O materialismo religioso. Espiritualizar a matéria e não materializar o espírito. O Evangelho afirma e expande, em vez de negar a vida. A rebelião dos instintos atávicos. O passado revive. Crucificação. A reabsorção do mal. A eliminatória. A míope psicologia do involuído. Suas duras experiências. Os novos horizontes do Evangelho. O método da não-resistência. A defesa do justo. A evolução caminha para Deus, que é vida. Mas o egocentrismo a contrai, no limite. A fustigação da dor nos impele a subir; as diversas reações à dor.



Continuemos a observar, sob outros aspectos, o nosso exame do contraste entre evoluído e involuído, entre espírito e matéria, entre o Evangelho e o Mundo. Saindo do caso narrado, que o simboliza, o problema se torna cada vez mais universal. Procuremos compreender cada vez melhor o significado da luta entre esses dois extremos opostos, entre os quais se debate a natureza humana. De um lado o evoluído que vive, no plano do espírito, a lei do Evangelho; do outro, o involuído que vive, no plano da matéria, a lei do mundo. O choque ocorre entre esses dois tipos biológicos, tão diferentes, situados em dois planos opostos da vida, espírito e matéria, expressos por duas leis irreconciliáveis, a do Evangelho e a do mundo.

Cada um dos dois tipos não pode deixar de reduzir tudo ao nível de seu plano de vida, de conceber tudo com a própria forma mental e de tudo viver segundo sua própria natureza. O evoluído tende a espiritualizar tudo, o involuído a tudo materializar; o primeiro, elevando tudo a seu plano de vida, o segundo, tudo reduzindo ao seu próprio nível. Este último, feito primordialmente de carne e de suas necessidades e instintos, e verdadeiro filho da terra, é levado a conceber tudo, materialisticamente, pensando e resolvendo todos os seus problemas com essa psicologia. Em qualquer circunstância, não se pode sair do próprio estado mental, nem se pode agir diversamente daquilo que se é.

Por isso ocorre que a maioria, mesmo no terreno das coisas religiosas, espirituais, ideais, se comporta materialisticamente, porque essa é a sua psicologia, com que tudo concebe, e da qual não é possível fugir, dado o seu tipo biológico. Quando o próprio centro vital está situado no plano biológico da animalidade, qualquer coisa que se pense ou se faça, manifesta a tendência a levar tudo a esse plano, porque ninguém sabe viver fora do mesmo. Não é questão de uma ou de outra religião ou filosofia, do grupo a que se pertence ou da fé que se professa. Trata-se de um verniz externo, de posições formais, que podem modificar a aparência; mas é difícil que consigam, numa só vida, transformar a substância, ou seja, fazer passar de um biótipo a outro. Quando o ponto de referência é o corpo e a terra, em função dos quais se pensa e se vive, tudo permanece nesse plano. Assim como um peixe poderia aprender a teoria e as regras do vôo, sem jamais poder voar, porque sempre referindo-se ao seu mundo e permanecendo em seu ambiente aquático, — também um involuído poderá aprender as coisas espirituais, sem, por isso, tornar-se um evoluído que as vive, mas sempre referindo-se ao seu mundo material, para viver apenas em função deste.

Dado o seu tipo biológico, o ponto de partida e de referência para o homem que é sempre matéria, é o corpo, em função do qual ele pensa e age. Por isso, mesmo quando quer penetrar na estrada da espiritualidade e da santidade, tem de começar agredindo a própria animalidade, para destruí-la. Logo de inicio, acha-se engolfado num trabalho negativo, que é o demolir a barreira da própria natureza inferior, que o impede de avançar para formas superiores de vida. Trabalho indispensável, sem dúvida, mas que revela a verdadeira natureza humana. Explica-se, assim, por que as primeiras virtudes a aparecer são as negativas, do "não-fazer", ao invés das positivas do "fazer". Ou seja, o que o homem deve aprender primeiro não é a espiritualidade, mas a libertação da materialidade; não é tornar-se anjo, mas deixar de ser animal . A espiritualidade verdadeira só poderá chegar depois que se tenha varrido o terreno dos instintos inferiores da animalidade. Tudo isto nos mostra que estamos ainda longe da espiritualidade, porque esta é positiva, ativa, e não perde mais tempo com esse trabalho negativo de demolição a parte inferior ja superada e inexistente naquele nível.

O que interessa ao homem, mesmo quando este quer ocupar-se de coisas ideais, é sempre o que se refere ao corpo e a matéria. Os mandamentos de Moisés dizem sobretudo: "não-fazer" . Na vida de Cristo o ponto culminante em que o homem mais atentou, demorando-se em cada particular, é uma paixão física feita de maceração do corpo, sempre visto em primeiro lugar; ao passo que a paixão do espirito, tão maior em Cristo, quase desaparece num fundo longínquo. Na eucaristia, que é união espiritual, fala-se de corpo e de sangue. Sem a presença de algo que é material e sem a intervenção do corpo, parece que o homem não sabe fazer nem imaginar nada; ao passo que a primeira qualidade do homem espiritual é a de eliminar o corpo e a matéria das próprias funções espirituais. Para que o mundo pudesse compreender que Cristo não morrera e que Seu Espírito sobrevivera, era necessária uma sobrevivência física, com a ressurreição do corpo, porque, para o homem, a vida esta no corpo e este constitui a pessoa. Se não sobreviver algo que se veja e se toque (Tomé exigia como prova, colocar o dedo nas chagas de Cristo que lhe aparecia), se o indivíduo permanecer vivo só no espírito, que é a parte que verdadeiramente o constitui, continua isto um fato sem importância, porque não é percebido. Mas quando aprenderemos a nos espiritualizar?

Vemos assim como os dois biótipos, — do evoluído e do involuído ou seja, do espírito e da matéria, — estão longe e opostos. Enquanto o primeiro esta colocado no plano espiritual e em função deste vive e concebe tudo, dá-se o oposto com o involuído. Ora, onde esse biótipo representa a maioria, as próprias religiões são concebidas materialisticamente, e existe um materialismo religioso, que é um materialismo de substância, recoberto de formas religiosas, o que é pior. O trabalho que se deveria realizar seria, ao contrario, não o de fazer descer o espírito trazendo-o ao nível da matéria, mas o de transformar nossa natureza material até tornar-se espiritual. Ao invés de reduzir as coisas espirituais ã forma mental humana, abaixando tudo a este nível, seria necessário procurar subir, assumindo a forma mental do homem espiritual. Em outros termos, quando se entra neste terreno, não se costuma fazê-lo para espiritualizar a matéria, como se deveria, mas para materializar o espirito. Executa-se, assim, um trabalho às avessas, pelo qual se procura pôr o céu a serviço da terra. Assim como se tende a fazer do poder dos governantes, não uma função social para o bem coletivo, mas um meio de usufruir vantagens pessoais, assim se utilizam as coisas do espírito para tirar delas vantagens no plano material. Ora, o que interessa à evolução e a quem subir, não é abaixar as coisas superiores, mas afinar-nos nós, subindo a planos superiores, aprendendo a perceber, pensar e viver neles, nas formas que lhes são próprias. Mas, infelizmente cada um tende a transformar e reduzir tudo às medidas do próprio plano e aos limites da própria natureza. Estas observações não serão, pois, compreensíveis para muitos, nem mesmo admissíveis.

Já assinalamos quanto é perigoso não usar corretamente as coisas espirituais, brincando com essas tremendas forças. As astúcias e enganos, que podem dar fruto na luta pela vida no plano humano, não podem ser apresentadas diante de Deus, quando se requer sinceridade, e se tornam prejudiciais. Por isso, nestas paginas, quisemos decididamente enfrentar o problema, para resolvê-lo com plena sinceridade, de qualquer forma, menos com o engano. Assim, nos perguntamos: Cristo é realmente levado a sério? Se é, temos de levá-lo verdadeiramente a sério, e viver Sua lei a qualquer custo. Se não é, então abandoná-la. Mas jamais mentir. O que está acima de qualquer discussão é que, qualquer coisa que se faça, deve-se fazê-la honestamente e com sinceridade, sem enganar-se a si mesmo e aos outros. Diante de Deus, nas coisas do espírito, é necessária uma sinceridade verdadeira, e não a humana, que muitas vezes se usa para esconder a mentira.

Assim caminha o nosso mundo. Dada sua posição ao longo da escala evolutiva, as coisas do espírito, situadas em outro plano de vida que não é o do nosso mundo, aparecem neste em seu aspecto negativo, como renúncia e mutilação da vida, e não em seu aspecto positivo, como afirmação e conquista, como expansão vital. Em nosso mundo, as virtudes aparecem como um freio que oprime, como uma sufocação da natureza humana. E é natural, então, que sejam evitadas, como coisa triste. Colocado diante do impulso da evolução, o homem sente mais a pena da renúncia ao seu mundo, e da separação da própria materialidade, do que a alegria de crescer num mundo maior, ligando-se a uma forma mais alta de vida: a do espírito. E não se compreende que não se trata de caminhar com pesar, mas com alegria de viver. Se se atentasse não na primeira parte, que é negativa, mas na segunda, que é positiva, invertida seria a sensação provocada pelo esforço de evoluir. A evolução não pode impelir-nos a caminhar contra a vida, mutilando?se na dor; mas leva-nos para a vida. Se isto fosse bem compreendido, deveria dar uma alegre sensação de desenvolvimento. Nos primeiros degraus da subida espiritual é maior o cansaço para afastar?nos da matéria, e mais dura é a dor da separação. Mas quanto mais se sobe, mais diminui esse cansaço que nos afasta da matéria, e menor e a dor da separação, porque o ser acha outra vida mais alta à qual ligar-se.

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Assim, o homem não pode deixar de revelar-se como é, segundo o seu tipo biológico, mostrando-nos com os fatos, o que ele é. Dado esse seu tipo, mais vizinho do anti-sistema que do sistema, é inevitável que apareça —  mesmo quando ele entra no terreno das religiões e da moral — o seu inato negativismo, qualidade do involuído diante dos problemas do espírito. Esse biótipo esta emergindo penosamente dos mais baixos níveis da vida, em que tudo é vivido e sentido em função da matéria. E o Evangelho, avançadíssima lei de espiritualidade, em função da qual tudo é invertido, pretende enxertar-se na carne viva desse ser, para transformá-lo, em sua mais profunda substância. Se nos convencermos da imensa distância que, ao longo da escala da evolução, existe entre o plano da vida do homem atual e o nível do Evangelho, compreenderemos como, em 2.000 anos, se tenha feito tão pouco, e como o resultado tenha sido a inversão do Evangelho, mais do que o levantamento do homem.

Assim, a ação permaneceu no exterior, nas formas, nas praticas religiosas e nos sermões, com o Evangelho permanecendo na superfície. Todos assim verificam que ele não funciona, o que é verdade; esse fato, porém, os leva a uma conclusão errada: que o Evangelho é uma utopia, praticamente irrealizável. Lança-se a culpa na maquina, que não caminha, ao invés de fazê-lo no maquinista, que não a sabe movimentar. Continua a repetir-se que a fé remove as montanhas, mas de fato não a vemos remover nem mesmo uma pedrinha. Mas qual é a nossa fé? E de que fé fala o Evangelho? Da fé de um momento, de um dia, de uma vida ou de um milênio? De uma fé calculadora e interessada, ou de uma fé profunda, pronta a tudo? É lógico, mesmo que seja mais cômodo o contrario, e justamente isto se busque, não se possa obter um grande resultado com pequeno esforço, pois há necessidade de proporção entre causa e efeito. Nós vamos contra os próprios princípios do funcionamento da máquina. E então, como podemos pretender que ela funcione?

Assim, a animalidade humana continua a enfeitar-se com esse belo chapéu e a vestir-se com esse belo manto, o Evangelho, acreditando que lhe baste isto para conseguir civilizar-se sem esforço. Mas a realidade é a realidade É mais fácil transformar uma montanha, fazendo-a ir pelos ares com a dinamite, do que transformar um tipo de personalidade. A animalidade está bem assente com os quatro pés no terreno sólido da matéria, na qual se apoia há milhões de anos. Ela só conhece esse, e só nele confia. É lógico que desconfie e se rebele contra quem quisesse de um golpe fazê-la voar pelos céus. Na ordem universal, nada ocorre por acaso, nada é inútil, tudo esta em seu lugar justo. Se a animalidade existe, ela é involuída, atrasada, mas não esta fora da ordem universal. Ela realizou suas importantes funções evolutivas e tem suas razões de existir. O primeiro dever do pensador moralista que quer fazê-la progredir, é compreendê-la, para sabê-la dobrar e plasmar, sem quebrá-la, como pode acontecer quando se usa o Evangelho, com o espírito agressivo do involuído, para domar com a força. Assim, nenhuma moral é tão contraproducente — mesmo se usada por sua fácil atuação — quanto a moral estandardizada, pela qual todos devem entrar nas mesmas medidas e todos têm de ter o mesmo comprimento no mesmo leito. Eles são esticados, então, até aquele comprimento, se forem menores, ou se forem maiores, lhes é cortado um pedaço.


É necessário conhecer as reações da animalidade e levá-las em conta. Ela é uma forma de vida inferior, mas é vida; e como tal, pelo mesmo divino princípio da vida, não quer e não pode renunciar a existir. Ao contrario, quanto mais se é involuído, mais se é apegado à  vida; isto porque, quanto mais se é involuído, e se possui menos, o ser, em sua pobreza, esta mais apegado a sua existência limitada e precária. A plenitude da vida esta em Deus, e o ser a conquista subindo para Ele com a evolução, enquanto a perde afastando-se de Deus com a involução. Eis porque o ser inferior luta tão desesperadamente pela sua vida: porque precisa e quer lutar para sobreviver.

Ora, o Evangelho, negando a animalidade do involuído, aparece a este como uma negação de toda vida, dado que este só conhece a sua forma, e acredita morrer se a abandonar. É natural, então, que ele se rebele contra um Evangelho que se lhe apresenta em forma negativa, ou seja, como negação e sufocação daquela vida. Ele não compreende, nem os divulgadores do Evangelho o fazem compreender que, ao contrario, o Evangelho é uma afirmação e uma expansão da vida, e que aceitá-lo não é uma dor de renúncia, mas uma alegria de conquista. Mas como pode a natureza humana deixar de inverter tudo na terra? Assim, o Evangelho foi apresentado mais como uma lei dura, carregada de sanções, com as quais se agride a vida para mutilar sua expansão, do que como uma arte sabia para alcançar uma vida cada vez maior. Mas, dado o ambiente humano em que o Evangelho caiu, como poderia ocorrer diversamente? Só os santos e as almas grandes souberam escapar desse erro, mas eles são muito poucos para arrastar a massa humana.

Se o involuído resiste ao evoluído, se se revolta contra a psicologia evangélica do santo, é porque defende seu tipo biológico no qual vê a própria conservação. Ele sente, por instinto, que o outro tipo quer substituí-lo na vida, tomando-lhe o lugar. Sem dúvida, o direito à vida cabe ao novo, mas isto não impede que o velho resista para não morrer. Eles são rivais no mesmo terreno da vida, e por isso se combatem. Se o involuído é o tipo do passado, e por isso se sente com maior direito de continuar a viver, o evoluído é o tipo do futuro, e por isso se sente com direito ainda maior de apoderar-se da vida. O involuído experimenta imenso ciúme dele, porque sabe que amanhã, tomará o seu lugar. E não compreende que será ele mesmo que ressuscitará de uma forma velha, numa nova. Não compreende que o exemplo dos evoluídos é um convite à  conquista de uma vida maior, que será apenas a continuação de sua própria vida.

Contudo, entre os dois, o mais forte é o elemento jovem, que a vida defende porque a ele confia a continuação, de seu caminho. As velhas células resistem. Mas logo que se forma uma célula de tipo superior, mais avançado, ela procura consolidar-se como tipo biológico e tornar-se centro de atração das outras células do mesmo tipo que se vão formando. Estas, por sua vez, se sentem atraídas e se arruinam em redor daquela primeira célula, até que possa firmar-se e fixar-se a vida num plano evolutivo mais alto, na forma do novo biótipo do evoluído. E assim que, por lentas maturações, consegue fixar-se na terra o Evangelho. Hoje ainda estamos na fase dos raros exemplares esporádicos do novo tipo em formação. Mas esses exemplares, com o tempo, deverão tornar-se cada vez mais freqüentes, mais normais, até que, seguindo as pegadas do Evangelho, toda a humanidade terá de passar a viver num plano mas alto de evolução, que já não mais será o atual da animalidade, mas o da espiritualidade. Isto poderá parecer fantasia. Mas não há como contestar que a evolução é fenômeno inegável, reconhecido por todos. já agora não mais se pode admitir que a evolução continue sendo compreendida como desenvolvimento de órgãos, como o queriam Darwin e Haeckel, mas como desenvolvimento nervoso, psíquico e espiritual.

Assim se realiza a evolução através desse contraste de forças. Os obstáculos que os involuídos costumam colocar para fechar o caminho aos pioneiros do ideal são bem conhecidos. Desde o caso de Cristo até todos os outros menores, a história esta cheia deles. É uma história de mártires. Se o Sistema atrai para o Alto, o Anti-Sistema, por sua vez, possui uma atração sua para baixo. A evolução caminha deste para aquele. Em períodos de descida pode haver o desenvolvimento semelhante ao do câncer, em sentido involutivo. Atividade retrógrada, destrutiva. Enquanto o evoluído tende a desenvolver-se ordenadamente, em sentido orgânico, construtivo, o involuído só sabe fazer o contrário. Cada um, já o dissemos, não pode deixar de revelar em tudo, a si mesmo. O involuído só saberá agir como involuído, porque, se agisse diversamente, já o não seria mais, e sim um evoluído. Até as células inferiores, involutivas; atraem para a própria órbita os elementos a elas semelhantes. Mas, enquanto, no caso do evoluído, se forma a fraternidade pacífica e construtiva, tendente à unidade orgânica, no caso do involuído forma-se o bando de malfeitores; para guerrear quem quer que seja, e por fim, para guerrear-se entre si, porque a finalidade é destruir e separar, unicamente pela vitória do próprio egoísmo individual.

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Não devemos esconder a realidade e ignorar as dificuldades que encontra na terra a aplicação do Evangelho. O passado animal esta muito próximo ainda, para que não se ressinta toda sua tremenda influência. Transformar o próprio tipo e forma mental, transportar-se para viver num plano biológico mais alto, representa um trabalho profundo que não pode improvisar-se. Sem dúvida, o Evangelho quer ensinar ao homem coisas nobres e grandes para o futuro. Mas podemos perguntar a esse homem: que lhe ensinou o passado? As virtudes da prepotência e do egoísmo, ou as da mentira, principalmente. As tão declamadas civilizações da história só puderam aplicar ligeiros vernizes por cima da originária ferocidade dos animais. E no trabalho de educá-los, voltamos sempre ao início, porque educá-los significa refazê-los totalmente.

Teremos já pensado de quantas dezenas ou centenas de milênios são fruto os instintos atuais? E houve mister adquiri-los para sobreviver, porque só vivia quem os possuísse. Eles constituem o nosso sangue, fazem parte de nossa carne. A luta pela vida pode ter selecionado o mais forte, mas, em redor do vencedor quantas ruínas, contorções, revoltas, naqueles que tiveram de adaptar-se a viver como vencidos! Todas as prepotências que os fracos tiveram de engolir à força, estão prontas a regurgitar à  procura de uma desforra que lhes dê satisfação. Todas as experiências vividas permanecem escritas em nossa carne e reclamam compensação. Os delinqüentes natos são tais porque querem ser maus, ou porque se tornaram assim pela reação ao esmagamento dos fortes? A humanidade viveu até agora de delitos. E isto não pode cancelar-se com um golpe. Cada causa deve ter o seu efeito.

Então, quando o Evangelho se nos apresenta inerme e acariciador, que podem fazer esses seres, carregados de revolta que se acumularam em séculos de opressão? Explicam-se assim, mesmo que não se justifiquem, os extermínios da revolução francesa e a revolta de tantas revoluções E o mundo continua a cometer injustiças, julgando que lhe baste a força para fazer calar e anular as reações. E, no momento parece que isto seja a verdade. Mas o fogo viceja sob as cinzas. E no entanto formam-se rancores profundos, ódios seculares de nações, de raças, de classes sociais, ódios que permanecem escondidos nas vísceras da vida, tal como um homem pode trazer, imersa nas profundidades de sua carne, uma série de vírus, durante anos, até que um dia, tanto a doença quanto a vingança da revolta, explodem, e tudo vem à  luz.

O    Evangelho não desce para trabalhar num terreno virgem, mas num já poluído por mil delitos. É necessário enfrentar um trabalho imenso, porque se trata de corrigir, de reeducar de novo, reedificar o que esta mal construído. É preciso desentrançar esta carga de explosivos que quer estourar, e ter a força de engolir esse triste passado, neutralizando tanto mal com outro tanto bem, que é indispensável cada um possuir em si para podê-lo expandir em torno de si.

A justiça do mundo atual se apoia em compromissos, em que os impulsos contrários encontraram um equilíbrio temporário, cada um permanecendo sempre pronto a explodir contra o outro, tão logo a pressão deste se relaxe Isto em todas as posições sociais em que haja alguém que mande e alguém que deva obedecer-lhe. Como pode o Evangelho enxertar-se de um golpe nesse sistema de forças, para desviá-lo, a curto prazo, de suas primeiras aproximações da justiça até um nível em que esta é definitiva e completa? Quando, no estado atual, o Evangelho intervém entre um patrão armado de força e um dependente armado de revolta, ensinando que a ambos convém muito mais colaborar pela compreensão, logo acontece que uma das partes relaxa a pressão contra a parte oposta, esta lhe salta ao pescoço para apoderar-se de todo o campo que antes, só o equilíbrio entre as duas prepotências opostas mantinha dividido, cabendo um bocado a cada parte.

É esse estado armado de todos contra todos, que paralisa logo de início quem se dispõe a querer viver o Evangelho na terra, a menos que se tenha o estofo de um herói, ou então que o seu ato não seja isolado, mas acompanhado, de tal forma que se possa encontrar algum sustento pela reciprocidade da bondade do próximo. Quem quisesse, sozinho, no mundo de hoje, contra todos, viver integralmente o Evangelho, só poderia ser um mártir. Mas precisamos também admitir que só esse pode considerar-se um verdadeiro civilizado. Todavia aos que não souberem chegar a tanto, só resta continuar a esmagar-se uns aos outros, cada um por sua vez, e a sofrer as reações vingativas dos outros, até que, à  força de atritos, se aparem todas as arestas e se chegue a descobrir a fórmula da convivência. Assim, com um esforço muito mais diluído, longo e lento, o homem acabara da mesma forma por chegar à aplicação do Evangelho.

O sofrimento de tanto atrito, que quase chega a paralisar a vida social, só poderia ser poupado com um pouco de inteligência. Mas é justamente esta que falta, e tanto trabalho se emprega, no entanto, para adquiri-la Queira-se ou não, é mister que a obra da civilização seja feita por todos, cada um colaborando com a parte que lhe compete. Por mais que se queira ser separatista, e portanto permanecer fechado no próprio egoísmo, a vida é fenômeno coletivo em que a reciprocidade nas relações funciona em cheio. Ninguém quer ser o primeiro a fazer o esforço, e espera isto da virtude alheia; e os outros fazem o mesmo. Ficam assim todos imersos no mesmo pântano. Que batalha poderá vencer um exército, em que cada soldado só quer, mandar, conservando-se à frente dos outros? Assim, entre os elementos componentes da mesma máquina, forma-se um atrito que a para, ou fá-la funcionar mal e com esforço. E o mal que cada um queria lançar sobre o vizinho, continua para cada um e para todos, como de cada um e de todos é a culpa. Mais veneno lançaremos na panela comum, e mais devemos bebê-lo nós mesmos. Assim avançam com grande fadiga os nossos destinos dentro desta mal construída maquina social, cada um sofrendo a sua parte. E os que se acreditam mais fortes e astutos procuram escapar firmando-se no egoísmo e lutando para ganhar espaço à custa do vizinho, sem compreender que este é um soldado do mesmo exército, com o qual é seu interesse colaborar para vencer. E assim os mais fortes e astutos põem-se a frente de um ataque às avessas, em direção a um abismo, procurando arrastar a todos com eles.

Eis ai o mundo que o Evangelho tem de enfrentar para realizar-se. Como pode uma Boa Nova de paz arrasar de um golpe montanhas de veneno, acumuladas durante os séculos? Embora seja proibido o crime, o gosto tão difundido pelos dramas criminais demonstra como é grande o desejo de morder, de matar, de destruir, que se acha aninhado no fundo da alma humana. O passado não esta absolutamente morto e se encontra sempre pronto a vir à tona. Todos, mais ou menos, trocaram entre si, no passado, um pouco dessa mercadoria de que o mundo está cheio e que se chama o mal. Todos estamos mais ou menos presos numa rede de débitos e créditos recíprocos. Todos cometemos alguma injustiça, sendo culpados contra o próximo, e recebemos algum prejuízo. Para chegar ao Evangelho é mister acertar o saldo de todas essas contas, pagar todos os débitos e créditos, o que significa paixão cruenta e crucificação desta natureza humana, ainda feita de animalidade. Cristo quis ser o primeiro nessa estrada de paixão e crucificação, embora nada tivesse de pagar, mas apenas para dar-nos o exemplo. Quem o quer seguir neste caminho de redenção, que é o único? A humanidade esta verdadeiramente onerada por uma carga de iniqüidade que lhe paralisa a subida, mas que precisa ser anulada de qualquer forma, seguindo a estrada oposta, substituindo a guerra pela paz, o ódio pelo amor, pois não há outro meio de anular o passado e dele libertar-se dele. E, enquanto não soubermos vencê-lo, este passado nos perseguirá e esmagará.



São ridículos os sonhos do homem evangélico? Não constitui ingenuidade ser sincero e honesto? Os homens práticos e astutos não têm direito de rir-se de tudo isso? Então, deixemos que o mundo nos prepare o suicídio com a corrida armamentista, deixemos que a vida, que se tornou um desencadeamento de rapacidade e uma babel de mentiras, se torne insuportável a todos, até ficarmos submersos em nosso próprio veneno. O Evangelho é utopia? Então seja liquidado o homem bom e justo, lançado fora da vida como um ser inútil que não tem direito de viver, seja isolado para que não contagie os outros, os sábios, com a sua doença. Não há lei nem costume que diga isto explicitamente, mas tudo isto esta implícito e subentendido nas leis e costumes. Continuemos com esta seleção em descida, com essa evolução às avessas, com essa inversão de valores. Quem caminha de cabeça para baixo somos nós, e no fundo do abismo está a rocha dura das leis de Deus, e contra essa rocha rebentara nossa cabeça. Então, não permanecerão na terra traços do homem evangélico que conseguiu evoluir, pois esse biótipo pertencerá a uma raça desaparecida, e com ele terminará toda a tentativa, por parte do homem, de civilizar-se, e o homem terá recaído no fundo da barbárie. A presente tentativa de levar a sério o Evangelho é um apelo desesperado para a salvação do mundo.

O homem é livre e Deus lhe deixa a liberdade de retroceder. Mas o homem não compreende, que, retrocedendo, se afasta de Deus ou seja, da vida, e caminha para a própria destruição. Este é o maior prejuízo, e com isto os negadores rebeldes se autocastigam. Com a involução, cada vez mais se acentua o espírito de domínio e de agressão. Não há necessidade alguma de intervenção divina direta, nem que as forças do Evangelho lhes façam guerra para destruí-los. Basta deixa-los abandonados a si mesmos, e, assim como são, estão perdidos. Os involuídos são bastante ferozes para não poder deixar de guerrear-se, e com isto destruir-se mutuamente. Ninguém pode escapar à lei do próprio plano, muito menos quem a prefere e procura cada vez mais imergir nela. Assim é que os elementos inferiores, que desejariam deter a lei do progresso, são automaticamente lançados fora e eliminados;

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Dado. o seu ponto de vista; o involuído, no fundo, não esta errado.. Ele. julga e age conforme o ângulo de sua visão. Mas o pior é que seus olhos só enxergam de perto um panorama pequeno e limitado no tempo e no espaço. São essas as dimensões da vida nesse plano biológico.  A inteligência ampla e de longo alcance, que tenha compreendido o complexo funcionamento da grande máquina do universo e que saiba funcionar com ela, ainda não apareceu. Forma mental toda fechada no próprio eu, além do qual só aparece a névoa do mistério e a incontrolável desordem do caos. Psicologia simplista, movida pelos instintos não controláveis pelo conhecimento, emaranhados esboços de astúcia primitiva que e uma rede, na qual fica preso quem primeiro a utiliza, método de vida enganador, que só pode colher ilusões

A vida do involuído é um jogo curto, que só mira os resultados imediatos, a prazo breve ao alcance da mão, porque todo o resto lhe escapa, já que, não o conhecendo, não pode levá-lo em conta nos seus cálculos. Que matemática poderia fazer um cientista, ao lado de um selvagem que só sabe contar com os dedos da mão e além desse número sabe apenas que há mais do que cinco, mas fica perdido no mundo vago do incomensurável. Que poderemos esperar do homem de hoje, que nada sabe ainda quanto aos problemas fundamentais da vida, e se limita a resolvê-los com crenças contrárias, atentas a condenar-se mutuamente? Com uma psicologia filha de seu ambiente material, este se limita ao trabalho analítico da pequena luta cotidiana, na qual tem valor o que se pode agarrar de imediato. Para realizar um trabalho mais vasto, com mira a resultados maiores e vantagens longínquas, seria preciso saber conceber com maior amplitude fenômenos a longo prazo. Mas para chegar a isso, é indispensável haver desenvolvido qualidades intelectuais e morais e não apenas instintos vorazes.

Assim se alcança a vantagem imediata. E depois? Procurando aferrar essa vantagem imediata que forças tocamos e movimentamos no grande mecanismo do universo? Ignorá-las, não nos exime das conseqüências. E só quando estas chegam, começa a compreender-se alguma coisa. Diz-se então: a vida é uma ilusão; isso significa que nos iludimos, acreditando seguir o caminho certo, enquanto seguíamos o errado. E esta já é uma experiência vivida, uma lição útil, que nos evitará mais tarde repetir o erro. Como aprender de outra forma? Com o seu respeito à liberdade individual, a lei não pode tirar a ninguém o seu direito de errar. Para aprender, permanecendo livres, é necessário pagar de seu próprio bolso as conseqüências, experimentando-as na própria pele. Se construirmos mal a casa, ela depois nos cairá sobre a cabeça. Só assim aprenderemos a construi-la bem. É necessário que a prepotência e a astúcia do mundo terminem mal, para aprendermos a agir segundo princípios diversos. O mundo esta pagando, e não acabará tão cedo de pagar. Isto parece duro, mas é uma estrada salutar, pois outra não existe melhor para se aprender O homem, correndo atrás de todas as suas miragens, não as realiza, de fato, e, na realidade faz uma coisa completamente diferente, que é a de seguir uma escola de experiências, que lhe esta ensinando a viver num plano de vida mais alto.

Que faz uma fera ou um selvagem, logo que lhe apareça um desconhecido? A primeira mostra-lhe as garras, o segundo prepara as armas. Essa e a maior sabedoria deles, que todos, mesmo os mais estúpidos, naquele plano devem conhecer, aquela sabedoria que precisam aprender em primeiro lugar e que constitui o patrimônio de seu conhecimento. Isto se justifica com a procura da alimentação, a defesa da própria vida e dos haveres etc. Mas isto é tudo e esgota todas as possibilidades de nossa vida? Essa ciência manifesta-se no atual mundo, dito civilizado, na luta pela conquista do dinheiro. Mas será só isto suficiente para fazer-nos crescer em inteligência, bondade, conhecimento, para fazer-nos progredir até os mais altos planos da vida? A riqueza apenas, ou o poder material, já terão sido suficientes para criar um gênio, um herói, um santo? E então, o que produz de substancial o definitivo tão grande e febril avidez humana? Que fim tiveram e que restou do poder de tantos grandes da história?

Com a visão do mundo espiritual se abrem horizontes mais vastos. Outras finalidades podem dar-se à vida, novos poderes e defesas podem conquistar-se, se se olhar para além do estreito mundo da matéria. Quantos problemas que agora angustiam o mundo poderiam ser resolvidos! No presente volume quisemos desenvolver e demonstrar conceitos rapidamente resumidos em A Grande Síntese, com a intenção de mais tarde voltar a eles para desenvolvê-los, como o estamos fazendo agora. No Cap. XCI, "A Lei social do Evangelho", desse livro, esta escrito assim:

"O absurdo está na vossa involução. No Evangelho (....),a justiça é automática, perfeita, substancial (....). Aí não é mais necessário ser forte, basta ser justo (....). Torna-se então possível a lei do perdão, porque o espírito sente e movimenta outras forças e não apenas vossos pobres braços, e essas forças acorrem a defender o justo, mesmo se inerme (....). Então, aquele que parece um vencido da vida, se torna um gigante (....). A lógica do Evangelho leva a uma seleção de super-homens, enquanto a lógica de vossa luta cotidiana leva a uma seleção de prepotentes. Os princípios do Evangelho organizam o mundo e criam as civilizações; os princípios que viveis desagregam e desperdiçam tudo em atritos inúteis. Onde passa o Evangelho e o seu amor, nasce uma flor; onde passais vós, morrem as flores e nasce um espinho. O Evangelho é lei de paraíso, transplantada no inferno terrestre; só os anjos no exílio sabem viver aí a lei divina, ensinada por Cristo na cruz.

"Quem renuncia, no vosso mundo, a agredir e a defender-se, e oferece a outra face; quem renuncia a afundar as garras nas carnes alheias para a própria vantagem, e não quer, por princípio, usurpar com a força todas as infinitas alegrias da vida, permanece subjugado, é um vencido fora da lei, um expulso, um não-valor que se anula. Este, olhado pelo reino da força, é um inerme, indefeso, ridículo. E no entanto, nessa derrota, nessa fraqueza aparente, existe o mistério de uma força maior, que, trovejando, chega de longe, acordando nas profundidades da alma o pressentimento de realizações mais vastas. E o vencedor. no momento mesmo da vitória, tem a sensação de uma derrota. E o vencido olha do alto, como um vencedor; e é assim, porque ele descobriu e viveu formas mais altas de vida".

"O homem permanece mudo e desorientado diante desse estranho ser, sem armas, que proclama uma assombrosa lei nova e parece de outro mundo. O homem sente que, se tem razão em seu ambiente, existe outro mundo em que tudo se inverte, em que o vencido da terra pode ser um vencedor e o vencedor da terra um vencido. Um abismo o separa daquele ser superior; o homem agride e ele perdoa; ele é um justo e sabe sofrer. Ele está aí para indicar-vos, na sua vida, a meta atingida, para indicar-vos o caminho, ao acompanha-lo para a realização da mais alta e fecunda lei social: o amor evangélico".

Mais ou menos no meio do capítulo XC, "A guerra, a ética internacional", A Grande Síntese confirma:(....) "A luta do evoluído é feita de justiça e mobiliza o dinamismo das forças cósmicas. Neste sentido ele é o mais poderoso, embora humanamente inerme".

Quando essas palavras foram escritas, há uns vinte e cinco anos, ninguém poderia pensar que hoje, a um quarto de século de distância, em outro hemisfério do mundo, quase nos antípodas, teria podido nascer um livro como este, em que uma série de fatos positivos ocorridos e objetivamente tomados em exame, teria dado provas para demonstrar como verdadeiras, teorias que, até este momento, podiam ser relegadas por alguns para o reino dos belos sonhos e dos desejos nobres. Mas eis que, com o desenrolar-se da vida do instrumento, A Grande Síntese passou à sua fase experimental, para ser comprovada pelos fatos. já recordamos, no princípio do capítulo IX do volume precedente, das outras palavras de A Grande Síntese, cap. XLII: (....), há apenas uma defesa extrema: abandono de todas as armas. Mais tarde veremos como". Esse conceito foi aí confirmado, no cap. XC: "Disse-vos, mais atras, que (....), só há uma defesa extrema: abandono de todas as armas

Só no curso da presente obra, podemos dizer que explicamos o mistério daquelas palavras, acessíveis agora não apenas pela fé, mas também por uma demonstração racional e experimental. Os fatos confirmaram a intuição. Agora, como explicamos neste livro, é que compreendemos aquele "como". Pudemos tocar com a mão, o modo pelo qual o abandono de todas as armas representa a suprema defesa; pudemos compreender a razão da imensa superioridade, na luta pela vida, do método evangélico da não-resistência. Agora conhecemos os segredos do especial sistema defensivo de quem segue o Evangelho, sistema que, em última analise, o torna mais forte que os fortes da terra. E pensar que a ignorância do mundo é tão grande que acredita que a vida, só porque evoluímos, nos deixa indefesos E por isso se foge do Evangelho como de um perigo, para a própria segurança, quando ele é a nossa salvação. Não pode deixar de percebê-lo quem consiga penetrar na órbita de influência das forças da lei que o Evangelho representa, pois será logo integrado nesse sistema de forças. Continentes inexplorados, possibilidades novas e estranhas nas quais o mundo não acredita, teorias que para ele são fantásticas, e que no entanto resistiram à comprovação séria da razão e dos fatos, como vimos. Tudo para chegar à mais revolucionária das conclusões, ou seja, de que ninguém esta mais defendido, embora desarmado, do que o justo, e precisamente porque é justo.

Assim, vimos o Evangelho sob novos aspectos, em seus significados mais profundos, colocando-o, como jamais se fez, diretamente em contato com a realidade biológica, não mais apenas como fenômeno histórico, religioso, moral, mas como uma nova posição da vida, posição já assinalada ao longo da escala da evolução e à qual devera fatalmente chegar-se amanhã. Assim o Evangelho encontra logicamente seu lugar no desenvolvimento do plano do universo, e aparece sua função no seio do transformismo evolutivo, ficando demonstrado também seu imenso valor do ponto de vista racional e científico. Visto sob este prisma, não apenas como fruto de um tempo ou de uma religião, mas em relação às leis da vida, o Evangelho torna-se universal, torna-se fenômeno biológico que a ciência não mais pode ignorar, enxerta-se de forma tão profunda e substancial no processo evolutivo, que lhe demarca o telefinalismo, e com isto a linha de desenvolvimento. O que queremos fazer compreender nesta obra, é o que não se encontra nas explicações comuns, perdidas nas minúcias de pormenores concretos; é a idéia central dominante no Evangelho, que estabelece sua função fundamental em relação ao fenômeno universal do desenvolvimento da vida, idéia que leva o Evangelho a uma atuação necessária em todos os tempos e lugares, como lei de progresso de toda a humanidade. Só assim podíamos conseguir um Evangelho imparcial, universal como o queria Cristo, fora da luta, acima dos partidos religiosos e de seus antagonismos, exclusivismos e condenações. Só assim pode compreender-se o imenso alcance do Evangelho, a necessidade de vivê-lo, a fatalidade de sua atuação futura.


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O objetivo da evolução é a conquista da vida. Essa conquista é a maior paixão do ser, que tanto mais se debate para subir, quanto mais baixo é o plano em que esta imerso.

Mas é um debater-se cego, impelido pelo instinto, que explora o caminho por tentativas, sem guia nem método, como se encontra no Evangelho. O próprio Cristo qualificou-se como vida. No ápice da evolução esta Deus, que representa a plenitude da vida, enquanto ao pólo oposto esta a plenitude da morte, ou seja, a falta da vida. Quanto mais se involui, caminhando nessa direção, tanto mais vem a faltar a vida, porque ela se torna cada vez mais contraída, restrita, limitada no egocentrismo separatista do eu. Dado que a aspiração máxima do ser é a vida, e vindo ela então a faltar, é natural que ela se torne cada vez mais preciosa, o ser cada vez mais ávido, ciumento e apegado a ela, e o indivíduo lute cada vez mais ferozmente para conservá-la na única forma a ele acessível: a de seu plano de evolução. Por isso a luta se torna tanto mais árdua quanto mais se involui longe de Deus, porque é sempre mais difícil salvar a vida da morte quanto mais o ser se afasta do centro da vida, que é Deus, avizinhando-se do pólo oposto, que é o da negação de Deus e da vida, ou seja, o pólo da morte. A estes conceitos brevemente aludiremos neste mesmo capítulo, e era mister desenvolvê-los e esclarecê-los aqui.

Nós mesmos somos feitos desta luta contínua entre a vida e a morte, que disputam o campo. O principio egocêntrico separatista (limitada vida individual) representa o estado de contração desta; o princípio orgânico unitário (ilimitada vida universal) representa seu estado de expansão. Ao evoluir, o homem passa de um princípio ao outro. Nele, do infinito incêndio de vida que esta em Deus, permaneceu apenas a centelha do próprio eu. São miríades de centelhas, que perderam luz, força e calor pelo fato de estarem, não só divididas, como em luta entre si, destruindo-se mutuamente, com o próprio separatismo e rivalidade, introduzindo o princípio da morte no princípio da vida. Essa forma de vida mutilada é devida ao estado de involução; não é a verdadeira vida, mas apenas um fragmento dela, asperamente disputado à morte. Assim se explica e se compreende nossa vida sufocada pelos limites, aprisionada pela forma, continuamente partida entre nascimentos e mortes. É para fazer-nos viver verdadeiramente em dimensões cada vez mais amplas, que a evolução nos transforma para o Alto; é para nos devolvermos a nós próprios a vida cada vez mais completa, que temos de romper a casca do egocentrismo, expandindo-nos para além da prisão da matéria, na vida maior do espírito Assim se explica por que o homem tem tanto medo da morte (e tanto maior, quanto mais ele é involuído), medo que cessa com a evolução que nos liberta da morte.

Em sua ignorância, o homem segue um caminho errado. Logo que ele dá com amor, o egocentrismo dá-lhe a sensação de perder, e o impele a retrair-se e negar-se, fazendo-o dessa forma fechar as portas à expansão da vida. Assim, o passado interior tende a levá-lo de novo às posições assumidas anteriormente e a libertação para expandir-se não é atingida. Para subir é necessário vencer esse instinto de involução, que tenta resistir ao outro, de evolução, porque a involução quer que tudo desça, ao invés de subir. O homem oscila entre essas duas forças que o disputam. Gostaria de abandonar-se à alegria de dar, mas depois tem medo, pára, faz calar o coração e retrocede até o terreno que lhe parece positivo e seguro, o da avidez que acumula egoisticamente para si. Gostaria de conquistar a vida, mas ao mesmo tempo se retrai, o que lhe impede conquista-la. É vítima da atração da matéria que o puxa e retém embaixo. E no entanto, está próximo o espaço ilimitado dos céus, em que cada movimento é livre e é gratuita a energia para realizá-lo. Mas o homem prefere a imobilidade da terra, sua prisão. Penetra-o a ânsia de evadir-se dela, mas se comporta como quem, querendo sair de um quarto cuja porta se abre para dentro, se lançasse contra ela para sair, empurrando-a, sem compreender que deveria, ao contrario, afastar-se para trás, porque só assim poderia abrir a porta. O amor dá, e só o amor cria, ao passo que o egoísmo que acumula para si subtraindo aos outros, destrói. Só quem cria, enriquece, ao passo que quem destrói, empobrece.

   O    homem gostaria de conquistar a vida. Mas, com seu egoísmo, estabelece primeiro um deserto em redor de si, e depois pretende enchê-lo de água, tirando-a dos outros, embora a encontrasse grátis e abundante, desde que não secasse tudo no local em que se acha. Assim, depois que, ao civilizar-se num período de paz e progresso, o homem fez novas conquistas, como as usa? Logo que tem forças, ele guerreia para crescer ainda mais e engordar-se, e com isso destrói os bens e valores acumulados. A expansão do princípio egocêntrico, como acontece no imperialismo, tem funções criadoras, mas muito mais para os povos que são absorvidos e assim civilizados, do que para o dominador, que, realizada sua função, acaba perdendo tudo. Por mais que na guerra se queira ver o heroísmo, aí existe a morte, e embora nela se sonhe a conquista, há nela a destruição. O que um perde, quem quer que seja, representa uma perda para todos; a derrota do vencido é também a derrota do vencedor. Ninguém pode permanecer isolado de qualquer outra criatura, que viva em seu próprio ambiente terrestre. E assim o homem cai sempre no mesmo erro: para expandir-se na vida, ele se contrai, para trás, na morte; por querer enriquecer, empobrece; por querer construir, destrói. Que mais pode pedir-se a este nosso mundo em que tudo está quebrado, despedaçado no particular e no relativo? Que pode pretender-se, se, em lugar da verdade una, não conseguimos possuir senão fragmentos, verdades relativas em luta entre si, e um conhecimento pulverizado nas analises, incapaz de alcançar uma síntese unitária?

E então como consegue a vida fazer-nos evoluir? De que meios dispõe ela, para realizar esse seu objetivo fundamental? Ninguém mais do que o homem quer viver e conquistar a vida. Mas o faz sem conhecimento e sem juízo, muitas vezes às avessas, conseguindo resultados opostos. Pode, então, a vida ficar desiludida, em sua primeira necessidade, que é a de evoluir? Mas eis que aparece um elemento de funcionamento automático. Ao procurar ascender, o homem tenta caminhos diversos, ao acaso, erra a estrada, muitas vezes os instintos do passado o arrastam para trás, e a conclusão é a descida. Acontece, então, um fato inevitável, ou seja, que quanto mais baixo se desce, tanto mais dor se encontra. Ela aperta o homem em sua compressão. A dor queima, sufoca, comprime a vida que não quer morrer, e que portanto reage. Eis então que a evolução, quando não funciona o instinto da subida, firma-se nessas reações para ascender. Quando não é suficiente a atração para o alto, entra em ação a repulsão contra o baixo.

Observemos a mecânica desse sistema de reações. Um objetivo pode ser atingido, quer fazendo funcionar as forças positivas que nos levam a ele, quer as negativas que nos repelem do pólo oposto. A vida possui ambos os tipos de força, positiva e negativa, e as utiliza para seus fins positivos. Em outras palavras, para construir, Deus pode utilizar tanto o método da construção como o da destruição, o que significa que o bem domina tanto as forças do bem como as do mal, que pode utilizar, quando quiser, para os próprios fins do bem. Assim, o organismo universal é tão bem construído que, aconteça o que acontecer, tudo termina bem; qualquer erro que o ser cometa servirá para instruí-lo e, finalmente, fazê?lo progredir. Por isso o impulso da evolução, apesar de tudo, é que acaba sempre vencendo.

A dor é que acorda o instinto de vida, que adormece no bem-estar. Os climas doces e cálidos não criam homens fortes e lutadores como os que são filhos de climas ásperos e duros. As desventuras e a necessidade da luta ensinam coisas que só aqueles que lhes estão sujeitos podem aprender. A vida jamais se resigna a morrer, e muitas vezes, em vez de matá-la, as muitas dificuldades a fazem forte e sábia, quando isto é indispensável para sobreviver. os obstáculos são duros de superar, mas os que aprenderam a superá-los possuem um conhecimento e uma força para sua defesa, todavia os que encontraram a vida fácil estão bem longe de possuir essa força. Nas mãos da vida sábia tudo se resolve em construção e progresso. Quando a evolução não se realiza pela alegria de progredir, a vida a realiza com o chicote da dor, para que se cumpra, de qualquer forma, o progresso, que é o maior bem para o ser.

As atitudes que o indivíduo assume diante das dificuldades, variam para cada pessoa. Mas o ressentir-se diante da dor produz um efeito mais ou menos comum a todos, que é o de pôr a nu e revelar a verdadeira natureza do indivíduo. Ele é reconhecido pelo seu tipo de reação, porque parece que, colocado diante das mais profundas realidades da vida como a dor e a morte, o ser não sabe mais mentir. Ora, o que dirige a reação e lhe define a forma, é a natureza do biótipo. É lógico que a reação não pode criar um ser novo, mas apenas mostrar-nos quem é ele verdadeiramente, na hora em que se veja constrangido a usar todos os seus recursos, a qualquer custo. É lógico que o ponto de partida do novo passo adiante não pode ser dado, senão como valor e qualidade, a partir da posição precedente do ser. Teremos assim uma reação e um esforço proporcionados a essa posição. Assim, o biótipo inferior reagirá como inferior, o mais evoluído, como evoluído, do forma mais elevada. Assim, diante de uma dor desesperada, quem não possui nenhum recurso nem no bem, nem no mal, se abandonará nas tenazes da correnteza até à morte, aprendendo o pouco que pode da lição. Quem tem tendência á mentira e ao mal, reage com a traição e o crime, vingando-se do próximo e involuindo cada vez mais para baixo, porque é baixa a natureza do indivíduo. Quem é violento e não está habituado ao controle, pode reagir com o suicídio. Quem possui tendência para os gozos inferiores, reagirá com excessos e vícios procurando esquecer, naquelas efêmeras alegrias em que ele acredita, as próprias dores. Mas existem também os que reagem com a santidade, com o amor operante para o bem do próximo. Esta é a reação dos fortes e dos grandes.

As adversidades, a insatisfação da vida podem excitar diversas revoltas. Dessas reações é que nascerão muitos santos. Quantas vezes o santo é um rebelde que não quer adaptar-se a aceitar as condições do ambiente; é um revoltado que explode, criando, com sua revolução, novos conceitos de vida. Mas o grande valor de sua reação está justamente no fato de que ela é dirigida para o bem, no sentido construtivo: é uma revolta para subir, e não para descer. Eis o que pode ocorrer quando, no indivíduo, existe o estofo do ser superior. Mas se este não existe, não há dor, por mais desesperada, que possa improvisar esse tipo de homem. Se bastasse a dor para criar um santo, o mundo, que está cheio de dores, deveria estar cheio de santos. Vemos, ao contrário manifestarem-se reações bem diferentes.

A vida é um recipiente que, em si mesmo, vale pouco. Tudo depende do valor do conteúdo que lhe derramamos dentro. Podemos colocar dentro dela o que quisermos. Se pusermos coisas nobres e grandes, a vida se tornará um escrínio precioso. Se dentro lhe colocarmos podridão, tornar-se-á uma caixa de imundícies. A vida é uma estrada feita para caminhar, é um meio para atingir um objetivo. Se a fizermos fim de si mesma, se, por querer-nos conservar demais, não quisermos caminhar e renovar-nos, deteremos o movimento da vida e o mataremos. Então, tudo terá caminhado menos nós, e permaneceremos atrás. Então, teremos vivido no vazio, e poderão escrever em nosso túmulo: "tempo perdido".

A grandeza da vida consiste em fazer dela um meio para transformar o mal em bem, fazendo de um inimigo que nos atormenta, como é a dor, um mestre amigo que nos ensina; de uma condenação medrosa, uma escola para aprender. Ora, a vida está cheia de sofrimentos e insatisfações, aptas a provocar nossa reação. O segredo da sabedoria está no saber reagir. A solução do problema está na forma que nossa reação assumir. A vida nos espicaça com esses estimulantes, que esfolam a chaga e põem a nu a carne viva. A operação é dura, mas e para nosso bem, porque somente depois da raspagem e da limpeza com a podridão removida, a carne nova e sã crescendo, pode cicatrizar a chaga. Assim, diante da dor deveremos ter muito mais do que a simples paciência passiva e cega do burro chicoteado: devemos ter a inteligência iluminada e a bondade operante, de quem compreendeu o mecanismo da dor e quer tirar dela toda a vantagem possível, colaborando com a inteligência da vida, que no-la manda para nosso bem. O sistema usado por alguns, de revoltar-se contra a dor, sofrendo-o com a alma envenenada, não resolve o problema, não melhora, mas piora nossas condições. Quanto mais nos agitarmos com o nó do enforcado à garganta, mais esse nó se apertará. A posição de maior vantagem e de menor prejuízo em relação à dor, é a de aceitá-la, não passivamente, mas para pôr-nos a seu lado construtivamente, com ela colaborando para nosso benefício.