Comunismo, mas a violência e o terror, pelos quais na Rússia todos sofrem e tremem, desde o chefe supremo até o último cidadão. A grande ideia da justiça social, nas mãos de outro povo e lançada com outros sistemas, já teria conquistado o mundo. Mas essa ideia, fechada naquele sistema, não pode frutificar, porquanto aquele sistema significa autodestruição. Uma autodestruição por causa do sistema errado e por causa de quem o utilizou, mas não pela ideia em si; esta, embora obrigada a nascer na Rússia, porque só assim, vestida de violência, podia destruir, abandonará seu duro berço e a terra materna, para crescer e caminhar pelo mundo. Não há necessidade, pois, de agredir a Rússia. Se não for destruído pelos outros, será o próprio Comunismo soviético que matará o Comunismo soviético. E uma vez eliminada esta sua forma e seu sistema de terror, o Comunismo invadirá o mundo. Mas talvez, então, chamar-se-á simplesmente Evangelho.

 

Vimos que o processo lógico da História tende à construção do edifício de todas as liberdades. Mas, estas só se podem conquistar sucessivamente, como os pavimentos de uma casa só se podem construir um após outro. Sobre a liberdade política, elevar-se-á a econômica, e sobre esta a liberdade do espírito. Esta última será a conquista maior, resultado de um esforço maior, realizado por necessidade de circunstâncias a uma curva da História, e desejado pelo pensamento diretivo dela. As três revoluções não estão desligadas, mas representam o mesmo esforço continuado, para alcançar uma libertação cada vez mais completa das sempre mais estreitas formas da escravidão em que estava preso o homem, com sua descida ao longo do caminho involutivo. Se este foi um caminho de encarceramento, o atual progresso é um processo de desvencilhar-se. A primeira fase, involutiva, faz precipitar no limitado, a segunda faz evadir-se dele. É por isso que o homem anseia ascender, de liberdade em liberdade, porque esta é a lei de sua evolução. A próxima curva da História só pode, pois, oferecer-nos uma nova e mais alta libertação de todas as escravidões. É um ascender progressivo, que recorda o desabrochar de uma flor, para achar, cada vez mais perto, o espírito e a substância; é um reconquistar, por graus, a liberdade completa, já possuída no ato da primeira criação, como ser perfeito, e perdida por vontade de revolta.

 

Observemos os degraus desta ascensão. O liberalismo das Democracias, filho da Revolução Francesa, deu-nos a liberdade política. O Comunismo, filho da Revolução Russa, desvencilhado do absolutismo e totalitarismo russo, dar-nos-á a liberdade econômica, na pacífica forma evangélica. Alguma outra nação a quem ninguém hoje repara no mundo, mas que de certo se está amadurecendo em silêncio, dará ao homem a consciência de si mesmo e a liberdade espiritual. Como em todas as revoluções, começa lentamente a acumular-se a pressão interior, que explora o ambiente à procura do ponto de menor resistência, para depois abrir-se uma brecha e explodir como manifestação exterior, aquela que depois é a única a ser percebida pelos homens. O pensamento da História dirige os movimentos, canaliza o esforço, ajuda a explosão, preparando os acontecimentos úteis ao objetivo. O bom êxito de uma revolução é o resultado de mil forças que têm que ser coordenadas, numa orquestração perfeita. Este trabalho não pode ser feito pelo homem, que ignora tudo isso, mas só pelo pensamento e pela vontade da História. Haverá, pois, o concurso de acontecimentos históricos que, mudando as atuais condições do mundo, tornarão possível o que hoje parece utopia.

 

Qual será a nação escolhida? A vontade da História, sendo um momento da Lei de Deus, respeita o princípio universal de liberdade. Prepara, pois, ajuda, oferece, mas não obriga. Com efeito, uma não-aceitação da missão que deve realizar esse passo à frente, produziria apenas um atraso ou uma deslocação topográfica mas, mais cedo ou mais tarde, o fenômeno se verificaria da mesma forma. Já o afirmamos a propósito das outras revoluções. A nação escolhida será, pois, aquela que, achando-se em condições adequadas, estiver pronta ao oferecimento; será aquela que, mais tarde, quiser aceitar esse oferecimento e também souber pô-lo em prática. Se se realizar tudo isso, essa nação terá a glória de ter feito o mundo dar um passo à frente. Depois disso, a ideia, onde quer que tenha nascido, se desligará de seu berço, deixará sua gloriosa mãe e caminhará pelo mundo, porque pertencerá ao mundo.

 

Já bastante falamos alhures, e não é mister voltar a explicar a natureza desta nova transformação. Pode ser chamada a nova civilização do terceiro milênio, ou o advento do Reino de Deus. É a demonstração e a prática do Evangelho, o que implica já haver terminado a conquista das duas liberdades menores, a política e a econômica, para alcançar a liberdade que só um ser consciente pode possuir. Esta só pode nascer em base à aplicação do Comunismo, entendido como justiça social, tal como foi ditada pelo Evangelho. Esta é a consequência lógica das duas conquistas precedentes. Dissemos acima que a ideia da justiça social já teria conquistado o mundo se fosse lançada com outros sistemas. A nação escolhida, portanto, terá que começar a pô-la em prática e lançá-la, livre do absolutismo e do totalitarismo russo. Só em tais bases de verdadeira justiça social, sem escravidão nem terrorismo, poderá ser iniciada a terceira revolução. Não nos espantemos com esta palavra, que ela também pode aplicar-se à obra de Cristo, que foi a revolução mais pacífica e, no entanto, foi a mais profunda. As armas e a imposição à força atuam no exterior, na superfície, por coação, com resultados efêmeros, porque não penetram a alma, em que está a raiz de toda a nossa atividade. Trata-se aqui, ao contrário, de uma revolução interior, em profundidade, uma revolução do sistema, que leva à adesão espontânea por livre convicção.

 

Assim como o mundo passou da injustiça dos privilégios de classe à justiça das igualdades políticas, como está passando da injustiça da superequação econômica à justiça de uma distribuição mais equitativa dos bens, assim passará da escravidão do trabalho material à libertação dele com a máquina e com a ciência (domínio sobre as forças da natureza), e passará depois da ignorância ao conhecimento, e, enfim, do conhecimento à bondade. Muitos, hoje, praticam o mal sobretudo porque ignoram a grande vantagem para si mesmos, de fazer o bem, ignoram o lado utilitário da retidão em todos os campos. O mundo não conhece ainda hoje a técnica deste novo utilitarismo, e comete erros contínuos, que ele vai pagando. É este caminho de esclarecimento racional, a estrada mestra para chegar à ordem, dada pela retidão; estrada que, em virtude das qualidades racionais estarem mais desenvolvidas, o mundo está hoje mais apto a percorrer. Disto nascerá uma convicção clara, como a de quem tudo viu e verificou, convicção que será muito mais forte e poderosa na ação, do que um ato de fé, às escuras. A fé é uma necessidade da humanidade infantil ainda, mas não poderá mais bastar para satisfazer a uma humanidade que se está tornando adulta.

 

O mundo está debatendo-se hoje entre as duas ideias: a justiça social pregada pelo Comunismo e a liberdade proclamada pelas Democracias. E eis que surge a terceira ideia. Sem saber, as duas precedentes são instrumento de preparação para esta terceira e, sem querer, estão trabalhando concordemente para seu advento, pois estabelecem as bases de justiça econômica e de liberdade, necessárias para que, sobre elas, possa elevar-se a superior construção da terceira ideia. Esta destilará o que de melhor houver no Comunismo e nas Democracias e, neste plano mais alto, fundirá as duas ideias, hoje rivais, libertando-se dos defeitos de ambas. Assim, só a terceira ideia poderá resolver equitativamente os conflitos, vistos até hoje unilateralmente e, por isso, ainda insolúveis. Ela poderá então irmanar os inimigos capital e trabalho, sem que o primeiro explore o segundo, e sem que o segundo explore o primeiro; assim, ela respeitará as conquistas milenárias da civilização, levando-as mais adiante sem destruí-las; isto é, respeitará a propriedade e a família, a individualidade e sua inteira iniciativa, mas exigirá que tudo seja feito, especialmente em favor dos deserdados, com um princípio superior de retidão, que é o único que pode melhorar as instituições. Seu defeito principal é sempre o mesmo: saber usar isso bem. O que importa é eliminar esse defeito.

 

A culpa não está nas formas, mas na má vontade que as anima. Acreditar que seja possível essa transformação parece loucura, quando olhamos em torno e vemos o homem de hoje. Mas, também há cem anos, o voo parecia loucura. E o futuro pertence não aos conservadores e repetidores do passado, mas aos pioneiros corajosos, que racionalmente sabem preparar as realizações dos grandes sonhos da humanidade. Que significado teria - e não seria estúpido e inútil - esse jogo de nascer, viver e morrer, através de tantos esforços e tanta dor, se não fosse para ascender, evolvendo para o que é melhor? Até agora, o rei do planeta, vencedor de todas as outras espécies, é ainda um ser meio homem e meio-animal, que funciona em grande parte do instinto, como os animais, que ainda não sabe exatamente porque nasce, vive, sofre e morre, e que, não tendo conhecimento exato das leis e do porquê da vida, não sabe agir conscientemente, por convicção, mas apenas por coação, ou por medo, ou por imitação, ou por fé.

 

A conquista desta nova liberdade exige a formação dessa nova consciência, porque doutra forma se tornaria descontrolada licença, cheia de abusos perigosos. Esta nova liberdade significa que o homem, até agora criança, guiado pela revelação, pelas religiões, leis civis e sanções, e assim, enquadrado forçosamente numa ordem moral e social, já terá agora que caminhar por si mesmo, guiado por sua livre-autonomia de julgamento, um guia não mais imposto de fora, mas que conscientemente nasce do seu interior. Para atingir, porém, isto, torna-se indispensável nova consciência, que só pode nascer começando pelo conhecimento. Isto significa uma visão bem clara de todos os problemas, ter resolvido todos os mistérios, conhecer os bastidores espirituais que estão por trás dos fenômenos, descobrir o pensamento da Lei que tudo dirige, sentir Deus imanente e conformar-se totalmente à Sua vontade. A fase da ordem, imposta com a força, está quase superada. Há de nascer uma ordem livre, filha da convicção de quem tudo compreendeu. Esta é a nova liberdade que temos de conquistar. O mundo está materialmente feito. Torna-se mister fazer o homem, sem o que, não é possível progresso ulterior.

 

 Trata-se de um trabalho imenso. A Ásia e a Europa deram seu fruto. Cabe às jovens Américas empreender este novo caminho. As velhas civilizações oferecem seus frutos de milênios de lutas e dores, sem o que nada se cria, para que hoje frutifiquem nas terras virgens, com elementos mais jovens e virgens. A nação que quiser apanhar esta idéia, a terceira ideia, e a fizer sua, será grande na História. Será a nação que quiser transformar em instituições e vida social vivida, os princípios da Lei de Deus, não só através da fé, mas claramente explicada e racionalmente demonstrada, até o fim. Para iniciar isso, requer-se um gênero de elite ou classe dirigente, bem diferente da que procuram escolher nas filas do povo os sistemas eleitorais vigentes. Trata-se de uma aristocracia do espírito, em que se encontrem e unam os tipos biológicos que já chegaram ao amadurecimento, e dispersos hoje pelo mundo. Sua tarefa é formar o modelo das novas formas de existência. Nestas conquistas, a vida lança primeiro para o alto um pequeno grupo selecionado, como antena de exploração, qual primeira tentativa de antecipação da evolução. Este é o primeiro passo da revolução em sua fase manifesta, e sucede à fase subterrânea de incubação. O primeiro grupo dos mais valentes forma a corrente nova em que, aos poucos, por imitação, em condições de certos ambientes mais aptos, seguem amarrados depois os pesos-mortos das massas. Mas, o impulso dinamizante está antes de tudo na vontade da História, da qual, através dessa aristocracia de novos intérpretes e executores, esse impulso se transmite ao elemento sempre passivo, a matéria inerte das maiorias.

 

Desta vez não será a aristocracia dos privilégios encarregada de criar um tipo mais requintado, nem a aristocracia burguesa do capitalismo encarregada de criar a industrialização e o poder econômico, mas será a aristocracia da inteligência, que compreendeu o tremendo poder do pensamento, a aristocracia da bondade, não somente produto do coração, mas também da mente que compreendeu o grande rendimento utilitário da retidão na vida individual e coletiva. E, dado que a vida é sempre luta contra algum inimigo que obstaculiza a emancipação, desta vez o inimigo não será mais o próprio semelhante, que vamos agredir, mas a nossa própria natureza animalesca para superá-la e vencê-la. Como se vê, guerra contra ninguém, mas apenas contra as inferiores leis da vida, que ainda sobrevivem no homem, com o fim de sobrepujá-las. A emancipação da animalidade - eis a nova conquista; ou seja, um requintamento de vida, não só na forma de fidalguia exterior, mas na substância, que é uma atitude psicológica de compreensão para com o próximo, de ordem na vida social, de bondade para com todos os seres.

 

Embora tudo isso possa parecer utopia, não há outro futuro, se quisermos que haja verdadeiro progresso. Esta é a nova ordem do mundo. Só assim poder-se-á alcançar a eliminação de tantos atritos sociais, que custam tantas dores, conseguir novo aperfeiçoamento de relações civis e mais precisa e justa coordenação, em sentido orgânico, para melhor convivência de todos. Está nas leis da vida esta necessidade de cada vez termos uma coordenação mais perfeita; é fatal que o mundo se avie para a formação de unidades sempre mais vastas e compactas. A luta futura será contra tudo o que é anti-social, contra quem quisesse resistir a essas novas formações, que são instinto humano, necessidade da vida, e representam o mais vantajoso e utilitário sistema de rendimento da atividade humana.

 

Mas para alcançar esse grau mais evoluído de bem-estar, em que devem desaparecer todas as opressões e coações, para ter direito a esta muito mais ampla liberdade, é necessário formar-se novo sentido de autodisciplina interior, porque senão a nova liberdade se transformaria em arbítrio e abuso e, ao invés de conseguir-se uma nova ordem, isto constituiria um elemento de desordem. Cada superação de limites traz um afrouxamento de freios, e implica, portanto, a necessidade da formação de uma nova consciência para que, sirva de freio à nova liberdade. Trata-se de uma deslocação da função constritiva protetora, que parte da coativa, imposta do exterior e que tem que ser suportada à força, para uma livre, imposta pelo íntimo e aceita porque se lhe compreenderam as vantagens. Deve subsistir sempre uma norma, sem o que a liberdade se tornaria arbitrariedade. Apesar de o homem ansiar mais por esta que por aquela, isto é, compreenda arbítrio, quando fala de liberdade, há a sabedoria da Lei que supre a loucura do homem, não lhe concedendo acesso a novas liberdades, enquanto ele não tiver formada a consciência, apta a saber usá-la sem dano para si. E que faria o homem, senão constantes desastres contra si mesmo, se a Lei não soubesse tudo por ele e não o guiasse mesmo à força a cada passo?

 

É assim que a História concede novas liberdades aos povos, só em relação à madureza que eles atingiram. Poderiam ter todas as liberdades, mas o que estabelece a medida dessas concessões é somente o nível de evolução. Assim, estas são acessíveis apenas por graus, e as revoluções só podem conquistar estavelmente as liberdades que mais tarde os povos poderão usar. As outras, para as quais não se está maduro, mesmo se adquiridas por alguns momentos, são rapidamente perdidas. Sobe-se por isso pouco a pouco. O caso limite desta subida é dado pelo ser ao qual podem ser concedidas todas as liberdades, porque ele conquistou o conhecimento da Lei e, portanto, está em grau de compreender o dano que a si mesmo causaria se dela abusasse, e por isso não há mais perigo que abuse. Então, absolutamente livre já, funde-se espontaneamente com o determinismo da Lei, e faz a vontade de Deus ser sua vontade. Em outros termos, o ser, chegado novamente à perfeição, supera todo o separativismo, toda diferença entre si mesmo e a Lei, pois o máximo grau de liberdade coincide com o grau de obediência máxima, na ordem perfeita. Este é o ponto final do caminho que vai do caos até Deus.