Vamos contar uma história singular, procurando compreender o seu significado íntimo. Observaremos o desenrolar de uma vida, analisando-a não tanto nos fatos externos, mas na luz interior que os une em um nexo lógico, o qual converge em direção a determinadas realizações espirituais.

Era pouco mais de meia-noite, e, no seu quarto sobre o mar, à beira do Atlântico, em terra brasileira, um homem de 77 anos de idade orava, como era seu hábito, antes de se deitar.

A sua oração não era a habitual série de lamentos e pedidos dirigida, sem receber resposta, a alguém escondido no mistério. A sua oração era um intercâmbio de sentimentos e pensamentos, um colóquio. Alguém respondia do outro lado, onde estava presente outro pensamento, paralelo e sintonizado. O que era este outro centro vivo e pensante? Era o subconsciente, ou o superconsciente do sujeito? Era uma distinta entidade espiritual pessoalmente individualizável, ou uma corrente de pensamento? Era um desdobramento patológico da personalidade, ou pura criação do desejo e da fé, uma simples ilusão? Em nenhum outro campo é tão necessário manter o espírito crítico e positivo como neste dos misteriosos fenômenos parapsicológicos, no qual é fácil perder-se em fantasias, como, aliás, sucede frequentemente. Eis que, logo no início desta história, surge um problema para resolver. Ao longo do caminho, muitos outros aparecerão, e os iremos solucionando.

Um fato positivo ocorreu naquele momento em que o pensamento interior assim se expressou, dizendo a quem estava a orar:

"Esta é uma noite de festa. Esqueceste, mas recorda: exatamente há 32 anos, nesta mesma noite, nos primeiros dias de setembro de 1931, tomaste perante Deus a maior decisão da tua vida, iniciando com ela o desenvolvimento da tua missão e o caminho do teu atual período terrestre de ascese espiritual, decisão à qual depois foste sempre fiel, realizando assim o teu destino lá que não recordas, procura entre os teus velhos papéis e no teu diário daquele ano, mês e dia, onde encontrarás tudo descrito. Com este assunto iniciarás, consequentemente, um novo livro no final da segunda Obra, falando do teu destino, que se desenrolou seguindo Cristo. Começarás a escrever hoje mesmo" (era pouco mais de meia-noite, e o novo dia mal havia despontado).

No diário foi, subitamente, tudo encontrado, com exata correspondência de datas e de fatos. Foi assim que nasceu este novo volume, iniciado no princípio de setembro de 1963. Decidimos agora, narrar esta estranha história para compreender o seu íntimo significado, como dizíamos anteriormente.

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Numa tranquila paisagem campestre da Úmbria franciscana, nas proximidades de Perugia, que está a um passo de Assis, na Itália, no suave calor matutino do sol de setembro, um homem de 45 anos de idade subia sozinho a doce inclinação de uma colina. Estava perto de 14 de setembro, dia em que São Francisco, em 1224, recebera os estigmas na montanha do Verna (a cena é descrita no volume: A Nova Civilização do Terceiro Milênio)

Naquela manhã radiosa, aquele homem emergia de duas noites de profunda luta espiritual. A grande decisão tinha sido tomada sumariamente, amadurecida no silêncio da noite. Agora esperava a sua solene confirmação perante Deus, à luz do dia. Aquele homem resolveu despojar-se das suas grandes riquezas, das quais podia livremente dispor e com as quais poderia ter gozado a vida. Tomara esta decisão, a fim de se adaptar a uma simples e dura existência de trabalho material para viver. Mas o seu objetivo era sobretudo viver uma vida espiritual não só para si, mas para o bem dos seus semelhantes.

Despojar-se em favor de quem? Esta é a primeira pergunta que em tais casos faz o mundo, ao qual não interessa de modo algum conhecer os problemas espirituais do próximo, mas antes saber aonde foi parar o tesouro, que é a coisa mais importante na Terra. Aqui delineai-se, subitamente, o desentendimento entre dois modos opostos de conceber a vida. Se ele era louco, pior para ele. Isto não interessava. O maior problema para o mundo são os bens terrenos, não os espirituais, tanto assim que estes se põem a serviço daqueles. Neste caso, então, não precisava esperar consentimentos. Por isso ele só falou com Deus, seguindo outra moral que não lhe permitia uma vida fácil à custa do trabalho alheio; e sim, exclusivamente com o fruto do seu trabalho, devia, conscientemente, sustentar-se e a sua família.

A perspectiva era dura, e a luta para vencer não foi fácil. Mas o espírito venceu, o Evangelho tinha triunfado, apesar de saber que aquele ato significava o início de outro tipo de vida: em lugar da existência do rico ocioso num bem-estar que não foi ganho, a de quem deve ganhar, com o seu próprio trabalho, o pão cotidiano. Era outro modo de vida, a que permaneceu fiel até o fim.

Aquele homem subia a colina com o coração leve, envolvido na euforia de um grande triunfo espiritual. Uma espécie de potente vibração em alta tensão se estava concentrando e acumulando dentro dele. Ao mesmo tempo ele sentia, confusamente, que alguma coisa, ainda não perceptível, se estava condensando à sua volta, sem forma ainda definida. A tensão ia-se tornando sempre mais intensa. Que estaria acontecendo? Algo de irresistível se estava apossando dele. No entanto, continuava bem desperto, em plena consciência. Caminhava lentamente, via, observava, apercebia-se de tudo. Não estava sonhando. Uma realidade nova o golpeava, diversa daquela sensória que bem conhecia. E andava, observando e confrontando, com atenção e plena lucidez da mente, as duas realidades.

Uma capacidade perceptiva diferente da normal o advertia da presença de outros seres perto dele, vivos, entidades pensantes como ele. Mas ainda não conseguia individualizá-las, perceber-lhes a forma e o pensamento.

Continuou a subir até que desembocou numa larga vereda, no cume da colina que agora era um plano com algumas oliveiras espalhadas pela amplitude. Solidão silenciosa. Aqui diminuiu o passo. Era quase 11 horas da manhã. A natureza entoava uma das suas imensas sinfonias, na qual, em sublime orquestração, se harmonizavam as multiformes vibrações do ser, que iam de uma forma de vida a outra, das pedras às plantas, dos insetos aos passarinhos, das luzes e cores da Terra e do céu ao respiro da atmosfera; todos os seres harmonizados com tudo o que existia, cantavam o próprio hino à vida. A hora e a estação eram propicias, proporcionando a base necessária sobre a qual tais fenômenos espirituais pudessem surgir, até tomarem forma numa manifestação sensível. Talvez o ambiente da natureza fosse igual ao que tantos séculos atrás tornou possível para São Francisco, no Verna, o milagre dos estigmas. Certas condições naturais devem ser necessárias para construir a trama fundamental do fenômeno sobre a qual depois o espírito traça a sua figura. Parece que este fenômeno, por vezes, não pode verificar-se e ter lugar a sua manifestação, a não ser no meio destas grandes orquestrações da natureza e com elas sintonizado, por elas erguido e sobre elas elevando-se como motivo supremo que domina toda a sinfonia.

Ele caminhava, lentamente, sem meta, como levado por uma grande música que cantava no seu coração.  De vez em quando parava para melhor ouvi-la. Solidão e, tudo ao redor, silêncio. Nenhuma presença humana profanava o cântico imenso da Terra e do céu, nos quais se expressavam e fundiam a beleza do criado, a sensibilidade do poeta, a paixão do místico, a suprema aspiração do espírito.

Sentia como se sua alma saísse da prisão do corpo, quebrasse a barreira do limite que divide as duas formas de vida: material e espiritual, e, superado o plano físico e rebentadas as portas, entrasse em outro mundo, mais alto e longínquo, feito de outra realidade, em que ele agora se movimentava e vivia. Percebia, então, que para ele passava para segundo plano a comum percepção sensorial, prevalecendo em seu lugar diferente tipo de percepção, realizada com outros sentidos, agora interiores, mas capazes de sentir com a mesma potência e segurança, se bem que em forma diversa. Experiência imensa, arrebatadora, que não se pode descrevei, porque só quem a viveu pode conhecê-la verdadeiramente.

Foi assim que, com outra visão, interior, diferente para os olhos físicos, e com outra audição, interna também, diversa para o ouvido físico, ele começou a perceber que se definiam duas formas a seu lado. Tornava-se-lhe difícil situá-las na dimensão espaço. Todavia. sob este aspecto, elas lhe davam a sensação de uma massa da altura e configuração de um ser humano em que se podia individualizar a cabeça e embaixo um corpo, mas o todo evanescente, como se fora feito de neblina e sempre menos definido quanto mais embaixo, e assim até se dissipar no indefinido da parte inferior. O que lhe parecia estranho era o fato de que, mesmo sem extremidades visíveis, sem nenhum movimento físico, estas duas formas que estavam junto de si, uma de cada lado, caminhavam com ele. Podia observar com exatidão tudo isso, porque estava perfeitamente lúcido, em plena consciência, nos dois planos de existência: o material e o espiritual. Distinguia e registrava aquilo que podia perceber, com os dois diferentes tipos de sentidos.

Assim continuou a caminhar e com ele avançando as duas formas paralelas. Isto durou cerca de vinte minutos, pelo que teve tempo de controlar tudo e de fixá-lo em sua memória, para depois analisar o fenômeno com a psicologia racional, positiva, independente de estados emotivos. Melhor não o poderia fazer: desliga-se do fenômeno ao desdobrar-se nas duas posições de sujeito e observador, fundidas ambas, agora, no mesmo funcionamento.

Continuou a observar. As duas formas não constituíam só uma indefinida manifestação de presença Cada uma delas transmitia à sua percepção interior uma típica e individual vibração que a definia como pessoa. Foi assim que ele pôde logo sentir com clareza inequívoca que à sua esquerda estava a figura de São Francisco e à sua direita a de Cristo. Eles se deslocavam com ele, caminhando, mas não havia colóquio, nem transmissão de pensamentos particulares. A presença deles se concentrava, acima de tudo, numa solene afirmação da própria identidade individual.

 Não houve testemunhas humanas. Será que, se tivesse havido, elas teriam percebido? Ou fora bom que não tivesse existido, pois, assim poderiam ter paralisado o fenômeno? No entanto, a observação foi exata até ao ponto de se notar: houve uma pequena testemunha e ela demonstrou ter sentido que alguma coisa estava acontecendo. Aquele homem estava acompanhado do seu cachorrinho, acostumado a andar a sua volta. Pois bem, naqueles poucos minutos, ele se comportou diversamente do habitual. Ele se manteve a sua volta, ladrando para alguém ou alguma coisa que devia estar percebendo perto do dono. Sem este fato não se explica tal comportamento excepcional, que não tinha outra causa aparente naquela solidão. Aquele cachorro não podia falar e dizer o que havia percebido. Mas era certo que demonstrava haver sentido qualquer coisa

Percorrido aquele trecho do caminho e aquele breve período de tempo, a alta tensão não pôde ser mais suportada, e a visão se desfez lentamente. Não ficou senão o ambiente externo, aquele que os sentidos físicos normalmente percebem, somente as coisas que todos veem e às quais, porque se veem sempre, pouca importância se dá. O céu se fechou, e tudo voltou como antes, como se nada tivesse acontecido. A visão, no entanto, ficou indelével, gravada a fogo naquela alma, como uma queimadura de luz, uma ferida de amor que jamais o tempo poderá cancelar, feita de saudade, de uma contínua e angustiante espera para se reencontrar. A visão passou como uma arrebatadora paixão que queima, mas fecunda, deixando uma semente n‘alma. Ela ficou escondida, depois germinou durante sua existência terrena; cresceu, frutificou, produziu novas sementes, para depois brotar, crescer, frutificar novamente noutro lugar, noutras almas, operando o milagre da multiplicação da vida em mais alto nível, no plano espiritual. Desde o momento cm que aconteceu aquele fato interior, que não foi visto, talvez, por mais ninguém a não ser ele, aquele homem não mais parou. Aquele instante foi o ponto de partida da revelação de um destino, lançado naquela direção. De fato, ele depois se desenvolveu como se seguisse uma fatal concatenação de eventos que têm confirmado a verdade das inspirações interiores, que, derivando daquela primeira visão, continuaram a dirigir sua vida até o fim. Não se trata, portanto, somente de um momentâneo fenômeno de parapsicologia, mas do completar-se de um destino firmado sobre esse fenômeno que, em sequência, vem desenrolando-se através de uma série de fatos a ele ligados, como seu lógico desenvolvimento.

Aqui já se estão delineando alguns dos muitos aspectos de tal acontecimento. Mesmo que a ciência não nos saiba dar uma explicação completa sobre ele, resta o fato de que ele ocorreu e as suas consequências se realizaram. Poderá ser julgado um sonho, uma fantasia, a alucinação de um histérico, ou caso patológico, mas não há dúvida de que ele constituiu a pedra fundamental da construção de uma vida, desenvolvida com estreita coerência para finalidades preestabelecidas, fixadas no momento em que o fenômeno ocorreu. Ora, o acaso, a alucinação, o patológico não podem produzir uma inteligente coordenação de eventos e a constante execução de um programa, como sucedeu durante 32 anos, até hoje. Além do fato parapsicológico aqui se estuda o problema do destino, sem o qual não se pode compreender porque, num determinado momento da vida de um homem, aquele fenômeno se verificou com a exata função de colocar, confirmando aquela visão, como ponto de partida decisivo para consequências de tal importância.

O voto de pobreza não foi fantasia, porque foi mantido durante toda a vida. Duas semanas depois da visão, aquele homem, abandonando confortos e riquezas, estava já ganhando, como pobre, o seu pão em terra longínqua, vivendo num quartinho alugado, como professor, no interior da Sicília. Foi neste ambiente de pobreza que a visão continuou, mas de outra forma, como comunicação de espírito ou colóquio, que nunca mais parou, mantendo um contato incessante. Na primavera de 1932, quando nada se podia prever, a inspiração traçou um plano de trabalho anunciando a composição de uma Obra, já no seu 20º volume, com cerca de 8.000 páginas difundidas no mundo. Tudo isso que se previu à tanta distância de tempo, realizou-se. É óbvio que as doenças mentais não podem produzir tais resultados.

Se se quiser admitir que este empenho na pobreza tenha sido uma loucura inútil, é também necessário reconhecer que sem isso aquela Obra não teria podido nascer, nem depois realizar-se. Isto porque ela tem uma base, um significado moral e, portanto, exigia, por coerência, que o exemplo fosse dado por quem a escrevia, isto é, que fosse vivido realmente o Evangelho, não apenas pregado e transformado em retórica e hipocrisia. Esta é uma verdade que não se baseia em erudição teológica, mas é temperada pela luta e pelo sofrimento da própria experiência, para se ter o direito de expô-la aos outros. Quem, com os fatos, não demonstra estar convencido, não pode persuadir ninguém; quem não vive um princípio não pode pedir aos outros que o vivam; quem não demonstra saber primeiro transformar-se a si mesmo não pode ensinar os outros a se transformarem. Se não fizer tudo isso, será melhor calar-se, porque as pessoas compreendem o jogo, e o engano convida ao engano do qual se está dando exemplo.  Então, em nome do Evangelho, está-se ensinando a mentir.  Essa Obra não é, pois, simples trabalho de literatura ou exibição de erudito, mas significa o cumprimento de uma missão espiritual da qual aqueles livros são apenas um meio. E a execução de uma misto investe a existência inteira de um indivíduo, exige o seu trabalho contínuo, o seu sacrifício, até ao seu completo holocausto.

Neste ponto se fecha a cena e termina a história. Alguma coisa aconteceu, mas ninguém sabe dizer exatamente o que foi. Os juízos são diversos, conforme o ponto de referência em função do qual são formulados. Neste voto há os que nele podem ver o sublime, outros a loucura, outros ainda a estupidez de um inepto. Mas os juízos humanos são relativos e as apreciações diferentes, dependendo dos resultados. Se o louco vence, então é considerado com respeito. Se perde, mesmo que ele seja grande, é tido como bobo. Será que tais fenômenos podem ser julgados por uma humanidade em que o único ponto de referência é dado pela lei animal da seleção do mais forte por meio de uma feroz luta pela vida? Admitamos que este caso represente uma utopia perante a realidade do mundo. Vale, no entanto, observar como tal utopia funciona na Terra, como, apesar de tudo, foi já vivida por indivíduos reputados excelsos e proclamada como virtude de desprendimento e superação, pelo Evangelho e por outras religiões. Isso nos permitirá não só assinalar vários aspectos de nossa vida individual e social, como descobrir verdades abrasadoras escondidas sob um manto de hipocrisia. Será, então, bom não ter pressa e guardar o juízo para o fim desta história.