Observemos agora o caso que estamos examinando sob outro ponto de vista, isto é, em relação ao Evangelho. O primeiro fato salta aos olhos: o nosso personagem o tomou a sério. Por que tão escandalosa revolta contra os hábitos do mundo?

A verdade é que a primeira origem de muitos dos nossos atos é axiomática, antecede ao controle racional, é um impulso filho do instinto; depende, portanto, da estrutura da própria personalidade. O motivo emerge da profundidade do subconsciente, sendo um retorno do que       foi escrito nas vidas passadas; tende, assim, a impor-se automaticamente como um sinal do destino. Tais problemas de psicanálise foram já tratados por nós no volume: Princípios de Uma Nova Ética, e não podemos aqui voltar a eles.

Em nosso caso, temos uma personalidade já feita, com as suas características bem definidas, resultado das experiências vividas com que ela se construiu. Encontramo-nos aqui perante o fato consumado: um indivíduo constituído de uma determinada forma mental, que estabelece para ele a sua particular visão da vida. E com ela dirige as suas ações, para enfim, satisfazer-se, realizando-se. Isto é devido à técnica construtiva da personalidade, à estrutura e desenvolvimento do próprio destino, para o qual a semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória estando as causas em nosso poder, mas não os efeitos. Um impulso uma vez lançado, deve fatalmente alcançar o seu objetivo, fase final da sua realização.

Ora, o que as experiências do passado tinham escrito com caracteres indeléveis no subconsciente de nosso personagem, agora, em forma de qualidades definitivamente adquiridas e exigindo satisfação, era uma fundamental norma de retidão baseada em princípios do Evangelho, uma moral segundo Cristo, nos antípodas à do mundo. A assimilação destes princípios tinha chegado à sua fase mais profunda de instinto; o indivíduo encontrava-se perante o que doravante se tornaria inevitável, porque, para poder seguir uma conduta diversa, ele deveria ter destruído ou, pelo menos, invertido o próprio tipo de personalidade. Ninguém pode deixar de ser o que é, e agir conforme a sua personalidade. As nossas obras nos perseguem, e somos feitos de nosso passado. Para outros, por terem percorrido passado diferente e se encontrarem noutras fases e condições de vida, adaptados, portanto, a superar inúmeras provas e a aprender várias lições seguindo outros destinos, esta história pode não ter importância. Todavia, para eles podem ser fundamentais, experiências totalmente diversas.  Há existências conduzidas em função de outros pontos de referência e com um modo de concebê-las de forma diferente. Mas o nosso personagem encontrava-se em sua posição e na fase dos efeitos, ou zona determinística do seu destino, e assim era fatal que seguisse o seu impulso evangélico.

Esta premissa era necessária para explicar psicanaliticamente tão estranha psicologia, contrária aos gostos da maioria, sendo, deste modo, contraproducente à sua sobrevivência e absurda perante a lei fundamental do plano humano — a luta pela vida. Já sabemos qual foi a primeira causa determinante de um modo de pensar e de viver tão estranhos. Vemo-lo logicamente colocado no seio do desenvolvimento de um destino como um momento e elemento constitutivo deste, justificado não só pelos precedentes de que deriva, como pelas conclusões que de fato atinge no final.

No fundo daquela alma está escrito o Evangelho, agora já em forma de instinto, de maneira que ele não podia fazer outra coisa senão segui-lo, como todos são levados a fazer com os próprios instintos. No seu destino, como premissa axiomática, existia uma predisposição congênita para seguir Cristo e o Evangelho, como havia uma instintiva repugnância por todas as adaptações e contorções às quais o mundo os submete para conciliá-los às suas próprias comodidades e interesses. Assim, a posição dele era clara, sem hipocrisia, sem cortes e subentendidos, como aplicação íntegra, não reduzida a limitadas percentagens. Portanto, nenhum sentido de forçada imposição, mas adesão convicta e espontânea a um processo salutar de superamento.

Eis o que diz o Evangelho:

"Vai, vende quanto possuis, oferece-o aos pobres e terás um tesouro no céu; vem e segue-me

Depois acrescenta subitamente: "É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus".

Estas palavras são repetidas por São Mateus (XIX - 21 e 24): por São Marcos (X - 21 e 25); por São Lucas (XVIII   22 e 25). Depois de tais confirmações, não pode haver dúvida sobre o    seu significado.

Em seguida, o próprio São Lucas confirma com as palavras de Cristo: "Assim, quem dentre vós não renunciar a tudo isso que possui não pode ser meu discípulo (São Lucas XIV - 33).

São Mateus (VI - 19, 21, 24 e 33) confirma: "Não acumuleis tesouros na Terra (...). "Onde estiver o vosso tesouro aí estará também o vosso coração". "Ninguém poderá servir a dois senhores; ou amará a um e odiará o outro, ou se afeiçoará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e a Mamom". "Aproximai-vos acima de tudo do reino de Deus e da Sua justiça, todo o resto vos será dado por acréscimo.

A linguagem é bem clara, e é difícil invertê-la. Procura-se então, silenciá-la ou fugir-lhe com qualquer escapatória lateral. A função de interpretar, muitas vezes, é a de torcer o pensamento original, fazendo-o dizer aquilo que se quer.  Procurou-se, assim, entender a pobreza no sentido de desprendimento dos bens, pelo que ela se reduz à pura atitude mental e à renúncia, a uma posição puramente teórica, que oferece a imensa vantagem prática de conservar a própria riqueza sem nada perder. Desse modo se alcança a seguinte finalidade: permanece-se dono, continuando a dispor e a gozar de tudo, enquanto, simultaneamente, qualificando-se de desprendido, observa-se santamente o Evangelho. Estes são os produtos da sapiência do mundo. O espírito é colocado a serviço do corpo e vale como meio para vencer na luta pela vida. Temos sempre o habitual emborcamento. Mas para o homem comum isto é normal, justo e moral. E ele está convencido disto, porque é a ética do seu plano, necessária à sua sobrevivência.

Todavia, as afirmações assim tão diversas do Evangelho, perante a riqueza, justificam-se na medida em que elas são entendidas não em relação à vida terrena mas em função do desenvolvimento espiritual, isto é, da evolução dirigida para planos superiores de existência. Podemos, então, perguntar-nos: que significado aquelas afirmações evangélicas podem assumir se, ao contrário forem observadas em relação ao nosso ambiente terreno? Pode parecer que Cristo, ao opor-se à riqueza, tenha sido inimigo da produção dos meios de subsistência, tão necessários à vida, e, portanto, tenha sido inimigo da própria vida, pelo menos no plano terreno. Como se justificam em nosso mundo as condenações de Cristo quando Ele fala de posse, de riqueza, de tesouro, de apego às coisas materiais, de supérfluo, quando tudo isso representa afirmação neste mundo? Pareceria então que no Evangelho a colocação do problema econômico, tão importante entre os vivos, seja feita em forma negativa, não a favor mas em oposição à vida, contra a qual aquele Evangelho tomaria uma atitude agressiva. É verdade que isso se faz em vista de uma superação para atingir um tipo de vida mais alta. Será que se tem o direito de impulsionar o próprio esforço evolutivo até ao ponto de liquidar a vida de tipo inferior, para a qual o ser se encontra apenas maduro? Em que sentido Cristo podia ter razão no seu tempo, perante aquele mundo, e como a poderá ter perante o mundo de hoje?

 Em primeiro lugar Cristo não era contra o uso de bens, mas contra o abuso que deles se costuma fazer. Também nós, quando vemos alguém fazer mau uso de uma coisa, para remediar somos levados a destruí-la e até a eliminar quem de tal modo a usa. É por essa razão que com o comunismo parte da humanidade queria abolir o instituto da propriedade em todo o mundo e, onde pôde, eliminou os ricos.

Acontecia, pois, que nos tempos de Cristo com respeito ao problema econômico eram inconcebíveis as soluções modernas, no sentido da justiça social. Naqueles tempos estes conceitos não existiam e uma justiça neste sentido não se podia, de modo algum, encontrá-la. Eis que não se podia propor aquela justiça a não ser projetada como uma esperança noutros ambientes extraterrenos, porque era impossível no mundo feroz de então, quando necessariamente condicionada a sua própria fuga. Assim, tendo em vista um outro maior tipo de vida, o Evangelho  procura evadir-se do problema  econômico tal como hoje é entendida e enfrentado. Trata-o apenas sumariamente, em proporção à fase atrasada daquele mundo, em que tudo se encontrava no estado rudimentar. A justiça social do Evangelho fica limitada aos seus elementos de base, ignorando qualquer técnica distributiva, desenvolvendo-se, pois, em condições diversas. O fato de haver colocado o problema no seu aspecto espiritual em vez de o colocar no aspecto material, em função de um ponto de referência situado fora da realidade terrena e de suas leis, o deslocou para posição longínqua, em vez de uma realização próxima, imediata, concreta.

Nos tempos de Cristo o trabalho era em forma de escravidão, mais do que um meio de produção. Naquele tempo o possuir significava uma riqueza em mãos do dono, que com a força tinha conseguido submeter outros à posição de seus servos. Estava-se ainda em plena fase de banditismo, ignorando-se todo e qualquer cálculo de direitos e deveres, tendente à colaboração produtiva no interesse comum. Nestas condições o problema da justiça social somente podia ser enfrentado, sumariamente, condenando os ricos, os escravagistas opressores, e fazendo-os liquidar a sua riqueza, e do lado oposto consolando os servos, como tais sem remédio, prometendo-lhes no além uma compensação à injustiça presente, mal inevitável, porque se sabia muito bem que os ricos não obedeceriam de fato ao Evangelho. Dessa forma se continuou ao longo dos séculos. O pagamento da injustiça presente era lançado para o Além, no qual os ricos, que, entretanto, gozavam, deveriam ser castigados, e os pobres, que, entretanto, sofriam, deveriam ser premiados. Para estes paciência e resignação, e por consolação a esperança de uma futura vida melhor quem sabe onde, nos céus. Mas que outra coisa se podia dizer então? Estava-se ainda muito longe do saber-se organizar em sistemas mais equitativos de liberdade e valorização do trabalho, num regime de operosidade geral no qual quem possui é um trabalhador sobre o que possui, sendo ele, ainda, um meio de produção.

É natural que naquelas condições, nos tempos de Cristo, a riqueza fosse uma coisa maldita, porque fruto de prepotência e instrumento de opressão. Até hoje ela pode tomar esta forma, tornando-se maldição, tratada como peste, como Cristo a tratou. Perante aquela estrutura social outro remédio não se podia oferecer. E isso foi aceito também pelos ricos porque para eles era muito mais cômodo mandar a justiça para um outro mundo e, entretanto, gozar neste a vantagem positiva da injustiça em seu favor. Ora, naquele ambiente eles tinham plenamente razão na medida em que, como opressores, eram os mais fortes e os oprimidos os mais fracos. Era, portanto, justa, segundo as leis da terra, a sua posição de domínio.

Naqueles tempos entre capital e trabalho não podia haver outras relações senão as de vencedores e vencido, de patrão e servo, de explorador e explorado, isto é, de inimizade e luta. Falta de compreensão e colaboração. Quando a sociedade se encontra nestas condições, a justiça econômica não se pode alcançar senão, como fez o Evangelho, aconselhando os ricos a abandonar as suas riquezas, ou, como fez o comunismo, suprimindo-as. Quando existe o mal, o remédio somente se pode aplicar onde o mal se encontra. Antigamente era inútil ensinar aos operários honestidade e operosidade para atingir uma produção melhor e maior, quando isto se resolvia para seu prejuízo e para vantagem do seu inimigo, ou seja, servia para engordar o seu opressor e com isso reforçar as suas cadeias de escravos. Então o interesse do operário era de trabalhar, mas produzir o menos possível. Também, pela sua natureza ele se encontrava na fase da besta a ser domesticada, que sem o chicote não se movia. Havia, pois, a necessidade de um patrão domador. Não podia existir senão um sistema econômico fechado neste círculo. Patrões e servos estão proporcionados uns aos outros. Fica-se, desse modo, condenado o método do chicote, muito deplorável  porque gera ódios e destruições, tendendo a paralisar em vez de produzir. Àquele povo Cristo não podia propor remédios realizáveis na terra, quando tanto a riqueza como o trabalho eram coisas malditas e não existia nenhum conceito de produtividade no interesse coletivo nem de organização econômica para alcançá-la.

O conselho, segundo o conceito moderno, de meter-se todos a trabalhar, ricos e pobres, para produzir, não podia existir no Evangelho, porque naqueles tempos isto era inconcebível. Vigorava naquela época o sistema escravagista que levava à revolta, e não à  produção. Num tal regime de antagonismos, a maior parte das energias se utilizavam para lutar, não para produzir. Hoje se procura, pelo contrário, lutar sempre menos para produzir sempre mais, o que é muito mais vantajoso para ambas as partes. Há uma tendência ao colaboracionismo; harmonizando-se no interesse comum, os dois termos opostos e complementares: capital e trabalho. Fazendo deles duas formas equivalentes de atividade produtiva, ambas necessárias compostas de duas especialidades, uma na parte financeira e de organização, a outra na parte material executiva.

As condições da economia dos povos a quem Cristo falava podem ser observadas, ainda hoje, nos países subdesenvolvidos. Neles vemos de um lado o senhor ocioso e inepto que engorda explorando os seus dependentes, do outro trabalhadores preguiçosos, ineptos, ladrões, pagos com salários de fome, revoltados contra o trabalho que para eles é escravidão sem esperança, um esforço inútil. Mas eles próprios são o fruto de tal sistema que a isto os educa. O resultado é péssimo trabalho, mínima produção, miséria, impossibilidade de elevar o nível de vida, porque fica dissecada ao nascer a primeira fonte de riqueza que é o trabalho. Não se pode construir sobre o ódio, que em vez de produzir está ansioso por desabafar com atos de vandalismo contra qualquer forma de civilização.

Cristo teria razão também hoje em condenar os ricos se andasse em países desse tipo, como em todos os casos em que a riqueza não é honesta. Cristo fala de supérfluo ao tipo nababo de seu tempo. Mas é culpa de todos os tempos e lugares possuir riqueza daquele modo. Assim, o possuir se faz sempre menos culpado quanto mais ele se organiza em trabalho produtivo para todos, como é a tendência moderna. No caso aqui tomado em exame, a renúncia aos bens materiais não significou retirar-se ociosamente como se fora num convento medieval, mas entregar-se à atividade da mente, que, no entanto, é um tipo de trabalho útil à sociedade. Esta era a capacidade daquele indivíduo, que servia para todos e a cada um, que obtinha dessa forma, maior rendimento, conforme seu poder de assimilação. E oferecendo aquilo que de melhor se possui, que cada um pode enquadrar-se mais utilmente no organismo coletivo. E até os produtos espirituais são necessários à vida. Não se vive apenas de pão. Além da meta do bem-estar material, existem metas mais altas e longínquas a alcançar, em direção às quais a evolução impulsiona. Eis que no cálculo utilitário da vida pode entrar, ao lado da sua concessão material, também uma de natureza espiritual; a primeira se esgota na terra, e a segunda abre o caminho para mais vastos horizontes.

Para o tipo comum os problemas fundamentais são comer e reproduzir-se. Ele usa as suas faculdades mentais sobretudo para estes dois objetivos. Como animal, resolvidos estes dois problemas, ele não enxerga outros e se detém satisfeito. Estes preenchem todo o seu horizonte, além do qual ele não procura mais nada. O indivíduo mais evoluído vê mais longe, surgindo para ele outros problemas de que o mundo não se dá conta. Ele sente a necessidade de dar um objetivo à sua vida e de viver em função de realizações maiores que a superem. As atividades se deslocam para um nível evolutivo mais avançado. Alcança-se outra visão da vida e um conceito diferente de justiça e moral. Então, o Evangelho não é mais um peso, um obstáculo de virtudes para delas nos libertarmos, mas uma necessidade que devemos realizar através de nossa própria conduta. Eis a posição de nosso personagem. A sua fome não era engordar, enriquecer e se reproduzir, mas evoluir; uma febre que se apossa do indivíduo quando este atinge, no cimo, o seu plano de evolução e é chegado o momento em que ele deve efetuar o salto, a fim de passar a um nível superior. A isto se pode chamar crise de maturação. É natural no desenvolvimento do ser e faz parte das leis da vida. Mas quem se encontra em outras posições biológicas, mergulhado no seu próprio ambiente, não pode possuir nem compreender uma febre assim, que, entretanto, o alcançará quando checar a sua hora.

Procuremos aqui explicar, à forma mental do nível humano comum, o que o homem concebe e pretende realizar quando, ao evoluir, atinge, mentalmente, um plano mais elevado. A loucura de nosso personagem, como a do Evangelho, consiste precisamente nesta diferença de nível evolutivo. Para quem é mais evoluído, o ideal, que constitui uma antecipação de posições biológicas mais avançadas, torna-se realidade próxima, exatamente porque ele subiu, e esta se faz tanto menos abstrata e teórica quanto mais perto estiver fazendo, portanto, cada vez mais pressão para se tornar realidade vivida. Mas, para quem é menos evoluído, o ideal aparece como realidade distante, tanto mais abstrata e teórica quanto mais, em virtude da involução do indivíduo, ela é longínqua e, portanto, menos pressão faz para realizar-se.

É  natural que o indivíduo, mergulhado na luta pela vida, não queira ter ideais que lhe impeçam o caminho.  Para ele, são obstáculos que lhe dificultam a sobrevivência. Procura, então, libertar-se deles por qualquer meio. O método mais seguido, portanto, mais fácil não é o de enfrentá-los, porque são, oficialmente, venerados e considerados mais evoluídos, mas iludi-los com a hipocrisia.  Assim se pode, sem na realidade os seguir, salvar os próprios interesses, fazendo ao mesmo tempo ótima figura de santos idealistas e de sensatas pessoas de bem, merecedoras de toda a estima e respeito. Mostrar-lhes que o Evangelho é outra coisa é ofendê-los, porque descobre o jogo e tolhe a arma de astúcia com que se defendem. O nosso personagem não podia usar esse sistema; as forças da vida o lançavam em outro sentido, para fazer-lhe dar um salto que o levaria para uma fase mais acima.

Continuemos a observar o assunto que estamos examinando. Se o nosso personagem era louco perante o mundo, no entanto, na sua loucura, ele tinha Cristo do seu lado, Isto provava qual era a sua verdadeira posição. No plano do ideal ele se encontrava no seu próprio elemento. O Evangelho para ele era uma afirmação, uma conquista, um acréscimo de vida, uma expansão, e não, como significava para o mundo, uma repressão ou uma mutilação. Era por isso que ele vivia o Evangelho: não por um esforço de virtude, mas para sua satisfação. No fundo, ele se realizava conforme a sua natureza. Queria ser cristão segundo Cristo e não de acordo com o mundo. Uma paixão mística o dominava, numa ânsia de ascensão para viver o seu ideal sempre mais intensamente. Tudo fazia sob o olhar de Cristo, sentia o pensamento e o calor que emanava daquela presença. Algo de indelével emergia do seu passado, impressões potentes que os milênios não tiveram a força de fazer esquecer. Por momentos aflorava da profundidade do seu espírito, como uma visão, a recordação de uma figura querida e sublime que encarnava o seu ideal e constituía o seu modelo. Contemplava-o, reconhecia-o. não podia esquecê-lo. Ele era o centro da sua vida, como um destino que não se pode deixar de seguir.

Sob a irradiação de conceitos e sentimentos de que aquela figura o inundava, ele vivia para cumprir a sua obra e missão. Trabalhava mergulhado nesta atmosfera. A realização dos seus sonhos estava situada muito longe da Terra. Aqui era apenas um exilado de passagem, dirigindo-se para outros lugares. Não vivia apenas uma breve existência no mundo, porém uma vida imensa na eternidade. Ele tinha nascido e existia para produzir uma obra de pensamento que não era apenas uma construção espiritual para o bem dos outros. Ela era uma contribuição importante para o desenvolvimento de sua personalidade, na medida em que elevava para um plano mais alto o seu edifício espiritual. Aquela obra representava a ascensão a um novo grau de evolução que o aproximava sempre mais do seu modelo. Havia entrado no seu campo gravitacional, e a sua órbita já não podia girar senão ao redor dele, restringindo sempre mais as suas espirais. Encontrava-se na fase determinística dos efeitos, fatal consequência das premissas colocadas no passado; não podia, portanto, fugir ao natural amadurecimento do fenômeno. Por isso, era prisioneiro do seu próprio destino.

Sem dúvida, era condição indispensável para que pudesse cumprir o seu trabalho: ter as mãos limpas, ser livre das coisas do mundo e, em primeiro lugar, das riquezas. Os bens em si mesmos não são maus, porém o mau uso deles é o pecado clássico do homem. A sua posse, desde a sua primeira origem, está manchada por egoísmo, avidez, prepotência e injustiça. Estas características impregnaram a riqueza e ela as transporta consigo, infectando quem a possui; ademais, são continuamente usadas para conquistá-la e frequentemente necessárias para conservá-la. Assim, riqueza e honestidade nem sempre se encontram unidas. À volta da riqueza se soltam as maiores cobiças humanas. Por isso, em relação a este assunto tão fundamental, o nosso personagem eliminou-o de sua vida, seguindo o Evangelho.

Existia também o fato de que ele não podia desperdiçar as suas qualidades mentais, usando-as para fins materiais, porque deviam servir para outro tino de trabalho. Como o homem comum procura libertar-se do ideal, porque o incomoda na luta terrena, assim o nosso personagem se libertava das coisas mundanas que o incomodavam na luta pelo espírito. Não há margem para lutar ao mesmo tempo em dois níveis diversos, fazendo a guerra em duas frentes. Cada um se livra daquilo que está fora do seu plano de trabalho e restringe a luta a uma só frente. Desse modo, o nosso personagem limitou-se ao nível espiritual, por ele escolhido, abandonando o restante.

Tudo isso para ele não era somente questão de moral, mas problema de higiene espiritual com finalidade protetora. Dissemos há pouco que a riqueza, pelas qualidades de que está impregnada, pode infectar quem a retém. Se ela não foi adquirida com justiça, mais cedo ou mais tarde termina escapando das mãos de quem a possui, corrigindo, assim, o mal para adquiri-la. Pode suceder ainda: se uma riqueza está impregnada de forças maléficas, acaba envenenando quem a possui e quem está em contato com ela. Todas as coisas são vivas e trazem consigo, restituindo a quem delas se aproxima, a carga recebida no passado.  Possuir significa identificar-se, como um parentesco de sangue, com aquilo que se tem, assimilando-lhe as qualidades e forças de que foi carregado e que depois imantam quem o possuir. O nosso personagem não podia entrar nesse vórtice de ondas barônticas.

Por isso, ele resolve à sua maneira o grande e atual problema do mundo: a justiça econômica. Praticou-a em sentido evangélico, em forma de dever, em vez de direito, isto é, do rico que dá e não do pobre que assalta para tomar; em forma de amor evangélico e não de luta de classes. Se a aristocracia da Idade Média tivesse feito isso, não teria ocorrido a Revolução Francesa. Se a burguesia capitalista que a substituiu tivesse feito o mesmo, não teria nascido o atual Comunismo. Aquelas riquezas estavam envenenadas na sua origem e corromperam quem as possuía. A riqueza não poderá ser pacífica e segura enquanto não for sã, fruto de trabalho honesto. As leis de Deus e a sua justiça dominam tudo, inclusive o campo econômico. Somos livres, mas devemos sofrer as consequências de nossos atos. Julgamos que podemos escapar-lhes, mas depois a Lei de Deus nos restitui toda a carga de nossos malefícios.

O nosso personagem colocou-se fora desse terreno, não estimulando tais reações. Se ele tivesse aceito o compromisso e pactuado com ele, teria de pagar mais tarde. Conhecia as leis da vida e as vias da sabedoria, traçadas pelo modelo. Para libertar-se das consequências, não havia senão a ausência de culpa para com as causas. Sabia que tudo é dirigido por uma ordem na qual Deus se coloca em primeiro lugar. Foi o primeiro a dar o exemplo de que a liberdade não é capricho ou arbítrio, mas liberdade na ordem, e quando feita de desordem leva ao caos e pertence ao AS, nunca ao S. Assim, Deus não sai da Sua Lei, criada por Ele mesmo que é a Sua própria expressão. Fugir-Lhe seria contradizer-se, ir contra si mesmo. Sabemos que Deus deve ser algo justo, bom, lógico, perfeito, e que não pode ser o contrário. A desordem, no entanto, existe em nosso universo, mas a vemos circunscrita, isolada no seio da ordem, que a domina, fechando-a dentro de confins bem definidos. Num mar de ordem, existem ilhas de desordem. O próprio AS não é senão uma zona doente no corpo do S, isto é, da ordem de Deus, responsável por tudo.

Assim, o nosso personagem procurou não entrar na faixa da desordem e ficou na da ordem. Não obstante devesse viver materialmente transplantado na Terra, procurou no grande organismo permanecer aderente à ordem de Deus, porque sabia que só Nele é possível encontrar a salvação. A Obra era feita desta ordem. Ela mostrava o funcionamento orgânico físico-dinâmico-espiritual do universo, dirigido por Deus. Depois de ter, primeiramente, compreendido tudo isso e explicado aos outros, enxertara-se de fato nesta ordem para viver dentro dela, em harmonia com o todo, como acontece no S, e não em posição separatista de rebelde, como sucede no AS. Assim, ele se propôs a viver orientado em direção ao S e não ao AS, como elemento de ordem que faz parte dele, e não como um componente de desordem fora do S isto é, dispôs-se a viver em união com Deus e em sintonia com a Sua Lei.

Para poder caminhar em direção ao grande centro, ele se apoiava em Cristo como guia e ajuda, em Cristo que também é Deus. Em que sentido Cristo é Deus, vimos no Capítulo XIV: "A Essência de Cristo", do volume: Deus e Universo. Ele é uma criatura do S, não rebelde e não caída, que ficou na ordem e pureza da criação originária. Portanto, é uma criatura não inquinada de culpa, tendo permanecido íntegra na sua natureza divina, como foi criada. Assim, Cristo é verdadeiramente um filho de Deus, mas não decaído como nós. Somos também filhos de Deus, mas derrocados no AS. Cristo é um dos elementos da multidão que constitui a terceira pessoa da trindade. A primeira é Deus no estado de pensamento, isto e, o Espírito. A segunda é Deus no estado de vontade em ação, isto é, o Pai. A terceira é Deus no estado de obra realizada, isto é, a criação. Ela foi primeiramente pensada, depois desejada e, finalmente, realizada. Tal obra é o Sistema perfeito da primeira criação, um organismo de criaturas, ainda não despedaçado pela queda no AS, que constitui o nosso universo de matéria, em antítese ao S, universo do espírito. O S é o estado orgânico em que Deus se transformou com a primeira criação, totalmente espiritual. Nela não existia ainda o nosso universo físico, resultado da queda. Cristo é um dos muitos elementos do estado orgânico originário, na sua forma ainda íntegra, como foi criada por Deus.

O fato de apoiar-se em Cristo tinha para o nosso personagem uma importância fundamental. Com isso ele vinha gravitando em direção ao S, desvinculando-se do campo gravitacional do AS; orientando-se em direção ao primeiro, afastando-se do segundo. Assim biologicamente bem orientado, ele dirigia-se para o polo positivo do ser, que o colocava numa posição de vantagem, porque, dessa maneira, estava seguindo a Lei de Deus, preso na grande corrente da evolução que tudo conduz para Ele. Isto o levava para o alto, em direção ao bem e à alegria. Apesar de constrangido a viver no mundo, ele se destacava deste cada vez mais, tornando-se independente, cidadão da ordem e não da desordem.

Não se tratava de abstrações. Aquela ordem existia dentro dele e como tal funcionava. Em vez de ser ignorância, egoísmo e guerra, era conhecimento, amor e paz. Mesmo que o mundo exterior permanecesse como tal, o nosso personagem mudava completamente o seu mundo interior, porque várias forças o atraiam, outras leis funcionavam em sua nova posição evolutiva, reações eram provocadas pelos diferentes tipos de movimentos. Ainda que lá fora reinasse a desordem do AS, neste deserto ele tinha construído para si um oásis de paz interior, uma ilha emergindo do mar desse caos, na qual tudo era harmonia com Deus. Assim, podia viver a sua verdadeira vida ao lado de Cristo, diversa daquela aparente que vivia o mundo. Podia viver à sua vontade no seu mundo interior, no qual não era mais um exilado como o era na Terra. A segunda metade de sua vida, empregada para escrever a Obra, ele a tinha vivido neste outro mundo do espírito; tinha estabelecido o contato e fixado um liame definitivo com a fonte da sua inspiração, que representava mais uma experiência, como a outra, que os milênios não tiveram a força necessária para fazer esquecê-la.

Se este era o resultado para o indivíduo, a Obra representava o mesmo para a sociedade. Era uma semente que ficava no mundo, para o mundo, depois que ele partisse. Mas, no período da sua formação, a Obra constituía, com a vida do autor, a mesma coisa. Tinha vivido para realizá-la.  Era, por sua vez o fruto que valorizava a sua vida. Foi um todo único e compacto: ter sentido a Obra como pensamento e, ao mesmo tempo, tê-la vivido como norma de conduta. Agora que estamos chegando ao seu fim. É possível ver que também nela existe um princípio de unidade, dado pela fusão de dois elementos de um dualismo. De fato, por causa de vicissitudes terrenas, a Obra (S), ao entrar no mundo (AS), partiu-se em duas, escrita em dois hemisférios, nos antípodas, como S e AS, para depois se recompor em uma unidade, duas obras em uma, como o dualismo S e AS é destinado a ser reabsorvido no S. Eis que a Obra reproduz o motivo central do fenômeno cósmico que descreve e que nela, deste modo, se reflete.

Nos seus volumes conclusivos, a segunda Obra representa uma descida ao mundo, em zona do AS. Assim, depois de ter exposto as verdades do S, ela nos mostra o que é a Terra perante o Céu, o mundo perante Cristo, enquanto nos faz sentir o choque entre os dois polos do dualismo. Dividindo-se em duas partes, a Obra percorreu tudo, de um extremo a outro, permanecendo, contudo, una, completando-se com a oposição de dois termos contrários e complementares.

Olhando agora para o caminho percorrido, podemos compreender o significado do trabalho realizado. Mesmo aqui vemos um dualismo que se resolve em unidade. Temos duas coisas que se fundiram numa só: a construção de uma Obra e o cumprimento de um destino; um trabalho que justificou e preencheu uma existência. e uma vida que serviu para realizar esse trabalho. Dois termos que colaboram: um homem que construiu uma Obra e uma Obra que edificou um homem. Tudo no fim se recompõe em unidade. O mesmo homem que vive para pensar uma Obra, pensa-a para vivê-la e assim realizar-se.

Paralelamente, uma vida constituída de duas partes: a primeira metade ligada às coisas do mundo, a segunda dedicada à realização da obra espiritual. Esta foi iniciada na metade dessa vida, exatamente no fim do primeiro período e início do segundo. Duas partes opostas, que, não obstante, se completam reciprocamente, formando uma só existência. Esta por sua vez complementa-se nos seus dois aspectos, de vida material, exterior, e de vida espiritual, interior, formando somente uma.

Eis o que nos diz a história que estamos narrando. Nos fatos vividos vemos repetidos e confirmados os princípios gerais expostos na Obra. Assim, temos princípios e fatos, teoria e prática, abstração e realização, duas posições que parecem opostas e que, entretanto, são a mesma verdade. Vemos sempre repetir-se o tema da unidade que se despedaça no dualismo e deste que se reconstitui na unidade. Ecoa, assim, o princípio fundamental em todas as alturas. Podemos, desse modo, ver de que forma o motivo central do fenômeno resulta projetado na Obra. Num primeiro momento ele nos aparece no ápice do ser. É o dualismo monista: S e AS. Num segundo instante, ele se reflete na Obra, que o fotografa e o mostra até ao ponto em que ela mesma se despedaça em duas para depois reconstituir-se em unidade. No fim, a existência de um homem se divide em dois períodos que fazem uma só vida, na qual se realiza um destino de redenção que completa o caminho percorrido no passado, agora amadurecido até à catarse biológica dirigida para um plano mais alto de vivência.

Eis que imenso conteúdo se pode dar a uma existência vivida com consciência e conhecimento, em harmonia com o grande plano do existir, em contato com as verdades supremas, conforme a Lei de Deus. Eis em que pode tornar-se uma vida, quando a abrimos para tão vastos horizontes e a vivemos nas superiores dimensões do espírito, projetada para o centro do S, Deus, unidade suprema na qual se resolvem todas as cisões do dualismo. Reunificar o que foi despedaçado sanar o cisma da revolta, para passar do infernal caos do AS à ordem feliz do S, este é o objetivo da evolução, a último meta da existência. Dirigir-se com Cristo para Deus, para subir até Ele, e não descer com o mundo para o anti-Deus; viver unificado conforme o estilo do S, do lado de Deus, e não Dele separado segundo a maneira do AS, do lado oposto; eis o fato que pode transformar uma vida de miséria em uma existência de riqueza. A solução do problema da Salvação está na volta do estado de separação (AS) à união com Deus S. Com esse retorno, se resolve, por si próprio, o drama cósmico da queda, porque, dirigindo-se para o ponto de chegada, o ser, com o fechar-se do ciclo involutivo-evolutivo e a reunificação a Deus, volta ao ponto de partida, onde encontra a sua originária perfeição e felicidade.