A Grande Batalha

Em nossa história, chegamos ao momento decisivo em que as forças opostas lançam o ataque, para impor ao fenômeno diretivas próprias. Surgindo então o perigo de ser o fenômeno desviado do plano estabelecido pelo Alto, é o Alto que tem de intervir necessariamente, mostrando? Se exteriormente de modo claro na ação, fato que tornou possível a observação e depois a presente descrição.
Os dois exércitos defrontam-se, prontos a empenhar-se na última batalha decisiva. De um lado o exército humano, tangível, armado de todos os meios, organizado e poderoso na terra, pela riqueza de recursos1 pelo conhecimento do ambiente, pela coalizão de forças, por finura de astúcias. Do outro lado aparentemente nada mais que um desarmado, evangelicamente simples, só, fraco, pobre, sem conhecimento do ambiente, um desgraçado que parece quase oferecer-se como um convite para que o outro o vença. Por trás daquele desgraçado, porém, estava o exército invisível das forças espirituais, armadas de outros meios, organizado e poderoso no céu, com recursos e conhecimento bem diferentes.
As forças humanas aliaram-se e, com seus métodos, puseram-se em ordem de combate. Seu plano esta bem estudado. Preparam para o desarmado caminhos sem saída, de modo que fique preso neles, ou caminhos com uma só saída: a que o fará derrotado. A conclusão tem de ser sempre a mesma: ou age assim ou está perdido. Ou faz de outra forma, e está igualmente perdido. Em qualquer caso fica vencido e podemos domina-lo. Tudo estava organizado e previsto para constranger a submissão É a caça que encurrala a vítima para a armadilha em que ela "deve" cair de qualquer forma. O desarmado estava pois vencido de saída, e da parte oposta podia contar-se, com certeza, com a vitória. Não havia necessidade, pois, de salvar as aparências e podia permitir-se descobrir os próprios planos.
Mas foi justamente essa afoiteza deles, decidida a arrasar qualquer obstáculo, que obrigou o Alto a intervir de forma evidente. Entrou em jogo, então, no sistema de forças do fenômeno, um elemento totalmente imprevisto da parte contraria, que deslocou a situação. Deixando-se dirigir pela psicologia humana com os únicos elementos a disposição daquela forma mental, calculara que o fenômeno só pudesse desenvolver-se segundo certos caminhos, sem suspeitar que se podiam abrir outros não vistos, situados no imponderável, e que resolveriam tudo de modo diverso.
Foi assim que nesse momento entrou em ação e começou a manifestar-se com inexorável tenacidade a pressão das forças do Alto. Essa pressão exprimia-se com tendência constante a inversão dos impulsos provenientes do campo dos homens do mundo, de forma que estas, antes de atingir o alvo contra o qual eram lançadas, sofriam automático processo de inversão, tornando-se assim contraproducentes para quem as lançava e ajudavam aquele que devia suportar-lhes o choque. Assim toda atividade, os expedientes, as astúcias movimentadas pela parte humana, não só não produziram nenhum dos efeitos desejados, como retornaram como prejuízo de quem as movimentara, e como proveito de quem teria devido ficar prejudicado. Quem queria fechar as estradas sem saída, ficou fechado; quem queria enganar, ficou iludido; quem queria forçar para vencer foi constrangido a perder. Isto confirma mais ainda o que sempre afirmamos, ou seja, que o que se faz ao próximo se faz a si mesmo, e o tratamento que damos aos outros acaba sendo o tratamento que damos a nós mesmos.
As forças do Alto deixaram que os atacantes ficassem enganados por sua própria forma mental. A aparente fraqueza indefesa do atacado induzia-os em erro. De fato, eles estavam combatendo um ser de que nada haviam compreendido, mas acreditavam ter compreendido tudo. Daí sua estratégia completamente deslocada. Estavam seguros, por longa experiência, da bondade de seus métodos, já que no passado tinham dado provas de eficácia. Confiaram pois, plenamente, neles. Mas antes tratava-se de casos comuns, de coisas humanas, em que o Alto não tomava parte. Escapou, completamente àqueles homens o lado imponderável do fenômeno, porque não contaram com ele. E assim foram disparando seus golpes, considerados de infalível efeito, sem jamais atingir o efeito desejado. Mas eles só possuíam a forma mental própria de seu plano e portanto não podiam usar outra estratégia: não conheciam outra e não era possível improvisar uma diferente. Enquanto não faz o esforço necessário para subir a planos evolutivos mais altos, cada um fica inexoravelmente preso à forma mental e métodos de vida do plano que lhe e próprio.
Achavam-se situados no mundo em que a força decide, mas neste caso a descida das forças do Alto impunham uma lei diferente: a da justiça. Assim os movimentos seguiram direção diversa, não mais determinada pela força, mas pela justiça. Os golpes, sendo apenas produto da força e não da justiça, mudavam a trajetória recaindo sobre quem os havia dado, tudo com prejuízo seu. O fato de haver preparado para o desarmado — qualquer coisa que fizesse — estradas sem outra saída que a derrota, fechou aqueles homens em estradas sem outra saída senão a derrota. Esta ó a lógica imposta pela justiça, assim que se suba a um nível evolutivo mais alto. No mundo da justiça a inversão produz inversão. As forças negativas só podem trabalhar em sentido negativo, o que significa contra si mesmas e em favor das forças positivas. Se essas forças negativas pudessem trabalhar construtivamente em favor próprio, elas Jó não seriam negativas, mas positivas, e então a técnica de sua ação seria a oposta.
Verificou-se desta maneira um fato estranho: na terra, a verdadeira batalha foi feita por uma só das partes, ou seja, pelas forças negativas contra si mesmas, para autodestruir-se. Assim, enquanto daquele lado cada movimento se resolvia produzindo dano a quem o realizava, o desarmado não combatia, mas, utilizando o sistema evangélico da não-reação, limitava-se a observar como as forças negativas ficavam presas na própria rede, e como trabalhavam intensamente para a própria eliminação. No entanto, humanamente os planos estavam bem arquitetados, as astúcias eram sutis, os movimentos hábeis e fortes os poderes terrenos. Não obstante, tudo acabava produzindo o efeito contrario.
No Alto vigora o me todo da não-resistência, que atinge os melhores resultados sem nenhuma necessidade de agredir nem lutar para defender. Deus faz guerra pacificamente, deixando que a vontade de negação dos rebeldes atue em relação a eles mesmos, ou seja, deixa-se inativo, retirando-se deles e abandonando-os a si mesmos. Nada resta mais as forças negativas, então, que sua negatividade, a tendência ao não-ser, isto ó, a autodestruição. Retirando-se Deus, que é vida, só lhes resta a morte. Nós é que temos necessidade de Deus, e não Deus de nós. Por uma lei biológica, independente de qualquer filosofia ou religião, esta é a sorte de tudo que ó negativo, egoísta, separatista e por isso antivital. Cada centro só pode irradiar os impulsos da própria natureza. Assim todo centro negativo semeará, em toda parte, destruição em redor de si, dando prejuízo a quem entrar em sua esfera de ação. Por isso as forças do mal são perigosas. Mas quanto mais negativo for o centro dentro de si mesmo, tanto mais poderosa se realizara aí a destruição, já que a sua irradiação é tão ativa e poderosa Se na periferia as forças do mal possuem tanto poder destrutivo, quanto mais serão elas corroídas dentro do próprio sistema de forças!
Do lado oposto, pela mesma lei de justiça ocorria exatamente o contrário e tudo se resolvia em proveito. A simplicidade chegava mais longe que a mais fina astúcia, a falta de meios dava resultados melhores que a riqueza, ter abandonado as armas transformava-se em força. Os próprios adversários surpreendiam-se com esses resultados e, de acordo com sua psicologia só podendo atribuí-lo a astúcia, acreditavam nos efeitos de nova técnica de sutileza inédita e queriam aprendê-la para aproveitá-la. Mas estava completamente fora de sua capacidade chegar a compreender que a razão dessa força e êxito consistia apenas no método usado, que era o da simples verdade. Estavam prisioneiros de sua forma mental dada pelo seu sistema e dela não sabiam sair. Para eles era inconcebível que se pudesse vencer com estratégia e meios tão diversos. Eram assim vencidos sobretudo por sua congênita incapacidade de compreender o inimigo, sendo sua natureza completamente diferente daquela em que eles acreditavam, ou seja espiritual, e não material. Continuavam por isso a engolfar-se pelas estradas de seu sistema, que vimos ser contraproducente: continuavam a trabalhar só em prejuízo próprio e para vantagem da parte contraria. Não sabiam que o homem se move dentro de leis inevitáveis e que fatalmente as forças negativas só podem trabalhar para sua própria destruição. Para escapar às tenazes do invisível que não conheciam e no qual não acreditavam, apegavam-se cada vez mais as forças materiais, que justamente mais os afundavam, reforçando sempre mais o principal defeito de sua estratégia, que era o de ser movida por impulsos negativos que a tornavam estratégia de autodestruição. Colocados nesse caminho errado, atentavam só a construir com material humano um castelo cada vez mais alto e mais instável, pronto a cair-lhes em cima; atentavam a acumular cada vez mais astúcias, construindo em torno de si uma rede cada vez mais intrincada e densa, para ficar sempre mais enredados.
Não estamos desaprovando nem condenando, nem mesmo julgando, porque sabemos que nossa aprovação ou desaprovação não tem peso nenhum. Apenas observamos a maravilhosa técnica do fenômeno da descida das forças do Alto para defender a realização de uma missão; procuramos penetrar o segredo da força dessa estratégia para compreender a razão de sua vitória.
Para os homens do mundo   dado o sistema por eles seguido   as dificuldades se tornavam cada vez maiores. O sistema da insinceridade abria sempre novas brechas no edifício deles e era mister escondê-las e calafetá-las com sempre novas e maiores astúcias. De fora nada devia aparecer; o edifício devia mostrar-se perfeito, precisava a qualquer custo conservar a veste cândida do irrepreensível. Mas isto tornava-se cada vez mais difícil e com a dificuldade crescia sua preocupação. Com isto, a estratégia tornava-se nervosa, intempestiva, sempre mais contraproducente. É verdade que conheciam as escapatórias humanas. Mas estas servem para aparecer e não para ser. O simples fato de aparecer de fora sem existir por dentro constitui a maior fraqueza de qualquer construção, que dessa forma não se mantém por força própria, mas só mercê de estacas, e depende delas, enquanto é continuamente minada por dentro por sua íntima vacuidade.
Apesar de tanta sagacidade, sendo o revestimento uma aparência mais fraca que uma substância robusta, ele se rasga de todos os lados, deixando transparecer a verdade. Cada vez menos conseguia-se esconder tudo, algo transparecia, e o mundo, impiedoso e ávido de colher o próximo em erro, preparava-se curioso ao banquete que faz gozar no plano humano quando pode agredir-se alguém. Banquete muito mais agradável, porque se podia nele tomar parte como puros censores em nome da retidão. Os espectadores, filhos do mesmo plano de vida que os antagonistas, assistiam ao duelo como a uma festa para ver qual dos dois combatentes era o mais fraco, a fim de poder condena-lo por fim, como se costuma fazer gloriosamente com os vencidos no plano humano.
Os antagonistas bem conheciam essa lei de seu plano. Por isso tinham necessidade absoluta de parecer fortes a todo custo, já que sabiam que, ao primeiro sinal de fraqueza, seus próprios companheiros, os de seu grupo mesmo, seriam os primeiros a condena-los. No momento, mantinha-os unidos o vínculo do interesse comum, que freava o natural instinto egocêntrico de um eliminar o outro. Mas sabiam todos que só podiam esperar respeito se fossem os mais fortes. Todos tinham de obedecer a lei de seu plano de vida. Em nenhum pensamento nem ato podiam sair de sua natureza qualidade. Até o que lançavam contra o desarmado só podia ser igual ao alimento de que se nutriam e a carne de que eram feitos, como sua estratégia só podia ser dirigida por sua forma mental. Sabiam bem que se perdessem, demonstrando-se fracos e portanto dignos de desprezo, nada podiam esperar dos amigos, que só respeitavam a vitória. No plano humano só se considera, de fato, virtude digna de respeito a força, com que se pode vencer.
O evoluído pertence a outros pianos de vida. Nestes, as ligações que unem os seres são de natureza diversa, sinceras e tenazes, o vínculo é constituído de amor e bondade e não de cálculo utilitário; o instinto não é condenar e esmagar, mas ajudar o fraco vencido. Aqui a amizade não cessa, mas se reforça com a desventura. Aqui a vida não se baseia no egoísmo que separa, mas no altruísmo que une, irmana e por fim constrói.
Para o involuído não existe piedade, mas apenas a lei do mais forte. E no entanto bondade e altruísmo — que ele considera fraqueza que deve ser evitada — quanto gostaria ele de achar no próximo, especialmente na hora da desventura! Mas como achá-los, se o próximo que é bom representa, segundo a lei de seu plano, justamente o elemento que precisa ser eliminado? A bondade não é considerada pelo mundo como fraqueza, da qual se tem direito de aproveitar? E logo que aparece no mundo um homem bom, generoso, altruísta, não é logo posto fora de combate? Em nosso mundo, todos se ajoelham diante do mais forte que venceu, a quem cabe o direito de impor sua verdade, embora seja eticamente o pior e evolutivamente o mais atrasado. E que podemos esperar dele?
Forma-se, assim, uma vida sem bondade nem confiança, uma vida de luta cada vez mais árdua. o amigo, logo que lhe convenha, torna-se inimigo; cada ato pode ser invertido; cada palavra, ser um engano; cada passo, um alçapão armado. Sabem-no os involuídos e com isso sofrem e tremem. No entanto, não têm outros aliados para escolher, porque os honestos não fazem liga com eles . Estes poderão ser suas vítimas, nunca seus companheiros. O involuído, admirador da força, beija os pés do próprio superior, pronto a traí-lo logo que lhe convenha e o consiga, e despreza e pisa os menos fortes, os próprios inferiores. Num mundo em que se aprecia a força, o involuído mostra-se afoito contra o inimigo, porque se sente forte enquanto é ajudado pelos próprios companheiros. Então os amigos procuram empurra-lo para a frente, para depois deixá-lo sozinho em caso de perigo. Então, se as coisas vão mal, se algo transpira e surge a necessidade de um culpado que sirva de bode expiatório, que justifique tudo diante da opinião pública, o mais fraco do grupo, embora menos culpado, é sacrificado à deusa justiça e, com zelo exemplar é oferecido em pasto ao inimigo. Aplacam-se as exigências da lei civil e moral, a ordem é salva e a comédia termina, porque os outros, mais armados de força e astúcia, acharam a escapatória e já estão a salvo, com segurança.

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Tudo isto é conseqüência lógica da lei que vigora no plano animal humano, a lei da luta pela vida, para seleção do mais forte. As leis civis e religiosas são apenas um verniz por cima desta que, infelizmente, é a dura realidade da vida. Regime de prepotência, de todos contra todos, esta é a atmosfera do ambiente terrestre. Mas não poderá sê-lo sempre. O progresso é um fenômeno irresistível a que ninguém pode escapar. Diz o Apocalipse que chegará o momento resolutivo: então que os maus se tornem piores e os bons melhores, para que finalmente ocorra, segundo justiça, a separação e cada um ocupe o lugar que merece e acabe assim essa mistura que permite aos mais prepotentes esmagarem os melhores. O mundo será então purificado dos involuídos lançados em ambientes inferiores, proporcionados a eles, e será possível na terra viver o Evangelho, dedicando-se a trabalhos mais civilizados e proveitosos, que não o de devorar-se reciprocamente. No entanto, cada um vive como quer, mas no bem ou no mal, em qualquer nível, cada um é prisioneiro do próprio método, pelo qual é arrastado até as últimas conseqüências. Por isso, apesar de sua força e astúcia, o involuído é um condenado. Assim, o próprio fato de querer basear-se no sistema da força, em vez de fazê-lo no da justiça, faz dele, em última analise, um fraco destinado a ser vencido no final.
Apesar de todas as aparências em contrário, a posição substancial dos dois, involuído e evoluído, é completamente diferente do que parece A segurança do involuído é fictícia e mantém-se enquanto dura a força individual para resistir a todos os assaltos, dado o ambiente de agressividade geral. A segurança do evoluído ao invés é real, porque se baseia na justiça, e o honesto é automaticamente protegido num ambiente de concórdia geral. Então, apesar de o indivíduo parecer forte, porque armado, e o evoluído fraco, porque desarmado, o que conta não é estar sobrecarregado por um monte de armas, se deve viver num mundo de explosivos, quanto o viver num ambiente de ordem e paz, mesmo sem possuir uma só arma. Ao evoluir, o ser entra nesse ambiente, onde o que lhe protege a vida é a justiça e o viver segundo a lei, e não a força que, sendo injustiça, vai contra a vida.
A solução do problema não está, pois, no sentido em que o mundo a entende, ou seja, vencer a todos submetendo o próximo, mas no transformar-se com a própria evolução, de modo a tornar-se digno de viver em planos mais altos de existência. Então o forte da terra, que vê seu valor na vitória sobre os semelhantes, é, ao invés, um fraco, preso à baixeza de seu plano de vida, do qual não sabe sair, é um vencido condenado a permanecer no meio de todas as dores próprias desse plano. Com seu sistema de revolta, o involuído está imerso num regime de extorsões, que ele pode praticar contra os outros, mas que também os outros podem empregar sempre contra ele. Acha-se então em continua posição de desequilíbrio, fora e contra a lei de justiça, que não deixa de existir e de exigir os devidos ressarcimentos só porque o ser será situado nos planos inferiores da vida. Esse constante endividar-se, devido à violação contínua pela estratégia de prepotência, deixa sempre abertas as portas a todas as reações merecidas que estão suspensas como uma espada de Dâmocles sobre a cabeça de quem as provocou. Ao primeiro sinal de fraqueza, desencadeiam-se sobre o desgraçado tão endividado e que terá de pagar seu débito. “Quem usa a espada, perecerá pela espada”. Uma vez tomadas as armas, entra-se num sistema de que é difícil sair, já que isto não é possível enquanto não estiverem engolidas todas as ofensas perpetradas no passado. Explica-se assim como possa a arma tornar-se uma necessidade vital nos ambientes inferiores, e até ser justificado seu uso com o que se chama a legítima defesa. Uma vez começado o sistema das armas, não se pode mais deixá-lo, porque se fica preso no encadeamento sem fim da ação e reação, do ataque e da defesa, pelo que da guerra sempre nasceu guerra e o processo jamais se resolve. Resta apenas o que a história nos mostra: uma vida de luta contínua, de guerra perpétua, que pode considerar-se o estado normal, intercalado por períodos de paz armada, necessários para preparar a guerra.
Ao contrário, o evoluído, embora não armado e aparentemente fraco, acha-se numa condição natural de força, porque está situado dentro da lei de justiça, em posição de obediência e harmonia, e não de revolta e débito. Realiza suas funções no âmbito da lei em perfeito equilíbrio, que tende assim a manter-se estável, pois não é fruto de usurpações. Vivendo organizado na ordem, sem complicações de astúcias e fingimentos, opera simples e retilíneo por um caminho que é o mais rápido e seguro para chegar à meta, já que está salvaguardado do perigo de permanecer emaranhado nas próprias redes. Se o involuído é forte no plano humano porque está armado, é fraco diante da justiça de Deus, a quem tem que dar conta; ao contrário, o evoluído, mesmo sendo fraco no plano humano porque está desarmado, é forte diante daquela justiça, porque não tem débitos a pagar abandonou os métodos do mundo e adotou os do Evangelho, entrando com isto no âmbito de outra lei, cabendo agora a ela o cuidado de defender sua vida. Se ele se enfraqueceu no plano humano onde qualquer um pode vencê-lo, tornou-se forte num plano mais alto, em que os fortes do mundo são fracos e os vencedores dele se tornam vencidos.
Vive num regime em que a paz é o estado natural de equilíbrio normal e não uma fase excepcional de repouso no inesgotável encadear-se de ataques e defesas, intercaladas por paradas apenas para preparar novas guerras. Sua paz é duradoura porque não é armada nem fruto de imposições. Se a paz do mundo é imposta à mão armada, que pode ela gerar senão a máxima reação possível por parte do vencido? Acontece então que quanto mais se consegue vencer, mais inimigos surgem contra o vencedor, inimigos que não aparecem contra quem não vence. Tudo tende a equilibrar-se. Assim que surge um dominador poderoso, logo lhe salta à frente o antagonista proporcionado. Compreende-se assim como, no fim, esse jogo de luta continua de todos contra todos — sejam indivíduos ou nações — seja fruto apenas de uma ilusão psicológica, cuja finalidade não éde fazer vencer, mas de impelir o homem a evoluir. Isto porque a luta, por causa do perigo de perder a vida ou a liberdade, obriga o homem a aprender a defender-se. O medo do prejuízo, os golpes recebidos, representam uma escola que ensina, embora com ferocidade de método, mas que é proporcional à sensibilidade dos seres desse plano. Assim a inteligência desperta por meio da dor a grande mestra da mais profunda sabedoria. Por trás desse jogo de triunfos e derrotas, jogo de ilusões ao qual o ser é atraído pelos instintos que o manobram, o verdadeiro trabalho útil que se realiza em substância é a evolução, supremo objetivo da vida.
O evoluído está fora desse triste jogo de lutas, ilusões e dores. Mesmo que o mundo o despoje de tudo, nada se pode tirar dele, porque seu tesouro está em outra parte. Mesmo se o matassem, a morte o libertaria da pena de ter que viver neste inferno. Para ele, morte é libertação na ressurreição, e dor é instrumento de evolução. Quem não pertence ao mundo e vive completamente destacado, nada mais pode perder. Um só dano é possível, o de retroceder a planos inferiores, involuindo, como, para o involuído, só há uma utilidade: progredir para os planos superiores, evoluindo. Para o evoluído a descida é o pior dos males; para o involuído, subir é o maior dos bens.

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Continuava assim desenrolando-se o caso que narramos. Os diversos elementos conduziam a luta, cada um segundo a própria estratégia. Continuemos a observar. O instrumento achava-se no centro da batalha, entre dois fogos: de um lado o assalto das forças do mundo, do outro a descida das do Alto. Ele vivia intensamente, observando e recordando o episódio em que se achava mergulhado, a grande luta entre as potências do bem e as do mal que disputavam o homem. O instrumento estava esmagado. É verdade que as forças espirituais o sustentavam, mas os golpes materiais eram dirigidos contra a sua pessoa, já que os adversários não viam outro alvo. E ele não era lutador no terreno e na forma humana. A vitória desse ser, feito para outro trabalho, num campo que não era o seu, constituía uma prova da presença do Alto, pois de outra maneira não se poderia explicar esse triunfo.
Embora substancialmente defendidos, viver no meio de uma batalha não é uma posição cômoda de repouso. Quem tem que realizar uma missão deve dar sua contribuição de sofrimento pessoal, pelo que a parte humana, — triunfando toda em redor — é como que triturada na fraqueza dele. Por vezes as forças do mal martirizam o instrumento e parecem vitoriosas. Então torna-se seu o tormento da luta, as ânsias do perigo, a paixão pelo bom êxito. Por momentos, tudo parece ruir, a obra parece destruída, e inútil o sacrifício de toda vida. Por Instantes parece faltar o apoio do céu, parece que o Evangelho não diz mais a verdade, tendo sido apenas um erro confiar nele. Parece mesmo utopia, e parece que o mundo tenha razão. A frase: "buscai primeiramente as coisas do espírito, o resto vos será dado por acréscimo", parece estar invertida, e ser verdade o contrário: "não percais tempo com as coisas do espírito, mas cuidai em defender-vos, senão sereis esmagados".
Prever e prover é considerado sabedoria humana. Mas certas vezes parecia que as forças do Alto se ausentavam indiferentes, desinteressando-se pela luta e por seu êxito, enquanto a maré avançava ameaçadora. O evangelho parecia não funcionar mais. A prova era dura para quem confiara totalmente nele e não tinha outra defesa. Sem dúvida, o auxílio sempre chegava, mas nada aparecia até o último momento decisivo. Parecia que a salvação demoraria muito, para ser oportuna. Era o fim. Ela não chegava, nenhum sinal a anunciava, não se sabia como pudesse chegar, tanto que até parecia impossível. Via-se o barco afundar e Cristo parecia dormir.
Quantos exames de consciência se fazem nessas horas escuras, em que parece que Deus nos abandonou, para saber se merecemos e para tornar a ter contato com o Alto! Esse parece escapar-nos. Procura-se então cavar cada vez mais fundo dentro de nós mesmos, para achá-lo. Contribuição de dolorosa maceração que o instrumento tem de dar, sem o que não pode continuar a ser instrumento. Essa é sua pequena contribuição, o oferecimento do sacrifício da própria natureza inferior, às potências do espírito, para seu triunfo. Sacrifício que representa profundo trabalho de maturação e, com isto, a maior conquista como ascensão evolutiva. Justamente essa purificação no sacrifício é que atrai as forças do Alto e as faz correr em auxílio; esta é a condição para que o Evangelho se demonstre verdadeiro. Batismo de dor, que constitui a primeira investidura para o cumprimento de uma. missão. Então a dor não é, como acredita o mundo, uma derrota; mas se torna um poder positivo construtivo, uma atividade criadora, uma condição de vitória. Mesmo na hora triste em que o mundo parece triunfar e parece vão o esforço dos operários do bem, eles estão construindo sempre, pois mesmo quando parece falir, o bem é sempre construtivo, e o próprio mal é constrangido a transformar-se em seu colaborador.
De sua parte, o instrumento tem de ser posto a cada momento em dura prova, que garanta que sabe realizar a função que lhe foi confiada. Essa prova faz-se sobretudo nas horas escuras, quando tudo parece ruir. É preciso então dar provas de saber conservar a própria fé, de possuir a força e coragem de avançar em vôo cego, mesmo quando isto pareça loucura, porque não aparece caminho de saída. Essa fé confere uma conduta que os calculadores de forma mental humana não são capazes de compreender, sendo diferentes os pontos de referência, fato que os leva a erro. Trata-se de duas psicologias completamente diferentes. O instrumento, com sua fé, dispõe de uma força e coragem que, os que vivem de cálculo e interesse não podem admitir. Não podendo compreender, os homens do mundo não podem deixar de ficar desorientados. O alvo não é o que eles pensam; seus golpes, portanto, não atingem, o objetivo. As respostas que recebem são imprevistas e os colhem desprevenidos. Representa para eles uma posição de inferioridade, não conhecer a estratégia do evoluído com o qual lutam, enquanto para este, o conhecimento da deles representa uma posição de superioridade.
Nestas horas de luta, aquele instrumento sentia o alcance universal que aquela experiência tinha para ele. Nesta, não estavam somente em jogo a sua vida, que pouco lhe importava, nem apenas a missão a realizar, mas toda uma experiência evangélica. Se falhasse, os fatos teriam dado razão ao mundo a derrota ao Evangelho. Então ter-se-ia de chegar à tremenda conclusão de que ele estava errado e que Cristo, mesmo não tendo enganado aos outros1 pelo menos estaria enganado. Ruía tudo, muito mais que uma vida e uma missão. O caso particular do instrumento desaparecia, absorvido nesse problema universal, que se propunha realizar um exemplo vivido, que desse a demonstração experimental da verdade do Evangelho. Nessa demonstração, as forças do Alto estavam diretamente empenhadas. Em caso de falência, não caía um homem ou uma missão, mas ter-se-ia a prova experimental de que existia um caso em que o sistema de Cristo errara, demonstrando-se incapaz de vencer. Mas seria isto possível?
Isto perguntava a si mesmo o instrumento, descendo cada vez mais dentro de si numa introspecção profunda, procurando ouvir a voz de Deus que fala em cada consciência. Sua pessoa desaparecia na vastidão da experiência. Estava envolvido na potência de forças para ele incontroláveis. Só lhe restava permanecer na mais profunda obediência. Mas seria possível que Cristo e o Evangelho falissem? Ele os sustentara como verdades, empenhando-se nisso até o fim, recorrendo à demonstração racional e assumindo plena responsabilidade disso. Agora seria preciso refazer tudo de novo, encontrar outra verdade mais verdadeira, que pudesse resistir à prova dos fatos? Aquela, que constituía a sua fé, ter-se-ia resolvido, para o instrumento, no que a ciência chama uma hipótese não provada, destituída do valor demonstrativo que só os fatos podem dar, e portanto não aceitável como teoria objetivamente segura.
Como que experimentando num laboratório espiritual, nosso personagem observava o êxito da operação evangélica, chegada agora ao seu momento crítico resolutivo. Como terminaria a experiência? E se falhasse? Havia nele a ânsia do cientista que espera, dos fatos, a confirmação positiva dos resultados teóricos dos estudos e trabalhos de uma vida inteira. Se a experiência falhasse, tudo estaria acabado para ele. Sua vida teria sido desperdiçada, em busca de quimeras, e o mundo teria razão em tratá-lo de imbecil, por ter feito tantos sacrifícios para nada.
Mas se a experiência tivesse êxito, ele poderia gritar: "eureka, a descoberta está feita". Era como se um inventor, tendo idealizado e construído um tipo novo de reator supersônico, o experimentasse, lançando-se com ele. Tudo estava em jogo. A prova também se faz com a própria vida. Mas talvez o Alto só responda a apelos tão desesperados e só se rasgue com a violência de tão extremos atos de fé. Um tão grande esforço para subir, talvez seja uma das condições necessárias para que se verifique o fenômeno prodigioso da descida das forças do céu, e represente o impulso necessário para demovê-las e impeli-las a vir ao encontro de quem tão energicamente as chama. Tratava-se como do lançamento de um projétil interplanetário. Que ocorreria? Quantas incógnitas para quem se arrisca a funcionar em outros planos de vida, segundo as leis próprias a eles, quase desconhecidas, em sentido positivo experimental pode dizer-se, no plano humano de vida!
Narramos tudo isto para fazer compreender como acontece o fenômeno, que não é nada gratuito, da descida do Alto. Não é dormindo nem esperando que Deus nos sirva, que pode isto ocorrer. Trata-se de conquistar o desconhecido tornando-nos pioneiros do futuro da evolução; trata-se de atravessar em frágeis embarcações o oceano do conhecimento, porque o Alto, Cristo e o Evangelho não são apenas problema religioso de fé, mas também problema de razão e ciência, que implica e presume a solução de infinitos outros problemas.
Havia um fato, porém, que tornava quase necessário o bom êxito da experiência, e era a necessidade de — no terreno não fideístico das religiões mas objetivo dos fatos que todos vêem e compreendem — aparecer um exemplo, de forma racional e positiva, que demonstrasse a verdade do Evangelho como norma útil à vida. Tratava-se de uma prova necessária para demonstrar a verdade de uma missão e sua realização. Na luta empreendida publicamente, se não viesse essa prova em seu favor, se chegaria necessariamente à prova contra Cristo e o Evangelho, que daria plena razão ao mundo. Então os antagonistas não teriam vencido um homem e paralisado uma missão, mas provariam o erro de Cristo e do Evangelho: erro de que sua vitória dava a prova e da qual poderiam vangloriar-se, rindo-se das forças do Alto. Vitória do baixo contra o Alto. Era um absurdo. Era a falência do princípio da evolução, erro descoberto na lei de Deus, inversão dos impulsos prepostos ao caminho ascensional da vida. Todas as teorias sustentadas na obra teriam recebido um desmentido claro.
Em tudo isto nosso personagem pensava, enquanto os golpes lhe caíam em cima. Que significado diferente essa Batalha tinha para ele! Que finalidades diversas se propunham as partes contendentes! Todo o complexo fenômeno se ia desenvolvendo sem que os homens do mundo, que nele tomavam parte, compreendessem coisa alguma! Continuavam movidos por instintos, interesses e miragens, reduzidos a instrumentos cegos que, sem saber, mesmo agindo em sentido negativo, acabavam fazendo o contrário do que acreditavam: trabalhavam para a vitória da missão, para que aparecesse manifesto o exemplo que devia demonstrar que o mundo estava errado e o Evangelho tinha razão.

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Continuemos a acompanhar as vicissitude da Batalha, estudando as estratégias diferentes. Da parte dos opositores continuava a funcionar o princípio da inversão. Acontecia então que seus assaltos e astúcias se resolviam automaticamente em perda para eles. Era maravilhoso observar como a gaiola que o mal construía para aprisionar o bem, se transformava por fim numa gaiola em que ficava preso o mal. O inimigo, tornando-se ousado porque certo de vencer pela superioridade de suas forças, fazia investidas arriscadas aventurando-se muito à frente, sem deixar aberta uma porta para uma retirada honrosa. Depois, percebido o perigo, queria voltar mas não podia, ficando preso nos movimentos já feitos. Achava-se assim preso no mesmo laço que preparara para o inimigo. Essa é a lei que amarra o mal: ficar prisioneiro nas ciladas que prepara para o bem. Suas arquiteturas são obras maravilhosas de astúcia, mas complicadas, emaranhadas e tortas, o que constitui sua fraqueza, porque no fim falta sempre algo de imprevisto, e esse é o ponto fraco que faz ruir. Falta-lhes a força que só a simplicidade retilínea pode dar. Aqui está a inferioridade congênita das forças do mal. E assim deve ser. Se fossem iguais às do bem, Deus não seria o Senhor a quem cabe a vitória.
Os jogos das duas partes eram totalmente diversos. De um lado a luta por um ideal: a elevação e bondade do fim davam fé e coragem para enfrentar qualquer fadiga e perigo. Do outro lado, cálculos utilitários para conseguir a vantagem máxima com o mínimo esforço, poupando pois fadigas e perigos. De um lado um caminho sincero e coerente, direito e constante, do outro desconfiança e incoerência, coalizões instáveis de interesses, diretivas incertas e oscilantes, caminhos oblíquos e escorregadios. De um lado tudo honesto e claro à luz do sol. Do outro, tortuosidades escondidas por trás das aparências indispensáveis. E tudo, até a substância por trás das cenas, era escrito no livro da vida, onde nada pode apagar-se, enquanto o Alto olhava, registrava e esperava.
O instrumento oferecia a Deus a própria dor, transformando-se assim em força positiva de construção. Os pensamentos e atos que nasciam dos dois diferentes métodos se iam somando e acumulando para cada uma das partes, em sentido oposto, na direção que cada um queria. Tratava-se no princípio só de uma pedrinha que poderia ser facilmente detida. Mas ela rolava cada vez mais. No princípio parecia um nada. Mas a cada volta, algo do terreno lhe aderia. Assim a pedrinha cresceu, dando lugar a uma avalanche de cada lado. E agora, no fim, duas avalanches diferentes se estavam precipitando uma contra a outra, crescendo sempre mais. Aumentava assim o volume de cada uma, sendo cada uma delas feita do material atraído pelo próprio sistema. Quanto mais rodavam no tempo, não só cresciam de tamanho, como acentuavam suas qualidades. Novo mal se apegava ao mal, e novo bem se apegava ao bem. Outros elementos eram atraídos e aderiam de uma parte ou de outra, segundo sua natureza. Aumentavam cada vez mais de volume e velocidade, e era cada vez mais difícil deter-se.
Era a própria natureza das forças de tipo negativo que aumentava tudo no negativo, em sentido destrucionista, enquanto do lado oposto era a própria natureza das forças de tipo positivo que tudo aumentava no positivo, em sentido construtivo. Assim, de um lado, tudo tendia a descer, e do outro, a subir. Eram dois impulsos opostos, tendentes a dois fins situados nos antípodas. Isto significa que das duas avalanches, a de impulsos negativos rolava sempre mais para a destruição, primeiramente de si mesma; e a outra, feita de impulsos positivos, avançava sempre mais para a construção, primeiramente de si mesma. Iniciados, os dois processos agora se desenvolviam automaticamente, como uma desintegração atômica em cadeia. Assim, uma parte não podia deixar de avançar sempre mais para a derrota, e a outra, para o triunfo.
No princípio tudo seria facilmente sanável, se as antagonistas tivessem tido um pouco de compreensão. Se tivessem deixado ao instrumento aquele mínimo de vida terrena, necessária para realizar uma missão; se não se tivessem deixado levar em cheio pela lei de seu plano, a lei do triunfo só para o vencedor, eles não teriam imposto à parte oposta a liquidação deles, como única e indispensável condição para que aquela parte pudesse sobreviver. O erro deles foi o de seu plano biológico: o do egoísmo que só deixa lugar vital para si mesmos. Provocaram, desta forma, a reação do desespero, que rompe tudo. Desespero humano em auxílio do qual se movimentaram as forças do Alto, para que justiça fosse feita. Foi erro acreditar que a força humana podia dobrar tudo e que o imponderável podia ser desprezado. Mas era erro inevitável, para o grau de conhecimento atingível naquele plano evolutivo. Era preciso conhecer também o outro lado do problema.
Era preciso não constranger a parte oposta à necessidade da defesa nem o céu à necessidade de intervir. Mas, por obra da própria parte contrária, tanto ó instrumento como as forças do Alto, uma vez colocados na necessidade de escolher entre vencer ou ser vencidos, foram constrangidos a impor-se para vencer. A batalha, que nem o Alto nem o instrumento desejavam, lhes foi imposta e com isto só um caminho possível para eles: a vitória. As potências do Alto foram constrangidas pelo próprio inimigo a intervir, e sendo elas as mais fortes, e tendo de vencer por finalidade superior, como podiam deixar de vencer? Foi a própria intransigência do inimigo que impunha que tudo se dobrasse à sua vontade, foi o não querer entrar em entendimentos — porque, como mais forte, se julgava com o direito de vencer — que impôs a qualquer custo seu afastamento definitivo. Foi assim que ele foi lançado fora da obra e da missão, para a qual tinha trabalhado, mas levado por outra finalidade, e portanto sem merecimento. Ficou mais uma vez confirmada a teoria de que tudo, até as forcas contrárias, sempre concorre para a vitória do bem.
Então um pequeno caso a que ninguém ligaria, se dilatou num problema imenso, tornando-se choque de princípios e forças biológicas, choque entre valores cósmicos do bem e do mal, prova experimental para a vitória do Evangelho. O pequeno incidente tornou-se assim uma batalha de sistemas, entre Cristo e o mundo, entre um modo de viver próprio da animalidade e já destinado a ser superado, e um modo de viver próprio da nova e mais civilizada humanidade do futuro. Em vista disso, a prova experimental a que era submetido o Evangelho tinha de vencer, logicamente, demonstrando que era verdadeira. E ao mesmo tempo, os resultados dessa experiência, para produzir fruto para o bem, tinham de ser vistos por todos, porque só assim se podia alcançar um dos objetivos principais, em virtude dos quais desceram as forças do Alto, ou seja, que o êxito dessa experiência constituísse um exemplo que provasse, por fatos, que o Evangelho é verdadeiro. Para confirmar isto, a obra e a missão, era preciso uma vitória evidente das forças do bem. Os fatos tinham de confirmar o que a lógica impunha, isto é, que Cristo não podia estar errado, que Deus não podia falhar, que Sua lei funcionava em cheio e que portanto o triunfo chegou, fatalmente.
E os fatos vieram trazer essa confirmação, os fatos que não são teorias, os fatos que dão prova, os fatos que são vistos e compreendidos por todos. Mas por que aconteceu isto? Numa hora apocalíptica para o mundo, diante de uma missão a ela ligada, num caso em que as forças do bem se haviam empenhado, era preciso que elas dessem, com um exemplo, a prova de serem mais fortes. As pessoas que nele tomaram parte, passam e não interessam. O exemplo, embora despersonalizado, fica. Mas era preciso vencer, dando prova de superioridade, porque não há outro modo de as forças serem consideradas respeitáveis em nosso mundo. Aqui Deus é respeitado porque é poderoso. Mas neste caso tratava-se de ir contra a psicologia humana, salvando um desarmado, desprezado porque fraco, salvá-lo para demonstrar que se pode ser forte de outro modo, numa forma que o mundo não conhece mas que seria útil conhecer  E para chegar a isso, as forças do Alto tinham de descer e trabalhar no nível dos assaltos concretos que eram lançados contra o desarmado e desbaratá-los. Era mister aparecer no terreno humano uma intervenção que constituísse exceção às leis daquele plano, vindo de fora dele, para demonstrar a existência de forças mais poderosas, em outros planos de vida.
Mas as forças espirituais, como tais, não são percebidas em nosso plano sensório e não podem agir na matéria. Precisam então, para agir, revestir-se de forma material, operando, como já vimos, por meio de pessoas intermediárias, que funcionem como instrumentos físicos. Na terra jamais faltam seres desejosos de medir-se na luta. Mas podem encontrar-se também os lutadores para o bem Estes possuem e sabem usar as armas humanas comuns; somente as usam não para o mal, mas para o bem. As forças espirituais movimentaram justamente alguns exemplares deste tipo; eles correram ao redor do desarmado, não para aproveitar, esmagando-o, mas ao contrário para ajudá-lo, defendendo-o. Trata-se de seres que ainda pertencem ao mundo, cujos sistemas sabem usar, mas que já levantam a cabeça para o Alto, e sabem usar aqueles sistemas e armas a serviço do bem. Eles são os defensores dos fracos, cavalheiros da justiça, e que mesmo com as forças da terra, rebelam-se contra o mal para esmagá-lo. Através deles pôde tomar forma concreta a intervenção das forças do Alto. Assim, contra a fileira dos lutadores pelo interesse, formou-se a fileira dos lutadores pelo ideal. Isto também por uma lei de equilíbrio de que já falamos, segundo a qual, logo que na terra se manifesta uma força em dada direção, nasce-lhe logo outra oposta que com ela luta, corrigindo-lhe o impulso unilateral.
Dessa forma desceram as forças do Alto: defesa para proteger, auxílios materiais para sustentar onde havia necessidade, circunstâncias favoráveis para facilitar o trabalho. Nada disso foi pedido, mas, como se diz, caiu do céu. Fatos prodigiosos, que as causas comumente em ação na terra não podem absolutamente explicar. Preciso é então buscar alhures sua causa. Certamente não podemos ver as mãos de Deus, quando Ele trabalha. Mas não podemos deixar de atribuir-Lhe a primeira origem de tudo isto, já que não a achamos na terra. Trata-se de acontecimentos de todo gênero, coordenados para o mesmo fim, que não podem explicar-se senão com a presença de uma inteligência diretora, como não existe no mundo.
Foi assim que os elementos negativos — que representavam um obstáculo para o cumprimento da missão — foram afastados e substituídos por elementos positivos, que representavam uma ajuda para a missão. Houve só o afastamento, ou seja, o mínimo indispensável para a defesa da obra. Querendo esses elementos torcê-la para seus fins, foram substituídos por elementos, ao contrário, obedientes à vontade do Alto. Chegaram desta maneira os mastins para defender, assim como os anjos, para ajudar. Formou-se nova fileira, para colaborar, cada um segundo suas capacidades. Todos juntos, cercaram o instrumento desarmado para defendê-lo e ajudá-lo, garantiram-lhe a paz e a independência necessárias para realizar seu trabalho espiritual, encorajaram-no e sustentaram-no depois de tantas lutas que o haviam enfraquecido. Esses novos elementos foram a expressão material dos poderes espirituais e de sua atual intervenção para realizar a salvação. Esse novo peso colocado por Deus na balança, constituiu o prodígio que ninguém esperava. Foi a descida das forças do Alto que inverteu a situação. Colocado no prato da balança o peso do imponderável, esta inclinou-se desse lado. Foi a mão de Deus.

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Foi um milagre. Salvações dessa espécie não são vistas todos os dias, e são verdadeiramente excepcionais. Na economia da vida, não se trata neste caso de um fenômeno de administração ordinária. Mas o milagre não acontece ao acaso, por um capricho da Divindade. Até o milagre tem sua lógica no organismo do todo, segundo a ordem da lei. O milagre é o resultado de movimento coordenado de forças, que não nascem nem se desenvolvem ao acaso. Tem de ser provocado por uma necessidade absoluta de auxílio, e por haver sido merecido, com todos os esforços e invocado com todas as forças. Na harmonia da lei, nada pode existir de gratuito, fruto de injusto favoritismo, ou devido ao acaso ou a vontade caprichosa. Deus não pode sair de Sua ordem, por Ele mesmo desejada. Assim o milagre não pode ser obra supérflua, prêmio e escola de preguiça.
Se não abrirmos as portas, se com o nosso esforço não movemos a alavanca de comando que o aciona, o milagre não ocorre. Temos de provocar, preparar, atrair para a terra as forças do Alto com um chamamento fortemente desejado, livre, ardente     de fé, concreto de ação, nutrido de sacrifício. Deus não serve aos poltrões. Só quando se fez e deu tudo e se cai quebrado na dura estrada, parece que só então se adquire um direito ao auxilio e que o Alto se ache, pela justiça da lei, no dever de movimentar-se. O auxílio não pode ser pedido para poupar-nos o esforço da subida, que deve ser todo nosso. Mas quando tudo foi feito e as dificuldades fechariam o caminho da subida, então Deus aparece, pois se assim não fora, Ele estaria contra Sua própria lei de evolução. Então o Evangelho, mesmo parecendo absurdo e irrealizável, demonstra-se verdadeiro, mesmo a custa de prodígios.
As estradas do céu são árduas e espinhosas, mas o fruto a que levam é honesto e garantido. As estradas do mundo são fáceis e floridas, mas desembocam na traição e na dor. Por isso o Alto pede primeiro nosso esforço, nossa fé e a prova de nossa boa-vontade, dando-nos depois a merecida recompensa1 para que o fruto seja dado com justiça segundo e merecimento. O mundo ao invés oferece-nos tudo, mas debitando-o de forma que depois ficamos dele escravos, pois é preciso pagar. O céu nos dá primeiro o esforço e depois o gozo. O mundo dá-nos primeiro o gozo e depois a pena, em que tende a engolfar-nos cada vez mais. Tudo é lógico. Trata-se de dois métodos opostos, um a inversa o do outro, dirigidos a dois pólos opostos: o Sistema e o Anti-Sistema.
A força de quem quer que siga o Evangelho é estar ligado às forças do Alto. Então, quando todas as condições necessárias foram satisfeitas e esta cheia a medida das provas, então o fen6meno esta maduro e ocorre a precipitação que o resolve, no sentido que vimos. Essa precipitação é o que chamamos intervenção milagrosa. É nesse momento crítico que se resolve o fenômeno. Quantas batalhas teriam sido vencidas se apenas se tivesse sabido resistir um momento mais! Saber ficar no combate mesmo quando tudo parece perdido e o horizonte esta fechado sem esperança de salvação, quando se atingiu o limite da resistência física e se espera o fim, enquanto se vê o inimigo, contra toda lógica e justiça, triunfar. Saber resistir mesmo nessas condições, eis o segredo da vitória. Porque nessas condições é que ocorre o milagre da descida do auxílio .
Esta é a hora da prova mais dura, a hora em que as forças das trevas, que estão para ser vencidas, lançam o último e mais desesperado ataque. Então a alma opressa pergunta: Que faz o Cristo? Então não é verdade que esta presente? É possível que Ele deixe que os fatos demonstrem que o Evangelho erra na pratica? Possível que o mal seja mais forte e que Cristo seja vencido por Satanás? Possível que tanta fé seja utopia, tanto esforço se resolva numa desilusão, que Cristo nos tenha enganado? Os assaltos na terra são concretos e tangíveis, o perigo esta vizinho e iminente, e o céu permanece fechado e impassível. Nesse momento é que, em geral, vem a faltar a última fé, a que opera o milagre. E a sabedoria do último esforço que faz vencer a batalha. Nesse trágico momento algo ferve no fundo, que faz arrebentar a avassaladora reação da lei.
O inimigo já apertava a vítima em seus punhos, certo da vitória. Tomara cada vez mais velocidade ao longo do caminho e agora é como um projétil lançado a toda força contra o objetivo. Cada erro ó agigantado por essa velocidade. Por isso, justamente agora que esta para vencer, é que comete os maiores erros. Não tem ele tudo em mãos para vencer? Não é mais hora de cálculos nem de prudência. Crê lutar contra um pobre homem e esta provocando as forças do Alto. E assim o suceder-se cada vez mais forte os assaltos dos homens do mundo, que produz a realização do milagre, obrigando a lei a reagir e o Alto a manifestar-se. Ainda uma vez vemos o mal trabalhar a serviço de Deus, para a vitória do bem. O céu não pode ficar fechado e indiferente. Nesse momento, ele se rasga e dele desce a prova decisiva e exemplar, de que o Evangelho é verdadeiro, de que Cristo esta presente e sabe vencer.
Tudo converge para o mesmo ponto, que é a descida do auxílio, a realização do prodígio. De um lado a fé e o sacrifício do instrumento. Do outro as forças desencadeadas do mundo decididas a desmentir, com seu triunfo, Cristo e o Evangelho. O assalto chegou ao coração da lei que, tocada no vivo, é constrangida a reagir. E o milagre acontece, com a vitória de Cristo.
Vê-se então que o mal trabalhou tanto, só para chegar a autodestruição. Resplende a lei em seu triunfo. Foi o próprio mal a causa primeira de seu mal. Foi justamente a inconsiderada convicção de vencer que o traiu. Mas oferecer para enganar não e o sistema do mundo? O exemplo é rico de ensinamentos e só por isso o trouxemos aqui. Ensina-nos que, diante do Evangelho, o mundo que dele zomba julgando-o utopia, esta errado. Ensina-nos que, se tiverem de entrar em luta, o bem é mais forte que o mal e portanto vence; Cristo é mais poderoso que o mundo, e portanto triunfa. Ensina-nos o poder da fé e do sacrifício, a justiça da lei, a real presença de Deus que opera entre nós. Ensina-nos as grandes vantagens que derivam do viver na ordem, funcionando em harmonia com o grande organismo do universo, e os prejuízos que temos agindo em contrario. Ensina-nos que os milagres podem acontecer também a nós, se soubermos colocar as causas e que os imponderáveis do espírito — que parecem tão pouco importantes — podem ao invés pesar em nossa vida. Ensina-nos que, quando somos honestos e vivermos segundo a justiça, a Providência de Deus jamais nos abandona.
Assim, no caso que narramos, tudo foi salvo, como numa operação de alta cirurgia, com habilidade de mestre, com a maior vantagem e o menor dano possível. Nisto revelou-se a inegável presença de uma mente superior muito sabia. Os elementos negativos foram simplesmente afastados, para que não causassem prejuízo, mas sem dano para eles. O instrumento humano teria sido o primeiro, a defendê-los de toda represália, uma vez já lhes tendo perdoado. Nem podia fazer de outra forma, porque era nesse método que residia sua força. Do outro lado, a missão foi toda salva. Purificado o ambiente, afastados os mercadores do templo, a missão pôde florescer e desenvolver-se com a chegada dos elementos melhores, os novos chamados.
Mas a missão foi mais do que salva. Ela foi confirmada por tudo isso; do salvamento milagroso, ela recebeu o sigilo do Alto que, com isso, subscreveu a obra, garantindo sua origem, natureza e finalidade. Os fatos tinham dado a prova experimental; de que as teorias sustentadas correspondiam à  verdade. A necessária descida das forças do Alto revelara a técnica secreta de seu funcionamento e do fenômeno de sua intervenção. E tudo isto no plano que o homem considera real, o de sua vida material. A grande moral de tudo isto é que, quem faz o bem, nada tem que temer das forças do mal, as quais, contra sua própria vontade, operam as avessas, ou seja, em favor daquele que combatem. Pensando nisto, nosso protagonista sentia-se comovido e quase cheio de gratidão para todos os que o haviam obstaculado, porque justamente esse fato fora sua força e uma das primeiras condições de seu triunfo.
Ele permanecia encantado e cheio de admiração, por ter visto tão de perto esse fenômeno da descida das forças do Alto, e sua vida ficou como que penetrada por elas, e marcada com um sinal indelével. Ele tudo observara e agora admirava o caso vivido, em sua substancia educadora, despersonalizado dos elementos humanos que aí haviam aparecido e dos incidentes materiais que haviam ocorrido, admirava como o artista admira com satisfação a beleza de uma obra de arte, na harmonia e proporção das partes, em sua técnica, em seu objetivo e significado. Assim, aquele caso vivido desmaterializava-se de todos os elementos terrenos que tinham funcionado como atores, e aparecia espiritualizado em seus eternos valores morais; aparecia como uma obra-prima de técnica construtiva, em que, com movimentos adequados e inteligentemente calculados, se obtivera, com o mínimo trabalho, o resultado máximo. Tudo trazia uma sua marca inconfundível, que anunciava tratar-se não de um produto desorganizado do acaso, mas de um derivado todo diferente, emanação de um mundo sabiamente organizado, que gera frutos orgânicos, feitos de ordem e harmonia. Esse era o sigilo do Alto, que inconfundivelmente os caracterizava e fazia reconhecer neles a providência. Chegando agora a narração do caso até sua conclusão, via-se que se tratava da execução de um plano preestabelecido, conduzida com método, segundo um desenvolvimento lógico, que chegava a tempo em cada movimento seu, desenvolvimento de forças que representava um prodígio orgânico, tudo tenazmente convergente e infalivelmente chegando às conclusões desejadas: a derrota dos vencedores e a vitória do vencido. Vitória do espírito sobre a matéria, do Evangelho sobre o mundo. Cristo vencera.
A conclusão luminosa, com que se concluía a experiência era de que o Evangelho é mesmo verdadeiro, tanto que ele realizara um prodígio, para permanecer verdadeiro. Verdadeiro significa verdade, não apenas teoricamente reconhecida e proclamada, mas verdade que, levada a vida vivida, resistiu a prova concreta da experiência, verdade comprovada pelos fatos. A grande moral da fabula é que o Evangelho é realmente verdadeiro, e não apenas por palavras. E nós poderíamos concluir, como se costuma dizer no fim da demonstração de um teorema: "como se queria demonstrar".
Cristo vencera. Esta vitória tinha uma beleza sua que a distinguia e a tornava maior e mais bela do que todas as vitórias humanas. Não se vencera esmagando e explorando, para o egoísmo próprio mas perdoando e amando, para alcançar um fim bom. No término do longo esforço, uma alegria pura compensava largamente todas as dores passadas e as lutas; aquela alegria que só o Alto, e jamais o mundo pode dar-nos, a alegria de ter trabalhado e sofrido só para um objetivo de bem. Não era essa uma vitória da terra, obtida com a força para dominar, que excita a revolta dos vencidos levados, pela lei de equilíbrio, à reação. Mas era a vitória boa e justa, abençoada por Deus, a vitória que não usurpa, mas dá, obtida para ajudar, abraçando os vencidos, e assim anulando a reação e destruindo o mal.
Só assim pode quebrar-se a cadeia do ataque e da defesa que nos prende a luta pela vida. Só esse tipo de vitória é que nos faz ascender para a libertação, enquanto o tipo de vitória que se usa na terra, é o que sempre mais nos submerge no plano biológico, onde só imperam as leis da animalidade.
Vencer para aproximar-se de Deus, vencer não para si mesmos, mas para o bem de todos. Vencer não por haver debelado um inimigo, sobreponde mal a mal, mas vencendo o mal com o bem. A vitória real e definitiva não é a que provoca outro mal, mas a que o transforma em bem. É a que vence com a bondade a maldade, com o altruísmo o egoísmo, com o perdão a ofensa. É a que muda a discórdia em união, a guerra em paz, o ódio em amor. É a vitória não do mais forte, para subjugar inimigos, mas do melhor, para educar os irmãos. A vitória maior não é a que se conquista sozinho e para si, destruindo, mas a conquistada ao lado de Cristo, construindo, para o bem do próximo. Não é a vitória da força, mas a do Amor.

FIM

Estendemos, no capítulo precedente, nosso conto bem além dos limites de simples hist6ria, procurando penetrar o porquê  da conduta humana em geral, que víamos reaparecer no caso narrado. Assim o choque entre alguns homens de natureza diferente recebeu uma perspectiva ampliada até representar-nos o choque muito mais vasto entre os diversos biótipos da raça humana, ou seja, entre evoluído e involuído; e depois até representar-nos o choque entre dois tipos da sociedade humana, o da desordem atual e o da futura humanidade que atingiu o estado orgânico. Vamos assim alcançando cada vez mais o fim prefixado, que é demonstrar que ser evoluído e viver o Evangelho é problema utilitário de vantagem pessoal, e também grande progresso social; e finalmente que tudo isto significa seguir o caminho querido pelo telefinalismo que a vida nos põe e impõe na evolução.
Terminada esta digressão que aprofunda e universaliza o problema, que se não fosse isso não superaria o mísero sentido de uma crônica, retomemos nossa narração, para chegar, finalmente a desenvolvê-la até sua conclusão
No capítulo XLII de A Grande Síntese foi escrito: “ (. . . .)  só existe uma defesa extrema: abandono de todas as armas. Veremos mais tarde como". No caso que narramos, podemos ver como; podemos ver nos fatos como é possível aquele absurdo. Isto porque aquelas palavras significam abandono das armas humanas para substituí-las com outras espirituais mais poderosas, e não querem dizer absolutamente ficar indefeso.
No presente volume recordamos atrás as palavras do Evangelho: "Procurai primeiro o reino de Deus e Sua justiça, e todo o resto vos será dado por acréscimo". Outro absurdo para a psicologia do mundo, contra a qual se ergue esta frase revolucionária. Então, para não nos faltar o necessário para viver, existe outro método, que não é o da luta desesperada em que o homem está mergulhado na terra, um método segundo o qual o necessário pode ser obtido sem extorqui-lo pela força, do ambiente hostil, mas gratuitamente de Deus. Eis a Divina Providência. Estudamos esse fenômeno no volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio, capítulo XI. Aí enumeramos as condições necessárias para que o fenômeno se verifique e o auxílio desça efetivamente do Alto. Assim foi possível observar como essas condições foram postas e o fenômeno verificou-se de fato, dando prova da verdade daquelas teorias, que acharam plena confirmação quando, depois de terem sido enunciadas, foram vividas, num segundo tempo. No fato que expomos a máquina funcionou verdadeiramente.
O mundo apoia-se nas próprias forças, porque pouco confia em Deus e em Sua Providência; o mundo não crê absolutamente que a máquina possa funcionar, e portanto evita fazer essas experiências. E no entanto a conquista de novos continentes foi devida aos que tiveram a coragem de enfrentar todos os perigos das grandes navegações; a conquista do ar àqueles que, com risco da própria vida, ousaram deixar a segurança da terra firme para arrostar os perigos do vazio. Assim a conquista das forças do imponderável só pode ser feita por aqueles que, com consciência e conhecimento se lancem nos braços de Deus, ousando experimentar novos métodos de vida, com a aplicação de leis próprias de planos biológicos mais adiantados. Em todo caso é necessária grande coragem, porque se trata de enfrentar o inexplorado; grande fé, parque é necessário conquistar o desconhecido; muita inteligência para não agir loucamente e saber vencer todos os obstáculos e perigos.
Como se vê, as vicissitudes que estamos narrando e a interpretação de seu significado baseiam-se, as primeiras, em fatos realmente ocorridos, a segunda nas teorias expostas e provadas na série dos volumes que precederam este. Até agora aquelas teorias só eram sustentadas pela lógica, pela verdade de outras teorias aceitas pela ciência, por vários aspectos da realidade que as confirmavam. Mas agora chegou esta confirmação que estamos narrando, e que assume valor muito maior porque se trata de um caso pessoalmente vivido. Por isso tal história deve ser contada aqui, não só como exemplo que encoraje os hesitantes a lançar-se no caminho do Evangelho, vivendo-o na pratica para tirar-lhe proveito, mas também como uma demonstração pratica da verdade das teorias expostas naqueles nossos volumes, levadas assim a realidade cotidiana da vida, com sua aplicação concreta.
Continuamente, todos os dias, ocorrem em nosso mundo histórias de todo o gênero, igualmente vividas, e passam inadvertidas, porque ninguém pensa em observar-lhes o sentido. E no entanto, cada uma delas exprime um modo de conceber a vida e de aplicar as leis vigentes no plano biológico em que se move o homem. Nossa narração assume valor, porque ao caso narrado é dado sentido universal, já que nele vemos espelhados muitos outros casos semelhantes, dos quais ele é apresentado como um exemplo que sintetiza um modo de conceber a vida e um modo de vivê-la.
Por que o involuído e o evoluído, de que sempre falamos, aqui se chocam, ao invés de concordar? Isto depende de suas maneiras opostas de conceber a vida. O involuído, segundo a lei de seu plano, logo que entra em contato com o próximo, procura imediatamente mandar e submeter, impondo-se a todos. Forma-se assim logo a hierarquia do mais forte e do mais fraco, que representa o princípio que rege nosso mundo. Ao contrario, o evoluído, segundo a lei de seu plano, logo que entra em contato com o próximo, procura compreendê-lo para colaborar com ele. Forma-se assim espontaneamente o sistema orgânico. Involuído e evoluído são dois biótipos absolutamente diversos; é natural, pois, que o resultado de sua atividade dê lugar a resultados totalmente diferentes proporcionados ao nível de evolução representado pelo plano de vida de cada um deles. Tudo depende da natureza do biótipo, e cada um deles só pode produzir de acordo com o que é. Dos princípios que regem a vida do involuído e da relativa forma mental que o guia, só pode nascer prepotência, luta, desordem, dor. Não é esse o nosso mundo atual? Dos princípios que regem a vida do evoluído e da forma mental que o guia, só pode nascer harmonia, fraternidade, ordem, alegria.
Com estas observações procuramos compreender que transformações profundas a evolução trará a própria vida do homem. Por esse caminho, se passa do estado horrível de nosso passado, cuja memória amedrontadora ainda sobrevive quase indelével na idéia do inferno, mais ou menos difundida em todas as religiões, a um estado belo, cuja presença do futuro o homem intuiu instintivamente com a idéia de paraíso, que as religiões nos prometem amanhã, se soubermos ser bons, ou seja, se nos tornarmos evoluídos. Trata-se efetivamente de passar do estado de involuído, pelo qual se vive num mundo caótico em que tudo é inimigo, em que portanto se mata e destrói, porque morte e destruição do que é inimigo significa vida e vantagem, à fase evolutiva superior, a do evoluído, pelo qual se vive num mundo harmonizado, em que tudo é amigo, e portanto não se mata nem se destrói, porque morte e destruição do que é amigo significa morte e prejuízo.
Passar do plano animal da luta pela vida ao plano orgânico da colaboração inteligente, significa mudar completamente as condições de vida. Passar do mundo do involuído ao do evoluído significa sair da desordem para entrar na organicidade, ou seja num estado resultante de novo modo de conceber a vida, pelo qual as posições de relação social —  antes feitas em grande parte de prepotência e injustiça, que só produzem divisa o no tormentoso barulho de rivalidade e lutas — na nova organicidade assumem a função coesiva, sobretudo de unificação. Se a vida antes se baseava só no indivíduo, nesta nova fase ela se fundamenta na coletividade organizada, em que a ordem exclui absolutamente qualquer barulho de injustiças e lutas.
Vamos dar um exemplo. No plano do involuído o trabalhador é um derivado do escravo, para o qual o trabalho é uma condenação que o vencedor tem pleno direito de impor, tal como se faz naquele plano a todos os fracos vencidos. Isto constitui uma verdade maior, quanto mais, recuando na civilização, nos avizinhamos do homem primitivo (o involuído) e o é menos quanto mais, progredindo na civilização, o homem ascende (o evoluído). Nos planos inferiores é essa a justiça, que sempre se faz de modo adequado ao nível que se tenha atingido. O que constitui perfeita justiça num ponto da escala evolutiva, pode revelar-se integral injustiça num ponto mais avançado dela . De sua parte, o trabalhador, que é do mesmo tipo biológico, corresponde tornando-se servo traidor. Este, pelo fato de ser um fraco, vencido, nem por isso renuncia à defesa de sua vida, e a defende pelos caminhos transversos da mentira, já que não o consegue abertamente pelos caminhos da força. Assim, patrões e empregados, dominantes e dominados, movimentam-se todos no mesmo plano, segundo os mesmos princípios, e equilibram-se uns com os outros, utilizando os mesmos métodos.
Ao contrário, no plano do evoluído, o estado de organicidade, desconhecido no precedente estado inferior, faz do trabalhador um colaborador, jamais um servo; um companheiro inteligente e de boa-vontade para seus superiores, todos igualmente co-interessados no bom êxito da mesma obra. Nada de rivalidades nem lutas, com prejuízo de todos, mas distribuição inteligente de trabalho e coordenação de funções, com proveito de todos. No plano de organicidade desaparece completamente a idéia de patrão e empregado, de dominador que manda e fraco vencido que tem de obedecer. Desaparece, assim, a idéia de opressão e exploração de um lado, e ódio e revolta do outro. O ódio tradicional entre empregado e patrão, organizado hoje como ódio de classe, demonstra quanto a humanidade ainda esta atrasada.
Tudo isto terá que desaparecer com a evolução. Empregado e patrão estão hoje igualmente atrasados e precisam ambos ser civilizados. Só quando o operário for tratado com mais justiça e inteligência, poderá obter-se que ele, ao invés de revoltar-se ou procurar trabalhar mal e o menos possível, se esforce em produzir melhor e o mais possível. Com a força e a imposição jamais poderá obter-se o que se obtém com a inteligência e a compreensão. Trabalhar como escravo produz frutos piores que os que podem conseguir-se com o trabalho do co-interessado colaborador. Mas o atual estado, que co-envolve empregado e patrão na mesma forma mental, só poderá transformar-se gradualmente, pelo lento trabalho da evolução, no estado diferente do evoluído em que os mesmos patrões e empregados conviverão diversamente, de acordo com outra forma mental. Então o patrão não será o dominador que procura egoisticamente desfrutar, mas o diretor inteligente que faz a parte mais difícil. do trabalho que o operário não sabe fazer e de que aprecia o valor Assim todos se tornarão rodas diferentes de u‘a máquina, ligados pela mesma organicidade do todo, co-interessadas em colaborar sem lutas nem atritos. Ora, obstaculando o bom funcionamento dessa máquina, haverá grave prejuízo para todos, isso, portanto, deve merecer todo o cuidado de todos, para ser evitado.
Assim, uma das grandes conseqüências é saber sair do estado atual de animalidade próprio do involuído, em que a luta domina tudo. Esta é qualidade essencial do Anti-Sistema, enquanto a harmonia é a qualidade oposta, própria do Sistema. Quanto mais se elimina a luta, mais se sobe para o Sistema. O grau de evolução atingido mede-se pelo grau com que foi eliminado o separatismo e alcançada a unificação. A potência em que vive a luta em nosso mundo é índice claro de quanto ele ainda está atrasado. Aqui, tudo se faz em função da luta, que reaparece a cada momento, em toda manifestação da vida. Em todos os campos é mister levar em conta sempre este princípio do mais forte que quer vencer a todos. Conquista-se o poder, a riqueza, os altos graus sociais, sempre para dominar a luta como vitoriosos. Política, comércio, religião, sob todas as aparências, são substancialmente utilizados como meios para vencer na luta pela vida. E em todos os tempos, lugares e posições sociais se obedece a esta lei, que é lei do plano biológico em que a humanidade está situada.
Mas a evolução não é uma palavra vã. E a grande lei da vida e é tão poderosa que terá força para destruir tudo isto, transformando a humanidade. O caminho fatalmente se dirige do Anti-Sistema, ou seja, da fase de involuído á de evoluído. O fato de que, no passado, a vida percorreu seu caminho nesta direção, autoriza-nos a admitir que continuará ainda a percorrê-lo na mesma direção. Podemos dizer que o mineral está para a planta, assim como a planta para o animal, como o animal para o animal-humano (o involuído), como este para o super-homem do futuro (o evoluído).
Andando do Anti-Sistema ao Sistema, a vida caminha para Deus. Por isso, quanto mais progride a vida com a evolução, tanto mais se racionaliza, transformando-se de confusão desordenada num processo lógico, em que se revela cada vez mais claramente a inteligência de Deus, que permaneceu latente em tudo, escondida na mais intima profundidade, donde dirige e rege seu progresso. A passagem que hoje se verifica, do caos à ordem, não consiste apenas numa arrumação de formas, mas também de princípios que as regem; não só num reorganizar-se da desordem do caos, num reunificar-se do separatismo que pulverizou tudo, mas também num racionalizar-se e logicizar-se da existência em todas as suas formas e funções. Indubitavelmente a vida evolui desenvolvendo no homem o sistema nervoso e cerebral. Dizem os biólogos que a matéria cinzenta do cérebro é maior no homem civilizado do que no selvagem e de diferente estrutura. A evolução complexifica, aperfeiçoa a estrutura cerebral. E nessa elaboração do órgão do pensamento que se manifesta, no plano físico, a correspondente elaboração da forma mental do ser, levando a um paralelo complexificar-se e aperfeiçoar-se do pensamento que a vida dirige. Assim, esta se torna tanto mais racional e lógica, quanto mais evolui. Qualquer homem inteligente compreende quanto seja estúpido e contraproducente o sistema de rivalidade e luta contínuas. Trata-se de qualidades novas, unidas, que brotam juntas: ao invés da desordem, a organicidade; ao invés do separatismo, a unificação; ao invés da luta, a colaboração; ao invés da estupidez do ignorante que caminha por tentativas, a inteligência de quem conhece e sabe atingir seus fins. A organicidade para a qual a evolução leva o mundo, implica por sua natureza seres racionais e presume a inteligência. Essa forma de vida não poderá deixar de ser alcançada pelo homem coletivo do futuro, que chamamos o evoluído.
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Estendemo-nos um pouco nestes comentários, para compreender melhor o caso que estamos narrando. Nosso homem fora chamado para trabalhar num ambiente composto em grande parte de elementos de outro plano biológico, e que portanto, possuíam a forma mental relativa a este, bem diferente da sua. Achou-se, pois, diante não daquela que era a sua natural psicologia, ou seja, a da colaboração inteligente para vantagem comum, mas diante de uma psicologia de luta, em que é só ao mais forte, mais bem colocado, que cabe o direito de mandar, enquanto a ele cabia o dever de obedecer. Por essa psicologia, quem oferece o próprio trabalho, se coloca por si na posição de servo, e quem aceita a oferta alheia, aceita para consigo mesmo, o pleno direito alheio de mando. Infelizmente a abolição da escravatura é um fato recente na história. Abolir as leis sobre a escravidão é relativamente fácil e rápido. O que é difícil e muito lento é abolir o instinto escravagista, que pode subsistir por séculos, mesmo depois que tiverem sido abolidas aquelas leis. No primeiro caso trata-se de um fato jurídico-social, apenas uma mudança de posições diante das leis humanas. No segundo caso trata-se de um fenômeno biológico, de maturação evolutiva que tem de chegar a transformar os instintos: processo lento, de elaboração profunda, difícil de conseguir e só alcançável pela educação dos séculos.
   Dizemos isto apenas para explicar como, em certo momento, começou o esmagamento de nosso sujeito, por parte dos que, ao contrário deveriam ajudá-lo para alcançar um objetivo comum. Esmagamento providencial, de resto, porque foi ele que fez manifestarem-se as forças do Alto, tendo sido sua intervenção fato indispensável para salvar seu instrumento. Este oferecera o fruto de seu trabalho com sentido de colaboração, segundo a psicologia orgânica do próprio plano de vida. Respondeu-lhe a psicologia egocêntrica, separatista, anti-orgânico e anticolaboracionista, própria de outro plano de vida. Daí um choque, de raízes bem profundas, que vimos estudando porque, além desse caso particular, tem ele valor universal, dizendo respeito a todo o fenômeno vida.
Avizinhamo-nos sempre mais do momento resolutivo do fenômeno. De um lado as forças humanas que têm pressa de concluir, conseguindo submeter para dominar, segundo a psicologia de seu plano. Do outro lado, as forças do Alto constrangidas  — se não quiserem ficar vencidas na terra — a entrar em ação, a descer a nosso plano humano e a manifestar-se nele exteriormente visíveis, saindo do mistério em cuja profundidade geralmente se escondem. É justamente esse fato que torna o fenômeno interessante. As forças do Alto trabalham no terreno das causas, são mais ativas no centro que na periferia, porque sendo mais evoluídas estão mais pr6ximas de Deus. Dificilmente se revelam, pois, em nosso mundo, de modo claro, no terreno dos efeitos que parecem emergir de uma atividade escondida nos interiores subterrâneos da vida. Segue-se daí que vivemos num mundo de efeitos, na superfície dos fenômenos, sem saber ver em profundidade até as causas determinantes, nem saber-nos dizer o porquê de seu aparecimento no plano em que vivemos. Para chegar a isto, era mister possuir bem desenvolvido o olho interior da vista introspectiva, o que presume um grau de madureza evolutiva que raramente é alcançado. Ora, no caso que estamos narrando, suas condições especiais tornaram necessária uma tão ativa e manifesta intervenção na terra das forças do Alto, que nos permitiu poder assistir, embora olhando apenas com os olhos comuns da psicologia humana, ao fenômeno, geralmente escondido, da descida daquelas forças numa batalha tão aberta e evidente, que nos revelou toda a sua estratégia. Caso raro, de que nos aproveitamos para penetrar cada vez mais nos mistérios desses fenômenos e na técnica desconhecida de seu funcionamento.
Três são os elementos que neste momento se acham em campo: 1) as forças humanas lançadas ao ataque para sujeitar o instrumento aos próprios fins; 2) as forças do Alto que intervêm na luta impondo-se a todos os impulsos contrários, para que se chegue ao completo cumprimento dos próprios fins; 3) o instrumento humano, agredido pelas forças humanas é defendido pelas do Alto, desarmado e triturado entre os dois poderosos antagonistas, donos do campo e da batalha. Observemos os momentos de cada um.
Diante do poder dos dois antagonistas: um coalizão de meios e astúcias humanas, o outro sábio dominador das leis da vida, o instrumento humano quase desaparece em sua insignificante pequenez. Que pode ele sozinho, tão pequeno nessa luta de gigantes entre dois planos da vida, nesse choque cósmico pela vitória das forças do bem contra as do mal? Que defesa própria pode possuir, se evangelicamente se tornou desarmado com o abandono de todas as armas? O mundo poderá facilmente vence-lo e submetê-lo. E de fato o mundo, que crê em suas armas, armadíssimo com elas, com plena confiança em seu poder, está seguro de vencer. Mas aqui revela-se sua ignorância e começa seu erro. Aqui o jogo torna-se sutil, tanto que o mundo não o compreende e cai vítima dele. Fechado na psicologia de seu plano de vida, preso ás miragens que os instintos inferiores lhe fazem parecer verdadeiras, o mundo não compreende que o desarmado homem evangélico esteja assim só aparentemente, ou seja, só para quem não possui sentidos sutis para ver; não compreende que, ao contrário, aquele homem está armadíssimo, mas com armas diferentes, que não se conhecem porque estão situadas no imponderável.
É lógico que o instrumento, tendo-se posto a funcionar num plano de vida mais alto, usufrua as leis deste e ache á sua disposição defesas e poderes que não chegam aos habitantes dos planos inferiores. Acontece então que quem se colocou verdadeiramente a serviço das forças do Alto, é protegido por elas como coisa que lhes pertence, que é necessária à obtenção de seus objetivos. Assim é que se verifica o incrível fato de que o homem evangélico aparece só aos olhos cegos do mundo, enquanto está de fato muito bem armado. Segue-se daí que o mundo comete o grave erro de acreditar que combate um desarmado, e não conhecendo o inimigo o subestima, dirige os golpes sem atingir o alvo, e erra toda a sua estratégia, o que leva não à vitória mas a derrota.
Cegueira e ignorância, falta de inteligência e de sensibilização de longo alcance, são as qualidades precípuas do involuído. Com a evolução, as forças do ser se sutilizam e se tornam agudas, tornando-se mais penetrantes e sábias; ao passo que, quanto mais se desce, involuindo, tanto mais constituem elas um desordenado desencadear-se de impulsos primordiais, cega explosão que não é dirigida por nenhuma inteligência, incapaz, pois, para atingir qualquer meta. Eis os dois tipos de forças que podemos aqui observar, colocadas uma diante da outra. Historicamente, no desenvolvimento das missões, o mundo deu prova muitas vezes da mais completa incompreensão, aceitando-as somente depois de havê-las negado e condenado, aceitando-os, mas só como imposição por parte das forças do Alto.
Foi assim, por cegueira, que, no caso narrado, os práticos da vida, os positivos do mundo, não viram no instrumento a existência real de uma missão, e ainda menos que ela pudesse significar uma real intervenção das forças do Alto. De tantos crentes, em tantas religiões, quem é que crê realmente que isto possa acontecer? O mundo só crê seriamente em seus meios e bem pouco nestas forças distantes que para ele são hipotéticas. Quem é que sente realmente o poder das coisas espirituais? E se se fala de missão, acredita que pode dobrá-la a serviço dos pequenos objetivos particulares, apoderando-se —  coisa facílima — de um instrumento desarmado. Levou-os ao erro sua docilidade e simplicidade, que acreditaram fosse tudo, e nada houvesse por trás delas. Atraídos instintivamente pela miragem da facilidade da presa, os homens do mundo cometeram o erro de crer que podiam a bel-prazer deter esse movimento, paralisar uma missão querida pelo Alto, sem imaginar sequer contra que forças combatiam, sem nenhuma possibilidade de triunfar.
Na estratégia do lado humano acumularam-se erros sobre erros. É perigoso tratar das coisas do espírito, acreditando poder utilizá-las para fins humanos, com intenção de domínio, com os métodos comuns, sem saber que reações podem nascer delas. Quando os homens do mundo, crendo já chegada a hora da colheita e sentindo-se seguros da vitória, forçaram os acontecimentos para alcançar seus objetivos, e chegaram assim ao ponto de ameaçar a missão, paralisando-lhe o cumprimento1 estes mesmos homens forçaram as forças do Alto a entrar em ação. Nesse momento aparece a mão de Deus, que milagrosamente inverte a situação.
O desenvolvimento de uma missão não pode ocorrer isolado, só confiado a forças humanas, e muito menos só ao instrumento que a representa, mas que é apenas instrumento. Para que alcance a missão seu total cumprimento, na longa estrada que deve percorrer, ela é preparada, acompanhada e dirigida por uma inteligência superior que, por meio dela quer atingir seus objetivos, que só ela conhece, em função de planos que o homem ignora. Mesmo se os outros de fora não vêem, porque não podem perceber, o instrumento sente a presença dessa inteligência que o guia, provê, a cada passo, o necessário, apresenta e movimenta as pessoas adequadas para que cada uma, mesmo sem o saber, realize a parte que deve; inteligência que amadurece os acontecimentos no sentido preciso, segundo os planos preestabelecidos. O instrumento sabe que, embora não o conhecendo todo, existe um plano que fatalmente deve realizar-se até o fim, pois apesar de todos os obstáculos, ninguém poderá jamais vencer as forças do Alto que dirigem aquele plano. Pelo fato de que o fenômeno se desenvolve também dentro dele, o instrumento que vive com os olhos abertos, tem meios de observar mais de perto como trabalha essa inteligência, inspirando-o, avisando-o com antecedência, impelindo-o por certos caminhos e depois chegando com a ação no momento preciso, na forma e medida adequadas ao fim. Por mais que o motor íntimo procure ficar escondido, essa previdência e proporção nos fatos que dele derivam, resulta muito evidentemente, para que não impressione o observador atento.
O    acaso é desordenado não opera com exatidão nem a tempo, nem se dirige constantemente na mesma direção. Trata-se de fatos positivos que é necessário explicar e que, sendo de natureza inteligente, não podem explicar-se senão com a presença de uma inteligência da qual derivem. Quem vive, verdadeiramente, u‘a missão, como no caso já mencionado, não pode deixar de perceber a coordenação de movimentos que certamente não dependem do instrumento, porque estão além de suas forças e conhecimento. Sobre esses movimentos, ele não quer absolutamente influir, jamais os prepara com planos e vontade próprias. Trata-se de movimentos amplos, longos, complexos, que revelam presciência e poder, porque não cometem erros e vencem todos os obstáculos. Assim o cumprimento de uma missão torna-se um grande milagre, constituído de muitos milagres menores encadeados, de tantos fatos humanamente inexplicáveis, que geralmente não ocorrem e que têm algo de prodigioso. Tudo isto surpreende pela forma orgânica com que se apresenta, pela logicidade de seu desenvolver-se, pela precisão de seus movimentos. Estes são fatos positivos, que não podem negar-se e que seria loucura atribuir ao acaso. E então?
Como pode vencer em nosso mundo feroz um ser desarmado que só pede para abrir seus braços a todos? E se não está nele, onde se encontra o poder que o faz vencer? E quem é que faz convergir tudo, até os ataques e as resistências, para o cumprimento da missão? E se não podemos explicar os fatos senão admitindo a presença de uma inteligência superior, eles constituem uma prova da presença do Alto naquela missão, que então só pode ser verdadeiro. E o Alto que com sua assistência confirma, subscreve e avaliza toda a obra que se cumpre através daquela missão. Então, se tudo isto vem da parte de Deus, que podem as astúcias e poderes humanos contra ela? Só assim podemos explicar os fatos que narramos.

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O que é mais difícil fazer compreender é realidade dessa presença das forças do Alto e também que não estamos repetindo aqui o costumeiro sermão moralizante, mas que falamos seriamente de fatos reais que não podem explicar-se senão com aquela presença E uma das mais emocionantes e irresistíveis experiências da vida, a de ter que render-se à evidência dos fatos, reconhecendo que Deus está perto e trabalha a nosso lado. Estamos tão habituados em nosso mundo à repetição desses belos conceitos — muitas vezes sem neles acreditar absolutamente — que quando percebemos que eles são mesmo verdadeiros, parece que nos achamos diante do incrível. Sentir que Deus existe de fato, coisa em que tão pouco se pensa, perceber Sua presença ativa em nossa vida, quando se sabe o poder de que Ele dispõe, deixa-nos amedrontados e nos aniquilaria, não fora a confiança que Sua bondade ao mesmo tempo nos inspira. Sensação que não pode ser transmitida, experiência que só quem experimentou, sabe o que significa.
Em nosso mundo pode ocorrer que se seja obrigado a viver entre gente que crê que nossas palavras sejam mentira, mas que quer dar a entender que nelas crê, julgando-as verdadeiras; e gente que diz mentiras, mas exige que nelas se creia como verdade. Mas que fazer diante do primitivo a quem estas idéias superiores escapam no inconcebível e parecem absurdas essas realizações complexas e a longo prazo, enquanto o que atrai como certo e positivo é o imediato da vantagem, além da qual seus olhos não vêem? Escapa ao involuído a organicidade que opera a longo prazo, o que presume a previdência a longo alcance, que só pode ser própria de uma forma mental evoluída, complexa e profunda. O primitivo, filho de um ambiente de caos, onde não é possível prever nem organizar, apega-se ao que pode segurar com as mãos no instante que foge, ficando todo o resto imerso no mistério. A ignorância desse tipo biológico justifica sua conduta, e sua conduta prova sua ignorância. Se ele só acredita na força, em sua força, e não é capaz de compreender mais, como impedir que se apegue só a ela, sem suspeitar sequer que esteja tão próximo do infinito poder de Deus, que só poderia alcançar se soubesse? Seria como querer explicar a um caminhante fatigado que sobe uma montanha, que nos espaços o movimento é gratuito e se realiza continuamente sem esforço. Como fazer-lhe compreender que tanta luta para vencer, demonstrando ser o mais forte, é puerilidade inútil diante do grande poder de Deus e de Sua Lei, contra a qual não há força humana que possa vencer? E o homem continua assim encadeado à sua fadiga, imerso no infinito poder divino, sem suspeitar sequer de sua existência. E por isso nem mesmo pode impedir-se que continue a sofrer, até que a dor lhe aguce a mente e ele possa aprender.
É inútil explicar para fazer compreender Quem está habituado a mentira porque a considera uma arma necessária para viver, só se sente seguro repetindo-a, escondendo o próprio pensamento verdadeiro, e acreditando que sejam mentiras as belas palavras de quem lhe quer ensinar a verdade. Pode ser útil dar a impressão de que se acredita nelas, mas ele está convencido de que seria loucura acreditar mesmo e agir de acordo. Então, se se mostrar crente pode trazer proveito material, porque aquelas mentes vêem razões pelas quais se possa utilizar tudo, até Deus, para o próprio proveito. Com efeito, esta é a única coisa positiva que existe na terra. O resto é mistério, objeto de fé para quem acreditar, é coisa nebulosa e distante, e nada se sabe como certo a esse respeito. Com efeito, em todas as religiões, se olharmos o modo de agir dos homens, e não o que professam, o mundo não dá provas de verdadeiro ateísmo? E quem sabe se, por vezes, em substância, não pertencem a esse materialismo religioso até os mais ortodoxos, formalmente perfeitos?
Mas há um fato que torna inútil e até perigoso todo este jogo, que se reduz a uma astúcia pueril, filha da ignorância. Deus e Sua lei de justiça existem realmente, mesmo se neles não se crê. Existem independentemente de nossa fé, como a luz existe independentemente de nossos olhos. Se não vemos, pior para nós. Não podemos destruir a luz, recusando-nos a querer ver. Tudo fica no momento. O que ocorre é que, se não vemos, batemos com a cabeça na parede e então o prejuízo será nosso. Se não tivermos compreendido que quem faz o mal, em última análise o faz a si mesmo e, se acreditando enganar a Deus e vencer o próximo, continuarmos a fazer o mal, mesmo se pensarmos que estamos agindo impunemente em proveito próprio, isto não nos libertará absolutamente das conseqüências, que temos de pagar fatalmente. A quem faz o mal não adianta paralisar o ofendido, porque isto não paralisa a lei de justiça de Deus. O perdão de quem recebeu o prejuízo adianta a ele, mas não pode deter aquela justiça nem a necessidade do pagamento.
Acreditar que com a astúcia possa escapar-se das sanções da justiça de Deus é erro grave que se paga caro. Julgar, como um pobre imbecil que não conhece a vida, o homem simples e honesto que segue o Evangelho, não é sabedoria, mas ignorância. Julgar que a verdade seja uma mentira em que não acreditar constitui uma astúcia, deixando que só os julgados ingênuos acreditem; defender ideais e virtudes só para que os outros as vivam, significa ser o mais ingênuo de todos, porque esse, querendo enganar aos outros, está enganando é a si mesmo. Neste mundo de mentiras é fácil imitar o estilo do verdadeiro instrumento e realizar os próprios negócios em nome de Deus; e se cai facilmente nesse jogo porque é o que requer menos esforço e é mais rendoso. Muitos porém não suspeitam que também seja perigoso. Não é esse um problema de uma ou outra religião porque em todas as religiões pode-se fazê-lo; é problema do homem que se encontra em todas as religiões e que em qualquer de suas formas pode igualmente procurar zombar de Deus.
Nada disso significa que as forças do bem não são senhoras do campo a qualquer momento, tanto que até essas resistências e atritos são utilizadas por elas em proveito próprio. Assim, no desenvolvimento de uma missão vemos serem chamados a dar algum tributo útil também os elementos negativos. Os homens são diferentes e a, técnica divina é sábia. Ela sabe, pois, tirar partido das diversas qualidades de cada um, para fazer-lhes realizar os trabalhos mais diversos, mesmo permanecendo justa para com todos. Por isso, para os que se movem apenas pelas atrações materiais, Deus usa a técnica da miragem, como já vimos. Como induzi-los a cooperar de outra forma, senão tocando as únicas teclas as quais responde o indivíduo, senão apoiando-se nos instintos que ele está pronto a seguir, senão oferecendo as idéias que sua forma mental pode compreender? Assim ele se põe a correr atrás da miragem e faz um trabalho que, de outra forma, jamais faria.
Poder-se-ia pensar: mas então Deus está enganando esses homens? Mas quem é que os obriga a cair na ilusão? O mundo não está cheio de sermões que os avisam de não confiar e de preferir as coisas eternas do espírito? Por que então eles só querem crer nas coisas da terra? São eles que escolhem crer nas ilusões como coisa real, e na realidade como ilusão. Eles querem isto com tenacidade, resistindo a todas as exortações e explicações, e até acreditando-se sábios quando se rebelam contra elas, imaginando com isto não cair numa armadilha que lhes é estendida para enganá-los. Como raciocinar com eles, como esclarecê-los acerca do verdadeiro estado das coisas, se eles partem do princípio de que não é verdade o que se lhes diz, e que seu proveito está em não se deixar enganar pela verdade que eles julgam mentira?
Se caem na miragem não é porque Deus os engane, mas porque eles querem enganar-se por si. São eles que, enquanto à força de sofrer não tiverem aprendido a compreender que se trata de ilusão, não poderão sair da própria ignorância. O problema está dentro deles e só eles podem resolvê-lo, porque tudo é devido a um estado de involução do qual não poderão sair senão por meio de seu esforço e sacrifício, para evoluir. A miragem não é criada por Deus, mas por sua ignorância e só pode cair quando for eliminada essa ignorância. Tudo depende de sua posição ao longo da escala evolutiva, o que os leva a obedecer cegamente aos instintos de egoísmo e cupidez, próprios de seu plano de vida. E para sair dos próprios instintos e de todas as conseqüências a que levam, é necessária profunda renovação do ser. Mas é justamente contra isso que muitos se rebelam, tão mergulhados na ilusão de crer que sua maior sabedoria e vantagem consistem justamente em realizar essa rebelião. E assim cada vez mais mergulham na ilusão. Não é Deus que lhes diz: aceitai esta miragem, porque recebereis recompensa. São eles que aplicam a tudo sua psicologia e assim se lançam por força na ilusão. São eles que querem agir assim, que sempre assim agiram e querem continuar a agir. E encontrarão o único pão de que necessitavam, a desilusão, único meio para fazer-lhes compreender que escolheram um caminho errado e que precisam escolher outro melhor. Deixados livres para submeter-se à vontade àquelas experiências que lhes agradam, no fim de cada uma encontram a lição salutar corretiva que os instrui, com a experiência e os impele a um caminho melhor, onde poderão encontrar a ansiada felicidade. O pão verdadeiro que pode saciar sua fome está pronto, mas eles o não vêem. Assim, serem utilizados como instrumentos ignaros na realização de u‘a missão, lhes põe diante esse pão, para que ao menos olhem para ele; oferece-lhes uma oportunidade de melhorarem-se, da qual poderiam aproveitar. Nova e preciosa experiência. Mas se quiserem recusá-la para tornar a mergulhar em seu mundo, então é bem justificada sua expulsão do terreno da missão em que puderam entrar, mas ao qual não lhes é permitido trazer destruição.
Poder-se-ia ainda objetar: mas estes fazem um trabalho e a justiça de Deus deve pagar?lhes. Certíssimo. E por justiça são pagos com a qualidade e quantidade de moeda que correspondem ao trabalho realizado. Assim recebem sua compensação terrena na forma de vantagens materiais, como procuravam,  já que outra coisa não buscaram; e estas, na quantidade merecida. Com isto são pagos e, uma vez pagos, estão fora do trabalho e não mais a ele pertencem. Está assim perfeitamente justificada a expulsão desses elementos, que só tomaram parte nele para outros fins, elementos negativos em relação à missão e que, se aí permanecessem, a prejudicariam. Se algo fizerem pelo ideal foi sem querer e sem saber, portanto não podem atribuir-se mérito algum. Acreditavam fazer coisa totalmente diferente do que, pela vontade de Deus, fizeram. Assim, no caso deles, se situa perfeitamente a lei de justiça, pela qual, acreditando-se astutos, tendo querido enganar para utilizar tudo para si, ficam no fim enganados, sendo utilizados para outros fins, para os quais, se os tivessem conhecido, não teriam movido um dedo.
Eis como foram servidos os práticos da vida, os positivos do mundo, que, acreditando estar bem presos no real, julgam sonhos os ideais, e iludidos os que trabalham por eles. Estamos sempre observando a técnica funcional do fenômeno da descida das forças do Alto, para tomar possível na terra a realização de uma missão. Que prova maior da efetiva presença dessas forças, que uma ação conduzida com tão perfeita estratégia, tão cheia de sabedoria e justiça? Vemos aqui como realmente trabalham as forças do Alto, como de fato opera a Divina Providência. Quisemos colhê-las neste momento especial em que, para atingir seus objetivos elas foram constrangidas a sair do segredo em que se escondem geralmente e assim tiveram que revelar-nos não apenas sua presença, mas a maravilhosa técnica de sua estratégia e método de ação. Assim, com a atenta e íntima observação, conseguimos ver muitas coisas que nos mostram como Deus trabalha entre nós. E os frutos desta observação estamos comunicando ao leitor, para que também ele veja a maravilha da presença de Deus no meio das coisas humanas.
No caso que estudamos, verificamos a inegável existência de um plano preestabelecido que se vai realizando, protegido por uma força que dá prova de ser poderosa e inteligente, tanto que sabe vencer todos os obstáculos. Tem seus fins precisos a atingir e dá prova de sabê-los alcançar a qualquer custo. Esse trabalho é realizado não sé com poderosos meios e superior inteligência, mas também com profunda sabedoria e justiça. Na ação há tempestividade, previdência, exatidão, ordem e proporção, os auxílios descem adequados às pessoas demonstrando perfeito conhecimento do ambiente terrestre e da alma humana, do rendimento útil que cada um pode dar. Muitos são chamados a trabalhar na missão e cada um só faz a parte que sabe fazer, segundo seus recursos. Se se comporta bem, é cada vez mais incorporado ao trabalho. Mas se o quer torcer para outros fins seus, revelando-se elemento negativo e contraproducente, então, como é justo, é pago pelo que lhe cabe, pelo trabalho feito, e lançado fora da obra que não tem o direito de prejudicar. A este não é negada a justa mercê, tão justa que resulta da própria natureza do trabalho prestado, como o indivíduo livremente quis executá-lo. Se o fez sem nada haver compreendido, essa ignorância não é casual, mas devida ao próprio grau baixo de evolução, fato também merecido segundo justiça. As vantagens do compreensão que nos vêm da inteligência devem ser conquistadas por nós mesmos com nosso esforço e fadiga para evoluir.
Outra maravilha dessa estratégia é que consegue utilizar em favor próprio também as forças contrárias, fazendo trabalhar para o próprio triunfo também o inimigo. E esta é ainda uma prova de que se trata da descida de forças do Alto, porque só as forças do bem são senhoras das do mal e não ao contrário; só Deus é senhor do mundo, e não o mundo senhor de Deus.
Eis o que nos mostra e ensina esse choque que estamos observando e seu resultado final. Poderão ser chamados, assim, também indivíduos capazes de fazer o mal; e se o quiserem fazer, esse mal cairá sobre eles, que deverão pagá-lo à divina justiça, enquanto, para a obra, ele se transformará em trabalho útil e servirá para a vitória do bem. Surpreendente técnica de inversão de valores, que constitui nova maravilha na estratégia das forças do Alto, maravilha que consiste em saber fazer luz com as trevas. E no fim cada um é pago conforme trabalhou. De forma positiva, se trabalhou de forma positiva em favor da obra, ou de forma negativa1 se trabalhou de forma negativa contra sua realização. E com Sua Lei, Deus terá sido sempre Senhor de tudo Só assim podemos explicar aquela obra de infinita sabedoria, representada pelo fato de que, através do erro se caminha para chegar à verdade, e de que a atividade das forças negativas da destruição se chega a trazer produção útil, que é dada pelo trabalho próprio das forças positivas da construção.


Continuemos a observar, cada vez mais de perto, o fenômeno que estamos estudando, para compreendê-lo melhor e dele extrair úteis ensinamentos. Interessa a todos conhecer a técnica da descida das forças do Alto, a Terra, as armas de que elas dispõem e a estratégia que usam para vencer. Pode ser instrutivo observar como, neste caso, ocorreu o choque entre duas psicologias e métodos de ação os do Evangelho e os do mundo. Pode ser útil, depois de haver visto qual dos dois é verdadeiramente o mais poderoso, aprender sistemas mais evoluídos de vencer. Já agora, nesta história, os princípios tomam corpo em pessoas concretas, que agem no plano material de nosso mundo. Expusemos no início deste volume as teorias que explicam isto. Agora os observaremos em sua aplicação prática, estudando as qualidades e posições dos dois antagonistas em que se personificam os dois princípios opostos. Cada um usa sua forma mental e seus meios, de acordo com o diverso comportamento de sua natureza.
O    mundo humano é um cenário complicado de aparências, entre as quais o homem evangélico deve mover-se com simples sinceridade. Aparentemente tudo é bondade, estima, desinteresse, nobre sacrifício pelo ideal, magnânima generosidade. De todos os lados esse exemplo nobre, estimulando á imitação. Nosso personagem encontrara esse ambiente e ficara encantado. Mas infelizmente, havia por baixo uma realidade diferente, havia a natureza humana que funcionava segundo as leis de seu plano biológico. A realidade era a luta feroz pela vida, conluios bem organizados de interesse, o velamento dos próprios objetivos para vencer melhor, dissimulando a verdadeira estratégia usada na batalha. Jogo sutil, recoberto de ideais desfraldados, para escondê-lo melhor. Sempre no mundo o mesmo tipo, os mesmos métodos estandardizados. Esse o antagonismo que nosso personagem devia vencer: homens unidos em alianças, para se tornarem mais fortes, senhores do campo porque aí tinham nascido e vivido, conhecedores do terreno da batalha e armados de todos os meios, quer do poder econômico, quer do social, quer da astúcia: em outros termos —  ao menos na opinião do mundo — os mais fortes indiscutivelmente, e portanto, segundo sua lógica, destinados ao triunfo, e eles mesmos antecipadamente certos da vitória.
Do outro lado a simples realidade descoberta: um homem pacífico, sozinho, sem planos manifestos nem ocultos, incapaz de enganar a quem quer que seja; um homem sozinho, desconhecedor do terreno da batalha completamente novo e desconhecido para ele; um homem pobre, evangelicamente indefeso, sem meios de qualquer espécie, desprovido de tudo e a mercê de todos. Indiscutivelmente — ao menos na opinião do mundo — ele era o mais fraco, e portanto, segundo a lógica dominante, destinado a derrota, considerado vencido antecipadamente por todos.
Tínhamos de considerar as qualidades opostas dos dois contendores, para compreender a natureza milagrosa da salvação do indefeso, e portanto o valor do exemplo, que só pode ser explicado com a intervenção de forças superiores. Isto nos mostrará o poder do fenômeno a que estamos assistindo, ou seja, não apenas a técnica da descida das forças do Alto, mas também o valor e o alcance dessa descida neste caso.
A escravidão do mundo foi abolida apenas formalmente, nas leis, mas continuou no instinto humano, em relação a qualquer indivíduo, desde que pareça mais fraco: escravidão moral, econômica, política etc., de forma civilizada, com cadeias invisíveis, mas nem por isso menos fortes. No plano biológico em que reina a lei do mais forte, constitui justiça apoderar-se do mais fraco para sujeitá-lo. A lógica do fenômeno — dados seus elementos componentes — não podia deixar de desenrolar-se até o fim. O mundo, por sua forma mental e pelos meios a sua disposição, não podia trabalhar de outra forma e continuava a funcionar destemido com seus métodos. O espetáculo a que estamos assistindo é o que nos oferecem as forças do Alto, que se revelam com sua intervenção necessária para realizar a salvação. Como teriam agido para vencer, neste caso, a Grande Batalha? Deviam empenhar-se a fundo, porque aqui estava em jogo o valor do Evangelho e a palavra de Cristo. Mas se esse homem tivesse vencido em condições tão contrárias, essa vitória teria constituído uma prova tanto mais evidente, quanto mais difícil fosse o caso superado.
Todas as probabilidades pareciam em favor do mundo. Sua derrota teria sido tanto mais clamorosa e milagrosa quanto mais contradizia a regra normal. E existiriam meios supranormais capazes de dobrá-la até o ponto de fazer triunfar um indefeso num mundo de armados? Mas então os meios espirituais são mais poderosos que os materiais, tendo na batalha um peso tão decisivo? Nesse caso, não só não é verdade que o Evangelho seja inaplicável na terra, como, ao contrário, ele representa a arma mais poderosa para vencer. Conclusões importantes, de interesse geral.
Daí resulta, para o homem que fez essa experiência, o dever de comunicar seus resultados, tanto quanto os cientistas comunicam os de suas descobertas científicas, embora neste caso a experiência tenha sido realizada no terreno espiritual e moral. Um fato que realmente se verificou tem sua importância no terreno das pesquisas positivas, porque se tem o direito de presumir que a experiência deva reproduzir-se com o mesmo êxito, todas as vezes que for repetida nas mesmas condições. Cada caso vitorioso constitui uma prova de uma nova verdade que vamos descobrindo, e abre-nos uma porta para que, repetimo-lo, se chegue ao conhecimento completo dessa verdade e depois a sua aplicação para nossa vantagem.
Tudo isso a ser observado pode parecer puramente pessoal, e como tal não deverá ser narrado. Mas todos os casos particulares entram na lei geral de que fazem parte; assim, este pode ser compreendido como um episódio, que pode repetir-se com todos, da Grande Batalha entre Cristo e o mundo, e que pode assumir o valor de experiência evangélica com conseqüências de caráter universal. Por que negar-se a dar uma prova da verdade do Evangelho, útil para que dele fiquemos cada vez mais convictos? Isto é tanto mais necessário num mundo em que, na prática, parece que bem poucos já agora creiam. É verdade que o Evangelho não precisa de nossas provas. Mas parece que ele precise ser continuamente explicado. E nada o explica melhor do que dar provas de sua verdade, ainda mais quando essas provas não são dadas na forma tradicionalmente repetida, mas de forma racional e positiva, mais adaptada à  psicologia moderna: provas estas aptas a demonstrar a verdade do Evangelho não só no sentido fideístico e religioso, mas também como fenômeno biológico universal, em sentido positivo, no terreno da observação e da experiência, que é o terreno científico. Justamente nesse terreno do positivismo materialista é que quisemos, ao referir este caso e fazer-lhe a análise, levar o Evangelho, certos de que também nesse campo em que geralmente ele não é levado, continua perfeitamente verdadeiro.
Continua a estranha Batalha. De um lado o mundo aguerrido, do outro um homem indefeso, sozinho. Mas atrás dele estão as forças espirituais que o sustentam. É nesse milagre que se manifesta o poder delas. Parece rever a cena de Davi que enfrenta o gigante Golias. O gigante é o mundo que esmaga, com seu poder no plano da matéria. Davi representa o mundo poderoso no imponderável e dominador no plano do espírito. Mas este achava-se na terra dos gigantes, onde imperava a lei deles. Segundo esta lei, nosso personagem nada valia e era considerado um falido. Entretanto escapavam a psicologia do mundo e aos cálculos de sua estratégia — porque não eram computados — outros elementos que também estavam em jogo na batalha. Aquele homem não era um falido. Tornara-se pobre, não por ter sido um dissipador, nem por inércia, mas por fidelidade a um princípio, por não se haver defendido, por bondade para com o próximo, para entregar-se de todo ao cumprimento de sua missão. Como rico ou como pobre, mantivera-se igualmente parco e honesto, inocente das riquezas que para si jamais aceitara pessoalmente, como era inocente de sua dispersão, ocorrida acima de sua vontade. Ora, se nos planos inferiores o que vale é o poder material, nos superiores domina, ao invés, a lei de justiça. Então o que na terra pode parecer fraqueza, pode ter valor de força, e esses elementos — a inocência, a não-culpabilidade, a fidelidade a um princípio, bem pouco computados no mundo porque desaparecem no imponderável — podem adquirir peso decisivo, poder de verdadeiras forças protetoras.
Havia ainda outro falo. O que constituía a fraqueza daquele homem, no terreno humano, constituía sua força num plano mais alto. Se na terra era desprezível por haver perdido tudo, essa perda era compensada pelo fato de que em seu destino amadurecera uma missão, fato que, num plano diferente de vida, o revalorizava, apesar de sua desvalorização no plano comum de vida. A vida, que é honesta e utilitária, utiliza essas justas compensações. O mundo concebe a vida num sentido restrito, limitado ao seu plano atual. Mas a vida é um fenômeno cósmico, em que entram também as forças Crísticas que guiam nossa evolução para um futuro melhor. Resulta que a ligação com essas forças, para colaborar aos objetivos delas, pode valer muito mais que possuir riquezas, glória, poderes humanos, valores efêmeros diante dos eternos. Se olharmos bem, nosso homem era pois um fraco apenas para os olhos míopes do mundo e vencido apenas no plano deste, por sua estreita psicologia.
O que dava poder a posição dele era o fato de que, se ele desaparecesse no mundo como um vencido, reaparecia na roupagem totalmente diversa de instrumento. Então não era mais ele que vivia, mas outras forças viviam nele, e por seu intermédio queriam realizar os próprios objetivos na terra. Ser instrumento significa não estar mais sozinho, como esta o homem que se arma, apoiando-se apenas em suas forças. Para isto, ha grande necessidade de armar-se, porque não existe outra defesa. Quem se tornou instrumento, de nada disso precisa, porque a isso providenciam as forças do imponderável de que ele se tornou meio de realização e que devem mantê-lo em vida se quiserem que ele trabalhe para essa atuação de seus planos. Ser instrumento significa ter de obedecer ao próprio patrão, mas significa também colaborar, fazendo parte de sua organização, e portanto também significa ser defendido por ele. Pôr-se em estado de aceitação diante de um chefe inteligente e justo não equivale a posição em que se acha o fraco, na terra, condenado a condição de servo, ao qual só resta ser pisado e explorado. Ao subir, tudo se inverte. Mais no alto, obedecer não é perda, mas vantagem. Num mundo de bondade e de justiça, submeter-se não é perder, mas vencer. Ele se torna, então, parte de um plano, o que pode dar poder ao homem mais miserável e, sempre que isto seja requerido pelas necessidades daquele plano, ele pode ser arrastado além de sua própria compreensão e vontade, à  vitória. O instrumento é como uma apara de palha que sobrenada no oceano, e assim toma os movimentos dele. Mas por trás do homem comum só está ele mesmo, com suas limitadas forças humanas. Por trás de um instrumento1 há uma poderosa organização de forças espirituais. Enquanto este último parece só e abandonado na terra, é justamente o primeiro que esta sozinho, e ninguém se acha tão rico de amigos e auxílios quanto o segundo.


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Eis que vemos entrar em cena na batalha um fator novo: o imponderável. Esta é a nova arma que defende o indefeso. Trata-se de forças sutis e profundas, lentas a movimentar-se, mas poderosas e irresistíveis. O mundo continua a armar-se com seus meios e a lutar com sua psicologia, escapando-lhe estas outras armas que fazem parte da estratégia do invisível. Elas são constituídas de equilíbrios complexos entre ações e reações em organismos cósmicos de forças, que o mundo não vê. Não as vendo, nega-as, o que as torna por isso muito mais perigosas, porque ele não as leva em conta. O mundo se desobriga, dizendo que elas não existem, o que não as impede de continuar a funcionar. Escapa-lhe assim completamente a estratégia do inimigo, e ele comporta-se como um cego que avança sem saber onde caminha. Acontece então, que o mundo se arma de modo errado, que só vale para a luta em seu plano, e nada vale na luta contra outros planos de vida. Acontece também que o mundo usa uma estratégia de guerra adequada apenas ao seu ambiente, e que nada vale diante da mais sutil e poderosa estratégia do imponderável. Ora, só se pode enfrentar um inimigo cuja natureza, psicologia e métodos do ação não se conhecem, em posição de grande desvantagem.
Se tudo isto é penoso e perigoso, não deixa de ser lógico. Uma das primeiras qualidades do involuído é sua cegueira, que o faz crer apenas no poder das forças materiais de seu mundo, não o deixando ver e computar o que esta além dele. A ignorância cresce com a involução, quanto mais baixo se desce, paralela à  força bruta, à ferocidade. Acredita-se poder suprir vantajosamente a falta de luz, com a falta de escrúpulos; a falta de justiça, com a prepotência; a desordem, impondo o próprio eu. Chega-se assim, sem dúvida, à  potência da explosão das forças elementares, fenômeno grandioso, mas primitivo e caótico. Embora reconhecendo que esta é a única manifestação da vida nesse nível, por que ela aí nada sabe fazer melhor, alcança, entretanto, manifestações de muito maior potência e valor, com o aperfeiçoamento realizado pela evolução, ao fazê-la subir a planos superiores.
O homem evangélico, embora possa parecer inepto sonhador aos olhos do mundo, a única coisa que faz na realidade é lançar fora as armas primitivas e pouco poderosas, para apanhar mais aperfeiçoadas e de maior potência. De que serve a força bruta do involuído, se fica paralisada com a ignorância? De que serve tão grande desencadeamento de energia, se não se sabe dirigi-la e se erram todos os golpes? Se a força bruta, acompanhada da obtusidade e ignorância para chegar a ilusão é patrimônio do involuído, patrimônio do evoluído é o poder do espírito, acompanhado da inteligência e do conhecimento, que dão segurança e levam ao bom êxito.
Sem dúvida, o homem do mundo esta bem proporcionado ao seu ambiente, satisfeito, e até apegado a ele. Mas o que é pena, é que essa forma de existência representa para ele toda a vida, o único tipo de vida que pode conceber. Por isso lhe atribui importância capital, já que não sabe viver de outro modo, e esta é sua maior condenação. O homem evangélico vive na terra, imerso no mesmo pântano, mas com os olhos voltados para o céu, sem prender-se a tal ambiente. Em sua insatisfação faz esforços desesperados para sair dele, enquanto o outro esta contente aí, e portanto condenado a permanecer. Desespero salutar, porque incentivo ao esforço necessário à superação.
Continuamente continuam a encontrar-se e chocar-se os dois biótipos, no curso desta história, cada um trabalhando com a própria psicologia e estratégia, e usando o próprio tipo de armas. Um dia, sentados lado a lado no mesmo automóvel, um esplêndido exemplar do biótipo dominante na terra disse ao nosso personagem: "coitado, o senhor não sabe nada da vida pratica... faz-me pena"! Depois, voltando-se para um amigo do mesmo tipo, sentado do outro lado, acrescentou: "Nós é que sabemos viver e vencer Ele, coitado, é um pobre desgraçado na vida". Nosso personagem ouviu e sorriu. Ele não necessitava mostrar-se forte com afirmativas verbais, para ter certeza de vencer num mar de incertezas tortuosas. Sorriu com amargura, não por si, pois via claro seus problemas, mas pelo vizinho, ao vê-lo tão imerso na escuridão em relação ao que depois lhe aconteceria, conforme acabava de provar, com suas palavras, nada ter entendido.
Continuemos a observar como funcionam os dois princípios opostos e como se desenvolvem suas estratégias opostas, para aprender sobretudo a do evangélico, descobrindo onde esta sua força e superioridade, e para ver do lado oposto os erros de método que constituem a fraqueza e inferioridade da estratégia do mundo. Veremos, assim, como esta, acreditando tirar vantagem para si, acaba buscando seu prejuízo, ou seja, como o sistema da astúcia é quase sempre contraproducente.
De um lado seres fortes, mas elementares, só movidos pela inteligência curta dos instintos, engodados pela perspectiva do lucro imediato, isolados no próprio egocentrismo, sem sentido orgânico da vida, tendentes, para tornar-se mais fortes, a organizar-se em grupos e prontos a desfazê-los porque baseados no egoísmo que é separatista e desagregante. Seres que se acreditam fortes porque armados de meios humanos e de grande fé em sua astúcia. Pequena estratégia elementar, miúda, para alcançar objetivos concretos e próximos, ignorante das profundas maturações de longo alcance e da organicidade a longo prazo das grandes batalhas.
Do outro lado o tipo biológico despersonalizado do próprio egocentrismo, organicamente fundido com as forças de seu plano, forte por essa organicidade impossível de desfazer-se porque baseada no altruísmo que irmana unificando. Uma vida que transcende no particular, assumindo profundos significados universais. Um mundo ignorado pelos atores da parte oposta, e no entanto vivo, presente, que opera também no mundo deles. Que peso podiam ter, no choque com impulsos desse gênero, os pequenos estratagemas humanos, para conseguir fins pessoais terrenos? Quem os utilizava, não compreendia que estas eram ótimas redes para pegar os peixinhos comuns, mais que inadequadas para peixes de outras formas e dimensões, que, ao invés de serem presos, as rasgariam.
Assim essa batalha oferece-nos um espetáculo estranho. As aparências estão todas a favor do primeiro tipo de homens. E eles crêem cegamente nessas aparências, tanto que nelas baseiam sua estratégia. E por isso eram enganados completamente pela própria psicologia. A substância era completamente diferente. Enquanto eles se acreditavam fortes, porque armados, hábeis e senhores do terreno, de fato eram fracos. Embora acreditassem o contrario, se achavam diante de um inimigo do qual não viam as armas, a estratégia, nem a verdadeira natureza, um inimigo imponderável, de quem nem conheciam o rosto. E acreditavam conhecê-lo. Combatiam, pois, um inimigo completamente diferente do que criam que fosse.
Nascia desta forma, da parte deles, uma estratégia toda errada, dirigida a golpear certos pontos que lhes pareciam vitais, mas que não o eram. Seria como querer matar um espírito com tiros. Aconteceu, portanto, que seus golpes caíram no vazio e atingindo um alvo diferente, não chegaram a produzir o efeito querido. Ao contrario, esta foi para eles uma atividade totalmente contraproducente porque, além de representar inútil desperdício de energia, se voltou depois contra eles mesmos. Cada golpe deles não atingia o alvo, mas ricocheteava nele. Era como se atirassem contra si mesmos. Explica-se isto com o fato de que, tratando-se de golpes lançados contra a ação de planos superiores, entra logo em cena e manifesta-se sua lei de justiça, pela qual quem faz o bem ou quem faz o mal, o faz a si mesmo. Assim, cada golpe dado contra o inimigo, volta a quem o deu. Por isso, quem acredita vencer com a astúcia e o engano, fica vencido pelo seu próprio engano. Então, cada movimento para a conquista acabara minando as próprias posições. Isto pela lei geral, porque, no fim, o mal só pode trabalhar contra si mesmo.
A conseqüência de tudo isso foi que a estratégia dos homens do mundo resultou invertida, de modo que tudo o que procuraram fazer para lucro próprio e em prejuízo do instrumento da missão, resolveu-se em pratica em prejuízo deles e em lucro deste. Quanto mais procuravam torcer a missão aos próprios fins, mais esta lhes escapava das mãos, e certamente não por vontade do instrumento, mas como que espontaneamente. Para eles, cada assalto se voltava contra eles mesmos, cada ato se tornava contraproducente, cada movimento prejudicial. Quem pôde observar de perto o fenômeno, conseguiu com isso uma prova experimental de que as forças do mal trabalham sempre para perda, com prejuízo próprio e em vantagem das forças do bem, a serviço destas e para seu triunfo.
Confrontemos as duas estratégias: a da astúcia e a da sinceridade. A primeira vista, parece que a primeira dê frutos maiores. Eles são mais visíveis porque imediatos e, para quem ignora o futuro, o imediato tem grande valor como prova de êxito. Mas trata-se de frutos aleatórios. A sinceridade, ao contrário, se constrói mais lento, constrói mais sólido, aí mesmo onde o engano constrói rápido mas sobre areia. Parece um atalho, e no entanto é uma estrada mais longa. Por isso muitos são a ela atraídos, mas depois ficam desiludidos. As aparências enganam. A estratégia da sinceridade, justamente porque mais simples e retilínea, é mais própria a vencer; a da astúcia facilmente se perde pelas estradas tortas da mentira. Para manter a primeira mentira, é preciso logo escorá-la com uma segunda, depois a segunda com uma terceira, e assim por diante. No fim, não se constrói um edifício, mas apenas uma desordenada floresta de escoras e, se falta uma delas, tudo rui. Se um resultado imediato é obtido com o primeiro engano, logo é preciso justificá-lo com outro, depois este com outro, até que se fica preso em sua rede. Constrói-se assim um sistema todo errado, dentro do qual se fica preso. A mentira é a areia mole do pensamento, na qual, nem mesmo quem a diz, sabe onde apoia o pé e por isso mesmo acaba afundando. Quando se pretende construir nesse terreno, quanto mais alguém se move para sair, mais nele afunda. Acontece como no tempo de guerra, em que todos semeiam minas, que depois explodem para todos, aonde quer que se vá. A vida do astuto enganador acaba então transformando-se em campo minado, no qual ele mesmo, em primeiro lugar terá de caminhar, com o perigo de que uma das minas que ele mesmo colocou, possa explodir a cada momento.
Então, entre as duas estratégias, a do mundo e a do homem evangélico, demonstra-se a primeira, na prova dos fatos, decididamente inferior. O primeiro método é confuso, complicado, tolhido em seus movimentos pela própria multiplicidade de suas faces, que podem esconder, mas também podem trair. Quem o utiliza, sente intimamente que não está certo; sente que esta, por trás de todas as aparências, intimamente estragado e não sustentado por nenhuma força interior. Tudo isto o torna ansioso, desconfiado, necessitado de assegurar-se, agarrando-se ao que lhe parece concreto em seu mundo, onde tudo lhe escapa no engano. Tomado pelo afã de uma preocupação contínua, ele então se agita e corre, sem jamais chegar a tempo. Assim a astúcia do mundo constrói um grande castelo que, como vimos na prática, acaba muitas vezes caindo-lhe nas costas e sepultando-o nos escombros.
Diferente é o método do homem evangélico. Simplicidade e sinceridade representam material de primeira qualidade, bem sólido para construir. Não há mistérios a esconder, mentiras a recobrir, mascaras para arrastar atras de si, não se fica sobrecarregado pelo trabalho de ter que aparecer sem ser, pelo esforço de ter que representar a comédia do fingimento. Quantos cálculos a menos a fazer, quanto menos erros possíveis para corrigir depois, quanto trabalho a menos para realizar! O homem evangélico tem uma só face e sempre a mesma. Ele sabe o que está certo, conhece o seu direito, e faz o que deve. Esta sua posição retilínea constitui seu maior poder de penetração e resistência. Não tem pressa de chegar porque sabe que, se Deus não paga no sábado, certamente pagara e na melhor época. Ele conhece a Lei e confia nela. E isto lhe da calma pelo que, sem a ânsia de correr, chega a tempo. A calma e a segurança são as qualidades que fazem reconhecer as coisas do bem e de Deus. A pressa ansiosa e a incerteza são as qualidades que fazem reconhecer as coisas do mal. O evoluído sabe que constrói estavelmente na rocha um edifício feito para ficar em pé.
Na natureza oposta dos dois sistemas reside sua fraqueza ou sua força, a razão de sua queda ou de seu êxito. O método do involuído, sendo de natureza separatista, é destrutivo, pois é filho do poder negativo do Anti-Sistema, e só pode levar a resultados da mesma natureza, ou seja, negativos. O método do evoluído, sendo de natureza unitária, é construtivo, pois como filho do poder positivo do Sistema só pode levar a resultados da mesma natureza, isto é, positivos. Eis por que, colocados os dois biótipos, um diante do outro, a vitória cabe ao evoluído.
Nenhuma força ou astúcia humana poderá mudar esta lei, que disciplina e dirige a luta entre as duas maiores forças do universo, o bem e o mal. Quem usa as forças negativas, não pode deixar de ficar, no fim, demolido. É sua própria negatividade que as torna destrutivas, porque tendem ao desmoronamento, revoltando-se em primeiro lugar contra quem as usou.
Baseiam-se as duas estratégias em princípios completamente diversos, e é deles que depende a força ou a fraqueza de cada uma das partes da luta. Trata-se de duas psicologias opostas, mas de amplitude diversa, pela qual a superior compreende a inferior, mas esta não compreende a superior, que não agride, não guerreia, e, perdoando, não retribui os golpes que recebe. Deixa apenas que os golpes que lhe são dados, recaiam automaticamente sobre quem os desferiu, que assim trabalha para a própria perda, indo contra si mesmo. Enquanto o evoluído é naturalmente transportado pelos mesmos impulsos da Lei dentro da qual se colocou o involuído, tendo-se colocado como rebelde fora da lei, e tendo-se isolado em seu egocentrismo individual, só pode contar com sua limitada reserva de seus recursos pessoais.
Esgota-se também a complicação de seu jogo. Não só, como dissemos, cada mentira requer outra para justificar-se, e esta, outra, e assim por diante, mas cada vitória injustamente arrancada ao vizinho aumenta o próprio débito para o equilíbrio natural da Lei e o crédito do ofendido em relação ao ofensor; aumenta o peso específico deste e portanto a dificuldade para ele de realizar o esforço necessário para manter-se a tona. Acumulam-se desta forma cada vez mais os débitos que o vencedor tem que pagar ao vencido. A grande ilusão de quem vive no plano da força, é que não exista justiça, e que esta pode ser subjugada, porque tudo é questão de força. Mergulha ele assim num sistema em que, quanto mais se vence, mais se precisa da imposição da força para defender a própria vitória. Isto porque esta se baseia na extorsão, pela qual a balança pende de um lado, pela imposição da força de uma das partes, e o equilíbrio vem a faltar logo que esta se retira. Num estado de justiça, ao contrario, por causa do equilíbrio espontâneo entre os dois impulsos opostos das duas partes, ambas permanecem naturalmente satisfeitas, num estado de paz. O primeiro e o método do Anti-Sistema, feito de caos, em que emerge, na desordem, só o eu separado. O segundo é o método do Sistema, feito de equilíbrios, em que emerge, na ordem, a fusão orgânica de todos os eus, reunidos num bloco.
Nosso mundo comete e continuamente paga o erro de não viver esses princípios de equilíbrio, que nenhuma imposição de força conseguirá impedir que funcione. A isto alude o Evangelho quando diz: os primeiros serão os últimos, e quem se humilha será exaltado, ou ai dos que gozam e felizes os que choram etc. O mundo não compreende que, acreditando poder impor-se com a força ou a astúcia a essas leis, ele cava a própria ruína; não vence, mas perde. A vitória pode ser alcançada por caminhos totalmente diferentes dos comumente usados, que são julgados os melhores. É pois evidente que o mundo nada compreendeu a esse respeito. Prova-o o fato de estar continuamente pagando. É absurdo crer que tanta dor caia do céu injustificadamente, sem uma causa. E na lógica do mecanismo universal é precisamente a inconsciência humana e a conduta louca que daí deriva, a única explicação dos efeitos que temos sob os olhos.

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Que é o homem atual? Ele nos aparece antes de tudo em sua roupa exterior, coberto com o trajo imposto pela moda dos civilizados. Dentro dessa roupa existe aquilo que a medicina considera, com os critérios com que estuda todo organismo animal, uma complicada maquina por meio da qual funciona a vida. Mas esse organismo vive junto a muitos outros semelhantes na coletividade social. Daí uma complexa rede de relações, de direitos e deveres, de leis e normas que disciplinam a atividade daquele ser, tentando enquadra-lo no mais vasto funcionamento de um organismo maior, ainda em formação, o da humanidade. Esse ser esta submetido a outras leis, das quais não pode escapar. Sua existência esta ligada a um sistema atávico, pelo qual ela não pode desenvolver-se senão através de uma trilha já traçada: concepção, nascimento, desenvolvimento físico da infância, geração dos descendentes, madureza velhice e morte. Ninguém jamais o poderá tirar deste esquema preestabelecido. Cada qual poderá introduzir aí pequenas variantes, nada mais.
   Assim caminha a maré da vida, fechada nesse esquema. É sempre o mesmo e a humanidade tem que caminhar por aí. Não foi ela que fez essa lei. Só lhe cabe aceitar, sem possibilidade de escapar. Mas essa lei não é estática. Mediante lentíssimos deslocamentos ao longo de seu ilimitado repetir-se, ela a pouco e pouco se vai transformando, por aquele fenômeno que se chama evolução. Evolução quer dizer subida, e subida implica a idéia de níveis e alturas diversas, que se atingem nesse processo de ascensão. Então, a concepção de planos de vida diferentes e sobrepostos não é arbitraria, mas a conseqüência direta do conceito de evolução. Não existimos nós num plano de vida superior ao das plantas e animais, que nos precederam nesta subida da vida? E ninguém nos proíbe — ao contrário, está na lógica de todo sistema da evolução — que os degraus desta escada continuem a subir, sobrepondo-se, tal como os vemos escalonados no passado.
É lícito então perguntar-se: que se tornara o homem no futuro? Como as leis da vida se transformaram passando do plano do mineral ao do vegetal, e do plano deste ao do animal e depois ao humano, é bem presumível que elas continuem a mudar-se, ao chegarem a um plano mais alto, superior ao nosso humano atual. Mas em que direção quererão mudar-se, então, essas leis da vida? É  lógico que na mesma direção seguida até hoje. E qual é essa direção? Quais são as qualidades que o ser vai conquistando e que se acentuam com a evolução? A observação do passado nos diz que ela tende a uma libertação cada vez mais acentuada da estaticidade da matéria, assenhoreando-se do movimento que se torna sempre mais um auto-movimento, não obrigado, mas de impulso próprio. Isto significa conquista de independência na ação, assumindo as diretivas, sempre mais mandando e sempre menos obedecendo1 . Mas assumir diretivas implica o desenvolvimento da inteligência, donde apenas podem provir. E a mais alta produção da evolução é representada pelas células do sistema nervoso e cerebral. Então, a evolução caminha para a cerebrização da vida, para uma sua sensibilização nervosa ou aperfeiçoamento conceitual. E que significa isto, senão subir os primeiros degraus da espiritualização? E eis que até o biólogo, mesmo continuando a raciocinar com seu cérebro positivista, tem pleno direito de introduzir nas equações este novo fator, repudiado pelo materialismo e que se chama espiritualização.
O ser que evolui não é um ponto em movi mento, mas aparece-nos como uma fita que avança, tendo varias zonas em sua extensão. Na parte mais adiantada existe como que uma cabeça que dirige a marcha, procurando progredir para o futuro que quer conquistar. Esta é a zona do superconsciente que esta em formação e cujo trabalho é o de antecipar os futuros desenvolvimentos. Segue-se no centro a parte que representa o presente, o que o ser esta vivendo, e em que se consolidam e fixam as conquistas e as posições avançadas, apanhadas pela parte superior. Esta é a zona do consciente, em que o eu esta mais desperto, a zona das experiências e da formação, pelas inúmeras repetições, daqueles impulsos automáticos que se chamam os instintos. É sobretudo nesta zona que o ser se sente viver, porque ela representa a zona central de seu trabalho de construção evolutiva. Na cauda segue a parte que representa o passado, o que o ser viveu quando ainda estacionava nos planos de vida inferiores aos do presente. Essa é a zona do subconsciente, a zona dos instintos atávicos formados no passado e pertencentes sobretudo a animalidade. É nessa parte do ser que afloram as tendências inferiores, situadas nos antípodas daquelas que são próprias ao superconsciente.
Ora, com a evolução, o ser vai morrendo continuamente na cauda, que abandona atras de si nos planos inferiores de vida, que vai superando, e continuamente vai nascendo na cabeça, que desenvolve e cresce. Desta forma, todo o ser se vai lentamente transformando. O que representa para o homem atual o subconsciente, podia representar na era paleontológica o superconsciente, assim como para o super-homem evoluído dos futuros milênios, o homem atual poderá representar o que para nós, hoje, é o estado dos primeiros monstros paleontológícos. A conclusão desta pequena dissertação, introduzida no meio de nossa narração, é fazer provas racionais e científicas para mostrar que ela tem um sentido profundo, que não é o do caso particular narrado, mas um sentido evolucionista universal. A cauda que o ser perde ao subir é representada pela animalidade, e a cabeça que o ser se vai formando é a espiritualidade. Esta é a justificação racional e científica de nossa tão grande insistência sobre esta e o Evangelho vivido, como regra de conduta de um homem mais civilizado, que já tenha compreendido que não lhe convém mais cometer erros que, hoje, por não ter suficiente desenvolvimento de inteligência, ainda comete com grave prejuízo para si próprio. Explicando a estratégia de batalha do evoluído, queremos explicar um método de vida mais adiantado e por isso mais vantajoso. Procuramos assim responder a pergunta que fizemos desde o princípio: que acontecera com a evolução e que a vida fará do ser humano?
Este é o tema mais vasto que estamos desenvolvendo sob as aparências desta narrativa Para responder, nós a enquadramos na concepção cósmica desenvolvida em outros volumes, tendo suas raízes no absoluto, e que vai do Sistema ao Anti-Sistema. Já acenamos, e desenvolveremos aqui, melhor, a seguir, o tema do telefinalismo da vida. Ora se evolução significa direção e portanto vontade de segui-la para chegar a determinado ponto, se tudo esta inserido nos impulsos que movem a vida, e se esta direção é a espiritualização do ser, é lógico presumir que a vida não apenas o açule a realizar esta vontade sua, mas o projete neste trabalho, já que, para seus fins, ele é dos mais importantes.
Que representa o evoluído diante da vida? Representa justamente o indivíduo especializado na mais árdua das tarefas: o de ser instrumento do progresso. Enquanto a média normal da maioria funciona sobretudo na zona central do ser, constituída pela consciência, o evoluído funciona sobretudo na zona mais adiantada, a zona das novas conquistas. Enquanto o homem, tipo corrente, tem que resolver os problemas do ventre e do sexo, fundamentais para ele, porque lhe cabe o trabalho da conservação do indivíduo e da raça, o evoluído tem que resolver os problemas de longo alcance do pensamento, para arrastar a massa inerte para aquela espiritualização em que reside o futuro. Esforço tremendo, aventura de que apenas ele assume os riscos e a responsabilidade. Não se trata de seguir os velhos caminhos tradicionais já explorados e conhecidos, mas de descobrir novos, iniciando novas estradas. Ora, é lógico que nestes casos, as forças da vida intervenham para secundar esse esforço que corresponde a realização de seus planos e não deixem sozinho quem se dedica ao sacrifício, a esse trabalho que atinge a altura de missão. Eis que vemos verificar-se aquele fenômeno que vimos observando nestas páginas, da descida das forças do Alto para defender o instrumento que lhe é obediente. Eis a justificação racional e científica, segundo a lógica de seu desenvolvimento, da verificação desse fenômeno.
Como a vida defende o evoluído? Defende-o mesmo quando por missão se acha nos planos inferiores de vida, fazendo funcionar para ele a lei do plano superior, que, sendo mais adiantada, é mais poderosa e representa, então, uma estratégia de batalha mais apta a superar obstáculos e conseguir a vitória. Eis o choque das duas estratégias de que falamos, e o porquê da superioridade e capacidade de vencer da segunda. Eis por que o evoluído, no fim, resulta ser o mais forte e triunfa, apesar de usar apenas o método evangélico da não resistência. Eis a justificação lógica das afirmações e métodos do Evangelho, que parecem tão estranhas na prática.
O evoluído representa um dos mais altos valores biológicos e a vida, ecónoma e utilitária sempre, protege-o para que ele cumpra sua função. Proteção que não significa eximi-lo do esforço e dos perigos. Ao contrário, para ter certeza do seu verdadeiro valor e do bom cumprimento de sua função, a vida não poupa absolutamente: retempera-o batendo numa bigorna de ferro de severa verificação. Isto porque deve ser expulso desse delicadíssimo terreno das futuras construções o inepto aventureiro do ideal, a fim de permanecer em seu lugar apenas o biótipo que consegue resistir, já que pela resistência, instintos e psicologia, tem meios de provar que é diferente dos outros. O evoluído representa a antecipação da evolução, a tentativa de superação das velhas formas de vida e o primeiro esboço de novas, tentativa que poderá estabilizar-se, fixando-se definitivamente na raça como qualidades adquiridas, se superar as condições do ambiente.
É natural que a vida possua os meios de auto-defesa, especialmente para os pontos mais nevrálgicos de seu mecanismo e para os elementos que nele trabalham, como antecipadores da evolução. Que assim ocorra, prova-o o fato de que a vida chegou até o estado de evolução atual, certamente pelo esforço daqueles elementos encarregados desse trabalho. Se, mesmo na formação dos primeiros organismos inferiores, eles não tivessem assumido essa iniciativa e risco, os peixes não teriam saído da água para transformar-se em répteis, os pássaros não teriam aprendido a voar, o homem a caminhar ereto e a usar as mãos para o trabalho, nem se teriam formado e desenvolvido os órgãos sensórios, e assim por diante. Na formação de um novo órgão, qualidade ou tipo biológico, há sempre um pioneiro que vai à frente dos outros e enfrenta sozinho o problema, para resolvê-lo. Os outros depois se enfileiram atras do primeiro experimentador, cujas conquistas se tornam assim domínio de todos.
No laboratório da evolução, o evoluído representa como um primeiro exemplar fora de série, e se foi bem conseguida a construção do mesmo, a vida inicia sua grande produção em série, seguindo o primeiro modelo. A natureza usa tal método como se faz em nossos laboratórios industriais. Esgotada a fase experimental, se o primeiro exemplar teve bom êxito, a vida começa a produzir biótipos estandardizados, aceitos por terem superado todas as provas da experiência. Depois, com a adaptação, se vão ajustando os pormenores, como se pratica com os aperfeiçoamentos que continuamente se acrescentam às novas invenções. Eis o sentido com que aparecem, entre a normalidade da maioria construída em série, esses isolados, fora de série, que portanto parecem fora da lei, seres estranhos em que se vêem vacilar as leis da vida, só porque eles estão explorando outras mais adiantadas. Todos os condenam e exploram, como exceção, mas eles representam o futuro da vida.
Não faltam exemplos de auto-defesa por parte da vida, nos pontos nevrálgicos de seu mecanismo, defesa biológica mesmo fora do caso da formação de novos biótipos. Temos um exemplo disso, a propósito da mulher a quem, por representar uma função vital fundamental, a vida fornece uma defesa sua, com o poder de seu fascínio, que pode dobrar a força do macho prepotente. Isto impede que ele a destrua na luta pela vida, em que ela é a parte mais fraca. Assim, enquanto entre os machos vigora a lei da força para selecionar o vencedor, a vida faz colaborarem os sexos opostos para a continuação da raça. Pela mesma razão existe o instinto protecionista da maternidade. Então a natureza, que em geral é utilitária e desapiedada — tanto que gera com a máxima prodigalidade só para depois abandonar à  morte os fracos sem defendê-los e só deixa viver os fortes — essa mesma natureza torna-se então piedosa, porque isto corresponde a seus objetivos. É lógico, pois, que a vida organize suas defesas também em favor do evoluído, pois este realiza uma função que muito lhe interessa.
E eis que nos aproximamos do caso particular de nossa narração, após a digressão que o justifica diante das leis da vida. O universal e o particular se entrosam. Sendo biologicamente mais adiantado, o evoluído é de natureza mais complexa mais delicado e vulnerável por sua sensibilidade. O desencadeamento das forças primordiais do plano do involuído o ataca como um ciclone. Ele não é feito para enfrentar a vida nesta forma de luta egoísta e brutal. Então, para que pudesse trabalhar na terra, no caso que estamos narrando, a vida mobilizou outros exemplares do biótipo corrente que, continuando a funcionar como tais — isto é, com plena competência nos sistemas terrestres e com seus métodos — assumissem a tarefa de proteger o indefeso, cercando-o em redor como uma barreira defensiva. Isto era indispensável para que ele pudesse cumprir sua função ou missão, para a qual vivia. Duríssima prova para experimentar sua resistência, primeiro; mas urna vez cumprida, chegam os auxílios necessários para que todo o trabalho seja realizado, sem que se perdesse no esforço da luta comum de querer um sobrepujar o outro, o que para ele não tem sentido. É justo que quem trabalha para realizar um plano mais alto em outro mais baixo, seja participe das leis do plano mais alto, já que essas justamente têm que ser trazidas à terra, aqui neste terreno distante delas, para iniciar seu funcionamento.
Assim, os acontecimentos nos mostram que a vida fez nascer no instinto de vários biótipos entre os mais adiantados do nível normal, o impulso de ajudar e defender o indefeso. Em alguns momentos e em relação a alguns indivíduos, a vida dá ao indefeso um fascínio para sua defesa. O mundo esta cheio de lutadores, aspirantes ao domínio, ansiosos de vitória. A bondade que, ao invés, se aproxima para amar, aparece muito mais atraente que esse triste espetáculo, de que o mundo esta saciado. Então, os que mais se afastaram desse instinto, destacam-se do grupo e vão colocar-se, embora continuando lutadores, a serviço do ideal, levando a ele sua contribuição de lutadores, ajudando assim o indefeso naquelas qualidades que ele não possui.
Vimos outra fileira de chamados para executar funções colaterais da missão, mas chamados como comparsas ignaros do trabalho que realizam, induzidos a isso só por suas miragens e depois logo liquidados, quando cumpriram sua tarefa. A fileira desses de que agora falávamos realiza, ao invés, sua função, livre e conscientemente, induzidos pelo sincero desejo do bem, e por isso não são liquidados como um embaraço, mas permanecem dentro da missão em que, embora em posição subordinada, realizaram seu trabalho honesto. Eles são assim iniciados para dar os primeiros passos para o novo tipo de vida, próprio dos planos superiores. Permanecem com o instinto da luta, mas lhes é impressa nova direção, não mais horizontal, para agredir e vencer o próximo, mas vertical, para elevar-se aos mais altos planos da vida. A luta começa a nobilitar-se, realizando-se para fins superiores, e permitindo ao mesmo tempo que, no hostil ambiente terreno, seja oferecido auxílio a quem deve cumprir a difícil tarefa de aí realizar uma missão. Nem sempre para essa realização é necessária a crucificação que, embora criando o mártir, paralisa seu trabalho. As vezes é seu esforço produtivo que mais interessa. Então a vida reúne os operários adequados, para que da colaboração de todos nasça a obra consumada.

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1No íntimo do átomo, como nos espaços estelares, tudo é movimento. Mas, aí, os elementos o suportam cegamente, não o dominam à vontade, como acontece nos planos mais elevados de evolução. Com esta, o ser deve recuperar a perdida liberdade de ação, reconquistando o movimento autônomo e libertando-se do determinismo da matéria.

(N. do A.)

 

Continuemos a narrar as peripécias de nossa história. Nossa finalidade ao fazer isto, não é apenas contar uma história, de muito pouca importância em si mesma, mas esclarecer dados para evitar contínuos erros, e assim salvar de dolorosas reações com que mais tarde eles serão corrigidos pela Lei. Procuramos fazer compreender a causa do prejuízo que depois é preciso pagar, e explicar que realidade diferente existe por trás das aparências, para que o mundo não continue a cair vítima dessas ilusões psicológicas, que dão a impressão de vencer enquanto se perde, de conquistar uma vantagem, enquanto se atrai um prejuízo. De quantos erros, como aquele de que o sol girava em redor da terra e de que esta era o centro do universo, e assim por diante o homem se foi libertando com o progresso! Nosso relativo está cheio de enganosas aparências, mas com as conquistas da ciência, da inteligência  e do coração, vamos cada vez mais superando as grandes ilusões do mundo. Restam ainda, porém grandes zonas inexploradas, especialmente no campo psicológico e moral, os mais resistentes à  luz da compreensão porque estão radicadas no subconsciente por muito longo atavismo.
Destruindo essas ilusões, compreende-se como o que se crê astuto é, ao contrário ignorante de algumas das mais sutis leis da vida, que lhe escapam completamente; compreende-se que existe outra astúcia mais profunda, que consiste no agir retilíneo, sem qualquer artimanha. Mas diante do uso desse método, o tipo corrente rebela-se, temendo que lhe sejam tiradas as armas, sem as quais — parecendo-lhe ficar indefeso — se sente perdido. A vida funciona segundo princípios utilitários e de modo justo. Em sua ação, o homem obedece àqueles princípios e procura os atalhos para chegar ao máximo resultado com o mínimo esforço. É uma lei da vida que se torna cada vez mais avarenta, quanto mais pobre se torna, mergulhando nos planos inferiores. Mas, para não sofrer prejuízos, é preciso dirigir com inteligência essa psicologia utilitária. Para não cair vitima de ilusões e miragens, como freqüentemente ocorre. O mundo ao contrário tem muita fé em suas astúcias, tanto que chega a julga?las uma força sua, enquanto elas, representam sua própria ignorância.
A vida quer e, como ó justo, deve vencer. Mas ó preciso saber vencer. É mister compreender que o agir retilíneo, honesto, representa uma superioridade de técnica de trabalho e estratégia de luta, o que significa alcançar mais facilmente a vitória duradoura. Com os métodos do involuído arranca-se desesperadamente apenas a vitória de um momento. Mas ela ó instável, e é a única que pode existir no caos. Não é a estável e duradoura que existe na ordem. As vitórias humanas não têm sido sempre do primeiro tipo? Houve jamais alguma vitória estável na terra? Cada triunfo não foi, por sua própria natureza, minado antes ou depois até a destruição? A vitória, nesse plano e com tais métodos é apenas uma miragem para induzir o homem a evoluir, sendo a finalidade da vida ensinar?lhe, por meio do erro e da dor, a compreender, para que com uma conduta mais inteligente, melhore suas condições. O tipo do mais forte que a vida quiser produzir no futuro será não mais aquele que crê valer mais porque vence seu semelhante, mas aquele que tiver compreendido as mais evoluídas leis de vida, e o prejuízo de comportar-se daquele modo.
O    mundo atual apresenta-se-nos assim como um emaranhado de caminhos tortuosos, em que mais sábio é aquele que consegue mentir melhor e enganar, e o mais tolo é o homem honesto e verdadeiro. Difícil, cheio de perigos e armadilhas estendidas a cada passo, é avançar nesse mundo. A vida permanece assim sufocada por infinitos atritos, que ameaçam paralisar cada movimento seu, com prejuízo de todos.
Continuemos a observar as duas psicologias opostas. O evoluído fala simples e retilíneo, dizendo a verdade nua e crua. Este é seu método, e ele o segue, sentindo nele sua força. O involuído o ouve, mas sua psicologia de astuto faz-lhe pensar que tudo o que o outro diz seja mentira. Sente?se, pois, no dever, seguindo seu método, de não abandonar sua sabedoria, que consiste em ver por toda o parte mentiras para descobrir. Então, bem armado com a desconfiança, começa como grande astuto, a procurar qual seja a verdade, que segundo seus cálculos deve estar escondida por trás do que lhe é dito, que deve ser apenas uma mascara de mentira para encobrir a verdade.
É natural que como cada um vê segundo a percepção de seus próprios olhos, — assim julgue os outros conforme pensa com sua própria psicologia. Para o. ladrão, todos são ladroes; para o bom, todos são bons; para o mentiroso, todos são mentirosos. Miragens. Pode assim imaginar-se como bate longe do alvo quem procura descobrir mentiras onde estas não existem, e que só existem na mente de quem indaga e julga. Para o evoluído o ponto de partida e de referencia é a verdade, para o involuído é o fingimento e a mentira. Para este, então, a verdade é concebida não como afirmação positiva, em si mesma, mas em função da mentira, e só descobrindo-a poderá aparecer a verdade. Pretende-se assim chegar à posição positiva da verdade, não diretamente, mas por inversão de sua posição negativa, que é a mentira. Isto equivale a não querer olhar uma imagem diretamente no positivo, mas presumir que só se pode vê-la no positivo pela sua inversão do negativo. Método complicado, que pesa sobre todos e que a sociedade tem de suportar, com infinitas formas de controle, de sanções, que entravam cada movimento. Numa atmosfera de engano e desconfiança, a vida se torna mais cansativa para todos.
Estas considerações explicam-nos o que ocorreu no caso que estamos narrando, em que o mundo dos astutos ficou enganado pela simplicidade do homem evangélico. Como podiam acreditar que suas palavras fossem a simples verdade? Seu método lhes impunha julgar o contrário. Assim, àquelas palavras foi dada uma interpretação totalmente errada, invertida, porque se presumia que por trás delas houvesse outra verdade. Mas elas eram simplesmente verdadeiras e, coisa incrível, nada escondiam e nada havia para descobrir. Os astutos foram levados então a cometer o maior erro, por causa de sua própria astúcia, que foi justamente o que não lhes fez compreender nada da estratégia do inimigo. Ora, não compreender significa interpretar seus planos de maneira errada, só saber então pôr em pratica uma estratégia catastrófica, feita de golpes errados, o que faz perder as batalhas. Essa técnica do fenômeno e a natureza dos elementos acima expostos que dela participavam, faz-nos compreender cada vez melhor as razões daquele fato que podia parecer estranho, ou seja, a vitória do inerme evangélico, contra opositores poderosos e armadíssimos.
Aconteceu então que, com seu sistema astuto eles só conseguiram enganar a si mesmos. E continuando com sua forma mental, em que permaneciam irremediavelmente fechados sem saber sair dela, imaginaram, para explicar-se de qualquer forma o fenômeno, que a parte oposta tivesse imaginado planos diabólicos, astúcias inéditas, fora do repertório deles, mais astutas e mais poderosas que as suas, porque eles as viram vencer. E, na sua ignorância, não compreendiam que a maior astúcia é a de dizer simplesmente a verdade. Desejariam aprender estas astúcias mais poderosas que faziam vencer. Mas a isto se opunha sua própria estrutura psicológica, que os punha completamente fora da rota. Para conseguir seu intento, teria sido necessário refazer toda a sua forma mental. Sem uma renovação completa, como pode mudar-se o homem que esta convencido de que maior e útil sabedoria consista justamente em ser astuto?

*  *  *

Mas observemos cada vez mais de perto as razões do poder do homem evangélico, porque nelas estão as causas de sua vitória. Estudando-as, pode chegar-se a conhecer o valor do Evangelho e de seu método, mesmo como sistema para vencer na luta pela vida. O mundo é induzido à sua técnica contraproducente por sua ilusão psicológica. Achando-se diante da Lei que lhe impõe disciplina, dado o próprio egocentrismo individualista, o mundo sente nela as peias que embaraçam seus movimentos, e então procura libertar-se delas como de um estorvo que se opõe à vitória. Para tornarem-se mais ágeis no combate, para chegarem antes através de todos os atalhos, para não terem em cima pesos e amarras e também para estarem mais seguros de vencer, pelo medo de ficarem desarmados por uma lei de bondade e amor, acontece então que abandonam a mais alta e poderosa estratégia do Evangelho, por recaírem no seio de uma mais elementar, menos inteligente e orgânica, e portanto, uma estratégia menos poderosa. Jogar fora todo escrúpulo, julgando tudo lícito, com qualquer meio, pode parecer uma vantagem segundo a psicologia do primitivo que vive na desordem, mas se resolve em perda no regime da ordem com que é dirigido o universo, ainda que o primitivo não tenha compreendido. O homem atual só por ter começado a civilizar-se pouco com as últimas descobertas prodigiosas da ciência, já com a nova técnica bélica imposta por ela, começa a constatar que, apenas com a prepotência e ferocidade — qualidades do involuído —  se vence menos que com a organicidade e a inteligência — qualidades do evoluído. Quanto mais o homem se torna poderoso com as descobertas da inteligência, tanto mais precisa aprender a usar com inteligência esse poder, se, por não ter ainda aprendido a usá-lo bem, não quiser que ele se torne prejudicial. É o caso atual da energia atômica que, colocada nas mãos do homem feroz da Idade Média, ameaça hoje tornar-se um meio de destruir a humanidade. O próprio progresso da técnica científica obrigara o homem a transformar sua psicologia involuída, feita de egoísmo separatista, numa evoluída, de compreensão e fraternidade.
Dissemos que o involuído, para que pudesse viver melhor, precisaria refazer toda a sua forma mental. Ele, então, se tornaria evoluído e com isto não se sentiria mais apto a viver neste mundo. Tornar-se-ia um defasado, em contínua luta com um ambiente que lhe não corresponde. Hoje, seu egoísmo, agressividade, estratégia de astúcias, representam a resposta exata as condições do ambiente onde ele se acha e com o qual está, como lhe é necessário, perfeitamente proporcionado e sintonizado. Se ele quer ser forte para a guerra, é porque o seu ambiente se baseia na luta e premia o vencedor mais forte. Se vê inimigos a combater com a força ou com a astúcia, é porque o ambiente esta realmente cheio deles. Se ele não os visse, seria realmente sobrepujado e eliminado. No mundo das feras pode realmente constituir uma virtude ser feroz. De que serve ser evoluído entre involuídos, senão para fazer da vida um martírio? A vantagem pessoal e imediata é a de tornar-se ainda mais prepotente que os outros, esmagá-los e dominá-los. Sem dúvida é uma vantagem. Mas não é vantagem maior ser evoluído, pois isto significa pertencer a um plano de vida mais alto, onde maior é o poder e menor a dor, embora isto represente um martírio nesta vida terrena? Certamente que na terra se fica sozinho e isto é duro. Mas onde existe um homem que, para não sentir-se só na floresta entre as feras, desejaria tornar-se fera, da mesma raça que elas, para viver em sua companhia? ou então aquele que, conseguindo compreender que um continente esta cheio de ouro, renuncia ao esforço de explora-lo?
O involuído é justificado pela natureza do ambiente que o cerca. Se a desconfiança é tão difundida, é porque a mentira esta espalhada, e a primeira coisa que se encontra é o engano. Se na terra foi instaurado esse regime de luta, pelo qual tudo, se quiser sobreviver, tem que primeiramente ser defendido, isto ocorre porque essa necessidade é imposta pelo ambiente como condição fundamental da existência. Se instintivamente se enxergam inimigos e perigos por toda a parte, é porque as experiências de um longo passado formaram tal instinto, que infelizmente continua ainda a corresponder em grande parte à  realidade. De certo, nesse ambiente o evoluído é que esta errado e bem demonstra o fato de que a cada momento se tenta agredi-lo, dizendo-lhe que diante dessa realidade ele é um iludido. Para que o evoluído pudesse trabalhar à vontade, seria necessária uma transformação do ambiente, da forma involuída. Ele trabalha justamente para alcançar essa renovação, ponto de chegada a que ele quer levar todos.
Estamos observando o problema de todos os lados, em todos os seus aspectos, sem preconceitos nem partido preconcebido para defender um tipo biológico de preferência a outro. Tudo assim se explica e encontra razão de existir. Olhamos imparcialmente as posições tão diversas dos dois biótipos, pesando o pró e o contra, tendo em conta também as desvantagens no reverso da medalha.
Certo é que, se estamos involuídos, então nos achamos construídos com os instintos adequados a viver neste mundo, em que achamos nossas satisfações, representando ele nosso ambiente natural. Podemos sentir-nos satisfeitos com ele, porque não conhecemos outra coisa; podemos crer em suas ilusões e, tolos de tudo, aceitar suas dores como inevitável fatalidade. Com bastante ignorância, inconsciência e insensibilidade, esse mundo pode ser suportável e até desejável, para quem ainda esta imerso na animalidade.
O biótipo campeão deste mundo foi exaltado e até glorificado como o tipo ideal e modelo superior por Nietzsche, em seu “super-homem”. Representa a animalidade do involuído em seu pleno triunfo. Trata-se do ser movido pelos instintos elementares que, chegando a ser tão feliz no jogo da vida que até venceu, pode abandonar-se à  euforia do triunfo. Só é preciso acreditar também nesta, entre tantas ilusões da vida. Isto porque nem sempre as coisas correm tão bem. Ao contrario, quem tenha compreendido o jogo, sabe muito bem que as probabilidades de alcançar aquele estado de vitória são bem poucas, e que aquele triunfo não pertence absolutamente à maioria, a quem espera não a posição de mando, mas a de obediência; não a satisfação dos desejos, mas o sacrifício; nem sempre a vitória do forte, mas muitas vezes a dura derrota do fraco. A grande probabilidade, para a maioria, é que ao invés da gloriosa parte do super-homem, lhe caiba viver a mísera e obscura parte do homem qualquer. A maior probabilidade para a grande maioria não e poder elevar-se no grande pedestal do super-homem, mas servir de base sobre a qual ele se ergue.
Se olharmos todo o fenômeno, não só do lado da luz, mas também do da sombra, encontraremos um panorama bem diferente. Muitas vezes na terra quem tem o poder, utiliza-o antes de tudo para si, enquanto o povo ingênuo é enganado, senão explorado, feito muitas vezes de instrumento do egoísmo dos chefes, num triste jogo em que, pelas leis desse plano biológico, cabe ao mais forte o direito de oprimir os mais fracos. O super-homem nietzscheano é de fato grande, sobretudo por saber pensar na própria vitória, demonstrando-se, com isto, o elemento mais anti?orgânico e anti-social: trabalha antes para si que para a coletividade. A miragem de tornar-se super-homem pode engabelar e entusiasmar, como o de vencer no jogo para enriquecer sem esforço. Mas depois a realidade é que não se vence nesse jogo. Ninguém enriquece grátis. Fica apenas a ilusão diante de uma meta inatingível. E que interessam à  sociedade, constituída pelos que devem ganhar a vida com trabalho, sem golpes de fortuna, esses super-homens que só se ocupam de vencer para si? Que interessa e de que serve para a maioria que é dos medíocres seu triunfo? Para servir, seria necessário que o poder fosse compreendido como função social para o bem de todos. Mas este é um conceito que não pode nascer no plano biológico do involuído, mesmo que ele se torne super-homem. Nesse plano domina o individualismo separatista e ainda não apareceu o senso orgânico que é próprio do plano do evoluído. Nesse nível, esse super-homem não é aceitável, porque não traz felicidade para o conjunto, mas é um usurpador que a tira dos outros em seu benefício apenas. Como se vê, mesmo quando o involuído atinge seu maior grau de elevação, o problema não esta resolvido e o paraíso oferecido por Nietzsche não oferece nenhuma evasão às duras leis daquele plano de evolução.
Existe, então, outro caminho de evasão, para atingir um real e duradouro progresso que não seja ilusão? Jamais se poderá obter a liberação enquanto se permanece involuído, mesmo que vencedor, porque se permanece sempre no plano da animalidade, ligado às suas leis inferiores, com todas as conseqüências. Evasão e liberação só pode atingi-las o evoluído, que emerge daquele plano de vida, colocando-se em outro mais alto, em que vigoram outras leis, com todas as conseqüências. Mas aqui começam as dificuldades. Essa evasão não é coisa simples. Antes de tudo não se muda o biótipo com facilidade e num átimo. Trata-se de transformar a própria natureza, através de uma profunda elaboração que não se improvisa. Passar de um plano de vida inferior a um superior, significa realizar uma revolução biológica. Além disso, mesmo se conseguindo essa passagem, nem mesmo a posição de evoluído esta isenta de algumas desvantagens. Quais são elas?
Observando o pró e o contra de ambas as posições, olhemos o reverso da medalha mesmo para o caso do evoluído. Vimos que o involuído tem ao menos a vantagem de achar-se num ambiente adequado e proporcionado a ele, onde encontra prontas as satisfações animais que correspondem a seus instintos. A fera que nasce na floresta, o verme no lamaçal, o peixe cego que vive nos abismos sem luz do oceano, podem sentir-se nesses horríveis ambientes como em sua casa, e à vontade, satisfeitos com o que sua natureza pede. A grande vantagem de que goza o involuído é de achar-se proporcionado ao ambiente e ao contrário, sendo-lhe fácil encontrar o equilíbrio. O nível de vida é baixo, mas tudo aí se acha na mesma e a adaptação é fácil.
Ao contrario, o evoluído acha-se defasado totalmente, numa condição de absoluta insociabilidade com esse ambiente, que para ele representa não o seu plano de vida, mas um inferior em que se acha exilado e estrangeiro. Se para o involuído nascer aí pode representar ir ao encontro da alegria de viver, porque nesse ambiente encontra a realização de si mesmo, para o evoluído nascer e viver aí pode representar a mais dolorosa das condenações. A irreconcialiabilidade com o mundo tornar-se-á para ele tanto mais viva e oprimente, quanto mais ele readquirir consciência de sua própria natureza verdadeira. isto porque ao seu maior instinto e desejo — de evangelicamente amar e abraçar o próximo — ele só achará a resposta dilacerante do egoísmo agressivo e da luta feroz. Nesse mundo caótico, carregado de atritos dolorosos e dissonâncias estridentes, em que a desordem reina soberana, o evoluído — que por sua natureza é um sensível — se acha a cada momento à mercê de golpes violentos, aos quais, naquele ambiente, a insensibilidade do involuído que está ao invés perfeitamente proporcionada. Tudo isto é tanto mais dolorosamente percebido pelo evoluído, porque ele é, naturalmente, orgânico por excelência, levado à fraternidade, e é condenado pelo individualismo separatista dominante no ambiente, ao isolamento, sendo insuportável para ele o sistema de egoísmos e rivalidades, de atritos e luta em que se baseiam, nesse ambiente, as relações sociais.
O mundo em que o involuído se acha tão bem à vontade, é instintivamente considerado inaceitável para o evoluído. Em seu caso, indivíduo e sociedade não se entrosam absolutamente, tal como ocorre de modo tão natural e espontâneo para o outro biótipo. A maioria repousa em dado nível de evolução e proporcionalmente a este se formam sua moral, seus usos e costumes, suas leis, ou seja, sua particular forma mental da qual tudo o mais deriva. Mas acima como abaixo desse nível médio, estão as exceções, julgadas como anormalidade, que a maioria tende a expelir e isolar fora de si. São elas — como ja acenamos — em baixo, os involuidíssimos, ou seja, os criminosos que ainda permanecem de todo na animalidade, e no alto os mais evoluídos, que estão completamente fora da animalidade. Assim todos eles são igualmente expulsos do nível médio, os primeiros por deficiência, os segundos por excesso; os primeiros porque muito atrasados para serem capazes de adaptar-se mesmo ao rudimentar grau de civilização atingido pela média; os segundos, porque adiantados demais para poder retroceder a um nível de vida que, para eles, é animal demais.
Assim o evoluído demais acha-se em posição mais incômoda do que a do biótipo que o é de menos. Isto porque este tem tudo para aprender e ganhar, entrando em contato com gente mais evoluída que ele; ao passo que quem é por natureza mais adiantado, se quiser viver na sociedade, tem de retroceder para a animalidade, coisa que absolutamente não pode aceitar, porque isto representaria a destruição de seus mais preciosos valores. Sem dúvida que é vantagem sua ter chegado, fora da animalidade acima desse plano de vida, mas também são suas todas as desvantagens de ter que viver num ambiente no qual, adaptar-se, significaria sua maior mutilação. Paralelamente, para o involuído há todas as vantagens em poder viver num ambiente adequado e proporcionado, mas é desvantagem ficar ainda imerso na animalidade, ou seja, num plano inferior de vida.
Para o evoluído, sua superioridade não serve absolutamente para despertar-lhe orgulho, sentimento que esta completamente fora da psicologia própria ao seu plano; mas ao contrario é certo que, individualmente, para ele, ser evoluído serve para tornar sua vida um martírio, holocausto de sacrifício para o bem dos outros, dor de que ele não usufrui, mas seu próximo. Quando chega a morte, aí onde o involuído só encontra saudade e um verdadeiro senso de fim, morte, em que vê naufragar todas as alegrias da vida, que desfaz tudo numa grande ilusão, o evoluído vê chegar a liberação do exílio, pela qual lhe é permitido finalmente regressar à pátria, ao seu povo, em seu verdadeiro plano de vida. Para o primeiro, apegado ã terra, a morte é o fim da vida, que ele só sabe conceber no ambiente material terrestre. Para o segundo, bastante estrangeiro na terra, a morte é o início da vida, que ele concebe principalmente nos planos mais altos.
Esta, objetivamente, é a posição que os vários seres podem ocupar na terra, segundo uma biologia mais vasta do que a comumente aceita pela ciência, uma biologia que abarca vários planos de existência. Nenhum pode deixar de aceitar as vantagens e desvantagens da própria posição. Mas, para o homem atual, o problema é compreender qual das diversas formas de vida é mais vantajosa para ele, e, compreendido isto, procura realizá-la para sua vantagem. Desejaríamos, com este volume, fazer compreender uma coisa certa: trabalhando com mais inteligência e menos instinto, superando muitas ilusões psicológicas que nos oferecem a miragem de uma utilidade imediata, —  onde ao invés encontramos um prejuízo —, tornando-nos astutos no bom sentido, deixando-nos enganar cada vez menos pelas aparências em que nossa ignorância nos leva a crer, e descobrindo cada vez mais a verdade profunda que esta além da superfície, desejaríamos fazer compreender que o homem conseguiria estabelecer, no planeta de que é dono, um ambiente de vida muito melhor. Procuramos fazer-lhe compreender que este poder esta em suas mãos e que pode usá-lo com grande vantagem quando queira e desde que queira; e que os resultados que se podem obter, compensam largamente o esforço necessário para alcança-los.

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É lícito perguntar: nosso mundo pratico, o que estamos acostumados a considerar real, esgota verdadeiramente toda a realidade? Ou ainda existe muita coisa além dele, em que reside aquela realidade que, em nossa ignorância, chamamos o imponderável? E não é lícita a dúvida de que nesse imponderável existam outras leis que regulam nossa vida, para sua defesa e êxito? Será possível que as leis da animalidade, que adotamos como nosso modelo, representem as leis de toda a vida, e que não possam existir outras? Que o que chamamos natureza seja verdadeiramente toda a natureza, esgotando, na forma limitada que temos sob os olhos em nosso planeta, todas as suas infinitas possibilidades? Como podemos afirmar com segurança, que o método de vida, seguido atualmente pelo homem, seja o mais vantajoso, e que outros mais rendosos não possam existir, e que a evolução não procure exatamente chegar a eles? Estamos certos, de fato, de que o sistema que hoje prevalece, de procurar a vantagem própria e exclusiva muitas vezes com prejuízo do próximo, seja verdadeiramente o melhor sistema, e que o Método mais vantajoso até para o indivíduo não seja, ao contrario, o do "ama teu próximo", como diz o Evangelho? É bem lógico que, no futuro estado de organicidade a que tende a vida, e com ela a humanidade que a encabeça, resulte extremamente contraproducente o atual separatismo em que não se leva em conta o prejuízo alheio. E no estado orgânico o isolacionismo egoísta do qual o homem hoje acredita tirar vantagens é uma ilusão, porque desde agora mesmo na desordem atual, tudo é coletivo na vida, tudo ecoa, se repete e repercute, e acaba voltando à  origem, ou seja, aquele que, crendo só haver prejudicado os outros, terminou prejudicando a si mesmo. Chega-se a compreender assim a mecânica desses movimentos, pelos quais se justifica o imperativo  ético que impõe não fazer mal ao próximo, mas ama-lo como a si mesmos.
Vários fatos e leis que observamos dizem-nos que a humanidade evolui para a organicidade, em que se realizara o estado coletivo de unificação que, da fusão orgânica dos indivíduos humanos, hoje mais ou menos separados, formará um corpo imenso, como da fusão orgânica das células antes autônomas se formou um ser só, representado pelo corpo humano. Podemos representar o evoluído na posição em que se acha a célula especializada que funciona organicamente no seio da unidade coletiva que é o corpo humano. Podemos representar o involuído como uma célula isolada, ou unida a outras em forma elementar, como nos microorganismos e protozoários, egoisticamente isolada e ignara da vida das outras, assim como de qualquer complexo funcionamento orgânico coletivo. De fato, também os involuídos obedecem por instinto ao princípio da unificação, mas ainda estão nos primeiros degraus dela. A lei das unidades coletivas é universal, e ninguém pode escapar a ela. Mas compete ao ser, pelo esforço da ascese evolutiva, construir-se essa organicidade, cujas vantagens serão suas. E para construí-la, é preciso abrir a inteligência e o coração, superando o separatismo egoísta, deixando-o atras no fundo do Anti-Sistema, e subindo para as alturas do Sistema
O involuído é habitante da desordem individualista. O evoluído representa o elemento do estado orgânico. O coletivismo moderno representa a primeira tentativa em larga escala, embora pelo desencadeamento de forças elementares, de encaminhar-se para um estado orgânico unitário da humanidade. Mas mesmo em ponto pequeno, os indivíduos procuraram e procuram sempre avizinhar-se da unidade, elevando construções orgânicas. Trata-se, porém, de esboços instáveis ou de grupos, regidos sobretudo pela prepotência de um chefe e internamente minados pela revolta latente em seus dependentes, ansiosos de substitui-lo para formar, cada um, outra unidade, em que cada um quer ser o único chefe. Da pequena associação de aldeia até a unificação dos impérios, o princípio é o mesmo. A unidade é regida sobretudo pela força de um chefe que se impõe e pelo interesse (enquanto dura) que têm seus partidários de segui-lo e obedecer-lhe. Assim que se enfraqueça essa força dominadora e os dependentes não mais achem vantagem de ficar na disciplina que os organiza, essa unidade se esfacela.
Na hora da desgraça todos se afastam aos grandes. Depois de Fontainebleau Napoleão foi abandonado até por seu criado de quarto, e seus ajudantes de campo fizeram uma verdadeira corrida para serem os primeiros a render homenagem ao novo rei, Luiz XVIII chamado a Paris, enquanto Napoleão se encaminhava para o exílio da ilha de Elba. E assim em tantos outros casos. Trata-se de uma união que a custo mantém uma coalizão de egoísmos, que estão sempre prontos a rebelar-se, porque constituem a matéria prima da construção. O impulso fundamental é separatista, desagregante, tendente a dividir e não a unir, a destruir e não a construir. Por isso, mais cedo ou mais tarde essas construções ruem, porque sua estrutura interior é de natureza separatista e a união só e imposta e mantida de fora, por outra força que se sobrepõe, enquanto no verdadeiro estado orgânico do evoluído a estrutura interior é de natureza orgânica, e a união não é exterior nem imposta, mas íntima e espontânea; portanto se rege e mantém por si, por sua própria natureza. Dado então que aqueles agrupamentos são dirigidos não por forças espontâneas, positivas, unificadoras, mas por impulsos de coação, negativos, desagregantes, eles não podem deixar de obedecer à sua tendência dominante, pela qual, mais cedo ou mais tarde, acabam por despedaçar-se. É o espírito de individualismo em que se baseiam aquelas associações que acaba tomando a supremacia por ser mais forte, já que aí não existe verdadeiro senso orgânico unitário. Pela natureza dessas coalizões, não pode ocorrer de outra forma, pois falta o verdadeiro espírito coletivo. Explica-se assim como as unificações humanas são apenas tentativas de unificação, nada estáveis, com resultados provisórios, sempre prontas a desagregar-se. Este é o maior grau de fusão orgânica que, em vista do grau de evolução atingido, pode realizar-se no nível atual, que esta mais próximo do Anti-Sistema que do Sistema, ou seja, mais do polo negativo que no positivo do ser.
Ocorre exatamente o contrario no terreno do evoluído, onde vigora diverso modo de conceber e de viver. Suas unificações não são resultado do egoísmo de um chefe que procura impor?se ao egoísmo de seus súditos, sempre prontos a rebelar-se para realizar, cada um contra todos, o mesmo trabalho de imposição. Método aceitável só num estado de ignorância das leis da vida. Ao contrário, o evoluído compreendeu o funcionamento do universo e a parte que lhe cabe nesse funcionamento. Por isso não faz o que seria para ele uma tolice, ou seja, atritar-se com as outras partes da maquina, ao invés de funcionar em harmonia com elas como é de sua vantagem. O evoluído compreendeu a lógica e utilidade disso, e o aceita espontaneamente, sem que apareçam antagonismos nem luta de egoísmos, causa de tantas dores. Não há quem não veja quão melhor e com quanto menos esforço pode funcionar u‘a maquina de que foram eliminados os atritos, devidos a não concordância das partes.
Nas unificações do evoluído a disciplina é livremente aceita e não fruto de imposição forçada. Sem rivalidades, que dão direito à vida só ao mais forte, ao vencedor, o evoluído sabe qual é seu lugar e aí se coloca, porque sabe que é melhor para ele. Põe-se assim a funcionar como uma das engrenagens da grande máquina, harmonicamente com todos os outros, todos operários da grande Obra, todos altamente valorizados pelo fato de serem não mais isolados egocentrismos perdidos no caos, mas instrumentos inteligentes que trabalham para a finalidade da Lei, ou seja, não para a realização de um pobre pensamento próprio, mas do sapientíssimo e poderosíssimo pensamento de Deus. Fruto desta posição completamente diversa que o evoluído assume no organismo do todo é tomar parte — coisa que não ocorre ao involuído — na sabedoria e poder que Deus manifesta naquele organismo e em seu funcionamento. Como instrumento, o operário que se torna colaborador consciente é investido por aquela sabedoria e poder e assim os aproveita. É por isso que não mais necessita — como o indivíduo isolado, abandonado a si mesmo, qual o involuído — de esbanjar todas as suas energias por causa de um estúpido jogo de rivalidade, já que há a Lei, que automaticamente se encarrega de defender aqueles que ela pode recolher em seu seio, porque estão harmonizados.
Daí se vê como o novo estado que distingue o evoluído do involuído é a organicidade. O evoluído faz parte dele e aproveita-lhe as vantagens, das quais esta excluído o involuído. O primeiro acha defesa na Lei. Movendo-se harmonizado num ambiente de ordem, fica suprimido o esforço da luta e a possibilidade de tantos erros, causa de tantas dores. O Individualismo do involuído é anti?orgânico e demolidor. Tem que defender-se com as únicas forças de seu individualismo, isoladamente, não podendo usufruir do poder próprio da organicidade que não conhece. Seus agrupamentos são apenas pequenas tentativas de unificação, tendentes mais ao separatismo que ã fusão. O grupo de que faz parte o evoluído abarca todo o universo, e seu chefe não é um vencedor de fracos, mas um Deus bom, sábio e poderoso, que organiza abraçando com amor e não esmagando com a força. Não são elementos estranhos mantidos juntos só por interesses particulares e momentâneos, mas são células de um mesmo organismo. A vida de cada um é dada pela vida do todo, sem a qual o indivíduo esta perdido. Portanto, nada de rivalidade e atritos, que são contraproducentes. A natureza íntima dessa unificação não é um egoísmo que tende à separação, mas uma compreensão recíproca tendente à unificação. Assim, enquanto nos agrupamentos do involuído acaba prevalecendo a separação, nos do evoluído prevalece a unidade. Isto porque o estado espontâneo do primeiro é o individualismo do iso1ado, e o estado espontâneo do segundo é a organicidade unificadora.
No caso do involuído, o instinto de apanhar tudo e desfrutar para si, não pode deixar de separar e destruir. No caso do evoluído, o desejo de fazer prevalecer a vantagem coletiva sobre a individual não pode deixar de reunir e construir. As conclusões são implicitamente dadas pela natureza de cada um e automaticamente necessárias. Cada um segundo sua natureza fica incluso num mundo diverso e deve aceitar-lhe a lei até as últimas conseqüências. Assim cada um se constitui arbitro do próprio destino. Tudo depende de nós e da posição que ocupamos ao longo da escala da evolução Mas a conclusão a que queremos chegar e a que nos leva o Evangelho é que a posição do evoluído, em última analise, tudo calculado como vimos no pró e no contra, oferece imensas vantagens sobre a do involuído, e portanto compensa enfrentar quaisquer esforços e suportar todas as dores, contanto que se consiga passar da categoria de involuídos à de evoluídos, procurando sair do plano dos primeiros para entrar no dos segundos.
Uma das maiores vantagens do estado de organicidade é, para quem o atingiu, possuir maior poder diante do estado sem organicidade. É  um fato que a posição de unificação, que é de colaboração, é mais poderosa, que a de separação, que é de luta e antagonismos rivais. Como se diz, a união faz a força. Os atritos interiores enfraquecem. O mundo de hoje é composto dos mesmos povos de um século atrás. Se os Estados Unidos e a Rússia são hoje maiores potências, devem-no ao fato de ter atingido um grau de unificação que os elementos constituintes não haviam alcançado antes. Ora, dado que a vida procura e quer conquistar potência, enquanto esta significa defesa e garantia de sobrevivência, não se pode impedir que a evolução leve essa vida ao estado orgânico, que representa justamente uma posição de maior potência, mais segura e mais apta a subir ainda mais.
Dir-se-á, porém: na terra, esse poder é alcançado, como vimos, pela imposição forçada. Respondemos que não se pode impedir que, no trabalho de conquista do futuro, sobrevivam os elementos constitutivos do passado; impedir que no trabalho de conquista das posições de luz do sistema, apareçam como instrumento desse trabalho ainda em ato, os elementos constitutivos das sombras do Anti-Sistema. Para que se formassem os artelhos aptos a se moverem na terra, os primeiros animais aquáticos tiveram de transformar suas extremidades, aptas somente a fazê-los movimentar-se na água. Para chegar a voar, os animais terrestres tiveram de transformar seus artelhos em asas. Da escada da evolução só se pode subir um degrau depois do outro, apoiando-se no precedente, mais baixo, para pôr o pé no seguinte, mais alto.
Assim podemos explicar-nos o que parece uma contradição, ou seja, como hoje o comunismo tende a instaurar na terra os princípios evangélicos avançados da justiça social, utilizando os meios mais anti-evangélicos e involuídos, como a violência, a tirania, o terrorismo. Conseguiu-se jamais, até hoje, em escala apreciável, induzir um rico a dar o supérfluo aos pobres, como manda o Evangelho, só com os meios da persuasão? É certo que, neste terreno, em dois mil anos, o Evangelho não foi ouvido. Então é positivo, neste caso, que, sem violência, o Evangelho não pode ser aplicado. E se para evoluir é necessário que seja aplicado, como chegar a isso?
Eis então como se explica o fato de que, no mesmo fenômeno do comunismo, encontramos presentes dois termos opostos em contradição. Naturalmente os antagonistas o acusam, batendo em sua parte errada, ou seja a violência etc. Mas infelizmente esta é uma qualidade própria do gênero humano e não apenas qualidade de alguns homens. Por isso, é própria também dos acusadores que até ontem a usaram nas guerras, e que todos estão prontos a usar hoje na terra, como o prova a corrida armamentista. Como impedir que o homem continue a ser o salteador que foi o seu ancestral, e como transforma-lo assim de golpe em outro tipo biológico? Para evoluir são necessários milênios. Mas só evoluindo poderá o homem liberar-se das garras do animal de rapina, para conquistar a inteligência do ser consciente Assim, não se pode impedir que o passado sobreviva em parte, perpetuando-se no presente, em que se realiza novo trabalho de conquista.
Assim tiveram que coexistir no Catolicismo, como no comunismo, dois termos opostos em contradição, neste caso de um lado o Evangelho e do outro o poder temporal até ontem, e o poder político e a riqueza hoje. Mas estes explicam-se como resíduos ainda não eliminados, mas que o serão gradualmente, desse plano inferior de evolução em que a maior parte da humanidade ainda vive. Se foi isto um mal, a sabedoria da vida o permitiu porque, sem estas concessões a natureza humana inferior ainda não madura para saber viver o Evangelho, este não acharia ninguém na terra que o pudesse personificar, para fazê-lo chegar até nós. Trata-se, pois, de uma condição transitória, feita para ser superada, que a evolução não pode deixar de anular. Assim, não obstante a necessidade desse procedimento, o Evangelho terá de realizar-se. Ele representa um ponto de chegada. Mas isto não pode impedir que um estado involuído de animalidade constitua hoje seu ponto de partida.
O certo é que, na luta entre o impulso unificador que tende à ordem orgânica, e o separatista que tende à desordem na revolta, devera vencer, por lei de evolução, a primeira. O estado de organicidade atingido entre as células de nosso corpo prova-nos a verdade desta afirmação. Essas células se conhecem e ajudam mutuamente, e, superado todo egocentrismo separatista, colaboram para os objetivos do todo de que fazem parte. Ao contrario, os indivíduos humanos ainda não se conhecem nem se ajudam mutuamente, obedecem à lei da luta para seleção do mais forte, chocando-se um com o outro, ao invés de colaborar, subordinando as próprias atividades aos fins superiores de todo o organismo humanidade. No sentido da organicidade, essas células acham-se, pois, em estado mais adiantado que o próprio homem, como componente de uma coletividade constituída pela sociedade humana, que ainda se acha, portanto, imersa no estado caótico, bem longe de ter alcançado o futuro estado de superior unidade orgânica.

Observamos no capítulo precedente como desenvolve-se o fenômeno da descida do evolvido no terreno do involuído, e como o choque entre as duas leis opostas, resulta na crucificação, que representa uma terceira lei, a do sacrifício, exigência suprema da evolução. Observamos, depois, como amadurece um destino para poder cumprir uma missão e a técnica de seu desenvolvimento. Colhemos, assim, poder-se-ia mesmo dizer — surpreendemos — a manifestação das forças espirituais que dirigem essa missão, no momento crítico em que elas, sempre encerradas no mistério, eram obrigadas a aparecer em nosso mundo para nele agir, e, desse modo, pudemos vê-las funcionar, finalmente, a descoberto. Ocupamo-nos, por fim, dos instrumentos menores, dos seus métodos, e sua liquidação final.
Retornamos agora, a história do nosso protagonista que, para tratarmos destes outros aspectos do problema, havíamos momentaneamente deixado de lado. A questão, no seu conjunto, é ampla e complexa e, para compreendê-la em profundeza, deve ser examinada detalhadamente em todas as suas perspectivas. É por isto que vamos continuamente mudando o ponto de vista. Não se trata de contar aqui a história particular de um homem, mas de explicar a sua significação, significação biológica de conflito entre as leis de planos de vida diversos, em que essa história representa o eco da luta cósmica do Sistema contra o Anti-Sistema para a redenção do Universo. Encontramo-nos em face do amadurecimento de um destino cujo desenvolvimento havemos de compreender, e do cumprimento de uma missão, fenômeno do qual estudamos a técnica. Havemos de analisar os métodos usados pelas forças espirituais para descer e manifestarem-se na terra, e, enfim todas as repercussões secundárias ambientais etc. ...
Voltemos, agora, ao centro da batalha onde esta situado o protagonista, para estudar o centro da estratégia da mesma, porque é exatamente naquele ponto vital que se desferram os maiores ataques e mais ferve a luta. Trata-se aqui do ponto mais vital da missão e não de elementos acessórios que, representando funções secundarias, podem, sem prejuízo ser facilmente substituídos ou liquidados. O que constitui o verdadeiro fulcro da missão, da batalha e da sua estratégia, é um centro espiritual que esta além do instrumento terreno, mero executor material. Este centro é o Evangelho, e atrás do Evangelho esta Cristo que, nos momentos decisivos, intervém e resolve, oferecendo-nos aquele maravilhoso fenômeno que vamos estudando, da descida à terra das forças do Alto.
De tudo isto decorre um fato relevante, isto é, que o cumprimento da missão, tem uma significação sobretudo cristã, evangélica. Trata-se de um experimento vivido, levado a efeito para observar a tão discutida aplicabilidade real do Evangelho na pratica de nossa vida. Experimentação vital para o nosso protagonista, que, porém, tem importância amplíssima, por ter uma significação de interesse geral. Enfrentaremos agora, por isso, o problema da Grande Batalha que estamos estudando, debaixo deste seu outro aspecto da experimentação evangélica, isto é, de missão cumprida, também para demonstrar que, contra todas as aparências, o Evangelho é aplicável completamente em nosso terreno humano e, ainda que isto pareça absurdo, com muita vantagem. Assim é que esta experiência pode ser utilizada como exemplo para a demonstração de uma verdade pouco aceita e que, entretanto, é utilíssimo conhecer. E por isto que relatamos aqui esta experimentação evangélica conduzida seriamente com as regras da observação positiva no laboratório da vida. Veremos, assim, os fatos conduzir-nos à conclusão de que o Evangelho é verdadeiro e que sua palavra, de fato, se realiza.
Procuraremos, desse modo, dar ao involuído aquele poder que torna mais forte o evolvido, evangelicamente desarmado. Para utilidade dos mais atrasados neste caminho, procuraremos estudar e explicar os segredos desta nova estranha estratégia que o mundo tão pouco conhece. Ir adiante pelo caminho retilíneo da sinceridade, significa chegar muito antes do que tomando a estrada da mentira e do engano. Muitos preferem esta última por parecer um atalho, mas é um atalho em que se escorrega a cada passo e que, por isto, exige mais tempo paro ser percorrido que a via mais comprida da honestidade onde não se escorrega, porque se coloca o pé não na lama, mas sobre a pedra firme. Trabalhar a luz da inteligência de onde nasce o conhecimento, exclui a incerteza da tentativa e do erro, fornece a calma, a tempestividade e a segurança da ação, o que conduz ao bom fim. Contrariamente, quem trabalha com as forças do mal, trabalha nas trevas da ignorância, que não lhe fornecendo o conhecimento, deixa-no em poder da tentativa e do erro, o conduzem a uma pressa repleta de orgasmo, à  intempestividade e incerteza na ação, o que arrasta para a falência.
Não basta a afirmação teórica que o bem e o mais forte e triunfa. É preciso explicar como se desenvolveu a experimentação que prova ser isto verdadeiro; é necessário penetrar sua técnica, o método de desenvolvimento, observar a oposição entre as psicologias e estratégias do evolvido e do involuído, observar por quais defeitos este é levado a perder, e por quais qualidades o outro é levado a vencer.
O esquema da narrativa é simples. Trata-se do caso de um homem decidido a viver o Evangelho até o fim. Através dessa narrativa cada qual que se encontre nas mesmas condições pode enxergar a sI mesmo. Explicamos no começo do volume, onde a narrativa iniciou-se e vem, depois, a ser desenvolvida em outra direção, as razões de seu comportamento tão estranho, que denominamos a doença do Evangelho. Questão de tipo de personalidade, fruto de quem sabe qual seu passado, por isso questão de destino, com o resultado de lhe não ser possível aceitar a vida senão como uma missão. Esta é a experimentação evangélica de que estamos tratando experimentação árdua, mas decisiva. Se esta não tivesse êxito, aquele homem teria tido o direito de dizer a Cristo que ele teria naufragado por haver tomado a sério Suas palavras. Lógica de honestidade e fidelidade, levada até suas últimas conseqüências. De resto, dado o biótipo, não restava outra escolha No meio da invencível repugnância pela estupidez de tantas coisas humanas onde encontrar algo verdadeiramente digno, com que preencher a vida? Cada qual, na própria atividade, quer realizar a si mesmo, de acordo com o que é, e não pode renunciar a esta realização da própria personalidade
De outro lado seria forçoso ser cego para não ver o contraste existente na terra entre a teoria, representada por um Evangelho proclamado e pregado, e uma pratica feita com a sua negação continua. Qual dos dois teria razão? Cristo ou o mundo? Por que não tentar esta suprema experimentação? Ver, pois, nos fatos se o Evangelho é verdadeiro, aplicável na realidade de nossa vida humana, e os motivos e resultados. Caminho de pesquisa que, se conduzido com critérios racionais e objetivos, deveria conduzir à descoberta do mecanismo íntimo e vital do Evangelho, explicando a sua posição lógica no funcionamento das leis da vida e da evolução, revelando enfim o segredo da sua estranha técnica para vencer na vida sem armas. Fascinante tornava-se estudar seriamente uma tão difundida loucura e verificar por que, não obstante tão pregada, é tão pouco aplicada. Tornava-se preciso controlar diretamente, com a experiência pessoal, quem teria razão entre os dois opositores: Cristo, com suas afirmações enunciadas em nome ao Pai e confirmadas com o martírio, ou o mundo que acha sábio fazer pouco caso, rindo-se de Cristo e acreditando de fato no contrario.
A experimentação era muito mais interessante que outras com que é costume preencher a vida: riqueza, poder, sensualidade, orgulho etc.. Como acreditar ainda nestas coisas, cair dentro delas somente para perceber depois que tudo é vaidade e ilusão? Oceano de enganos em que gostam de navegar os primitivos inexperientes para colher desilusão. Quanto, em vez disso, valeria, também para os outros, como exemplo, mas acima de tudo para si, possuir uma prova experimental própria acerca de argumento tão escaldante que abarca toda a conduta humana!
Desde jovem o nosso protagonista havia compreendido, por instinto, o truque das coisas humanas. Então, sem esperar o fim da vida para compreendê-lo e para chorar sobre a vaidade das coisas, instintivamente rebelde contra a aceitação da vida como a fazem os demais, certo dia ele tomou na mão o Evangelho e disse: quero pô-lo à  prova, experimentando-o sobre minha própria vida. Se é verdadeiro, Cristo ajudar-me-á. Se não o for, então tudo há de cair comigo. Uma das duas: ou o, Evangelho tem razão, e, assim, este não me matará, mas, em vez, salvar-me-á. Não sei como isto possa dar-se, mas, por certo, este será um prodígio como o seria o do cordeiro vencer os lobos indo desarmado a abraça-los. Ou, contrariamente, o Evangelho não tem razão, tendo-a o mundo e matar-me-á. Mas nesse caso, não terei morrido pelas estúpidas e comuns malvadezas humanas, mas por algo digno, por haver querido seguir a Cristo. Terei, nesse caso, a grande vantagem de não ter morrido pela minha imbecilidade ou malvadez, mas inocentemente, por haver crido em Cristo e Sua será a responsabilidade. Solução, também esta, de elevado interesse. Como comportar-se-ia o Alto, seja no deixar realizar-se um caso semelhante, seja, depois, no julga-lo, permitindo as respectivas conseqüências?
Tudo isto representava uma espécie de desafio ao Alto, a fim de que se manifestasse diretamente uma exigência de provas evidentes, aptas a fornecer um testemunho experimental irrepreensível da verdade do Evangelho. Estas provas depois! poderiam sobrepujar o caso particular, próprio do experimentador, para elevar-se como exemplo coletivo de significação universal, para todos. E, quem sabe, essa experimentação inusitada viesse a fazer parte integrante daquela missão que estamos expondo, uma prova positiva demonstrativa e confirmativa da sua verdade!
Certo é que o mundo de hoje não pode mais satisfazer-se com uma fé cega e tem necessidade de provas convincentes. Para os homens positivos, práticos, que com a ação dirigem o mundo, e que são a maioria, é preciso abrir uma janela para outros mundos superiores que para eles parecem utopia. Se não fizermos entrar esses novos elementos no mundo para a sua salvação, não restara hoje senão o desespero, ou a destruição recíproca. No estado de inércia mental dos séculos anteriores estes problemas não surgiam e era possível adormecer em paz, encobrindo-os com a tradicional mentira. Mas, hoje, o acicate da dor bate nos ombros do homem moderno, e a este tudo é permitido, fora adormecer. A dor impõe novas perguntas e respostas e obriga a inteligência a desvenda-las. Chegou a hora dura do destino do mundo para impor a todos, bons ou maus, viver seriamente, enfrentando e resolvendo os problemas, num sentido ou noutro, mas sempre à luz da razão, dando-se conta e assumindo a responsabilidade do que se fizer. A bela comédia dos séculos transcorridos, com que tranqüilamente o mundo havia se acostumado a zombar de Deus e da Sua Lei, esta tornando-se hoje, uma tragédia, uma nova experiência dura em que entra em jogo a própria vida.


Também por estas razões o nosso homem entregou-se à experimentação. Ressentia-se ele mesmo deste estado d‘alma geral, de uma necessidade absoluta de clareza e sinceridade em qualquer caminho, ainda que fosse aquele que os antepassados denominaram do mal: viver de olhos abertos,  sabendo as razões e as conseqüências da própria conduta; compreender e saber as razões do bem como as do mal, e, escolhendo-se as sendas deste último, nunca fazê-lo cegamente, por instinto como os primitivos, mas vendo bem claramente, por haver feito o cálculo exato das vantagens da própria escolha. Se o bem então é verdadeiramente bem, este deve revelar-se à razão como o caminho mais conveniente por ser o que conduz à nossa maior utilidade. Se nos for vedado enfrentar os problemas morais e religiosos com esta franqueza honesta, quer dizer que a solução oferecida hoje ao mundo é um artifício que esconde algo que não se quer descobrir. Numa hora de geral revisão de todos os valores humanos, a experimentação que o nosso protagonista impunha a si mesmo correspondia, não só as suas condições particulares, mas, outrossim, a exigências de ordem geral. Evidentemente a dor, chave da evolução, esta despertando a inteligência do mundo para encaminhá-lo a um novo amadurecimento.
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Assim, ele decidiu a grande experimentação. Qualquer que viesse a ser o resultado dela, ele teria procurado utilizar a vida para finalidades mais elevadas que não as baixamente estúpidas de tantos outros. Pô-la a serviço de instintos animais, guiando-se por estes e não pela inteligência, era método impróprio ao seu biótipo. Sua natureza era diversa e o levava a uma espécie de inconciliabilidade com os métodos dominantes. Procurava adaptar-se com um sentido de respeito aos sistemas do próximo, mas deste seu respeito o próximo se aproveitava para impor-se a ele. Enquanto ele procurava colaborar, os outros avizinhavam-se para dominar. Sacrificara-se para coadjuvar e encontrava quem só queria explora-lo. O que, afinal, queriam dele? Era possível que, para viver naquele plano, fosse necessária a revolta e que fosse esta a resposta exigida por ser a única que os outros podiam compreender?


Assim foi que aquele homem estranho começou a viver o Evangelho. A experimentação, pelos perigos implícitos e por suas conseqüências, assim como pelas conclusões a que conduzia, devia ser efetuada com seriedade e precisão, como uma pesquisa de laboratório, observando exatamente todas as condições e reações. Como se desenvolveria uma vida guiada por tão estranhas diretrizes? Era necessário conduzir a experimentação com inteligência para não errar nas conclusões. Assim foi que se desenvolveu a grande aventura. A prova realizou-se observando todas as regras da arte, foi controlada racionalmente, estudada positivamente para dela tirar conclusões certas.
Desenvolveu-se desse modo a vida do nosso0 protagonista. O caminho foi longo e duro. Por um grande período o Evangelho foi vivido na sua parte negativa: renúncia, aceitação, dor. Assim a ele tinha sido devido adaptar-se a sofrer em solidão e silêncio. Vida triste, redobrada toda para o interior, para onde aquela alma era rechaçada pelo contínuo desferrar dos golpes de todos quantos, como lobos cheirando a cordeiro, encetavam os primeiros passos para o banquete. Mas enquanto para estes se tratava apenas da banal manifestação de instintos, nele a inteligência afinava-se na amargura e a introspecção aprofundava-se cada vez mais. Era duro e difícil, mas havia nisto um grato sabor de poder naquele Evangelho que lhe exigia saber viver como cordeiro entre os lobos, largando todas as armas, tendo presente a alegria dos lobos antegozando o banquete daquele que, havendo-se feito cordeiro, podia ser devorado impunemente. Que convite agradável para eles Para ele, apenas, o martírio da maceração e do amadurecimento. A forma de evolução com que se realizava a redenção Evangélica teria, então, que se realizar por via da crucificação? É esta, então, a primeira fase da técnica da ascensão para o involuído, isto é a destruição da animalidade?
Assim perdurou por diversos anos. A opinião pública, considerando-o um vencido, estava contra ele e o definia: o imbecil. E ele começava a resignar-se a morrer, aceitando a segunda das duas soluções, isto é, a de que o Evangelho, ainda que teoricamente justo, não era, na pratica, aplicável na terra. Qualquer outro, em seu lugar, chegando a este ponto, teria abandonado a experimentação, seguindo o caminho mais seguro, o do mundo, em que os efeitos são imediatos. Mas o nosso era um homem estranho que não aceitava aquele caminho e aquele tipo de vida. Não lhe restava outra escolha senão a de ir até o fim, tanto mais que uma experimentação conduzida até a metade não o autorizava a tirar qualquer conclusão. De outro modo sua seria a culpa se a prova não tivesse êxito e, a sua morte, ele não teria nenhum direito de afirmar ter sido destruído por ter crido no Evangelho, que o teria induzido a engano. Decidiu, pois, continuar até o fim e deixar-se matar, mas somente por Cristo e unicamente por haver querido sempre seguir o Evangelho.
Entretanto ele havia compreendido uma coisa. Se o mundo afirma que o Evangelho não é praticável na terra, isto podia ter sua razão exatamente neste cansaço prematuro, da parada no meio do desenvolvimento do fenômeno, cujo decurso havia de ser bem mais longo. É preciso ir cautelosamente no julgar e não ter tanta pressa em liquidar assim leviana e superficialmente um fenômeno de tal monta como o evangélico, em torno do qual gira a humanidade. Uma das razões que induziram o nosso experimentador a continuar em suas indagações a todo custo, foi precisamente a de que devia haver alguma outra causa pela qual o Evangelho continuava a apresentar-se nesta sua forma invertida que induz a maioria a abandona-lo. Devia haver uma espécie de barreira do som a ser ultrapassada para que tudo, depois, mudasse radicalmente. O problema estava em possuir a resistência necessária a superar aquele limite.
A maioria para as primeiras tentativas, que, naturalmente dão resultado negativo, e com isto tira conclusões. Feita uma primeira experimentação e pelo fato de não terem obtido um sucesso decisivo e imediato, sentem-se autorizados a sustentar que o Evangelho não é aplicável. Dizem: "Experimentem. Sistema impossível. Se não tivesse reagido, defendendo-me por mim mesmo, ter-me-ia perdido". Coloca-se, por isto, o Evangelho de lado, entre as muitas mentiras convencionais de que é repleta a nossa sociedade uma vez que se julga ter o direito de concluir, com a prova na mão, que o Evangelho não pode ser vivido.
Tudo isto é explicável. Ultrapassar a barreira do som, neste caso, significa chegar a pôr em funcionamento no plano do involuído as leis próprias do evolvido. Do mesmo modo como, superado um dado limite de velocidade, modificam-se as leis do movimento que então deve ser conduzido com princípios diversos, assim, passando do plano de vida do involuído ao do evolvido mudam-se as leis de vida e os métodos para defendê-la. Viver, então, de acordo com a estratégia evangélica da não resistência, significa transferir em própria defesa as formas de movimento que se adotam nas velocidades ultra-sônicas para o terreno humano onde se anda a pé, ou pouco mais. Eis porque aqueles sistemas, na terra, para o viandante inexperto, não funcionam e, por isto, este os acha inaplicáveis ou, melhor, perigosos. Mas isto não quer dizer que para o viandante esperto que saiba utiliza-los, que conheça a técnica deles, aqueles sistemas de movimento em velocidade ultra-sônica, não possam representar uma indiscutível superioridade sobre quem sabe apenas andar a pé ou pouco mais. Esta é a posição do homem evangélico consciente das mais elevadas e poderosas leis do seu plano em face do homem comum que as desconhece e permanece em poder das leis de próprio nível, menos poderosas, por serem menos evoluídas. Poder-se-ia objetar: mas, porque, então, se o mundo é feito, a este respeito, de analfabetos, exigir atitudes de graduado em nível universitário? Mas isto não tolhe que todos procurem superar os cursos inferiores para chegar a universidade, por saberem das vantagens que disto decorrem.
Desenvolver, vivendo-o, o tema evangélico é trabalho ainda demasiado difícil para muitos alunos terrestres. Para esses acontece o que se daria com um selvagem a quem se entregasse um aparelho radiofônico; depois de observa-lo por todos os lados, julgando-o com o seu cérebro, o desprezaria por imprestável. Usar o Evangelho significa pôr em movimento leis complexas e forças profundas, de grande potência, de efeitos a longo prazo, e não fenômenos de superfície, de resultados diminutos e que, por imediatos, são os que o homem comum melhor percebe e mais aprecia. Assim é que, enquanto os outros efeitos escapam-lhe, ele só aceita estes.
Assim é que, enquanto a maioria para na metade, chegando a conclusões erradas, o nosso protagonista quis continuar a experimentar o Evangelho, como deve fazer quem quer estudar um fenômeno seriamente. Tratando-se de leis complexas e forças profundas, era lógico que este estudo reclamasse tempo e perseverança, e com isto muita fé, de que sempre deve estar munido o cientista que quer escancarar as portas do mistério, fé que, no fundo constitui aquele merecimento sobre o qual se baseia o nosso direito de colher o fruto de nossos esforços. Era preciso continuar, custasse o que custasse. O que se diria do cientista que quisesse tirar conclusões das experimentações de seu laboratório apenas depois de algumas primeiras provas malogradas? Perguntar-se-ia: a experimentação foi completa? Foi conduzida com todas as cautelas e inteligência devidas?
Assim o nosso personagem continuou a pesquisa. Entretanto ele possuía um dado de fato, embora pequeno, mas positivo; por haver seguido o Evangelho, ainda não havia sido aniquilado. Naquelas condições bem difíceis, do cordeiro entre lobos, ter sido, até então, pisado mas não devorado! representava algo de incomum. Havia, entretanto, na mente do experimentador, uma dúvida. Este fenômeno da salvação, que já parecia milagroso, continuaria e verificar-se no amanhã? Que elementos faltavam para condicionar plenamente o desenvolvimento do fenômeno? Era talvez parte da lógica do seu desenvolvimento, este retardamento da demonstração plena da potencialidade do Evangelho. Tratava-se, certamente, de pôr em movimento forças titânicas. Talvez fosse preciso um esforço proporcional, aquele em face do qual todos param, para depois rejeitar o Evangelho como inaplicável. Talvez fosse indispensável uma prova absoluta de fé e fidelidade, daquela coragem de quem salta com o paraquedas, a coragem dos navegadores dos mares inexplorados ou das audazes pioneiros nos territórios desconhecidos. E quais as terras mais desconhecidas que as do espírito? Seria esta uma indispensável condição do fenômeno? E, se o era, como exclui-la “a priori” e não aceitá-la? Todo fenômeno tem suas leis e suas condições. Também neste caso era preciso aceitá-las.

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Eram necessárias estas considerações, para a compreensão dos acontecimentos que estamos narrando. Para completar a experimentação até o fim, o nosso homem fora obrigado a adaptar-se numa posição de aceitação que o colocava num estado de sofrimento, que a longo andar, terminaria matando-o. Quem segue o Evangelho na terra, coloca-se, com isto, na posição de carneiro entre os lobos; não pode, pois, deixar de acabar como mártir, por eles devorado. Continuando assim, o mundo teria vencido sobre Cristo. Havia-se chegado ao ponto do fenômeno.
Seria possível a derrota do Evangelho? Se não acontecesse algum fato novo que não estava em poder daquele homem pôr em movimento, a doutrina de Cristo haver-se-ia demonstrado um engano. Em outras palavras havia chegado o momento em que as forças do Alto deviam manifestar-se e entrar em ação. Isto era o que impunha a lógica do desenvolvimento do experimento, sem o que este teria falido. O experimentador havia, de seu lado, posto em ação todos os elementos que dele dependiam. Agora, deviam ser movimentados todos os elementos que dependiam da parte contrária.
Ele continuava em observação. Como o astrônomo, depois de haver achado, com os seus cálculos, que num determinado ponto do firmamento há de existir um novo astro, e, depois, com o telescópio verifica-se que de fato, lá está, assim o nosso personagem estava observando para verificar se, na realidade; ocorreriam aqueles acontecimentos que os cálculos feitos com a lógica do Evangelho indicavam deveriam dar-se naquele momento. Deu-se então a maravilha: os cálculos do nosso experimentador de fenômenos espirituais no laboratório da vida, postos em confronto com os fatos, demonstravam-se exatos como os do astrônomo descobridor de estrelas. Assim foi que aconteceu o fato novo, decisivo, que inverteu a situação. Foi, então, possível dizer que o experimento havia tido pleno êxito, dando razão, no último, ao Evangelho, ainda que, no começo, tivesse parecido o contrário. Contra todas as aparências do momento, Cristo era verdadeiramente o mais forte, e havia vencido.
Acompanhemos, entretanto, o curso dos acontecimentos para bem compreender esta história nó seu momento mais significativo. Independentemente da vontade de nosso personagem, impulsos interiores situados no fenômeno e, então, chegados a amadurecimento, certo dia, vieram a produzir uma grande mudança, dando a sua vida um curso completamente diverso. Circunstâncias imperceptíveis e, de começo, inadvertidas, agigantaram-se paulatinamente, movidas por uma espécie de força íntima, até dominar preponderantemente. Como um feto que se vai formando, no começo eram apenas uma vontade de desenvolvimento, materializada em pequeninos elementos materiais. Dirigidos, porém, por aquela potência interior, como os componentes do feto, se multiplicaram e reforçaram, conforme um plano certo, preordenado e dirigido para fins precisos. Como se dá com o feto, que desse modo vem a nascer completo, como acontece com a avalanche, que o movimento de um punhadinho de neve, rodando, agrega outros elementos até alcançar a massa que pode destruir tudo o que encontra no caminho, tudo dependendo do impulso interior do fenômeno, do mesmo modo aquela tenacidade evangélica amadureceu o destino daquele homem e, por nele haver colocado o seu impulso, deu aquele destino uma direção toda própria. As células que se agrupam ao redor das primeiras do feto, os flocos de neve que aderem aos primeiros que geram a avalanche, são atraídos e guiados pela lei do fenômeno. Assim, também neste caso, outros elementos foram atraídos e guiados em redor daquele primeiro, que se tornara centro por haver superado a barreira ultra-sônica do experimento evangélico. Estes elementos, como já explicamos, foram tomados neste movimento de forças sem que o compreendessem, já que, com sua forma mental, não o podiam. Vieram desse modo, a ser utilizados como instrumentos cegos, postos em movimento por miragens próprias, sendo estas o único meio que podia movimentá-los. Assim, pois, é que eles puderam cumprir a função necessária, seja mesmo em forma acidental, de passagem, para afinal, cumprida sua função, serem eliminados.
A mutação que se verificou no destino de nosso protagonista, foi relevante. Ingressamos na fase mais importante da história que estamos expondo, aquela em que o fenômeno amadurece até o ponto em que torna indispensável a manifestação da intervenção das forças do Alto, a fim de que o conflito em curso, entre Cristo e o mundo, seja resolvido em favor do primeiro. A modificação operada por aquelas forças foi profunda, constitui uma verdadeira inversão. O sujeito foi lançado longe, aos antípodas, não só geograficamente, mas ainda com relação a todos os hábitos da sua vida anterior. A palidez de isolamentos estagnantes de introspeções profundas, substituiu-se o torvelinho de uma grande corrida pelo mundo, imprevisível lance para uma milagrosa afirmação. A manifestação das forças espirituais do Alto aparecia bem evidente. Estas, situadas no íntimo das coisas, manobravam tudo dentro do mundo das causas, gerando aquele turbilhão em que, chegada a hora, e como efeito exterior, o nosso personagem foi tomado, sem que nada houvesse preparado, nem imaginado. Ele estava desprovido de tudo e aquelas forças tudo providenciaram. Por elas foram chamados todos os elementos imprescindíveis e foram postos em função como instrumentos perfeitos, a fim de que, atraídos por suas miragens, realizassem os fins superiores para os quais, sem que o soubessem, haviam sido chamados. Cada qual, embora perseguisse aparentemente seus próprios planos, marchava enquadrado ordenadamente noutro plano que não conhecia, tornando-se, sem sabê-lo, colaborador involuntário de outro trabalho bem diverso.
Desse modo, movido e guiado pelo Alto, pôs-se em movimento a grande engrenagem, em cujo centro aquele pobre homem, até então tão atormentado, se encontrou. Tudo isto podia parecer um conjunto de ilusões fantasmagóricas, convergentes apenas para fins temporâneos e particulares. Mas, atrás dessas aparências, que constituíam tudo o que o mundo percebia, se estava realizando um plano orgânico dirigido por aquelas forças do Alto, plano que viria a manifestar-se só mais tarde, quando, completada sua função de lançamento material, os elementos convocados a efetua-la, seriam repelidos por se haverem tornado contraproducentes.
Ia, assim, cumprindo-se, em completa logicidade, o desenvolvimento do destino do protagonista. Antes, longo período de duras provas, para experimentar sua resistência e conduzi-lo à  maturação, período escuro de maceração interior. Depois, lançamento na palestra da realidade concreta do mundo, para colher o fruto daquela preparação. Mudando-se nesta outra fase todo o trabalho a ser efetuado deviam realizar-se condições diversas de vida e, para isso, são chamados a cena elementos outros, necessários no momento. Não se conhecem um ao outro, trabalham para fins próprios, e, no entanto, escalonam-se sem sabê-lo,  para colaborar ordenadamente, em fila, para um único fim. A maior maravilha desta fase é esta organicidade da colaboração de elementos heterogêneos, visando a outros fins, e entretanto, mantidos, sem que o saibam, no trabalho conjunto para um mesmo fim, não deles, e liquidados uma vez terminado o trabalho. As forças do Alto haviam demorado para descer, tanto que tudo parecia perdido, mas agora trabalhavam poderosamente e com sabedoria segura. Tudo corria tão bem que o nosso indivíduo acreditou ter encontrado um novo mundo de bondade e verdadeira amizade. Mas tratava-se de uma descida no mundo e, como pode uma coisa terrena ser outra coisa que não uma ilusão? Porém, se a aparência era ilusória, atrás dela havia a ajuda de Deus e esta não era ilusão. A vestimenta exterior era falsa, porquanto aparente, mas o corpo que nela estava era bem firme. Ele estava construído por um destino amadurecido a luz do Evangelho, até tornar-se, agora, em missão, até o ponto de se dever manifestar a intervenção das forças do Alto, se não quisesse que a doutrina do Evangelho viesse a ser desmentida neste caso. Estas, as forças interiores que determinaram e regiam todo aquele movimento de pessoas, de meios materiais e de acontecimentos exteriores. O Evangelho preparava-se para dar, em verdade, uma prova experimental da sua plena atuabilidade também no plano humano de nosso mundo. É este fato o que dá valor de exemplo a história que estamos expondo e, somente por isto, é que aqui a contamos, isto é, para demonstrar que, contrariamente a quanto se crê e afirma, o Evangelho, como com este caso podemos provar experimentalmente, não é utopia irrealizável na terra, mas contrariamente, é o melhor sistema de vida, e que deveria ser preferido, no seu próprio interesse, pelas pessoas inteligentes.

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Procuremos compreender melhor a técnica usada neste caso pelas forças do Alto para descer no ambiente humano. O que mais impressiona é a observação da organicidade do método na execução do plano. Tantas pessoas de temperamento, posição social, e recursos materiais diversos contribuíam, perseguindo cada qual fins diferentes, muitas vezes desconhecendo-se uma a outra! Todas estas pessoas, no entanto, funcionam alinhadas em perfeita colaboração, seguindo sem saber e sem querer, as diretrizes de um plano orgânico que não conheciam e ao qual, se o tivessem conhecido, ter-se-iam rebelado por ser contrário a suas finalidades. Estas pessoas apareciam em cena no momento certo, para executar o trabalho particular para elas designado e desaparecer logo depois, logo que sua presença se tornava inútil aos fins do plano geral. A observação destes fatos não podia conduzir senão a conclusão de que, como causa de um desenvolvimento tão ordeiro do fenômeno, não se poderia aceitar o acaso, nem a vontade dos elementos que nele trabalhavam. O plano era vasto e complexo, desconhecido por ser diverso daquele em que os executantes acreditavam desconhecido até pelo seu principal ator, o nosso protagonista que nada programava e só corria, como por eles arrastado, atrás dos acontecimentos.
Quem, pois, dirigia tudo? Quem encontra diante de si um efeito, deve presumir que este derive de uma causa e que esta seja da mesma natureza e qualidade do efeito. Neste caso ela devia ser inteligente e, dado que não era encontrável na terra, era preciso procurá-la alhures. Ora, em outro lugar, uma causa de tal natureza, inteligente, não podia ser encontrada senão no mundo espiritual. E, como já demonstramos antes, estava na lógica de todo um sistema de forças que, neste momento, fossem as dos mundos superiores as que deveriam manifestar-se tornando-se ativas no plano da vida humana.
Assim tudo se torna claro. Tudo acontecia conforme a lógica das teorias desenvolvidas acima, que nos fatos encontram plena confirmação. Para os céticos irredutíveis poderemos dizer: os fatos são estes aqui expostos. Se não existe outra hipótese, senão esta, que é a única que os explica, teremos que aceitá-la, a não ser que renunciemos a compreensão. Pode ser que outros consigam descobri-la, mas nós não conseguimos encontrar outra hipótese aceitável. Que tão diversos elementos, naturalmente tendentes a elidirem-se, antes que a colaborar, por serem eles rivais, levados pela própria natureza do seu plano biológico, antes de mais nada, a lutar para vencer um ao outro, que esses elementos antagônicos hajam funcionado organicamente conforme um único plano por eles ignorado, tudo isto não pode ser explicado senão com a presença de uma força diretora que se lhes sobrepôs para coordenar seus movimentos. E não sendo encontrável esta força na terra, havemos de procurá-la em outros ambientes, como vimos.
Há, entretanto, um outro fato de que é preciso tomar conta. Tratando-se de descida na terra de forças espirituais de mundos superiores, havia de verificar-se inevitavelmente o choque entre formas mentais e métodos de vida diversos, como estudamos anteriormente. O que confirma a hipótese acima é o fato de que este choque se verificou efetivamente. As forças espirituais dirigiam do Alto, mas sua atuação dava-se no terreno do mundo. O fenômeno desenvolvia-se entre dois planos de vida que se elidiam um ao outro. O nosso protagonista achava-se no meio, devia suportar o choque. Avizinhando-se aos próprios semelhantes, de braços abertos, com o método evangélico, devia encontrar-se com o método do mundo, egocêntrico separatista, de inimizades e lutas.
Para ele a grande modificação se havia dado em idade avançada, não podendo chegar senão como conclusão de uma longa experimentação evangélica. O seu passado havia sido longo e doloroso. Sofrer e resistir é trabalho pesado e o estava cansando; acreditava, pois, que a sua fadiga estivesse ultimada. De certo o Alto havia-se movido! Mas que longa e profunda maceração! Ele tinha querido, verdadeiramente, com fatos e não com palavras, viver o Evangelho. Ele tinha ido, armado apenas de bondade, ao encontro do próximo, contra o qual se presume que se tivesse armado para o ataque e a defesa. Presunção tácita, escondida mas sempre presente em qualquer povo, religião, regime político, classe social, como substancia da realidade da vida. Dado isto, no terreno humano, ele não podia ser senão derrotado. Em nossa sociedade não é licita a antropofagia. Mas se isto fosse possível, e se o achasse comestível e saboroso, ela devoraria o homem evangélico. Entretanto o faz de outra maneira: tira-lhe tudo o que pode ser de alguma utilidade, deixando-o com a pecha de inepto pobre e nu, despido de tudo. Neste mundo este é o final lógico do homem evangélico.
Nesse mundo fala-se de caridade e de beneficência. Mas, em tal ambiente, qual significação real poderão assumir em muitos casos estas palavras? Beneficência! Grande virtude e, como todas as virtudes, nobre sacrifício que, por isto, é melhor reservar aos outros para que eles dêem a nós, e assim possamos cumprir o santo trabalho de empurrar os outros, para seu bem, ao sacrifício deles em lugar do nosso. Nasce desse modo a nobre porfia de exigir tão gloriosa virtude antes do próximo do que de si mesmos. E quando se pratica a beneficência, toma-se uma boa parte da respectiva glória na terra e um bom merecimento no céu. E os beneficiados? Bem, no fim, hão de existir também os beneficiados, uma vez que é em nome deles que tudo é feito; e tudo se justifica. Se assim não fora a substância das coisas, não se explicaria como em tantos países do mundo se tenha difundido a beneficência. Ela é proclamada em altas brados, pedindo a generosidade dos outros que são compensados com a glória de havê-la praticado. O esforço da colheita é sempre feito com o máximo desinteresse, sacrificando-se para o ideal. Organização científica da caridade, que, desse modo, pode também chegar ao seu destino e ajudar os pobres. Mas, de fato, na lógica do mundo, o que representam eles, senão os vencidos da vida? E o que podem eles exigir de um mundo onde impera a lei da luta e a vida pertence somente ao mais forte? Numa sociedade onde domina a forma mental do egocentrismo, como se poderá pretender que aquela lei se transforme sempre naquela do altruísmo, que é lei de outros planos de vida?
Quando num ambiente dessa natureza aparece o homem evangélico que aspire a destacar-se das riquezas, ele, para alcançar o seu ideal, não precisa realizar nenhum ato heróico. Não há nenhuma necessidade de atos clamorosos aptos a encenação da grande virtude da pobreza. Para o homem evangélico, não é necessário que se espolie. Basta distrair-se um momento na luta da defesa, deixar um pouco a porta aberta, e o próximo entra e, não encontrando as comuns barreiras defensivas, pensa imediatamente em tornar efetiva a espoliação. Desse modo, para alcançar a pobreza evangélica, não ha‘ necessidade da clássica doação, do grande gesto visível, circuito de méritos gloriosos, com os quais o sacrifício é pago em grande parte. Maiores espoliações podem dar-se na sombra, na luta universal para tudo agarrar, sem glórias nem merecimentos, antes e melhor com a condenação de incapacidade.
Esta é a história do nosso homem. Não havia tido necessidade de cumprir qualquer gesto de doação para achar-se evangelicamente pobre. Para isto, o seu próximo, que devia amar como a si mesmo, havia provido e o havia empobrecido. Fora rico, mas havia sido subjugado no trabalho conceptual, inerente a sua missão, que lhe tomava a maior parte do seu tempo e de suas energias. Não lhe sobrava, o que mais é necessário, nem tempo nem força, para levar a efeito o primeiro trabalho deste mundo, que é o de lutar e defender-se. E parece que na terra (pelo menos assim foi no seu caso) não e possível a quem confiar o próprio, sem, com isto, acabar perdendo tudo. Assim, por não se ter podido defender, ele tudo havia perdido, sem a glória do mundo que observa e sem a gratidão dos beneficiados que recebem. Cristo, no Evangelho disse a um rico: se quiser ser perfeito, vai e vende tudo. Mas, em nosso mundo, não há necessidade de vender e doar. Nunca falta quem, quando sejam abandonadas as defesas, pensa logo em tornar-nos pobres, perfeitos como quer o Evangelho, sem necessidades de nos despirmos de nada.
Que coisa estranha um homem evangélico em nosso mundo! Como? Tratar-se-á de um doente mental? Assim era julgado o nosso personagem e, no melhor caso, com um sentido de compaixão. Mas um tolo que nem sabe defender-se, merece, conforme a lei do plano biológico humano, antes que compaixão, condenação e castigo. Esta é a justiça da terra: que o débil seja eliminado por se ter deixado vencer. Esta a triste história que aqui estamos narrando. Tinha sido longa e penosa e, com a atual modificação, o seu protagonista, cansado demais de tudo, acreditava que ela tivesse terminado. Distanciando-se do seu velho mundo para ingressar no novo, acreditara que tudo mudaria, que encontraria sinceridade e homens diversos dos que encontrara até então. Viu, entretanto, que tudo queria continuar na mesma. O nosso sujeito saíra sangrando de uma espoliação feroz e havia sido esfolado bastante para poder suportar ainda igual sofrimento. Desta vez, se o jogo continuasse, o homem evangélico seria aniquilado. A experimentação havia chegado a um ponto crítico, além do qual não podia prolongar-se, sem que o êxito viesse a ser comprometido, com as conseqüências de princípio de que já falamos. Não era mais possível esperar. As forças superiores não podiam mais retardar sua intervenção: uma ulterior dilatação significaria sua derrota e a vitória do mundo. Havia chegado, mais uma vez,  a hora em que o Alto devia manifestar-se em forma concreta de ação no plano da matéria, porque ficaria vencido e o Evangelho cairia em erro, se o Alto com a sua intervenção não tivesse salvo o indefeso dos lobos ferozes. Se aquele homem tivesse morrido, por haver querido viver o Evangelho, este ter-se-ia demonstrado um engano, porque demonstrar-se-iam inverídicas suas palavras:
"Procurai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais ser-vos-á acrescentado".

Assim os novos lobos, desconhecedores dos resultados a que conduziam suas ações, foram, sem querê-lo, também instrumentos de milagrosa revolução do experimento em sentido positivo, em favor do Evangelho, já que o seu ataque foi o que obrigou as forças do Alto a descerem e agir, porque eles o haviam, agora, tornado indispensável.