Na primeira parte deste volume, expusemos a visão em síntese, tal como nos apareceu por intuição, em seu conjunto. Retomemos, agora, a observação adotando uma atitude psicológica diferente, que justamente chamamos de Análise e Crítica. Embora tenhamos de repetir, voltemos ao início, olhando agora com os olhos da razão, mais do que com os da fé, mudando os pontos de referência e nossa perspectiva, de modo que tudo se torne claro, dando resposta a todas as objeções e resolvendo todas as dificuldades. Observamos o fenômeno da criação no volume Deus e Universo e capítulo II deste livro. Muita coisa dissemos, mas, diante da imensidade do assunto parece-nos nada haver dito ainda. Os leitores, a quem apresentamos estas teorias, devem considerar que estamos observando a obra de Deus, quase como se Ele nos tivesse de prestar contas. Se alguns podem parecer ainda não satisfeitos, porque os frutos que têm nas mãos nem sempre são bons, a estes vamos demonstrar, agora, que Deus fez tudo otimamente e não podia fazer melhor, e, se o ser navega na imperfeição e na dor, a culpa não pode de maneira nenhuma ser atribuída a Deus. Tudo, qualquer que seja o estado atual e por mais difícil aceitá-lo, se desenvolveu em perfeita lógica, bondade e justiça.

Mas, procedamos com ordem. Aqui fala-se de Deus. É mister, pois, começar pesquisando o que entendemos pela palavra Deus. Dissemos que tudo deriva Dele, centro do Sistema, causa primeira de tudo, situado no vértice da pirâmide da hierarquia dos seres. Dissemos, também, que Deus não pode ser definido. Definir significa limitar, delinear, em relação a certos pontos de referência. Ora, o infinito não pode estar limitado e não existem pontos de referência para o absoluto que abarca tudo. Mas dissemos também que as definições, tentadas a respeito de Deus, foram obtidas elevando à potência infinita as mínimas quantidades de perfeição reconquistadas pelo homem com a evolução, ou percebidas, intuitivamente, como futura realização a ser conquistada. Poderemos, assim, atribuir a Deus algumas qualidades.

Foram surgindo à medida que fomos descobrindo o seu modo de agir, sendo lógico e evidente possuir Deus os atributos que cada um de nós, por instinto  e portanto axiomaticamente, gosta de ver num chefe ou patrão. Satisfeita esta exigência, ficarão todos mais facilmente persuadidos. Parece existirem alguns axiomas fundamentais do ser, não demonstrados nem discutidos, em relação aos quais se ergue um consenso universal, axiomas que são aceitos porque neles a mente repousa satisfeita, sem mesmo saber racionalmente o porquê.

A nossa mente, para satisfazer-se, exige, pois, que Deus seja perfeito, quer dizer, possua em grau de perfeição as melhores qualidades conhecidas pelo homem na escala de seus valores. Por isso, o homem procura fazer de Deus um conceito, multiplicando ao infinito tudo o que de melhor possui e pode fazer, de seu ponto de vista situado no relativo. E neste caso o instinto não vai de encontro à lógica. Sem saber como isso ocorra, o homem sente instintivamente estar Deus no cimo de todas as coisas, e é a meta final para a qual tudo caminha. Assim, multiplicando ao infinito os pequenos graus de perfeição conquistados com a evolução, o homem procura imaginar o que possa ser a perfeição completa do Ser Supremo.

Então, tal como exige a nossa mente, Deus deve possuir todas as qualidades no grau da mais absoluta perfeição, e ser absolutamente perfeito em tudo, onipotente, onisciente, absolutamente livre, bom, justo, lógico, uno.

Colocadas em Deus estas qualidades devem ser também atributos da Sua criação, pois esta saiu de Seu seio e, portanto, constituída por Sua própria substância. Isto porque não é possível dar à criação outra causa fora de Deus, que só pode ser o Todo, fora do qual nada pode existir.

Vemos, então, que a criação de Deus só pode ser uma obra perfeita. Das mãos de um Deus perfeito não pode sair uma obra imperfeita, cheia de erros, males e dores, como é a nossa atual criação. A verdadeira criação operada por Deus deve pois ter sido outra, e não a que conhecemos. Esta em que vivemos deve ter sido derivada de outra causa, sobrevinda mais tarde. Não é possível sair desta lógica. Tanto mais que, sendo Deus onipotente, não poderia haver obstáculos à consecução da perfeição; e sendo onisciente, não podia cometer erros.

De uma tal criação só podiam nascer seres absolutamente livres. Ora, se a perfeição implica na existência dos seres de forma disciplinada, de acordo com uma ordem e uma lei que estabeleça tal ordem, isto não podia de forma alguma acontecer num sistema escravagista, mas apenas no regime de absoluta liberdade.

Mas Deus deve ser, também, sumamente bom. Então, a criação não pode ser fruto de seu egoísmo, mas apenas um ato de amor pela Sua criatura. E Deus não pode deixar de continuar a amá-la sempre, procurando a sua felicidade. Ora, vemos quão longe estamos disso em nosso mundo. Então, se isto ocorre porque Ele não tem o modo de no-lo dar, Deus não é onipotente; e se Ele não no-la quer dar, Ele não é bom. E se é onipotente e bom, porque não no-la dá? Por ser bom, Deus representa o bem. Por que permite Ele, então, a existência de tanto mal em nosso mundo?

Aqui não estão de acordo causa e efeito. Ambas devem ser da mesma natureza e ter os mesmos caracteres. Se entre causa e efeito há essa discordância, isto demonstra ter sobrevindo outro fato, alterando a ação da causa pela introdução de novos impulsos estranhos. De outra forma não se pode explicar essa injustiça num Deus que deve ser absolutamente justo, esta ilogicidade num Deus que deve ser absolutamente lógico.

Deus deve ser justo, isto é, imparcial, sem favoritismos e dádivas não razoáveis e injustas, porque não merecidas. Surge, assim, a idéia de uma ordem e de uma lei que a dirija. Um Chefe, com o direito de comandar e para com o qual se tenha o dever de obediência, não podendo ser um déspota caprichoso que abuse do poder em suas mãos. Compete, em primeiro lugar, a quem personifica a lei, representar a sua perfeita atuação na ordem e na disciplina. Só quem jamais transgride pode ter o direito de exigir a obediência. E se esta Lei representa apenas o próprio pensamento e vontade de Deus, com isto Ele obedece apenas a Si mesmo em perfeita liberdade. E se a criatura tem de reconhecer em Deus o direito de comando, isto implica, de seu lado, o dever de obediência; e se esta não for respeitada, por causa da revolta, implica a merecida reação da justiça de Deus. É assim que, só pela simples observação das qualidades que devemos atribuir à Divindade, vemos, já presentes, todos os elementos dos quais poderá, mais tarde, desenvolver-se lógica e fatalmente, o drama da queda.

Mas Deus deve ser também uno. Ou seja, não apenas ser único, possuindo tudo dentro de si, mas deve também ser unitário, e não cindido em formas contrastantes. Não pode haver em Deus aquele contraste entre qualidades opostas, pertencente ao nosso mundo, contraste, pois, que deve ter outra origem, sobrevinda mais tarde. Deus só pode ser todo positivo, afirmação. O aspecto negativo do ser não pode ter tido origem direta de Deus. Ora, se uma das qualidades fundamentais de nosso mundo é justamente o dualismo, e se este não pode de maneira nenhuma existir em Deus, nem na criação, que saiu do Seu seio, então este dualismo só pode ser o resultado de uma ruptura, posteriormente ocorrida na obra de Deus.

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Tendo assim feito da Divindade o máximo conceito que nos é possível, seres situados no relativo, vejamos agora como Ela operou na criação. Neste Seu operar, devem reaparecer as Suas qualidades, pois Deus operou de acordo com elas, que constituíam a Sua própria natureza. Dessa forma, podemos imaginar como foi executada a criação, ou seja, aplicando-lhe as características próprias de Deus.

Eis então como, mediante simples imagens, podemos fazer uma representação mental de como ocorreu a criação.

Em ilimitada planície deserta, onde nada havia, nem uma casa, nem um fio de erva, nem ser algum, uma planície tão igual que impossível fosse ali estabelecer qualquer ponto de referência ou de distância, nesse espaço incomensurável havia um bloco imenso, sendo ele a única coisa que podia existir.

Só ele existia ali. Além dele, nada mais havia, sendo tudo o que podia existir ali. Dizemos “só”, porque vivemos em relação com outros seres, mas não estava só, pois compreendia dentro de si todos os seres. Uma parte pode permanecer isolada se lhe falta qualquer outra parte, mas não o pode quem abarca tudo dentro de si, porque dessa forma, faltam-lhe, do lado de fora, pontos de referência para poder estabelecer a própria solidão em relação a eles.

Assim sendo, ele não podia olhar para fora de si, pois fora de si nada mais havia. Olhava então para dentro de si. Sendo este bloco, uma unidade, feito não de matéria, mas de pensamento, esta sua auto-contemplação, representava a consciência que possuía de sua existência, consistindo num pensamento único, sintético, homogêneo, indiferenciado, imóvel, concentrado em si mesmo.

Mas eis que, em dado momento, nesse estado de autoconsciência imóvel, se inicia um movimento de descentralização, pelo qual esse pensamento se torna multíplice, analítico, diferenciado, imóvel, resultante de muitos pensamentos diferentes. Esses pensamentos diversos são as criaturas nascidas da primeira criação, feitas de puros espíritos.

Isto não significa, porém, ter sido perdida a unidade do pensamento de origem. Ao contrário, a necessidade dessa unidade permanecer íntegra – sem o que teria desaparecido o supremo “eu” da Divindade – impôs também a necessidade dessa multiplicação ocorrer em sentido orgânico. Em outros termos, nesta primeira criação não podia nascer uma multidão de elementos iguais, simplesmente se somando no todo, mas apenas um sistema, um verdadeiro organismo do qual fossem parte integrante, como hierarquia de posições e distribuição de funções, como é necessário em todo organismo ou sistema. Satisfaz a nossa mente e nos convém pensar que o processo dessa criação tenha sido regido por uma concatenação lógica, sendo esta uma das qualidades da Divindade. Eis como aparece logo, necessariamente, em virtude dessa lógica, a idéia do Sistema, ou seja, que a criação não produziu apenas uma simples multiplicidade, mas um verdadeiro organismo. Daí nasce a necessidade de admitir-se a presença de uma ordem, e portanto de uma lei que discipline os movimentos de todos os elementos constitutivos do Sistema, lei que representa a continuação da autoconsciência da Divindade que, como pensamento central, situado no topo da hierarquia, a dirige e, dessa forma, dirige todo o Sistema.

Só assim o Tudo-Uno-Deus podia, apesar de tão grande transformação, permanecer idêntico a si mesmo. Se Deus era Tudo, é lógico que a criação não podia ocorrer fora de Deus, mas só dentro Dele. Mas era necessário, também, que isso tudo não alterasse, de nenhum modo, a unidade de Deus. Podemos imaginar o estado antes da criação como um incêndio, com luz e calor, igual em todos os seus pontos; e, após a criação, como o mesmo incêndio organicamente dividido em muitas centelhas. Cada criatura é uma centelha, da mesma substância do fogo de origem, todas juntas continuando a constituir elementos de um todo que permanece, após as transformações, idêntico a si mesmo, tal como era antes.

Eis então que, ocorrida a criação, Deus se nos apresenta como uma unidade orgânica constituída por muitos elementos diferentes, mas mantidos ligados pelo estado orgânico, no qual se transformou o Todo, assim como todas as células de nosso organismo físico são mantidas ligadas por seu estado orgânico, sem o qual elas, também consideradas como seres separados, não podem viver. Daí a absoluta necessidade dessa concórdia e dessa unidade que rege o sistema, sem as quais tudo desmorona. Dessa forma, é fácil compreender o que pode ocorrer à mínima desordem. O fato de cada elemento possuir agora a sua individualidade separada, qualquer menor egocentrismo seu, à semelhança daquele egocentrismo máximo de Deus, torna possível ocorrer uma desordem tão logo falhe a obediência à disciplina imposta pela lei. Por isso há necessidade absoluta de todos os elementos permanecerem ligados, conjuntamente, no mesmo estado orgânico do Sistema, sem o que desmorona a unidade do bloco, no qual permaneceu o Tudo-Uno-Deus, tal como era antes.

Podemos imaginar o estado de origem como o de uma estátua de mármore igual em todos os seus pontos. Um dia esse mármore se transforma em uma porção de células vivas, hierarquicamente disciplinadas, governadas por uma lei à qual é desastroso desobedecer. Elas se reagrupam em tecidos e órgãos e desempenham determinadas funções, das quais depende a vida do organismo, tanto quanto as suas.

Assim ocorreu a criação e nisso consistiu. Só nesta segunda parte, de análise e de crítica, podíamos observá-la mais detalhadamente. E para nos tornarmos mais compreensíveis tivemos de nos apoiar em representações concretas. Trata-se de imagens torcidas e opacas, porém só estas pode o nosso mundo oferecer-nos.

Temos de admitir essa criação, porque representa o terceiro momento da Trindade, que sem isto permaneceria incompleta. Trindade composta, como vimos, de três pessoas ou momentos, ou seja: Espírito (a concepção), Pai (o Verbo ou ação), Filho (o ser criado)1 . Isto quer dizer que a Divindade, esgotado o processo da criação, se achou constituída no estado do Filho, ou unidade coletiva ou sistema orgânico, em que permaneciam íntegros os dois estados precedentes. Permanecia o Espírito ou concepção, porque subsistira na obra o plano geral e a lei que lhe disciplinava o funcionamento. Permanecia o Pai ou a ação, porque aquela lei era também vontade de realização, não apenas norma, mas também poder de atuação. E no estado orgânico do Sistema, a multiplicidade dos elementos fundidos na ordem da Lei, constituía uma unidade coletiva, em que Deus permanecia o Tudo-Uno-Deus.

Era necessário esclarecer até o fundo, agora que podemos analisar o fenômeno, estes conceitos que representam o seu ponto de partida, porque se não os tivermos compreendido, não poderemos tampouco compreender depois o fenômeno da revolta e da queda, nem os fatores já presentes que o possibilitaram e nem o modo como o processo, dadas as suas premissas, se desenvolveu com logicidade férrea.