Explicamos nos capítulos anteriores que os instintos são automatismos adquiridos nas vidas precedentes e gravados no subconsciente, no qual o psicanalista pode ler, impresso, o que no passado foi vivido pelo indivíduo. E nesta experimentação por ele vivida, que se baseia o processo da construção da personalidade que o médico está observando. Vimos então que a idéia de pesquisa no terreno, que existe antes do nascimento físico, é fundamental em psicanálise, pesquisa sem a qual esta não pode entender o presente, que é conseqüência daquele passado, sua raiz.

Eis, uma das características mais importantes da nova psicanálise que aqui apresentamos é essa penetração no terreno pré-natal, a qual falta à clássica psicanálise atual. O tipo, que desta ciência aqui oferecemos, é mais completo, é integral, pelo fato de que procura reconstruir toda a história da personalidade, seguindo o processo de sua formação, levando em conta elementos que escapam à psicanálise hoje praticada. O subconsciente contém um mundo muito mais vasto do que o que ela julga, um imenso passado em que o eu viveu infindas experiências, que constituem sua atual sabedoria inata, diferente para cada um, conforme o caminho percorrido.

Não há dúvida: a psicanálise que mais interessa na prática é a do tratamento das neuroses e complexos. Por isso o próprio Freud preferiu deixar de lado o aspecto filosófico e espiritual da psicanálise, o problema das causas longínquas, dirigindo-se para o seu lado prático, o do tratamento. E foi isto que tornou Freud popular. Acontece, porém, que também esse problema prático não pode ser resolvido sem se apoiar na base de uma teoria fundamental, de um sistema filosófico completo que tudo oriente no seio do funcionamento universal, sem o que qualquer ação será uma tentativa cega, porque carente dos seus princípios diretivos, que só o conhecimento do plano geral da vida pode oferecer. A ciência descobriu leis particulares, sem levar em conta que, funcionando elas dentro de uma lei maior, universal, que a todas abrange e coordena, não é possível entendê-las no seu verdadeiro valor, nem colocá-las em ação no terreno da prática, no estado de incerteza de quem não conhece todo o problema. Como cada fenômeno menor se processa em função de fenômenos maiores, assim cada problema particular não pode ser resolvido, senão em função do conhecimento do problema universal e de sua solução. Assim, o problema de um tratamento certo das doenças psíquicas e espirituais não é solúvel senão em função da solução já atingida de outros problemas mais vastos, como o do conhecimento da natureza da personalidade, da técnica de sua construção, da finalidade de tal processo evolutivo, da leitura do passado pré-natal, lendo-o no subconsciente etc. Trata-se de curar um sofrimento. Por isso é indispensável conhecer o que é a dor, por que ela existe e num dado momento aparece, qual é sua origem e função no plano geral da existência. Uma verdadeira psicanálise, se quiser ser completa, deve abranger horizontes de amplitude bem maior que os atuais. Ela não pode ser entendida só como fenômeno psicológico, mas também como fenômeno ético, religioso, biológico, evolutivo, social etc.

A originária psicanálise do prof. Sigmund Freud recebeu sucessivas modificações e desenvolvimentos por Adler, Rank, Jung, Stekel etc. Freud viu na personalidade humana, antes de tudo, o elemento sexo, aceitando seus impulsos como fator fundamental. Seu seguidor Jung lhe respondeu que: "o cérebro não pode ser somente um apêndice das glândulas genitais". Assim, a concepção feminina da personalidade humana, baseada no instinto sexual, foi por Jung substituída pela concepção masculina baseada na vontade de domínio. Cada um dos dois cientistas viu um dos dois aspectos fundamentais e complementares do mesmo fenômeno, portanto, não se contradizendo, mas completando-se. A personalidade humana é um conjunto de dois elementos ou aspectos: macho e fêmea, isto é, espírito de luta, para a função biológica da conquista, e espírito de bondade e amor, para a função biológica da proteção e conservação. O primeiro impulso executa a tarefa da defesa para a afirmação e sobrevivência do indivíduo, o segundo impulso assegura a continuação da raça. Era inevitável que na psicanálise tivesse que aparecer e se revelar o fato da existência destas duas funções fundamentais da vida, assumindo as duas posições: a do macho e a da fêmea.

Mas eis que o próprio Jung se encaminhou para uma concepção mais vasta referindo-se aos princípios gerais de uma lei superior. No seu livro: O arquétipo é uma presença eterna, Jung explica o seguinte: (...)" muitas neuroses do homem moderno nascem de ofensas que o consciente gerou nos arquétipos. Então, estes reagem do inconsciente,  perturbando o equilíbrio  psíquico do indivíduo. Atinge-se a cura, ajudando o doente a individuar os símbolos do seu próprio subconsciente".

Antes de tudo que Jung admite, como nós, que a ação saia do consciente, mas faz isso sem explicar, como fizemos, que este fato representa a parte ativa do processo da construção do eu. A parte mais importante da afirmação de Jung é que as neuroses nascem de ofensas que o consciente gerou nos arquétipos. Isto corresponde ao nosso conceito de violação da ordem da Lei de Deus, conceito que explicamos no livro: Queda e Salvação. Corresponde também à nossa afirmação de que a desobediência a essa Lei representa uma ofensa contra a qual ela reage, devolvendo-a ao violador na forma de dor, que neste caso é a desordem da neurose. Mas Jung não explica essa técnica do fenômeno. Também neste caso, porém, não pôde deixar de aparecer na psicanálise e, de se revelar, o fato da existência de uma lei na qual se baseia a estrutura do universo e que dirige seu funcionamento. Os arquétipos eqüivalem ao que chamamos os imutáveis princípios da Lei. A reação surge aquele mundo que para o homem ignorante é o inconsciente, isto é, situado acima do seu conhecimento ou consciência, que representa a sua forma mental que contém toda a sua sabedoria, adquirida pela sua experiência passada no trabalho de construção do eu. O resultado da violação da Lei é uma perturbação como reação, que altera o equilíbrio psíquico do indivíduo. O efeito é da mesma natureza da causa. A Lei devolve ao ser, desobediente à ordem, o mesmo choque e desordem que este lançou contra ela, e que agora ricocheteia para trás e para cima do ofensor. Eis que nas doenças nervosas e psicopáticas se trata de um choque, como reação, de uma restituição do mal, da mesma violação e desequilíbrio que o indivíduo gerou dentro da Lei e que assim ele gerou dentro de si mesmo. Esse impulso negativo, lançado em sentido anti-Lei, que é também anti-vida, e que o ser no âmbito da sua liberdade movimentou em sentido errado, agora repercute nele e o fere no espírito.

Já frisamos que um complexo é uma queimadura do espírito. Este fica magoado por tal choque de reação que, sendo de natureza negativa, produz uma doença no organismo mental, um trauma psíquico, uma ferida na alma, que dói naquele ponto, com todas as suas conseqüências cerebrais, nervosas e até físicas. Eis o que é uma neurose, psicose etc. Depois que a livre vontade do ser movimentou o primeiro impulso, todas as conseqüências, até esta última que é a doença, se desenvolvem automaticamente em forma determinística, fora da vontade e liberdade do indivíduo. É por isso que neuroses e complexos se manifestam como automatismos que estão fora do controle da consciência. É assim que Jung teve de aconselhar que a cura se atinge ajudando o doente a individuar os símbolos do seu próprio subconsciente. Por que isto? É para chegar a deduzir, do conhecimento da natureza dos atuais impulsos do subconsciente, o conhecimento da natureza das causas que no passado determinaram a origem deles, observando agora o que, como conseqüência, surge do subconsciente, que se expressa por símbolos ou imagens, não por processos conscientes racionais. Dado que o tratamento tem de se dirigir, mais do que contra os efeitos, sobretudo contra as suas causas, para endireitá-las, neutralizando o mal na sua fonte, só agora que assim as conhecemos, podemos saber qual deve ser a solução. Este, então, deverá consistir em contrapor novos impulsos volitivos na direção certa, em sentido oposto, os quais assim podem corrigir os primeiros, lançados no passado em direção errada. Trata-se de dirigir a atividade do paciente, não mais em sentido negativo, contra a Lei, para se arruinar, mas em sentido positivo, conforme a Lei, para se salvar. Assim este novo caminho para se aproximar novamente da Lei pode constituir o tratamento do velho caminho, que foi de afastamento dela: o novo processo, em obediência, pode curar o velho, que foi de revolta.

Neste ponto, onde aparece uma terapia mais ampla e integral, Jung parou. A porta de uma psicanálise mais profunda estava aberta, mas ele não entrou. Não podia, porque, não levando em conta as vidas precedentes, lhe escapava toda possibilidade de pesquisa no terreno do passado pré-natal, que é o que mais interessa, porque é nele que se encontram as primeiras causas da doença, aquelas que o tratamento tem de corrigir, determinando no paciente impulsos opostos. Além disso a Jung faltava o que já mencionamos, isto é, um sistema universal, para se dirigir nessa pesquisa, uma visão cósmica que lhe explicasse qual é a finalidade da vida e de sua evolução, qual é o futuro que espera o eu no seu desenvolvimento, que o leva do AS ao S. Só possuindo uma tal premissa, conhecendo a técnica da construção da personalidade e levando em conta não somente o passado do eu, mas também o futuro que o espera, é possível curar o velho que está errado, destruindo-o com a substituição pelo novo, sabendo escolher este, conforme a Lei, o que a ela corresponde e o que está errado, o tipo que dá saúde ou doença. Nesta altura a psicanálise tem de entrar no terreno do superconsciente, no qual se realizam as novas construções do eu; tem de usar a técnica da superação evolutiva, praticar tratamentos das neuroses pelo caminho estranho da sublimação, agora ainda limitado ao terreno da ética e religiões e desconhecido pela ciência positiva. Então, a doença pode ser resolvida em sentido evolutivo, cortando o mal pela raiz, com o deslocar o indivíduo, que é capaz de amadurecer, do seu nível biológico para outro superior, com todas as conseqüências decorrentes. Em busca de seu amadurecimento.

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Desse modo, chegamos a uma nova psicanálise, concebida de outra maneira. Ela é a ciência que, observando os produtos instintivos que surgem do subconsciente, procura reconstruir a história passada do indivíduo, marcando onde e em que forma no seu caminho evolutivo ele se movimentou em sentido errado, diante da Lei, que representa o ponto de referência que permite julgar a respeito. A doença da neurose é um efeito desse movimento em sentido anti-Lei, é um sofrimento, fatal conseqüência de cada violação. Se a causa foi uma desobediência que gerou desordem, o remédio está na obediência que reconstrói a ordem. O tratamento consiste na reintegração dessa ordem, da qual dependem a saúde e o bem-estar, assim neutralizando a desordem, da qual dependem a doença e a dor. Já explicamos bastante os princípios em que se baseia essa interdependência entre erro e sofrimento, entre o conceito de pecado e o de penitência. Assim se pode reconstituir o equilíbrio psíquico perturbado do indivíduo: corrigindo o erro, que foi a causa, elimina-se a doença, que é o efeito.

Eis que a psicanálise, antes de tudo, deve conhecer o conteúdo da Lei, para se orientar no tratamento.  Eis que nessa ciência, ao lado do elemento psicológico e biológico, entra o elemento filosófico, o ético, o religioso. Já uma nova tendência revolucionária da medicina psicossomática sustenta que existe um liame entre distúrbios emotivos e distúrbios físicos. Eis então que a própria medicina, apoiando-se na psicanálise, procura entender por novos caminhos o significado da doença, afirmando que o indivíduo adoece porque naquele ponto houve uma culpa dele, pela qual se colocou numa posição errada, contra as leis da vida. Culpamos os micróbios, o regime, o ambiente, mas estes podem ser só as causas próximas, secundárias, enquanto as verdadeiras as fundamentais, são mais longínquas e profundas É verdade que a ciência poderia objetar que por esse caminho nos afastamos da realidade suscetível de observação direta e de controle experimental imediato. Mas é verdade também que à ciência que segue esse caminho positivo escapam elementos que podem ter importância fundamental também a respeito da doença e seu tratamento, o que mais interessa à ciência.

Muda assim o conceito de doença e o método de seu tratamento Eis uma medicina que levaria em conta também o elemento moral e espiritual, tratando o ser humano não somente como organismo animal, senão também no seu aspecto completo, que é um conjunto físico e psíquico ao mesmo tempo. Pode-se, assim, chegar à conclusão de que a doença é o resultado de um deslocamento de forças mal dirigidas, de elementos que se colocaram fora do devido lugar. Se, então, a doença representa uma desordem, e pela sua natureza nos mostra qual foi o tipo particular e específico dessa desordem, eis que implicitamente ela nos indica qual deverá ser o tipo particular e específico de tratamento necessário para reconstruir naquele ponto a ordem violada.

Há, para quem entendeu o conceito de doença perante a Lei, isto é, em função dos princípios de equilíbrio, ou seja, de justiça, nos quais ela se baseia. Pode-se então chegar também a esta conclusão: se a primeira causa de uma doença foi um impulso negativo, oposto, de desordem e desequilíbrio, um movimento contra as leis da vida, o que no plano ético se chama culpa, pecado, então a própria doença não somente representa, na forma de dor, como já demonstramos, a lógica conseqüência do erro, a justa e fatal reação compensadora da parte da Lei, como constitui o pagamento da dívida, a devida penitência pela culpa, a necessária expiação, o corretivo do erro, o que é mais idôneo para reconstituir a ordem e o equilíbrio. Então a própria doença representa o tratamento da doença, que assim seria um mal como julga a ciência, mas tal só na hora da sua gênese pelo erro, mas que, na hora do amadurecimento atual do processo, seria um mal saudável, um curativo necessário. Então suprimi-lo, como faz a medicina, só como efeito, sem conhecer as causas para as eliminar, significa sufocar o natural descarregar-se do mau impulso, que assim fica comprimido. porque impedido de se desabafar, constrangido a se concentrar até chegar a uma nova explosão, que lhe é indispensável, devido ao impulso equilibrante da Lei. Isto muda os atuais conceitos de doença e seu tratamento.

Se fecharmos esta válvula de segurança que é a doença, esta acabará explodindo de novo  Assim, procurando eliminar somente os efeitos, sem neutralizar suas causas, sem cortar na raiz o impulso que gera doenças, procurando suprimi-las à força, tratando apenas os últimos resultados que vemos, e ignorando suas origens longínquas, com tal método acabaremos gerando sempre novas doenças. Isto, para a ciência positiva parece fantasia, fora da realidade Mas não é o que está acontecendo no mundo atual, no qual, ao lado de tantas descobertas e doenças vencidas. surgem sempre novas em forma diferente? E a ciência, como explica esse fato?

As causas longínquas cabe à psicanálise descobrir, porque, na interdependência espírito-corpo, pode haver doenças físicas dependentes de causas psíquicas, da estrutura da personalidade, que o indivíduo construiu no seu longo passado  Eis, então, que para resolver um caso pode ser necessária, ao lado da diagnose do médico, a do psicanalista, porque o ser humano é uma unidade indivisível de dois pólos, e uma doença orgânica não pode ser tratada artificialmente isolada, sem levar em conta a sua correspondente parte espiritual. A moral desta conversa é que o primeiro remédio é não ter merecido a doença com os nossos erros. Mas, uma vez que estes foram cometidos e, por isso, escritos em nosso destino com todas as suas conseqüências, não nos resta senão aprender, com o sofrimento, a lição, para não repeti-los mais. Então, a doença é uma experiência de salvação, em que se manifesta a sabedoria da vida pata tirar o indivíduo do impasse em que ele, por ter errado, caiu. O homem recebe o mal que, na sua inconsciência, lançou contra si próprio, e que agora é obrigado a suportar. Mas no íntimo da doença a vida trabalha para o levar de novo à saúde, no fundo do sofrimento está o impulso para o bem-estar, como a morte contém o princípio da ressurreição, como dentro da ruína do S decaído no AS, está presente e trabalha o Deus imanente, para tudo conduzir de novo ao estado perfeito de S. Eis os profundos equilíbrios aos quais a vida obedece

A conclusão deste parágrafo é que a doença não pode ser “definitivamente” eliminada senão pelo método da penitência e correlativa lição aprendida para não errar mais, transmitida ao subconsciente, que a retêm para o futuro. Esta conclusão concorda com a do parágrafo precedente, que as neuroses podem ser tratadas como o método da obediência à Lei e da sublimação, que corrige os velhos impulsos ensinando a praticar novos, os de um plano biológico superior.

O  mundo luta desesperadamente contra a dor, sem saber o que ela é, nem por que ela existe, qual é a sua função no seio do equilíbrio universal. Assim o mundo luta contra os últimos efeitos, sem atingir as causas e a dor fica. O resultado de tais métodos é que ela permanece. É necessário entender que, só se agirmos conforme a Lei, seguindo sua vontade e impulsos, o caminho de suas forças, poderemos alcançar bons resultados. Mas se quisermos agir contra a Lei, isto é, contra a vontade que dirige e movimenta o universo, contra a corrente em que tudo se canaliza, então não encontraremos senão resistência e dificuldades, e nossos esforços serão vãos, porque lançados contra poderes superiores, que não é possível vencer.

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Observemos agora outros aspectos da pesquisa psicanalítica para individuar outro método para o tratamento das doenças mentais, isto é, por penetração introspectiva nas camadas profundas da personalidade do paciente.

Para entender toda a personalidade humana é necessário observá-la nos seus vários níveis. O consciente está na superfície, onde se realiza a vida, desenvolvendo-se a parte ativa da nova experimentação, a que aumenta o patrimônio do conhecimento e das qualidades do indivíduo. Esta é uma zona em contínuo movimento feita de pequenos fatos sucessivos no tempo, encadeados uns aos outros; uma zona analítica, feita de pormenores exteriores, práticos e concretos, que constituem o que  chamamos a realidade da vida. Nesta zona se realiza o novo trabalho de construção da personalidade, ao longo do caminho evolutivo.

Debaixo desta zona, na qual o homem comum vive a sua vida de cada dia, há outras zonas, sobrepostas, situadas fora desse consciente, no inconsciente. A tarefa da psicanálise é a pesquisa nessa imensa parte de nós, que está submersa e escondida no subconsciente. Ela é fundamental no ser humano, sem que esse tenha conhecimento dela, mas que existe, constituindo o âmago, sempre mais íntimo, no nosso eu. Aqui as tempestades sensórias da superfície se acalmam, o pensamento não é mais analítico, feito de pormenores exteriores, mas é vasto, interior, profundo, por visões de conjunto, não dirigido para a exploração do novo e construção do eu, mas para a assimilação e conservação do velho. Nessa zona temos camadas diferentes, uma debaixo da outra, cada vez mais profundas, às quais desce e, estratificando-se, se fixa o que foi vivido pelo consciente na superfície. Enquanto para se realizar no plano da vida prática, o homem tem que se projetar ativo e dinâmico para fora, no seu ambiente, para conhecer esse seu mundo interior, ele tem que, ao contrário, se concentrar em si mesmo, em calma e silêncio, e escutando as vibrações sutis desse outro ambiente subterrâneo. A maioria vive somente da vida de superfície, que contém apenas uma parte dos valores do ser, escapando-lhe o restante num profundo mistério.

Qual é a lógica desse comportamento? A projeção neste mundo exterior dos sentidos e da matéria é o resultado da queda, que é descida do espírito na matéria, do S no AS. É no terreno deste, isto é, na matéria, que o homem, no percurso do seu caminho involutivo-evolutivo, está trabalhando para voltar ao S, isto é, ao espírito, reconstruindo-se, como tal, através da sua experiência exterior no seio da matéria, que agora é o seu reino. Por esse processo o homem vai acumulando nele o que, lutando no seio do AS, vai reconquistando o S. Assim a experiência de cada vida deixa afundar debaixo da superfície uma nova camada acima das velhas. Ao mesmo tempo o ser transporta o seu trabalho de conquista criadora para um nível mais alto, e a zona da experimentação ativa se levanta para um plano biológico mais adiantado, onde se repete o mesmo processo.

O    homem que mais se encontra em nosso ambiente terrestre é o biótipo extrovertido, isto é, dirigido para fora, para o seu ambiente material, onde realiza sua vida, enquanto é mais raro o biótipo introvertido, dirigido para dentro, para o seu mundo interior, onde realiza a sua vida. O primeiro representa o mundo involuído da matéria, que gravita para o AS; o segundo representa o mundo evoluído do espírito, que gravita para o S. Os dois estão nos antípodas, e um julga o outro em relação à sua posição. O primeiro avisa o segundo que é perigoso perder contato com a realidade da matéria, esquecendo-se das férreas necessidades da luta pela vida. O segundo avisa o primeiro que é perigoso acreditar no mundo, que não é senão uma grande ilusão, ignorando as grandes verdades das quais a vida depende. Quem tem razão?

Quem vive apenas no nível da superfície, percebe somente os pormenores e as aparências, sabe resolver os pequenos problemas e vencer na luta de cada dia, mas está cercado de mistérios, desnorteado a respeito dos grandes problemas, nos negócios a longo prazo faz erros que depois terá de pagar, e no fim a morte o pega desprevenido. Ele tem razão e vence, mas só relativamente ao seu mundo enquanto nele vive. Além disto, quase nada ele sabe e pode fazer.

Por outro lado, quem olha na profundeza, descobre, atrás das aparências exteriores, uma realidade interior mais profunda, atinge o conhecimento da sua verdadeira natureza e do seu destino numa visão de conjunto. Assim ele pode orientar-se a respeito dos grandes objetivos de sua vida, dirigindo-se inteligentemente por si próprio para os atingir, conforme vastos planos maiores, que ao outro tipo escapam completamente. Assim este é servo, enquanto o outro é dono do seu destino.

Há resultados diferentes, com vantagens e desvantagens, em cada um dos dois casos. Um ser completo deveria saber realizar as duas formas de pesquisa.  Mas é raro que isto possa acontecer. Assim cada um dos dois acaba vivendo o seu tipo de vida: 1) a exterior, prática, compensada por sucessos imediatos, acabando com desejos insatisfeitos na desilusão e com a morte no desconhecido; 2) a vida interior, incompreendida no mundo, condenada por derrotas imediatas, desembocando com a morte numa continuação de vida, conhecida e prevista, na qual o indivíduo bem orientado realiza seus desejos. Também nas religiões a maioria pertence ao primeiro tipo. Mas tal religião aparecerá irreligiosa, ou falta de religião, ao homem do primeiro tipo.

Para os dois tipos os valores da vida são diferentes. O que vale para o primeiro são os recursos materiais. O que vale para o segundo são os recursos espirituais. Para o 1.º, a finalidade da vida está na terra e, em função disto, ele entende e trabalha. Para o 2.º a finalidade da vida está fora da terra e, em função disto, ele entende e trabalha. Para o 2.º tipo, a maneira prática e interesseira do 1.º tipo de conceber as coisas espirituais representa uma profanação contínua, apesar de que este tipo esteja convencido de ser honesto e religioso.

Ora, a função da psicanálise é de penetrar neste mundo interior do 2.º tipo, ajudando o homem comum, do 1.º tipo, a descobrir o conteúdo de sua personalidade, ensinando-lhe a praticar pesquisas interiores profundas por introspeção, desvendando assim o mistério escondido fora do consciente, e com isso revelando o destino individual, em função dele orientando a conduta, até chegar ao tratamento das doenças, neuroses e complexos, que deste mundo interior dependem. Estes problemas são todos conexos e fazem parte do grande problema da personalidade humana, que é o problema central da psicanálise.

As grandes descobertas da psicologia e parapsicologia do futuro nascerão desta análise que desce às mais secretas camadas interiores do eu. Esta nova ciência aparece hoje, porque agora os limites da mente humana estão-se ampliando para novos horizontes, como resultado da evolução, o que exige um conhecimento mais profundo de nossa personalidade. A continuação da vida no tempo leva a um aumento progressivo de experiências e de conhecimento adquirido, a uma fatal acumulação em nós mesmos de um material que se torna sempre maior, de modo que não pode deixar de acabar explodindo para além dos velhos limites. Este é o resultado atual do amadurecimento biológico da raça humana. Por isso, hoje surgiu a psicanálise, ciência inconcebível nos séculos passados, que viviam satisfeitos na mais profunda ignorância dos problemas da personalidade humana. Então a conduta, as leis civis e religiosas, tudo era dirigido pelos impulsos instintivos do subconsciente e correlativa forma mental, que representava a unidade de medida das verdades dominantes. Hoje, com o prevalecer cada dia mais do elemento psíquico em nossa cada vez mais complicada vida social, se torna cada vez mais necessário o conhecimento de nossa personalidade, com tudo o que ela contém e dela pode nascer. A prática de uma vida psicologicamente mais refinada exige a solução de problemas até agora desconhecidos, situados além da superfície das aparências. O homem começa a entender a vantagem de viver com maior conhecimento e inteligência.

Neste ponto pode surgir uma dúvida, que é necessário esclarecer. Para a finalidade de orientar o indivíduo para uma vida melhor, dirigindo-o mais inteligentemente na sua conduta, que valor podem representar as profundas pesquisas interiores da psicanálise. quando sabemos que o subconsciente não contém senão o nosso passado, isto é, a parte inferior do nosso ser, atrasada, involuída, animal, hoje superada? Que vantagem poderemos tirar deste mergulho na parte pior de nossa personalidade? Por que, então, descer a estas camadas profundas, onde não se pode encontrar senão o que foi vivido nos níveis biológicos inferiores?

É verdade que, por este caminho às avessas, poderíamos chegar até ao fundo do AS, isto é, da queda. Mas é verdade também que antes dele há toda a história da descida, desde o seu ponto de partida, que foi o S. Esta história não foi destruída, apenas está latente, esquecida, sepultada na ignorância do ser. O período atual de evolução está contido nesta história, como segunda fase, oposta e complementar, do primeiro período, o involutivo, do mesmo ciclo de ida e volta. O percurso evolutivo depende do precedente percurso involutivo, sem o qual não pode existir. A segunda parte do fenômeno não pode ser entendida senão como conseqüência da sua primeira parte. Sendo conseqüência, a evolução não pode existir sozinha, nem pode criar uma nova lei própria, mas só pode existir em função do precedente período de involução, isto é, só como reconstrução do que foi destruído pela queda, isto é, do S e do domínio da Lei de Deus. Temos de entender bem essa afirmação: que a evolução não pode ser uma criação de coisa nova. É por isso que seu caminho já está marcado antes de ser percorrido, porque não se trata senão de passar através dele em sentido oposto, repetindo em subida o caminho que já foi percorrido em descida. É por isso que a evolução já possui o seu ponto de partida e de chegada, porque é um fenômeno contido na ordem da Lei, da qual nada pode sair; é orientado com antecedência, nunca abandonado ao acaso, mas sujeito a princípios estabelecidos, que o dirigem para um seu telefinalismo evidente.

Eis o mundo imenso que as profundas pesquisas interiores podem revelar. Além das camadas inferiores situadas no subconsciente, há esta grande história maior, de cujas profundezas o S continua enviando os seus apelos, para conduzir o ser à salvação no seu seio. Eis então que, se os impulsos piores, nos chegam dos baixos níveis da evolução, os melhores chegam desse passado muito mais longínquo, mas nem por isso morto. Ele está só adormecido, e com a evolução, vai despertando e se reconstituindo.  Eis, então, que esta observação introspectiva pode nos revelar toda a nossa história, com tudo o que ela contém, isto é, não somente o nosso passado inferior, mas também o nosso mais longínquo passado superior, do qual decaímos. Eis que essa introspeção pode nos revelar também o que no plano geral da evolução está potencialmente contido, o que quer dizer, também, o seu futuro desenvolvimento, que representa o nosso porvir.

 Esta nossa pesquisa interior, depois de ter atravessado as camadas inferiores situadas no subconsciente, pode dilatar-se além delas, na visão de um mais vasto inconsciente, que contém um passado mais longínquo, que volta e já alvorece na consciência dos mais evoluídos, na qual ele se revela como antecipação do futuro, percebido pelas intuições do superconsciente. Eis como a introspeção, as profundas pesquisas de uma psicanálise muito mais vasta podem orientar o indivíduo para uma vida melhor, dirigindo a sua conduta. Uma psicanálise completa não se pode limitar ao tratamento das doenças nervosas e mentais, mas tem que entrar no terreno ético, para dirigir com inteligência a conduta humana. As suas pesquisas têm que abranger todo o imenso campo do inconsciente, que escapa ao controle imediato do consciente, isto é, deve penetrar os mistérios da personalidade, não somente no terreno do subconsciente, mas também no do superconsciente, deve atingir não somente o passado do indivíduo, mas, o que é mais importante, o seu futuro, numa visão de conjunto em que passado e futuro se fundem no mesmo problema. Assim, a penetração psicanalítica do inconsciente poderá ser completa, porque atingirá ambos os seus aspectos: o subconsciente e o superconsciente.

Depois destas explicações, poderemos entender melhor o sentido das palavras que encerram o primeiro parágrafo do presente capítulo, em que a psicanálise tem de entrar no terreno do superconsciente, no qual se realizam as novas construções do eu. Agora podemos compreender como e porque isto se pode realizar, até a psicanálise usar a técnica da superação evolutiva, praticando tratamentos das neuroses pelo caminho da sublimação.

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Observemos agora posições mais próximas da personalidade, enfrentando problemas mais específicos e acessíveis, que é tarefa da psicanálise atual tratar, os problemas do subconsciente e de seu conteúdo nas camadas mais recentes nele estratificadas nas vidas precedentes, os problemas da pesquisa no período pré-natal. Desenvolveremos assim, os conceitos com os quais iniciamos este capítulo.

Essa pesquisa não tem somente importância teórica filosófica, mas também prática. No tratamento das doenças, a ciência vai até às causas próximas e não às remotas. Mas enquanto estas não sejam atingidas também, o problema da libertação da dor não poderá ser resolvido. Para tratar exaustivamente os seus casos, a psicanálise tem de conhecer com que técnica se realiza, no duplo ritmo vida-morte, o crescimento e construção da personalidade; qual é o trabalho que o ser realiza no período pré-natal, antes do nascimento físico; como é que as experiências da vida precedente se incorporam no eu para se tornarem lição aprendida, e depois impulsos instintivos que emergem do subconsciente; como se realiza o fenômeno da estratificação das camadas sobrepostas, e por que processo o que foi vivido na forma de consciente sensório numa vida se torna depois automático produto de subconsciente na vida sucessiva; onde e como se constrói a parte determinística de nosso destino, à qual estamos fatalmente sujeitos, porque ela é efeito fatal da sementeira do passado.

Sem conhecer a sua primeira origem, a psicanálise não poderá fazer um verdadeiro tratamento dos complexos. Dos mais profundos e radicados, não será possível encontrar as causas determinantes na vida presente, e por isso é necessário procurá-las nas vidas precedentes, cuja história a psicanálise terá de aprender a ler, pois está escrita no subconsciente, como já explicamos  Há qualidades individuais, cuja presença a hereditariedade pais-filhos antepassados-descendentes, não basta para explicar. Todo o processo evolutivo não pode ficar confiado somente à transmissão do organismo físico, pelo fato de que a reprodução se faz na juventude, quando os pais possuem um mínimo de experiência adquirida, enquanto, para que a evolução possa assegurar a sua continuidade e acumular os frutos de seu trabalho, a reprodução deveria realizar-se na velhice, ao fim da vida, quando os pais possuem o máximo de sabedoria a transmitir.

A biologia só conhece o canal da evolução da forma física, pelo qual se transmitem as qualidades orgânicas, as conquistas fisiológicas. Mas, para transmitir as qualidades e conquistas espirituais, que são de natureza diferente, e que se tornam cada vez mais importantes quanto mais a vida evolui, tem de existir outro canal de transmissão, que, no dualismo universal, representa o outro pólo do fenômeno, a sua parte inversa e complementar, que completa e equilibra o processo Este outro canal deve ser individual, pessoal. Sem ele não se pode realizar o fenômeno da evolução com a construção do eu, porque o trabalho de uma vida ficaria desligado de uma outra, ao progresso faltaria continuidade e desenvolvimento lógico, porque seria o resultado de muitas experiências realizadas por indivíduos diferentes, desconexas e misturadas na desordem de um caos. Nesta confusão cada um deveria viver em função e como conseqüência fatal das ações de outros, antepassados até desconhecidos, e isso contra a justiça, porque sem liberdade, nem responsabilidade individual; contra a justiça porque o indivíduo teria de sofrer pela culpa dos antepassados, e ter de aceitar um destino feito por outros.

A psicanálise não pode prescindir do exame do paciente, também no período pré-natal. Ela já admite o registro das experiências no subconsciente, no qual ficam gravadas, e do qual depois emergem no consciente. Mas nesta pesquisa a psicanálise pára no momento do nascimento, ignorando o que houve antes, sem retroceder até atingir o terreno onde foi feita a primeira sementeira das condições atuais. Entretanto, como se pode desfazer um trabalho errado, endireitar um caminho torcido, sem conhecê-lo todo, desde o seu início? Como se pode corrigir um defeito com um tratamento oposto, sem conhecer todo o processo de sua formação e desenvolvimento?

A psicanálise trabalha na parte espiritual do ser, cuja evolução é um processo único devido à persistência do eu individual, que vai percorrendo o caminho ascensional que vai do AS para o S. O médico do organismo físico pode até um certo ponto limitar-se ao presente, isolando-o desse seu imenso passado. Mas não o pode o médico do organismo espiritual. O psicanalista tem que observar o processo do desenvolvimento da personalidade do paciente, para descobrir qual foi o choque inicial e o caminho percorrido pelo complexo a tratar, para acompanhá-lo até o seu estado presente, que só assim pode ser entendido. Enquanto não levarmos em conta tudo isto, os nossos métodos diagnósticos serão incompletos. Mas nem o médico só do corpo pode prescindir completamente de tais fatos. Espírito e matéria são conexos. Pode haver doenças físicas devidas a causas espirituais. Há doenças que são conseqüência de desequilíbrios no sistema nervoso, que dirige o funcionamento do sistema vegetativo. Então, doenças com verdadeira base atômica podem representar a última fase desta série de momentos sucessivos: 1) desordem espiritual; 2) desorientação psíquica; 3)desequilíbrio nervoso; 4) distúrbios funcionais; 5) alteração do ritmo vegetativo; 6) doença orgânica, aquela que o médico percebe e trata, isolada, sem levar em conta os seus precedentes, nem eliminar as suas primeiras causas.

O subconsciente do qual a psicanálise toma conhecimento é parcial, incompleto, porque abrange só as camadas mais recentes e superficiais da personalidade. Ora, o conhecimento de só um trecho da história do paciente não pode bastar para julgar o seu caso, e para o tratar. É necessário prolongar a pesquisa até às camadas profundas do eu, não parando no momento do nascimento, no qual a personalidade aparece já feita, como resultado do seu longo passado. Ótimo é o método da observação de tudo o que é manifestação instintiva do subconsciente, de tudo o que dele vemos ressurgir nos sonhos. Mas não poderemos entender o significado destes produtos e como neutralizá-los, se não soubermos retroceder ao longo de todo o caminho de seu desenvolvimento.

Acompanhemos, então, esta nova psicanálise no seu caminho retrospectivo na vida do indivíduo antes do nascimento. Há, antes de tudo, o período de prelúdio à existência física, vivido no ventre da mãe. Com a fecundação do óvulo materno se inicia a queda e fusão do espírito na matéria, o trabalho do eu para se revestir de uma forma que lhe permita entrar em contato com o mundo físico. Esta fase representa a descida no AS e é o período da vida mais obscuro e doloroso, tanto mais quanto o ser é evoluído, porque então tanto maior é a descida como perda de liberdade e conhecimento. Mas nem por isso o ser se torna insensível e perde a sua receptividade. É neste estado de permanência dentro do ventre materno que o ser é mais vulnerável, porque não possui nenhum meio para se defender e reagir, encontrando-se em posição de completa passividade e impressionabilidade. Ele tem de aceitar e absorver tudo o que lhe chega da parte do organismo físico-psíquico da mãe, que lhe fornece todo o material para a construção do corpo. O estado orgânico e mental da mãe vai-se assim imprimindo no eu do feto, e pode ser bom ou mau, alegre ou triste, sadio ou doente, como tal se transferindo à personalidade do filho. O feto percebe todos os movimentos maternos, suas crises nervosas, seus esforços e sofrimentos, assim recebendo impressões e choques que ficam gravados no subconsciente, do qual depois ressurgirão na forma de impulsos e complexos. O terreno da psicanálise é sobretudo este das influências mentais da parte da mãe sobre o organismo psíquico do filho, terreno importante de pesquisas para descobrir a origem de tantos impulsos instintivos, atitudes mentais e complexos do filho.

Apesar de tudo isto, a sua personalidade estava já feita. A estratificação deste período não é senão uma das mais recentes, debaixo da qual existem camadas mais velhas e profundas, as das vidas precedentes. Para chegar até lá, é preciso aprofundar a pesquisa no período pré-natal. O que se encontra no feto, utilizando o material orgânico fornecido pelo pai e mãe, é uma personalidade que já se construiu até um dado ponto de sua evolução, e que agora inicia em continuação um novo trecho daquele caminho e trabalho, do qual representa o resultado. Ora como passa este resultado de uma vida para a outra? Que acontece, qual é a forma de vida, no período de além-túmulo? E preciso enfrentar o problema da personalidade humana em todos os seus aspectos, conhecer a sua história em todos os seus momentos, inclusive nos períodos de existência que chamamos além - túmulo.

Kant afirmou que passar da forma de vida, a do ser vivo, à forma de vida, a do ser que e chamamos  de morto, significa:  uma metamorfose da percepção sensória em percepção espiritual. Isto é o que constitui o outro mundo. Não se trata então de um lugar diferente, mas só de uma diferente maneira de perceber". (Kant‘s Vorlesungen úber Psychologie). Eis que Kant intuiu a presença de duas formas de percepção opostas. Mas, que quer dizer mais exatamente percepção sensória e percepção espiritual? Procuremos responder a todas estas perguntas.

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Pela lei do dualismo universal, que tudo divide e reúne em duas partes inversas e complementares, como conseqüência da originária cisão em S e AS, também o ser na sua unidade está dividido em duas partes inversas e complementares, que constituem os dois pólos, positivo e negativo do eu, isto é, o consciente e o inconsciente. No início da fase evolutiva, no nível do AS ou matéria, o inconsciente era total, era ignorância que dominava todo o ser. Era um vazio que à experimentação do existir cabia encher, por camadas sucessivas como vimos, sobrepostas ao longo da subida da evolução, para escalar o céu, assim voltando ao espírito - ao S.

Em nossa vida essas duas partes cumprem duas funções opostas, dois trabalhos que se completam reciprocamente. O ser oscila de um ao outro nas suas duas formas de existência, que são a vida e a morte. Eles são alternos. Um funciona no período de vida de encarnado, o outro no período de desencarnado. A vida nunca pára no seu trabalho evolutivo, sempre ansiosa de atingir o seu objetivo final. Nesse trabalho há, porém, uma contínua inversão, ele se realiza sempre emborcando a sua posição relativamente à precedente. Quais são, então, esses dois tipos de trabalho?

No período de vida de encarnado, o ser executa na forma de consciente a fase do seu trabalho de construção da personalidade, projetando-se por meio dos sentidos no mundo exterior, no ambiente físico terrestre, aí realizando experiências, recebendo impressões por reações que lhe vão ensinando, por intermédio da dor, o que nos seus movimentos foi certo e o que foi errado, em relação à Lei que representa a lição que o ser tem de aprender para voltar ao S. De momento tudo fica registrado e armazenado no inconsciente.

No período de vida de .desencarnado, o ser faz o trabalho oposto, ou melhor, a fase oposta do mesmo trabalho bipolar, em forma que, relativamente à precedente, parece passiva e inconsciente, mas que em substância não é senão uma forma situada nos antípodas, esta também de atividade e de consciência. Trata-se, então, somente de dois tipos de trabalho, cada um por sua vez e ambos ativos e conscientes, ou melhor, trata-se de duas posições do mesmo trabalho construtivo do eu, mas cada uma, alternativamente, ativa e consciente com relação à outra, que ao mesmo tempo se encontra na fase oposta, de descanso, passiva e inconsciente.

O trabalho que o ser realiza no período de desencarnado é interior, introspectivo, em ambiente imaterial, para transformar em substância própria o que em vida foi rapidamente engolido, para meditar, entender, organizar o que foi só registrado e armazenado no período de encarnado. As experiências vividas nessa fase, as impressões recebidas, foram só guardadas e gravadas, sem por isso constituírem um ensinamento compreendido e aprendido. É necessário agora um trabalho diferente, que complete o precedente, um processo inverso, de elaboração, digestão e assimilação desse material, para que ele se torne qualidade da personalidade, patrimônio do eu, impulso instintivo, forma na qual tudo deverá depois ressurgir na fase de atividade, no consciente. Sem esse segundo trabalho de assimilação, não se poderia realizar o crescimento do eu através das suas vidas, o seu enriquecimento e desenvolvimento, que representam o conteúdo e a realização da evolução.

Eis o tipo de trabalho que o ser realiza no período de desencarnado, numa forma de atividade que é inversa e complementar à do período de encarnado. Eis o que em duas formas opostas garante a continuidade do processo evolutivo. Eis o fio condutor que a psicanálise pode seguir para percorrer de novo, para trás, o caminho percorrido pelo indivíduo no passado, até ao momento atual de sua história.

O ser existe em duas posições, a do dia e a da noite, isto é: no período de encarnado num estado acordado no que respeita à matéria e adormecido no que respeita ao espírito; e no período de desencarnado num estado adormecido no que respeita à matéria e acordado no que respeita ao espírito. A passagem da vida desta sua forma à outra de morte representa um deslocamento do centro ativo do eu do exterior para o interior, um voltar-se para dentro do que antes estava dirigido para fora. E ao contrário a passagem da morte à vida representa um deslocamento do centro ativo do eu do interior para o exterior, um voltar-se para fora do que antes estava dirigido para dentro. Assim o período de exteriorização se completa com o oposto de interiorizarão. Mas em relação ao mundo físico é ativada e positiva a fase vida, e passiva e negativa a fase morte; e em relação ao mundo espiritual é ativa e positiva a fase morte, e passiva e negativa a fase vida. Um desencarnado é um adormecido a respeito dos vivos, o qual acordará em nosso mundo da matéria pelo seu nascimento físico. Um encarnado é um adormecido a respeito dos mortos, o qual acordará no mundo espiritual pela sua morte. Com esta inversão de posições é possível para o ser um trabalho contínuo, alternativamente num dos dois lados, ao mesmo tempo que ele descansa do outro.

A vida só é completa se concebida juntando ambas as fases opostas. Ela é um contínuo adormecer de um lado e acordar do outro e ao contrário, sempre trabalhando no lado acordado, enquanto repousa no lado adormecido. Eis, então, que a vida do além-túmulo significa um acordar na profundeza do inconsciente, enquanto no período de vida na matéria, a consciência fica limitada à superfície do eu. Mas é naquela profundeza que está escrita a história do indivíduo, e está escondida a parte mais importante e secreta da sua personalidade, aquela que é tarefa da psicanálise descobrir. Em substância, trata-se de dois aspectos ou momentos do mesmo fenômeno, da mesma consciência que vai oscilando de um pólo ao outro do eu, assim percorrendo-o todo, seguindo duas diferentes formas de atividade e aprendizagem, nas quais ele fica sempre desperto, trabalhando para a sua construção, uma vez durante o período de encarnado, outra vez durante o de desencarnado. Ambas as formas de atividade são necessárias, como a de comer e a de digerir  A primeira representa a fase da conquista para se apoderar do material, a segunda a fase de sua absorção, para o mesmo objetivo que é sempre o enriquecimento do eu.

Assim, tudo permanece vivo, o que pertenceu à vida que morreu. Assim a morte é relativa e aparente, é só um parêntese de repouso com respeito à parte oposta, que está ativa no período da vida. Assim a verdadeira vida, que é a do espírito, na forma de desencarnado, fica interrompida pela sua forma oposta no período de existência na matéria, devido à queda no AS, que aquele período representa, mas do qual, com a evolução que é regresso ao S, o ser, cada dia mais, vai se libertando. Podemos agora compreender quanto uma psicanálise que fica limitada à observação apenas do período físico desse duplo processo da vida, seja incompleta e incapaz para julgar tudo o que pertence à personalidade humana.

O mais interessante para descobrir os mistérios da personalidade humana é penetrar o conteúdo e o sentido dessa outra vida interior, que na fase atual de vida física está adormecida no inconsciente. Que acontece nesta estranha forma de existência que vivemos depois de ter pertencido ao mundo físico e antes de voltar a ele? Podemos agora ver como se realiza o processo do crescimento do eu em evolução. As experiências da vida descem ao subconsciente, nele se estratificando por camadas sucessivas e aí ficando gravadas e armazenadas. No período de desencarnado não se trata de captar novas experiências no mundo exterior, mas de ficar no mundo interior, para elaborar o que foi adquirido, meditando sobre o que foi vivido. Este é o material a analisar, compreender, ordenar, num profundo exame de consciência, para entender o que foi feito e o que é necessário ainda fazer, para se orientar e resolver, tomando decisões e diretrizes, para continuar o caminho da evolução em nova vida que seguirá. Isto pode significar tomar resoluções tremendas, às quais depois o ser poderá ficar acorrentado fatalmente. No estudo da personalidade humana, é necessário levar em conta também tais auto-sugestões por nós mesmos impressas no subconsciente no período pré-natal, porque depois no período da vida física elas poderão ressurgir do subconsciente na forma de impulsos instintivos e idéias inatas enxertando-se irresistíveis na parte determinística de nosso destino.

Nas jazidas do subconsciente fica depositado tudo o que nele colocamos. De lá ele está pronto para ressuscitar no consciente da vida atual. Em substância, se trata de uma restituição, pela qual o subconsciente devolve ao consciente o material que na vida este conquistou e lhe transmitiu, e que agora o consciente recebe de volta, mas elaborado e assimilado em forma de impulsos e qualidades pessoais. Isto prova quanto as duas formas de vida estejam fundidas na mesma unidade, da qual não representam senão dois aspectos ou momentos. Há entre elas, como entre dois vasos comunicantes, uma contínua troca do material construtivo da personalidade, o qual, assim viajando de uma para outra, pode sucessivamente ser adquirido, ingerido, elaborado, assimilado, atravessando esta forma todas as fases do processo construtivo do eu, até ficar por fim definitivamente assimilado.

Temos de levar em conta também outro fato. Nestes dois tipos de vida (apesar de interrompidos a cada passo, cada um para se mudar na sua forma contrária), há uma continuidade pelo fato de que, depois dessa interrupção no período oposto, cada um volta à sua forma de vida precedente. Vemos assim que em substância se trata só de duas imensas vidas, uma num pólo do ser, o positivo, e outra no outro, o negativo, vidas maiores que abrangem todo o caminho evolutivo, nas quais os pequenos trechos de cada vida particular se juntam numa série, que é o que constitui uma vida completa de cada um dos dois tipos. Temos, assim, de um lado uma imensa vida de tipo físico, e de outro lado, outra imensa vida de tipo espiritual.

Que acontece com a evolução? A vida de tipo negativo ou físico corresponde ao AS. A vida de tipo positivo ou espiritual corresponde ao S. A tarefa da evolução é a de transformar o primeiro tipo de existência no segundo. Trata-se de um processo evolutivo, isto é, de endireitar o inverso processo involutivo, que foi de emborcamento do tipo de existência do S, no oposto tipo de existência, o do AS. Com a evolução, vai gradativamente diminuindo a forma de existência de tipo físico (AS = matéria), e aumentando a forma de existência de tipo espiritual (S = espírito). Em substância, trata-se de uma só vida, que perde suas características negativas e adquire as positivas; trata-se de um processo de transformação das qualidades do AS nas do S, até que estas prevaleçam e cubram todo o terreno da vida. Então, ela se torna toda positiva, porque todo o negativismo do AS foi reabsorvido e neutralizado pelo processo evolutivo,em direção ao S.

Trata-se de duas imensas vidas, ou melhor de dois aspectos de todo o existir: o negativo, do AS, poderoso, ao máximo, no início do processo evolutivo, mas que vai diminuindo com este até desaparecer; e o positivo, do S, pela precedente involução reduzido ao mínimo no início do processo evolutivo, mas que se vai potencializando com este, até atingir o domínio absoluto e assim eliminar o outro. Em conclusão, temos então uma existência única que se realiza em duas formas opostas, oscilando entre o seu lado negativo e o seu lado positivo, mas pelo impulso da evolução sempre mais para o positivo, até que o tipo de existência todo negativo se transforma no tipo de existência todo positivo, isto é, o AS no S. É lógico que a vida não possa estar senão em função do maior fenômeno do universo, que é por evolução a transformação do AS em S.

Nesta altura é necessário esclarecer dúvidas que podem surgir focalizando alguns pontos há pouco mencionados, que agora podemos compreender melhor, coisa que pode interessar à psicanálise. Os fenômenos da personalidade humana são diferentes conforme sua natureza, a qual depende da posição atingida ao longo do caminho da evolução. O ser entende e pode livremente dirigir-se em proporção ao seu grau de desenvolvimento. Só o evoluído sabe viver em estado de lucidez no período de desencarnado. O involuído, nesta fase, fica ignorante. como ele o era em vida. Então a sua compreensão das experiências vividas é limitada, não sabe ir além de reações automáticas, retraindo-se para trás, mudando de caminho e se dirigindo para outros, nos pontos onde ele acabou chocando-se com a dor. Assim as resoluções, de que há pouco falávamos, para orientar sua vida futura, são diferentes para cada indivíduo, tanto mais inteligentes, livres e poderosas, quanto mais o ser é evoluído. Com a evolução se torna sempre maior a reserva de sabedoria armazenada no inconsciente, de modo que a de um evoluído pode ser imensa, apesar de não emergir na consciência normal no período de vida material.

Do nível evolutivo depende a intensidade da vida de desencarnado, como clareza de compreensão, profundidade de penetração, autonomia de juízo, poder de decisão, organicidade de movimentos, liberdade de orientação. No período de desencarnado o ser vive tanto mais acordado, quanto mais ele é evoluído. Com a evolução, que é destruição do AS, o sono da morte, que é produto dele, se torna cada vez menos profundo, de modo que representa um estado bem desperto para o evoluído. Ora, com a descida involutiva se potencializa a vida na matéria e se enfraquece e adormece a vida no espírito; assim também, a subida evolutiva se potencializa a vida no espírito e se enfraquece a vida na matéria. Com a evolução aumenta a parte do eu constituída pelo inconsciente. Mas este é considerado como tal só a respeito do consciente na vida da matéria, enquanto por sua vez constitui o consciente na vida do espírito. Isto significa que com a evolução aumenta o patrimônio espiritual, por reabsorção do AS na reconstrução do S. Esta é uma conquista do existir em sentido positivo, isto é, vida no espírito ou S, por eliminação do seu emborcamento ao negativo, isto é, morte na matéria ou AS. Esta é a função da evolução: conquista de vida por destruição da morte; acordar-nos no espírito, libertando-nos da inconsciência, fruto da involução.

O  patrimônio, com o qual o indivíduo nasce, é aquele que ele possuía no período de desencarnado. Então a vida do indivíduo nos pode revelar o trabalho que ele fez naquele período, o que ele elaborou, entendeu e assimilou das experiências vividas, e o que ele resolveu fazer na vida atual como conseqüência de seu passado. Claro que um evoluído, ficando consciente, pode pensar e resolver muita coisa, inteligentemente dirigindo sua evolução com uma sábia e esclarecida escolha das condições de sua nova vida. Um involuído nada sabe fazer de tudo isto. Então no seu sono não há para ele outra possibilidade, senão ser arrastado como um destroço pelas correntes da vida, cegamente obedecendo à vontade da Lei. Eis que o conteúdo e o trabalho da vida de desencarnado não são iguais para todos. Quanto mais o ser evolui, tanto mais pelo maior conhecimento ele se torna consciente das diretrizes da Lei e de suas decisões em função dela. A evolução é conquista de consciência, de autonomia, de liberdade, porque vai do AS ao S. A vida se torna, assim, sempre menos trabalho passivo e cega tentativa, e sempre mais trabalho orgânico de construção do eu.

O evoluído vive sabendo, o que representa uma imensa vantagem, porque o conhecimento evita o erro do qual deriva a dor. O involuído vive sem saber, o que significa errar a cada passo e ter de pagar o erro com a dor. Ele ainda tem de errar e muito sofrer, até conquistar a sabedoria que os mais adiantados já conquistaram, e que agora é inalienável patrimônio seu. Cada um vive com o que possui. Patrimônio diferente de um indivíduo para outro, conforme foi o seu trabalho no passado. O primitivo conhece só alguns jogos de astúcia para enganar o próximo nesta vida, e nisto está toda a sua sabedoria, que ele usa como lícito meio de defesa porque, como os animais, não possui coisa melhor. O evoluído, para cada ato seu exige conhecer as razões profundas que o justifiquem e o tornem útil para ele, em função das supremas finalidades da existência.

De tudo isto, se pode-se entender quão desiguais sejam no período de desencarnado os trabalhos de preparação para uma nova vida, se se trata de um involuído ou de um evoluído; quão diversas são as premissas com que tal vida nova aparece em nosso mundo; quão diferente, como qualidade e quantidade, pode ser a bagagem que cada indivíduo leva consigo, escondida no seu subconsciente. Eis qual é o terreno imenso no qual a psicanálise tem de penetrar com as suas pesquisas, eis o que é tarefa dela descobrir para entender, e como assim lhe seja possível inteligentemente tratar das doenças psíquicas e espirituais de seus pacientes, cumprindo, assim, sua nobre tarefa.