Exigências ideais e exigências práticas da Igreja. Na terra, ela venceu, ou foi vencida? O inferno, triunfo definitivo das potências do mal, e a lógica da salvação. O Comunismo, perigo externo. A justiça social, não realizada em dois mil anos, ponto vulnerável em que o inimigo ataca. O Maquiavelismo, perigo interno. Os dois padrões e as duas lógicas. Simbioses com o inimigo. Os perigos do jogo duplo. A gravidade da hora. Perder a batalha da terra, para vencer a do céu. A dura operação do salvamento forçoso.

Procuremos agora localizar mais exatamente o problema, para ver como a organização eclesiástica do catolicismo o enfrentou e resolveu, ou seja, como desenvolveu com a sua conduta o tema que este volume, continuando o precedente, vem tratando, como realizou e resolveu a Grande Batalha. Este choque entre evoluído e involuído, entre Evangelho e mundo, é fenômeno de alcance biológico, a quem ninguém pode escapar, tanto menos uma religião que se fundamenta no Evangelho e que se propõe implanta-lo no mundo.

Entremos num terreno controvertido; adequado a polêmicas e condenações. Já dissemos que se reconhece o biótipo do involuído por seu espírito de agressividade, ao passo que o evoluído, por seu instinto de compreensão e conciliação. Procuremos, pois, imitar o segundo. Então, o leitor que quiser ver esta obra enquadrada numa opinião ou num partido, ficará desiludido. Aqui não se combate nem se condena nenhum grupo humano em particular: prefere-se observar o que o homem costuma fazer. Verifica-se que tudo permanece o mesmo, pois o homem em geral faz as mesmas coisas em todos os grupos. É inútil, portanto, escandalizar-se do que se faz nas casas alheias, quando os mesmos homens fazem, em todas as casas, mais ou menos as mesmas coisas. Nem se justifica que se culpe uma instituição por ter feito no passado o que, na época, era tão normal que todos fizessem, exigindo-se que um grupo de homens tivesse atingido, isoladamente, um grau de evolução mais adiantado do que o atingido pela vida no planeta, o que é absurdo e impossível.

Para se lançar a pedra, seria necessário estar sem culpa. E quem pode pretendê-lo na terra? Aqui procuramos, pois, apenas observar os problemas por todos os lados, usando a inteligência, e isto para ver e compreender, mais do que para julgar e condenar. A satisfação de saber onde está o erro ou a razão, segundo o mundo — coisa difícil e sempre controvertida no relativo — deixamo-la ao leitor para que tenha a alegria de descobri-lo, conforme o seu gosto.

É fácil criticar, e são criticadas todas as formas de governo, inclusive no terreno religioso. Mas o que constitui a bondade de um governo é a bondade do homem ou dos homens que o compõem, e não a sua forma. Mas na terra faz-se muita questão da forma. De que serve, porém, usar uma ou outra, quando os homens continuam a fazer as mesmas coisas, apenas de forma diferente? Se o chefe fosse bom e inteligente, a melhor forma de governo seria o absoluto. Mas logo que o possa, parece que o homem tende imediatamente a transformar-se em tirano. Provam-no os sistemas representativos, em que se sentiu a necessidade de corrigir os possíveis abusos de um só, mediante o controle de muitos. Diz Gorer Geoffreey, em The Americans que: "a atitude americana para com a autoridade foi sempre a mesma: a autoridade é intrinsecamente má e perigosa, e quem ocupa posições de autoridade precisa ser submetido a um controle constante". A natureza humana é tal, que aquilo que deveria ser uma função para o bem coletivo, tende, para a coletividade, a transformar-se num perigo de que é necessário, pelo contrário, defendermo-nos.

Como pretender, num mundo assim, um comportamento de evoluídos? E no seio de uma humanidade em que predomina outro biótipo bem diferente, como esperar que possa surgir uma organização de santos, só porque são santos o fundador e o programa? Mas a perfeição para o homem é um estado a ser atingido no futuro, e não uma condição já atingida no passado. Toda a massa humana está sujeita ao mesmo processo de evolução, e a maioria está agrupada em redor de certo nível desta, do qual esta procurando lentamente subir para outro mais alto. Imensos e penosos movimentos biológicos que comprometem todos os aspectos da vida humana em nosso planeta. Dentro dessa massa enorme, só pouquíssimos indivíduos se diferenciam, rara exceção que não pode pesar nos movimentos da vida. Governantes e governados, juizes e julgados, senhores e servos, acusadores e acusados, todos pertencem mais ou menos ao mesmo grau de evolução que, para todos, se vai deslocando com o tempo. Dessa maneira, julgando os outros, nós julgamo-nos a nós mesmos, e condenando os erros e a ferocidade do passado, condenamos os nossos erros e nossa ferocidade no passado.

Em seus dois mil anos, a vida da Igreja seguiu, no mesmo passo de todas as outras instituições humanas, a evolução da vida, que é a grande estrada em que tudo caminha. A Igreja, como organismo terreno, acompanhou os tempos, aceitou o que eles ofereciam, e, na prática, permaneceu no plano humano, comportando-se como se comportavam os outros, no mesmo nível de evolução. Foi sempre o mesmo pensamento humano que, atravessada a civilização grega e romana, atravessa agora a civilização cristã, enriquecendo-se cada vez mais de elementos diversos. Esse pensamento, na Idade Média, foi preponderantemente cristão, mas agora não o é mais. Como se aquela forma mental tivesse esgotado a sua função, a mente do mundo pôs-se a pensar de outra maneira e, com a ciência, o pensamento humano caminhou para a frente por sua conta, deixando para trás a orientação cristã, que dantes estava na vanguarda. E se esta tiver que voltar, só será possível em outra forma totalmente diferente. Sem dúvida que, depois de séculos de positivismo científico e após os brilhantes resultados práticos atingidos, a fé, se tiver de voltar, só poderá fazê-lo com uma mentalidade que não será mais a do passado.

Tudo evolui e nem sequer as religiões podem parar. Assim o Cristianismo, emergindo do plano da força (religião mosaica do Deus rei dos exércitos, egoísta e vingativo) tornou-se religião da bondade. e do Amor (Evangelho universal), para tornar-se mais tarde a religião da inteligência e da liberdade (Cristianismo do futuro, em que os mistérios serão demonstrados, baseado não mais no medo das sanções, mas na livre adesão de quem compreendeu que a vantagem é obedecer).

Nestes dois mil anos o princípio da bondade e do Amor lutou para substituir-se ao princípio da força e o impulso da evolução procurou elevar o homem, do plano da lei mosaica ao plano mais elevado da lei do Evangelho. Essa forma religiosa foi apenas uma expressão do fenômeno da ascensão da vida. A luta entre as duas fases de evolução foi dura e, ao menos até agora, não se pode dizer de maneira alguma que o Evangelho tenha vencido. Isto não é um julgamento, muito menos uma condenação, mas somente uma comprovação de fato.

Dadas as condições do ambiente e um conjunto de fatos históricos, o Evangelho teve de permanecer, em grande parte, apenas como uma teoria. O primeiro impulso de Cristo teve de ser substituído, mediante adaptações sucessivas, por outro impulso totalmente humano, imposto pelas necessidades do contingente, pelo qual o princípio de autoridade e disciplina deteve a explosão do Amor evangélico. Por isso não foi possível a emersão imediata, e todos ficaram no nível de todos. Nas lutas entre os dois princípios opostos, a necessidade prática de julgar e condenar levou vantagem sobre a necessidade ideal. que era de compreender e perdoar.

Entrando numa ordem de idéias, não se pode mais sair dela, e sua concatenação lógica nos arrastará até ao fundo. Somos livres ao colocar as premissas, mas depois ficamos inexoravelmente ligados a elas. Assim, salvou-se a unidade e a integridade, mas estabeleceu-se uma insanável cisão entre bons e maus, entre julgadores e julgados, entre quem condena e quem é condenado. Recaímos no método humano, próprio das instituições terrenas baseadas na força, o método da lei que pune, que tende, pela autoridade, à  imposição e coação com sanções, embora, neste caso, espirituais. Isto se explica, sem dúvida, como dissemos, pela natureza do ambiente terreno e da psicologia dominante em nosso mundo Mas isto não impede que as conseqüências lógicas desse fato não devam ser suportadas até ao âmago.

Foi assim que a psicologia do plano humano, aquela que o Evangelho queria refazer, se aninhou no centro da Igreja. Foi aceita e como que fixada na instituição a figura do malvado; foi reconhecido o mal como potência rival que ameaça a de Deus. Assim, por instinto de conservação num estado de integridade e pureza, o preceito evangélico que tende à  aproximação do malvado para acabar em sua redenção e salvação, se inverteu num afastamento dele, para acabar na sua perdição eterna no inferno. Com o sistema do juiz e do castigo, uma classe social dominante poderá defender seus interesses e a sociedade afastar os elementos que a perturbam. Mas estamos sempre no plano humano da luta para a defesa da própria vida, luta entre juiz e julgado, na qual vence o mais forte. Isto não aproxima os dois termos, antes acentua as cisões e a inimizade. O sistema do juiz que condena está nos antípodas daquele que ama para remir. Assim o mal não é absorvido pela não-resistência, mas, ao eliminá-lo com o esmagamento, mais ele é excitado, reforçando a reação, induzindo a uma resposta adequada, no mesmo nível, no plano da força, com a rebeldia. Recaímos no sistema do mundo, no julgamento que divide e afasta, e não do Amor que aproxima e une. Ao invés de chegar à confraternização, o pecador é repelido pelos bons que deveriam ajudá-lo, e permanece um rejeitado. Eis que na luta entre Evangelho e mundo, venceu o mundo e o Evangelho falhou à sua finalidade.

Ficamos presos dentro de uma lógica desapiedada, que não nos permite saídas, detendo-nos no meio, mas que nos constrange a percorrê-la até o fim. E a conclusão é que, com o inferno e o paraíso, bons e maus se separam definitivamente, para sempre. Assim, a cisão triunfa, em lugar da união, e recebe sua eterna confirmação. Desta forma, Deus coloca a sua assinatura na sua falência. O poder do mal permanece de pé, para demonstrá-lo. Restará sempre uma parte do universo em que Deus foi derrotado, em que reina o Seu inimigo, em que venceu e impera o ódio, em lugar do Amor.

O inferno eterno representa a vitória dos métodos do mundo, baseados na punição, sobre os métodos do céu, baseados no Amor. Um castigo eterno que detém a evolução e exclui definitivamente a salvação, supremo fim do Evangelho; uma condição de imobilidade, num estado de dor, que não tem mais finalidade de bem, porque não educa mais, mas é só condenação pela condenação, inútil para a salvação; um Deus que celebra a Sua vitória final apoiando-se nessa inexorável condenação, e não no Amor que é Sua essência. Admitir tudo isto poderá explicar-se como uma temporária necessidade, para que uma instituição seja respeitada, e portanto pudesse ter sobrevivido até hoje no feroz ambiente terrestre; mas, se for admitido como verdade definitiva, isto significa que, na Igreja, deve vencer a lei do mundo e não a do Evangelho.

No inferno, o Amor morreu e foi para sempre sepultado. isto constitui a derrota do Evangelho e a falência do plano divino. Quanto mais gente entra no inferno, tanto mais a Igreja falha na sua finalidade, que é a salvação. Com tal sistema, essa instituição poderá ter vencido sua batalha terrena, sobrevivendo até hoje, mas perdeu sua batalha no céu, com as conseqüências inevitáveis. Isto porque, para resistir na terra, aceitou os princípios do mundo, pôs-se a lutar com os métodos deste, descendo até ao nível dele. Acabou, assim, achando-se desprovida daquelas armas do espírito que estudamos nos capítulos precedentes. E que vitória final pode esperar uma Igreja que reduzindo-se a contar com as normas humanas, não se apoia sobretudo no espírito, que é a sua alma?



Existe uma única solução, que oferece possibilidade de Salvação; uma solução que deveria ser escolhida por obra de inteligência, ou aceita espontaneamente das mãos da história, antes que esta seja constrangida a impô-la. Trata-se de fazer marcha-à-ré repudiando os métodos do mundo e seguindo plenamente os do Evangelho. Se a lógica daqueles leva à  perdição, só a lógica destes pode levar à  salvação. Embora o Evangelho ensinasse o contrário, isto é, a reabsorção do mal pelo bem, o que é árduo, preferiu-se, no passado, seguir o caminho mais fácil, que é o de livrar-se do mal, não o curando com a redenção, mas lançando-o todo fora, para dentro do inferno, revigorando-o, com uma sede e organização própria. Assim a infecção, ao invés de ser eliminada por reabsorção, constituiu um centro seu, donde lhe é possível guerrear. Caminho perigoso, porque depois a infecção poderá tornar-se epidêmica. Contra ela não mais se dispõe de armas no céu, porque foram escolhidas aquelas armas enganosas do mundo, e agora ficou-se preso dentro da lógica destas. Iniciado esse caminho, é necessário grande esforço para voltar atrás e depois tomar outro. Iniciado o método das condenações, só se pode insistir nelas, sem compreender-se que, quanto mais usadas são, mais perdem seu efeito. Quanto mais se é obrigado a condenar, tanto mais se dá prova de que a religião do Amor faliu.

Mas a evolução não pode deixar de impor o árduo esforço, necessário para a salvação, de se voltar ao Evangelho, ou seja, aos métodos do Amor e do céu ao invés dos métodos das condenações e da terra. O homem não pode deter o caminho do Evangelho. Se esse caminho de regresso a ele não for escolhido por obra de inteligência ou aceito espontaneamente das mãos da história, será ele imposto pelos próximos cataclismos sociais, encarregados de purificar o ambiente das escórias do passado. Reconhecer-se-á, que o fato de se ter seguido o caminho do mundo foi aceito apenas como condição transitória, imposta pelo grau de involução do elemento humano, com o qual era preciso trabalhar. Com sua forma mental o homem só teria respondido aos terrores do inferno, em que agora já ninguém crê e que não são úteis à evolução; devendo, portanto, ser abandonados como expediente psicológico superado. Assim, sem tumultos, o terrorismo todo medieval do inferno será alijado da vida que avança, e abandonado aos museus da história como coisa desnecessária  Desta forma, tudo fica explicado e justificado, e, sem condenar ninguém, não se detém a função civilizadora e o caminho do Evangelho, que é o que mais importa. Se a história permitiu alguns erros no passado, nenhum homem está isento de culpa, e a perfeição não pode ser atingida no início do caminho, mas apenas no fim. Se o homem não teve de imediato a força de usar os métodos do céu e preferiu os do mundo, não pode eximir-se de pagar as conseqüências; e depois de ter aprendido a lição à  própria custa, não pode deixar de colocar-se no caminho da salvação.

Desta maneira, com a bondade e o Amor, será sempre mais aliviado o peso da dor que, embora permanecendo, não será uma condenação eterna, como vingança e falência da obra de Deus, mas um instrumento bendito de redenção, uma escola transitória de evolução, para levar todos à  salvação. O inferno é fruto da psicologia terrorista de luta, ditada pela lei de bestialidade ainda vigente no mundo. Enquanto essa psicologia não for superada, e não se chegar a viver no plano mais alto do Amor, no choque entre céu e terra, entre Evangelho e mundo, será sempre o Evangelho o derrotado e o mundo o vencedor.

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A crise atual do mundo é uma crise profunda de todos os seus valores. O homem está saindo de sua menoridade, começa a raciocinar e pede aos chefes que o dirigem, que lhe prestem contas do que fazem, assim como se cobra aos professores que ensinam, a justificação de suas teorias. Não mais são possíveis as escapatórias do passado, nas quais o homem feroz, mas ingênuo, de ontem, acreditava; o homem moderno, aberto a todas as astúcias, não acredita mais. Muitas ilusões psicológicas caíram após serem analisadas; a crítica revelou o verdadeiro conteúdo dos produtos da explosão de nossos instintos. O mundo quer saber como são cozinhados os alimentos que lhe são oferecidos. O positivismo científico despiu a verdade de todos aqueles mantos barrocos extravagantes e nos fez tocar algo de sólido. É pouco, mas o progresso científico, é, já hoje, a única coisa em que a humanidade acredita seriamente. A conquista da energia movimentou tudo, até a estática conceptual de outrora se dinamizou. Prevalece hoje o conceito de uma verdade relativa em evolução, que é também uma transformação, o fruto de uma conquista progressiva. A pretensão do homem de atingir a verdade com os próprios meios, pelos resultados obtidos com as descobertas científicas, autorizou-o a desinteressar-se da verdade transcendente revelada, que, parece, já secou há séculos, não dando mais novos frutos. A vida, que não pode morrer, parece ter-se transferido para outra árvore. O homem tem fé em outras coisas. Quem se entrincheira no definido e no definitivo, permanece aí congelado e abandonado ao passado da vida que caminha lógica do imóvel absoluto foi substituída pela do relativismo em movimento. Na crise profunda que sacode e renova os alicerces do velho pensamento humano, não podem deixar de ser arrastadas também as religiões.

Nada resolve uns lançarem as culpas sobre os outros; apenas devemos procurar todos juntos a porta de saída para todos. É preciso ter a coragem de erguer-nos por nós mesmos, se não quisermos ser erguidos por força das leis da vida. É indispensável deixar as espertezas e acomodações e falar claro, com sinceridade e honestidade, reconhecendo onde se pode estar errado, para não continuar a errar e depois ter de pagar. Encobrindo, nada se salva, porque o erro continua a piorar, se escondido. Se continuarmos a pôr estuque e pintar a casa do lado de fora, para que apareça bela, enquanto por dentro está caindo, ela terminará ruindo sobre nós. Encontrar-se-ia talvez nessas condições a Igreja católica? Observemos o que está acontecendo, não para condenar, mas para achar um caminho de salvação.

Dois grande inimigos ameaçam hoje a Igreja: 1) O comunismo do lado de fora, que avança, agressivo, e contra o qual ela está em posição de defesa. 2) Um secular maquiavelismo do lado de dentro, e que constitui a sua fraqueza, representando aquela derrota do Evangelho e vitória do mundo, de que acima falamos. Deste modo, estão agora amadurecendo as conseqüências. Observamos os dois pontos, a começarmos pelo primeiro.

Quando a inteligência da história permite que as forças do mal tomem um desenvolvimento excepcionalmente agressivo, isto significa que a evolução  para poder avançar, precisa do seu trabalho de destruição para limpar o terreno de todas as construções velhas e erradas. Essas forças, especializadas nesse trabalho a serviço do bem, demonstram-se bem hábeis em descobrir o ponto fraco, o que mais atrai o seu instinto de destruição, assim como os micróbios das doenças agridem de preferência no ponto mais fraco os organismos macilentos. Seria preciso não ser fraco e não oferecer ao inimigo pontos vulneráveis. Estes representam o nosso débito, que temos de pagar, e as forças destrutivas se encarregam de nos cobrar.

Ora, o comunismo descobriu qual é o calcanhar de Aquiles da Igreja, isto é, que ela pactuou com o mundo, colocando-se no nível deste, deixando escapar de suas mãos o poder das armas espirituais. Da parte dos agressores é sentida, mesmo sem compreendê-la, essa fraqueza, e eles querem aproveitar. O programa do Evangelho não era o da justiça social? E que se fez em dois mil anos para consegui-la? Foi preciso que a revolução francesa interviesse, para corrigir os abusos a que se chegara, justamente na direção oposta, fruto da aliança do clero com a aristocracia. Por que, com esse sistema, deixar escapar um grande programa, que deveria ter permanecido, para ser aplicado? Dessa forma, ele caiu em outras mãos, nas de quem teoricamente, pelo menos, o professa, e com isto faz prosélitos, utilizando-o como ideologia de propaganda. Assim um dos pontos fundamentais do programa de Amor e justiça do Evangelho volta agora, em forma invertida, como uma espécie de reação punitiva, para o lugar de onde deveria ter partido, e volta para destruir aquele órgão que deu provas de ter sido muito fraco e de não ter sabido executar a sua função. O que não foi feito espontaneamente por si mesmo, é agora imposto à força pelos outros.

Se a Igreja não tivesse pactuado com o mundo e não tivesse aceito o seu poder terreno, hoje o comunismo nada teria de dizer nem para atacar, porque a justiça social já teria sido realizada. Aceitar as ofertas do mundo e possuir o seu poder, pode parecer uma vantagem. Mas quem assim procede envolve?se com o sistema relativo de que mais tarde precisará fatalmente suportar a lógica e as conseqüências até ao fundo, como vimos. E é isto justamente que está acontecendo hoje. Descobrir e acusar os defeitos do inimigo, lançar-lhe em cima as culpas que ele tem não nos liberta das nossas culpas nem da necessidade de pagá-las. Cada um assume a própria responsabilidade.

Será que um católico, que se defende do comunismo, jamais pensou no que tenha feito a Igreja em dois mil anos para impedir que ele nascesse? E em vez de reclamar e condenar, não pensa que para vencer o comunismo, o verdadeiro modo de combatê-lo, seria já ter realizado o seu programa, ou pelo menos arrancá-lo às mãos comunistas para realizá-lo em seguida? Para vencer um inimigo na parte errada, é preciso não ser vulnerável na parte em que ele tem razão, a fim de não oferecer o flanco às suas acusações. Para repreender as culpas dos outros, é preciso não as possuir no mesmo terreno. Para poder pregar um dever, seria preciso primeiro cumpri-lo. Como se pode lançar a pedra, quando não se está sem pecado? Ter-se-ia o direito de condenar, desde que já se tivesse feito alguma coisa para realizar a justiça social. Condenam-se os métodos de violência que constituem a culpa da parte oposta, enquanto se poderia responder que a história, para atingir um estado de mais justa distribuição econômica, teve de confiar aos elementos piores, para que o executassem com a força, aquele mesmo programa que era destinado aos elementos melhores, e que deveria ter sido executado com a bondade, por força do amor.

Assim ambas as partes lutam no mesmo plano humano, como seres do mesmo tipo e plano biológico, cada um acusando e condenando as culpas do outro, em vez de procurar libertar-se das próprias. O método é igual: procurar mostrar os erros alheios e esconder os próprios. Mas qual a verdadeira razão de a Igreja tão energicamente combater o comunismo? Será por que — conforme diz — este é irreligioso e ateu, por que insincero e violento, ou por que ele é anticapitalista? E de outro lado, se o comunismo assalta a Igreja, fá-lo porque ela é espiritual e crente, idealista e pacífica; ou por que, com o pretexto da justiça social e do anticapitalismo, quer apossar-se de seus capitais? No caso do choque entre comunismo e democracia, parece, e até mesmo se afirma, que se trata de um choque de ideologias. Mas como nos achamos diante do mesmo tipo humano, é muito mais verossímil que o verdadeiro móvel de todos seja o interesse, a avidez, o espírito de domínio, o desejo de poder. Não agem todos da mesma forma? Cada um não se coloca do lado do ideal e da justiça, naturalmente para condenar em seu nome todos os outros? O mesmo tipo de homem não faz em todos os lugares, com os mesmos métodos, o mesmo jogo? Em vez de exigirem primeiro, de si mesmos, o cumprimento dos próprios deveres, acusam os outros de não cumprirem os deles; exige-se deles a realização, alegando o direito próprio de lhes impor a execução. A verdade é que todos vivem imersos no mesmo plano da luta, da força e da astúcia, à caça dos bens e poderes materiais, que constituem o único ideal em que o mundo hoje efetivamente dá provas de acreditar.


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Observemos, agora, o segundo ponto. Se o comunismo representa o inimigo exterior, ameaça a Igreja outro inimigo, ainda mais temível, porque interno: o maquiavelismo. Já procuramos explicar fatos cuja existência não se pode negar. Procuremos agora explicar outros fatos.

Já falamos do maquiavelismo no cap. II do nosso volume Problemas Atuais, fazendo a crítica desse método. Vejamos agora a posição da Igreja a esse respeito. É neste ponto que vemos chegar até suas últimas conseqüências práticas o nítido antagonismo colocado pelo Evangelho, entre ele mesmo e o mundo. Trata-se de dois inimigos irredutíveis, entre os quais não é possível pactuar: "Ninguém pode servir a dois senhores; ou amará um e odiará o outro; ou se afeiçoará a este e desprezará aquele. Não podeis servir a Deus e a Mamon". O pensamento é bastante explícito, para que se possa torcê-lo e achar escapatórias.

A Igreja não podia deixar de encontrar-se diante da necessidade de resolver esse quesito, que pertence a todos, o que nós mesmos fizemos neste volume, e no de A Grande Batalha. Se quisermos realmente viver o Evangelho, temos de depor as nossas armas terrenas e, cumprindo todo o nosso dever, deixar que Deus nos defenda com a Sua Providência. Nosso dever não deve basear-se na força nem na astúcia, mas na justiça e no fato de haver merecido, por ter obedecido à  lei de Deus, a Sua ajuda e proteção. O mundo admite apenas os próprios meios, únicos nos quais acredita. Maquiavel leva até às suas últimas e mais sutis conseqüências esse método. O cristão, que segue o Evangelho, deveria colocar-se nos antípodas e seguir o método oposto: "Procurai sobretudo o reino de Deus e Sua justiça, e todo o resto vos será dado por acréscimo". A conclusão a que não se pode fugir, é que a Igreja e o cristão, se quiserem ser coerentes, observando os princípios fundamentais de seu código, devem ser irredutivelmente antimaquiavélicos, afastando de si, como diabólico, um método de vida que representa a quintessência destilada da patifaria do mundo.

Se perguntarmos a qualquer cristão que professe o Evangelho, o que acha mais seguro, se ter merecimento da parte de Deus, ou ter dinheiro no banco e possuir bens, poderemos estar certos de que, mesmo que nas palavras proteste o contrário, nos fatos dará prova de que sua fé e confiança são todas baseadas nos bens e não nos méritos. Se o mundo fosse sincero deveria dizer: este é o meu método, e por isso o sigo. Então a separação seria nítida e visível. Mas o maquiavelismo louva, com palavras, o sistema evangélico, para seguir, nos fatos, sem declará-lo, o sistema do mundo. E é assim que, com o maquiavelismo, o método do mundo consegue, sob falsas aparências, escorregar dentro do campo oposto, que, pouco a pouco, por pequenas e gradativas concessões, se acha, quase sem percebê-lo, — engodado pelas vantagens imediatas, e justificando-as pela sua finalidade de bem, — adotando o método do inimigo. Foi dessa forma que o maquiavelismo pôde entrar na Igreja.

Esta não tardou a compreender a inconciabilidade entre maquiavelismo e cristianismo; mas depois teve de condená-lo, proclamando-se antimaquiavélica, e talvez o fosse, por uma necessidade de purificação imposta pela reforma protestante. Mas nem por isso a infiltração do maquiavelismo cessou. Oferecia ele a grande vantagem tangível, imediata, de resolver — ao menos aparentemente — o penoso conflito entre o Evangelho, código que a Igreja devia seguir e o mundo, em que no entanto ela tinha de viver. Embora não incentivado pelo Evangelho, tratava-se de um modo prático e astuto, de resolver o difícil problema. Através de um compromisso, chegava-se à paz que permitia uma convivência tranqüila. Escolhia-se o caminho do menor esforço, já que era mais difícil resolver o caso com a vitória de um dos inimigos. Fazer o mundo vencer abertamente, seria colocar-se em contradição flagrante com os próprios princípios. Fazer vencer o espírito requeria esforço impossível e inatingíveis qualidades de santos. Assim, ao contrário, cada um dos dois inimigos cedia um pequeno espaço ao outro e se conseguia viver ao lado do Evangelho e neste mundo, duas necessidades imprescindíveis. Desta forma podia-se acreditar até que se domesticara um pouco o mundo, para glória de Deus. Diante dessas concessões, a consciência sentia-se justificada, pela finalidade do bem que assim parecia poder conseguir-se. E a infiltração continua escudada na teoria do fim que justifica os meios.

Chegamos deste modo ao seguinte impasse: para atingir os supremos objetivos do espírito, a Igreja usa os métodos do mundo; possui, e se torna Estado e potência política, econômica, bélica, chega a fazer guerras e a abençoar as armas, a instituir tribunais, a construir para si um direito canônico próprio e a executar legítimas condenações a morte (fogueira). É lícito então perguntar-se: por onde se perdeu o Evangelho? Estaremos diante de uma contradição necessária que trará bons frutos? Teremos sabido achar, na acomodação, uma nova virtude mais sutil, que o céu não pode aprovar? Ou trata-se verdadeiramente de uma traição ao Evangelho, enganado e emborcado pelo inimigo que, com a mais diabólica das astúcias, se sentou na Igreja para comandar como senhor? Essa acomodação que permite a convivência, não será uma derrota, ao invés de uma vitória? Não terá acontecido uma espécie de simbiose, como aquela a que se reduz um organismo que se adapta a suportar a vida dos micróbios, fortes demais para que ele consiga expulsá-los, e que assim se fixam dentro dele, gerando a doença crônica? O maquiavelismo não se terá tornado a secular doença crônica da Igreja?

Começando esse caminho, é fácil escorregar até ao fundo. E "fundo" significa que o micróbio, no fim, mata o doente, ou seja, que o mundo vence o Evangelho. Perigo mortal, portanto. Talvez os primeiros que se encaminharam nessa direção não tivessem compreendido aonde se poderia chegar. Mas repetimos: quando se entra na lógica de um sistema, fica-se preso a ele ate ao fundo. Sem dúvida não se poderia pretender que os homens, formadores da Igreja nos séculos passados, fossem tão clarividentes que previssem conseqüências tão distantes, nem mesmo que fossem santos, capazes do heroísmo necessário para viver o Evangelho. Mas permanece o fato: as conseqüências são inevitáveis; preparam-se grandes choques dolorosos mas purificadores; e não é nesta sua forma atual que a Igreja poderá sobreviver. O problema atual não é buscar culpados para condenar, mas salvar o que pode ser salvo. Se no fim conseguirem fazer marcha-à-ré com o regresso ao Evangelho, então tratar-se-á apenas de um parênteses de adaptação, talvez necessário ao longo do caminho ascensional do Evangelho, e a enfermidade será curada.

Com o princípio de que o fim justifica os meios, pode chegar-se ao uso da violência para estabelecer a paz, da astúcia para defender a verdade, dos expedientes humanos para fazer descer à terra o divino. Podemos assim medir todas as gradações do progressivo emborcamento do Evangelho nos métodos do mundo. É um lento e inadvertido corromper-se, mas que só pode acabar revelando-se numa crise. A contaminação é sutil; o mal permanece sempre escondido como indevassável vírus no fundo dos tecidos orgânicos; não se sabe até que ponto se cedeu e até que ponto se resistiu; não se sabe onde se está doente e onde se está são; se somos maquiavélicos ou antimaquiavélicos, tanto mais que uma das normas do maquiavelismo é a de não parecer seguidores dessa escola e de declarar-se antimaquiavélicos. Assim se passa da tolerância à acomodação, depois à astúcia, a seguir à mentira e, uma vez aceito o método de lançar as redes, nelas mesmas se fica preso. Não se sabe mais se o mal que se pratica é ou não uma vitória do bem; se é justo ou não favorecer injustiças necessárias, perdidas no particular e justificadas pela vitória de uma justiça maior.

O fato é que tanto o Evangelho, como o mundo, tem cada um a sua lógica. São tão opostas, que resultam inconciliáveis. Quem tentar fundir as duas lógicas, achar-se-á como quem quisesse colocar-se entre dois campos inimigos, recebendo os golpes dos dois lados, sem possuir, para defesa própria nem as armas de um lado nem as do outro. O Evangelho explicou bem claramente que não se pode servir a dois senhores. O que quer dizer que é preciso decidir-se, na escolha, entre as duas lógicas, rumando por um caminho certo para segui-lo até o fim. Parar no meio do caminho, procurar a solução nas escapatórias por atalhos e estradas laterais, engolfar-se na via das sutilezas e das discriminações, abandonando a estrada reta, tudo isto acaba lançando-nos no caos em que, a força de querer distinguir sutilmente entre honesto e desonesto, uma só coisa se sabe com segurança: que não se é de maneira nenhuma honesto. Chega-se, então, a uma moral em que, à força de destilações filosóficas, se pode ir aonde se quiser, e a lógica férrea de um sistema reduz-se a uma opinião, sobre a qual sempre pode discutir-se Eis que o mutável e o relativo do mundo assumem a supremacia sobre aquela que se proclama verdade revelada, absoluta.

Os caminhos do mundo são traidores, porque engodam oferecendo vantagens imediatas, mas depois nos fazem pagar, porque nos levam por uma estrada escorregadia, cheia de armadilhas. Assim, consegue?se mentir acreditando que não se mente; consegue-se imaginar que se está fazendo o bem, enquanto fazemos o mal. Mas o veneno sutil e doce não pode deixar de produzir os seus efeitos. No fim nós mesmos ficamos fragmentados entre um antimaquiavelismo professado e um maquiavelismo praticado, posição ambígua, em que não mais sabemos o que somos; e para poder usufruir das armas dos dois sistemas opostos acabamos como dizíamos acima, não tendo à nossa disposição nem as armas de um nem as do outro. A astúcia do jogo duplo é a mais perigosa e enganadora das astúcias. E de tal forma complica a defesa que, a certo ponto, se torna impossível. Nascem então uma moral e uma conduta divididas do dualismo entre o que se pode, e o que não se pode declarar; entre as normas de domínio público e as secretas; entre o explícito e o implícito. Uma discussão franca, visando ao entendimento torna-se impossível, pelo fato de que uma parte da verdade será sempre calada e subentendida.

Nessa psicologia mergulhou particularmente a Companhia de Jesus, tanto que, na linguagem comum, costuma dar-se à palavra jesuíta o sentido de maquiavélico. Tendência da Igreja, a mundanizar-se e tornar-se política, sempre com a finalidade do bem. Não uma posição nítida do limite entre lícito e ilícito, de acordo com uma lógica única, mas a oscilação do limite segundo os casos, sobrepondo-se à  retilínea lógica do Evangelho, a contorcida lógica do mundo, sem compreender que assim não se chega a um acordo, mas à  contradição. Acaba-se em luta consigo mesmo, o que constitui a maior fraqueza. Fraqueza perigosa porque situada nos alicerces do edifício, ameaçando fazê-lo ruir; fraqueza no ponto mais vital do organismo que, por isso, adoece; fraqueza na coluna central da Igreja, que é a fé em Deus e no poder do espírito. Então o navio perde o leme, e o exército as armas, e a Igreja fica à  deriva das forças da matéria e do mundo.

O verdadeiro cristão aceita uma única lógica: a do Evangelho. Não sobrepõe uma lógica à outra, para delas fazer um composto híbrido; não desconjunta a solidez de um processo lógico, que significa, na prática, solidez no desenvolvimento de forças em que adquirem forma as proposições desse processo. A Igreja colocou-se nesse encaixe e assim oferece o flanco vulnerável. E agora correm, para golpeá-la nesse ponto, os infiéis sem Deus, e essa vulnerabilidade facilita-lhes a vitória. Não estamos condenando, repetimos, pois isto não adianta a ninguém. Estamos olhando o temporal que se aproxima, como conclusão fatal das premissas que foram colocadas voluntariamente. A borrasca dá-nos, infelizmente, a prova de que estas considerações são verdadeiras. Que fará a Igreja diante do comunismo? Deus a salvará? De que forma? Que ficará dela após o cataclismo? Esses problemas estão nas mãos de Deus.

Como poderá uma Igreja, que já se colocou no terreno econômico-político de todos, deixar de usar as armas deste plano humano, e, quanto mais forte for o ataque, deixar de insistir nelas cada vez mais? Mas são elas justamente o seu maior perigo, que a impede de salvar-se! E como pretender que uma avalanche que está rolando desde séculos possa deter-se repentinamente, para fazer marcha-à-ré? Poder-se-á justificar tudo como uma necessidade de legítima defesa. Ao maquiavelismo jamais faltam razões para legitimar suas obras. Assim o mundo com seus métodos se assenhoreará sempre mais da fortaleza do espírito, até chegar à  meta cobiçada, que é desmantelá-la por meio do inimigo interno, justamente quando o externo, o comunismo, estiver lançando o ataque.

O momento é gravíssimo, porque a Igreja tem de lutar contra dois inimigos, o interno e o externo. O primeiro é produzido pelo fato de que ela funciona, há séculos, maquiavelicamente, e agora, como conseqüência, pôr-se a lutar contra o comunismo no mesmo plano humano dele. Isto significa não permanecer no plano espiritual, acima dos combates, mas ficar, como coisa humana, mergulhada dentro da luta humana. Então surge, para defender-se e não ficar inferior em armas, a necessidade de aceitar e usar sem outros escrúpulos, todas as armas do mundo, já que agora é difícil demais voltar atrás. Mas se é justamente esse caso que leva à derrota, como impedi-la? Se é muito difícil de um só golpe renovar um hábito, para achar a lógica da fé, pura, absoluta, sem os compromissos do maquiavelismo, se o organismo do enfermo não pode suportar o remédio, como se poderá curá-lo?

E no entanto, as duas lógicas antitéticas continuam a corroer-se mutuamente. A lógica da fé gostaria de matar a do mundo, e a do mundo destruir a da fé. Só no primeiro caso, mesmo à custa de perseguições, de espoliações e destruição de toda a superestrutura terrena, é que a Igreja poderá vencer, da única maneira possível: fortalecendo pelo poder espiritual, o que lhe compete, e reentrando num terreno que é seu, e no qual ninguém pode vencê-la. Assim a Igreja poderá perder a batalha na terra, mas a vencerá no céu, o que reforçará a sua missão na terra. Mas, se para vencer a batalha na terra, chegar a perdê-la no céu, a Igreja a perderá em ambas as frentes porque, numa, traiu a sua missão, e no plano humano será liquidada como é de justiça fazer-se com os fracos e vencidos. Esta é a força lógica das coisas, e não há poder humano que permita sair disso. Portanto, um método único existe, com o qual pode a Igreja combater e vencer a atual batalha, e já vimos qual é.

Mas, no fundo, se olharmos o que aconteceu no passado, o que acontece agora e o que deverá acontecer, só podemos admirar a sabedoria de Deus que tudo dirige e salva, utilizando os elementos que se acham disponíveis no mundo. Assim tudo se explica a seu tempo e no devido lugar. A imperfeição humana escapam erros e a história traz-lhes remédios, impondo o necessário corretivo, executando a dolorosa operação salvadora.

Bem ou mal, a Igreja conseguiu chegar até hoje, através do tempestuoso oceano da Idade Média. Para chegar a isto, interessou-se antes de tudo em salvar-se como instituição e como unidade, exigindo para isso disciplina e obediência como autoridade, mais do que cuidando do aprofundamento dos princípios, da solução dos problemas do conhecimento, da evolução do pensamento e das consciências. Achou assim que talvez fosse melhor não tocar na casa de marimbondos de problemas tão espinhosos, difíceis, sempre controvertidos, de solução própria, inatingível, enquanto permanecia mais acessível e agradável ao povo a faustosa encenação do rito, da arte, da suntuosidade dos grandes templos. Desta forma, as massas, mais satisfeitas, aderiam com maior facilidade. Mas também a exterioridade e a forma, qualidades do mundo, venceram, substituindo-se à  interioridade e à substância, e a Igreja se foi esvaziando de seu mais precioso conteúdo que é o espiritual. No barroco, encontrou o seu estilo e o aceita, sem ao menos suspeitar o verdadeiro significado dele, que é o de ser a mais ofensiva expressão  da vitória da exterioridade mundana e do vazio interior. Com o barroco fixou-se na Igreja e ainda aí permanece: o teatral e o fantástico em vez do simples, o confuso em vez da sinceridade, o artifício no lugar da verdade, a ficção em vez do superamento, no espírito a materialidade da vida dos sentidos. Estilo que exprime uma época e sua forma mental. Assim, a arte religiosa torna-se humanamente esplêndida, pagãmente grandiosa e espetacular, em vez de humilde e crente. E tudo isso ocorre com tanta convicção, que nem sequer se percebe a contradição, e surge vontade de perguntar: mas será que a Igreja percebeu o desgarramento, pelo qual a fé se tornou uma exterioridade? De tal forma o mundo venceu o espírito, que ninguém mais vê que tudo está extraviado, e, mesmo fora, estão persuadidos de continuar no caminho certo e que esta é uma ótima expressão do pensamento do catolicismo. Dessa maneira, a psicologia do mundo e do paganismo entra nas igrejas e aí fica, funde-se com a religião e adormece o espírito, envolvendo-o na magnificência de seus planejamentos.

Assim foi a Igreja navegando pelo mar do tempo. Sacudida pelo assalto da reforma, organizou a contra-reforma, levada por um só instinto: sobreviver de qualquer modo. O trabalho mais urgente e a maior preocupação foram as de salvar a instituição, mais do que a fé, e a de salvar a fé que se tornou instrumento para salvar a instituição. Ocorreu então que o meio terreno se tornou meta, e a meta celeste se tornou meio.

Dessa inversão derivou um fato grave: a Igreja teve de assumir uma posição negativa, de defesa —que ainda mantém — colocando-se assim numa posição de grande desvantagem, pois é um fato que a posição positiva pertence hoje ao inimigo que passou ao ataque. Como se explica isto? Tudo é lógico. A Igreja pode ser afirmativa apenas em seu terreno, ou seja, no espírito. Tornando-se potência terrena, desviou o seu centro vital para o lado oposto, do mundo, que ela assim reconheceu e aceitou; transplantou-se para o campo do inimigo, colocando-se assim no rol das coisas humanas. Se com isto conseguiu a vantagem imediata de tornar-se presente e afirmativa naquele plano de vida, que não é o seu, isto a tornou ausente e negativa no plano próprio, o do espírito. Enquanto a Igreja julgava conquistar novos poderes, este fato a privava de sua força maior, porque a reduziu ao nível das instituições terrenas, que desta maneira a podem tratar de igual para igual, como potência do mundo, nada mais. Pode ter parecido uma astúcia vantajosa, a de querer colocar-se também nesse outro terreno, o do mundo; mas no fim, tudo se reduziu a uma traição, e desse lado nada mais se podia esperar, como bem avisa o Evangelho. Essa posição negativa significa o esvaziamento espiritual da Igreja, o que quer dizer perda de seus maiores poderes, isto é, achar-se em posição de fraqueza e vulnerabilidade, justamente na luta em que se procurava vencer. A troca foi muito desvantajosa: de um organismo espiritual superior reduzir-se a uma instituição humana; assumir uma posição terrena, que não é a sua, e portanto de inferioridade, enquanto a posição da Igreja, como espiritual, deveria ser de superioridade diante de qualquer organização humana. Saindo do terreno próprio, e transportando-se ao do mundo, aceitando as armas do inimigo, a Igreja iludiu-se, acreditando poder afirmar-se melhor com isto. Por haver renunciado, porém, à própria superioridade espiritual e às armas do espírito em que residia toda a sua força, desceu ao nível das coisas terrenas, perdendo aquelas armas, e ficando com outras que não são as suas, que não pode usar, numa luta desigual com quem as possui como próprias, e as pode usar e com elas sabe tornar-se bastante forte. Podemos assim explicar-nos tudo, ou seja, como a Igreja se enfraqueceu tanto hoje, pelo menos como potência espiritual; como, diante do inimigo que se movimenta para o ataque, ela se acha em posição negativa, em atitude de defesa, que, pode, a cada momento — como num exército que não esteja bem armado — transformar-se numa fuga.
Mas, conforme dissemos, não pode pretender-se que os homens sejam todos gênios que saibam prever a séculos de distancia, nem que sejam todos heróis, querendo escolher para si mesmos os caminhos mais árduos e difíceis. Mas, então, por isso se deteria o progresso e se concederia à insipiência humana tanto poder, que paralisasse a evolução da vida? E então, como resolver o problema? Quando a imperfeição humana chega a comprometer o fatal desenvolvimento dos planos da história, então entra em jogo a inteligência desta que, com acontecimentos apropriados, constrange a passar pela estrada estreita e espinhosa, aquela que o comodismo nos fez antes evitar, mas que é necessário percorrer para chegar à  salvação. Então, Deus abre as portas do inferno, de modo que todos os diabos desencadeados saiam para agredir a quem errou; em outros termos, deixa livres, para explodir, as forças do mal, que se tornam instrumento da justiça divina, para que se realize a operação cirúrgica de limpeza e cura. O mal funciona a serviço do bem, e chegam destruição e dor para recolocar-nos na posição devida, fazendo triunfar o espirito. Assim, aqueles diabos desencadeados e cegos trabalham intensamente para que Cristo triunfe. A salvação que poderia ter sido feita por obra de inteligência e boa-vontade, e que não foi feita, agora se faz pela força. Trata-se apenas de um caminho mais doloroso e mais longo. Mas o objetivo é alcançado do mesmo modo. Ninguém pode deter a história e o progresso. Mesmo o que o homem possa fazer todas as coisas, não obstante tudo continua a funcionar perfeitamente na perfeição de Deus.