Da doutrina da reencarnação já nos ocupamos no livro Problemas Atuais. Restringir-nos-emos a vê-lo aqui apenas sob alguns aspectos. A seu favor há o fato de que nela crê uma boa parte da humanidade, e que tal teoria permite enquadrar e resolver muitos problemas sobre significados e finalidades da vida, de outra forma insolúveis.

Muitos temem que tudo isso não seja compatível com a ortodoxia cristã. Cristo não negou tal doutrina, tratou-a como coisa óbvia, sobre a qual não era necessário insistir. A igreja primitiva aceitou-a até o Concílio de Constantinopla, em 553 d.C. Repeliu-a depois por três votos contra dois. Orígenes, Santo Agostinho, S. Francisco de Assis a aceitaram. Para citar apenas alguns outros, sabemos que nela creram Pitágoras, Platão, Sêneca, Cícero, Goethe, Schopenhauer etc. O consenso de tais mentes não pode deixar de constituir um testemunho de verdade para tal doutrina. Nós a aceitamos plenamente, porque é a única que pode justificar, pelos argumentos da lógica, a justiça e a bondade de Deus, justificação que, de outro modo, não se conseguiria encontrar na sua criação tão cheia de males e de dores. Considerando-se o princípio evolucionista de retorno de tudo a Deus, a reencarnação se torna um fato indispensável, a fim de que essa subida se possa realizar. O próprio cristianismo é todo baseado nessa ascensão do espírito, e não se compreende como se possa realizá-la sem um longo tirocínio, que permita repelir e, desse modo, corrigir as experiências enganosas, fazendo das vidas repetidas uma escada de degraus sucessivos. É incompreensível que somente com rápido exame de uma única vida possa ser inapelavelmente, definitivamente julgado um ser que nasceu ignorante, e inocente. Não se compreende por que as mãos perfeitas de Deus originem o nascimento de seres tão imperfeitos.

Mas então por que o Cristianismo repeliu essa doutrina? A maioria que a refutou não foi muito forte: apenas três contra dois. A provável razão foi que muitas verdades não podem ser ditas e isso por motivos práticos. Somente excluindo a reencarnação, a Igreja poderá deter nas próprias mãos o monopólio absoluto e definitivo da outra vida, o poder de decidir para sempre sobre a sorte da alma. As massas ignorantes estão sempre prontas a fazer mau uso mesmo das melhores doutrinas e das maiores verdades, que, consequentemente devem ser-lhes sonegados. Assim, um problema de fundamental importância, como a reencarnação foi posto de lado, deixando lugar a problemas sem importância, mas que encontraram ressonância nos instintos do inconsciente coletivo, pronto a interessar-se e aderir a semelhantes temas. Referimo-nos a problemas de fundo sexual, como o da virgindade da mãe de Cristo. É que até mesmo as coisas de Deus são elaboradas na Terra pelo homem. Ele as faz a seu modo, segundo os seus instintos, seu uso e consumo. Não se pode, portanto, condenar a Igreja, porque ela não pode ser diferente do elemento humano que a compõe.

No caso da teoria da reencarnação, que interesse podia ter a Igreja de entrar em tal assunto, quando era mais fácil obter um consenso geral com a teoria da vida única que, embora absurda, permite satisfazer o humano instinto utilitário da máxima vantagem com o mínimo esforço? É mais cômodo acreditar que apenas com uma vida, que é um átimo, se asseguraria o direito a uma felicidade eterna. É verdade que com tal sistema se corre o risco de garantir um inferno eterno, mas isso faz parte do jogo em que o astuto se crê hábil, sabendo evadir-se de pena com intempestivos arrependimentos. Assim se explica como se omitiu a doutrina da reencarnação. Hoje, com a psicanálise, é fácil descobrir que ela é a íntima razão de tantos atos nossos.

Dissemos que uma das razões pelas quais a Igreja fez calar a espinhosa questão da reencarnação foi a de que certas verdades não se podem dizer pelo mau uso que as massas ignorantes estão prontas a fazer, mesmo das melhores doutrinas. O ponto que ora queremos localizar, para entender a conduta da Igreja, é, justamente o mau uso da teoria da reencarnação ou do Carma.

A realidade da vida, escondida atrás das mais belas e santas doutrinas, é que na Terra não vigora um regime de justiça, mas de egoísmo e rivalidade. É por isso que a visão do sofrimento do próximo, em lugar de provocar um sentimento de piedade e induzir a ajudar, desperta o instinto de luta que leva a ver em que sofre um vencido e, com isso, um inimigo a menos, o que é já uma vitória, porque, cada vida alheia suprimida significa maior espaço para a própria vida. Entretanto o homem sente a vergonha desses baixos instintos que o reaproximam do animal. Por isso quer recobri-los com justificativas morais, que o autorizam a manifestá-los sem os descobrir.

Diante daquele que sofre, comparece não o irmão que ajuda, mas o juiz que julga, dando uma explicação lógica para aquele fato pela teoria do Karma, justificando aquela dor e pondo em paz sua consciência. A posição atual não é efeito de causas situadas no passado? Basta então imaginar causas que correspondem a tal efeito, de que é conseqüência, e o caso está resolvido. A justiça é perfeita. A Lei automaticamente corrige com aqueles sofrimentos os erros passados. A culpa é de quem sofre. Chega-se a tal conclusão tirada de altos princípios, porque ela convém a lógica dos mais baixos instintos de luta pela sobrevivência, que  o fraco vencido deve ser eliminado.

É instinto humano pôr-se do lado do juiz que condena e não do pecador que deve pagar. Quando se encontra o sofredor – e o mundo está repleto deles – é-lhe explicado que sua dor se deve às culpas do passado. Com este juízo de culpa dos outros, satisfaz-se o próprio senso de justiça às expensas do próximo, livres do dano que cabe inteiramente ao pecador. O mesmo não ocorre quando se invertem os papeis: a pena é nossa e o próximo é o juiz que, em nome da justiça (já que o dano pertence somente a nós), nos faz notar a lógica de nosso débito. Compreende–se então a diferença entre tornar-se juiz às custas alheias e suportar quem se faz juiz às nossas custas. A luta pela vida faz com que cada um descubra a culpa no outro a fim de poder erigir-se comodamente em juiz e superá-lo, ao passo que se escondem as nossas culpas para não sermos condenados pelo mesmo sistema e pelas mesmas razões.

É esse o uso que se faz da teoria do Carma. Com isso não criticamos a teoria mas sim o mau uso que dela se pode fazer. A presença das culpas cometidas nas existências precedentes e funcionando como causa determinante dos efeitos de agora, não é matéria suscetível de observação positivamente controlável. Trata-se antes de uma suposição que, embora racional e válida como princípio geral, é muita incerta no caso particular. Conhecemos apenas uma parte do fenômeno, a fase do efeito, através da qual procuramos deduzir a fase oposta e desconhecida da causa, derivando-a por correspondência ao efeito. A culpa-causa é, pois, apenas dedução nossa. Não sabemos exatamente qual é, onde, quando, e como foi cometida. Nada de seguro como base. Ninguém pode garantir que os seus juízos correspondam a verdades. O certo é que, valendo-se de uma lógica suposição de culpa baseada na lei do Karma, se pode condenar o próximo e desse modo agravar injustamente a sua pena, aproveitando-se de seus sofrimentos para acusá-lo. Uma teoria de justiça não se pode servir-nos de instrumentos para cometermos um ato de injustiça. Mas, de qualquer modo, a culpa não é, certamente, da teoria do Carma.

Mas o caso não está encerrado. Que novos efeitos produzirá essa intervenção de novas forças inseridas no fenômeno, funcionando como novas causas, que operam no terreno dos efeitos já em ação? Ora, quem condena se inculpa. O mundo é feito de pecadores e ninguém tem o direito de jogar a primeira pedra. Assim, o Carma pode ser utilizado para lançar muitas pedras por quem não está sem pecado, piorando-se assim o próprio Karma, que exigirá depois o resgate dessa culpa.

Poder-se-ia, porém, objetar: quem é atingido deveria ser grato a quem condena, porque, quanto mais sofre, mais rapidamente resgata e com isso se libera. O pior é que quem condena é levado a atingir o culpado, tornando-se, por sua vez, culpado, ao passo que para o seu bem melhor seria que o condenado se insurgisse contra o juiz, impedindo-o de pecar e de criar um mau Carma. Quem condena deveria ser grato ao condenado por sua revolta que o salva de tristes conseqüências, já que, impedido de fazer o mal, não cria um mau Karma, que depois terá de pagar. Ações e reações são independentes e de todos os lados se expande o concatenamento de causas e efeitos. Eis que o complexo jogo pode produzir o errado uso da teoria da reencarnação, servindo de reforços aos argumentos daqueles que não a aceitam.

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Estas simples observações nos levam a olhar mais profundamente o funcionamento da Lei de Deus. Podemos assim enfrentar tal problema em termos sempre mais amplos. É verdadeiro o fundamental princípio de justiça, mas em nosso baixo nível evolutivo é também verdadeira a lei da luta que recompensa o mais forte, o vencedor. Trata-se de dois princípios opostos, um, pertencente ao S, outro ao AS; princípios que em nossa fase intermediária da evolução, se digladiam, disputando o campo de batalha. Vejamos então o que ocorre nesse embate.

Quanto mais me sacrifico e sofro com paciência, mas me purifico e devo, por isso, ser grato a quem me fere, uma vez que, com isso ele me faz expiar as minhas culpas e pagar meus débitos à divina justiça. Devo, então, ver nele um salutar instrumento da Lei que assim me educa, pelo fato de que me habitua, através da minha própria experiência, a unir a idéia de chicotada com o mal feito. Induz-me a não cometê-lo mais, porque agora  que senti o peso do açoite, sei a que está ligado. Por outro lado, é também verdade que, quanto mais os outros me fazem sofrer para que expie e me redima, tanto mais eles ficam devendo à Lei, porque a culpa do mal praticado recai sobre aqueles que o praticaram, tornando-se estes consequentemente responsáveis, mesmo se a sabedoria de Deus os utiliza como justiceiros e instrumentos de expiação. Para quem faz o mal sempre há o que pagar. O fato de eu ter merecido o sofrimento que me inflige não apaga a culpa de quem o inflige, porque ninguém o obriga a perseguir o próximo autonomeando-se executor da Divina Justiça. Suas razões não o isentam pelo fato de beneficiar a vítima, resultado que é independente das intenções do verdugo. Assim, o mal cumpre a sua função de bem, mas de forma inconsciente, portanto, sem mérito, garantindo a vantagem alheia; ao passo que o ideal do perseguidor era beneficiar-se e prejudicar o outro.

De tudo isso se conclui que a cada santo é necessária a colaboração de um diabo. Este, com a sua perdição, se sacrifica como instrumento agressor – necessária condição daquela santidade – instrumento que funciona como resistência a vencer, prova a ser superada, a fim de que se estabeleça o triunfo do santo. Para o glorioso sacrifício de Cristo pelo bem da humanidade, era necessária a traição e a condenação de Judas, e a maldição de Deus sobre um povo até ontem chamado de deicida. Não se pode negar que estes fossem elementos necessários para a verificação do fenômeno, tanto quanto o era o sublime sacrifício de Cristo. Afim de que os mártires cristãos pudessem ganhar o paraíso, essa sua beatitude deveria ser paga com a eterna pena do inferno dos seus assassinos pagãos. A fim de que possa existir a vítima sacrificada inocente, mas destinada à eterna felicidade, é necessário o delito de quem a sacrifica, depois execrado e condenado à eterna dor. Mas, na verdade quem é a verdadeira vítima? Quem sofre durante uma curta vida o temporário martírio, mas é feliz depois para sempre ou quem, por um passageiro ato de agressão que não leva certamente à felicidade, deve depois sofrer para sempre? O que é certo é que a função santificadora, que beneficia o bom, deve, por último, ser paga pelo malvado que a executa, com a sua perdição. O verdadeiro danificado é aquele que permanece enganado, porque movido apenas por seu egoísmo, acaba trabalhando em benefício de sua vítima e em seu próprio dano. Então, quem pagou o preço da redenção da humanidade não foi Cristo, que sofreu poucas horas e logo subiu triunfante ao céu; foram, sim, Judas, os hebreus, os pagãos e todos aqueles que foram julgados responsáveis pela morte Dele, e por isso condenados ao eterno inferno. Onde esta pois a justiça de Deus?

Para eliminar essas contradições, compreender o que ocorre e resolver o caso, devemos deixar de lado a teoria do prêmio e penas eternas, e observar a realidade do fenômeno, colocando-se diante da justiça da Lei. O mérito de transformar o assalto do malvado em meio de santificação pertence ao bom, ao passo de que a culpa de querer fazer o mal fica para o malvado. É ele que se rebela, portanto é justo que pague, como também é justo o prêmio da vítima por ele sacrificada. O rebelde terá uma pena proporcional a culpa, nunca ilimitada, mas limitada segundo a justiça, tanto mais que a finalidade da Lei é educar, corrigir e não usar de inútil crueldade. Na realidade, o fenômeno tem um outro significado. Este representa uma prova para o mau, isto é, uma oportunidade de fazer o bem, que lhe é oferecida, de que ele poderia fazer bom uso, ajudando a vítima em lugar de agredi-la. O mau, porém, deixa-se vencer por seus baixos instintos e dessa oportunidade faz mau uso. Culpa limitada, mas sua. É-lhe oferecida uma possibilidade de redimir-se e ele se aproveita dela para fazer um mal ainda maior. Assim, a experimentação fracassa para ele e justamente em seu prejuízo. É justo também que a vantagem seja a favor da vítima, que soube fazer bom uso da oportunidade que lhe foi oferecida. O tolo, aquele que não sabe cuidar de seu interesse, é o próprio mau, que se vale da bondade do bom para vencer. A sua vitória é feita de uma momentânea construção, que logo após desaba, porque é contrária a lei, orientada em sentido evolutivo. A derrota do bom favorece, em contrapartida, uma construção que permanece, porque foi feita segundo a Lei, em sentido evolutivo.

Em nosso mundo regido pela lei animal da luta pela seleção do mais forte, a bondade é entendida como fraqueza e representa uma tentação para o forte, um convite ao assalto. Mas pior para ele se crê hábil, ao valer-se da ocasião que lhe permita explorar o bom; oportunidades que lhe favorecem o uso para o bem e no entanto ele as aproveita para o mal. Podia subir e desceu. Ele podia aderir à corrente da Lei e preferiu colocar-se na anti-Lei, carregando-se de forças negativas. As conseqüências são fatais. Involuir é piorar, é caminhar para a dor. A vida quer ascender ao S, e ele insiste em retroceder para o AS. A vida quer chegar aos métodos de coexistência mais civilizados, de tipo evangélico, altruísta, colaboracionista, orgânico. E ele procurar impor-se individualisticamente, com os métodos egoístas e separatistas do primitivo. A vida quer construir unidades sempre maiores, numa ordem cada vez mais complexa e compacta, e ele opta pela imposição da luta e do caos. Então a vida expele do seu caminho ascensional esses rebeldes, que vão para os degraus mais baixos da involução do AS.

Que fenômeno se verifica, quando na Terra se encontram o bom e o mau? O primeiro, usando o método do S, perde, sofre, mas sobe; o segundo usando o método do AS, vence, frui, mas desce. Este, porém, não poderá subtrair-se ao impulso da evolução, que depois o prenderá nas suas espirais a levá-lo para cima. As experiências sempre mais dolorosas que vai encontrar na descida separá-lo-ão dos seus métodos de vida, que lhe dão frutos tão amargos, que ele tentará subir. Então à força de evoluir, ele se encontrará na Terra, no grupo dos bons. Usará, pois, os seus métodos, e seguirá o seu destino. Por obra dos outros maus emergentes do AS, caber-lhe-á fazer a mesma experiência salvadora que os bons, quando estavam no seu nível, fazendo suas vítimas.

Assim, a maré da evolução sobe, levantando uma camada de todos os seres, entre bons e maus, santos e diabos, todos interligados num processo comum de colaboração às finalidades da evolução, que os abraça a todos e os arrasta compreende-se então que o princípio da luta, que no AS é separatismo desagregador que produz caos, contém no fundo, um princípio de cooperação para atingir o mesmo fim comum: o de evoluir para a ordem. De fato a luta no AS não é senão uma ligação com o negativo, enquanto o amor, no S, é um ligar-se ao positivo. Mas a evolução impulsiona o mesmo ato da posição invertida no negativo à posição retificada no positivo. Entretanto, os seres, numa ou noutra posição, ficam sempre ligados pelo mesmo vínculo nascido do princípio originário da unidade, mesmo se no AS a revolta e a queda tiverem tentado despedaçar essa unidade no caos do separatismo.

Deste modo bons e maus, santos e diabos, funcionam todos eles como instrumentos da Lei, para a mesma finalidade evolutiva, oferecendo-se, reciprocamente, provas que devem ser superadas, tentações, oportunidades para o bem ou o mal, material experimental que cada um utiliza a seu modo, sofrendo-lhe depois as conseqüências. Se a Lei os utiliza como seus instrumentos, isso não os isenta de responsabilidade por sua livre escolha, porque a Lei oferece, mas não impõe posições.

Assim, imparcialmente, todos não podem subir e redimir-se senão através da própria dor. E são eles mesmos (que a causaram com a sua própria revolta) que vêm a ferir-se como se estivessem ligados a uma condenação de recíproca perseguição, produto de desobediência da criatura; condenação que, com a experiência da dor, conduz, porém, a redenção e salvação, o que é produto de sabedoria e da bondade de Deus. Tanto os rebeldes do AS se atormentarão entre si, que acabarão por amar-se como criatura do S. Com isso, o bem triunfa sobre o mal; a ordem sobre o caos da revolta e Deus vence, sempre senhor absoluto de tudo.