Um Destino Seguindo Cristo

A história que estamos narrando foi vivida em função dos mais diversos problemas individuais e sociais, o que faz com que ela transcenda os limites do fato pessoal, de interesse muito relativo.  Para compreendê-la é necessário aqui enfrentar e resolver tais problemas Trata-se de um homem que viveu a seu modo, contra a corrente e, por isso, condenado, mas que agora apresenta a justificação racional da sua conduta, explicando quais são os erros na lógica do mundo. Assim, o tema que estamos aqui desenvolvendo, a renúncia aos bens materiais, nos leva a observar, com psico1ogia positiva, um estranho tipo de economia e de leis que lhe regulam o funcionamento, porque este se verifica, não obstante o mundo julgá-lo absurdo, já que representa um emborcamento do seu tipo de economia vigente. Observemos o fato.

O fenômeno econômico, segundo o qual se pesam e manejam os valores necessários à vida, reflete a dupla estrutura de nosso mundo em que encontramos presentes duas leis opostas: a do AS radicada no passado e ainda sobrevivente, e a do S em formação, como antecipação do futuro. Esta segunda lei entra em conflito com a primeira para substitui-la, ao mesmo tempo que, dentro desta última, os indivíduos igualmente combatem para se esmagarem reciprocamente. Mas a luta serve à vida na medida em que, no fundo, significa colaboração de contrários que, enquanto procuram elidir-se, se completam. Trata-se de destruir para reconstruir e, assim, renovar-se e evoluir. Desse modo, não é danosa a peleja em si mesma, e sim, aquela de tipo inferior, praticada no nível animal, quando o evoluído é condenado a fazê-la, em vez de a efetuar no plano intelectual e espiritual, onde é mais apto.

Esta oposição de leis coexistentes no mesmo terreno se explica e é justificada, porque a humanidade se encontra numa fase intermediária entre S e AS e em contínuo transformismo evolutivo, que a leva do AS para o S. Tudo pode ser entendido e utilizado de dois modos diversos e é suscetível de constante emborcamento. Assim, a moral, o Evangelho, o ideal podem ser compreendidos, seja como via de aperfeiçoamento, ou como meio de desfrutar a ingenuidade dos seus praticantes. A religião pode ser entendida e usada como virtude apropriada para ascender, mas também como pesquisa dos defeitos dos outros, para agredi-los nos pontos mais fracos. Na Terra é  possível usar uma lei, uma norma, uma moral, em sentido oposto ao verdadeiro, isto é, inverter tudo o que seria de tipo S, de maneira que, se na aparência continuasse a parecer como tal, de fato seria usado em forma de AS.

Desse modo, segundo os ideais principais do S, defende-se a não-resistência, como quer o Evangelho. Então, a, defesa deveria ser confiada à justiça num regime de ordem. Mas a realidade é o AS, em que a defesa é confiada às armas de cada um. Por isso, quando se descobre que o vizinho não as tem e, se as possui, não as usa por amor ao Evangelho, ele é esmagado, porque se pensa que não há razão para não o fazer, já que pode fazê-lo impunemente.

Não é verdade que o pecado é nefasto e que é coisa santa extirpá-lo? Por que, então, não fazer esta coisa santa, condenando e perseguindo o pecador? Como é fácil e cômodo fazer o emborcamento das coisas, que permite aplicar os princípios do S, transformando-os nos do AS!

Isto pode acontecer, porque, dada a evolução, não vivemos em um mundo de tipo único, mas de dois modelos de medida do valor de uma mesma coisa. As duas apreciações coexistem e as encontramos presentes em cada ponto e caso. Tudo pode ser visto e utilizado em função do S, como do AS. Eis que a realidade a cada passo pode ser interpretada de dois modos diversos. Pode, neste caso, assumir dois valores opostos. O dualismo a divide em dois aspectos, o que complica o jogo da vida, enquanto o transforma em outro duplo, deslocando continuamente o valor das coisas. Se digo a verdade, esta pode ser entendida como mentira. Se digo u‘a mentira posso conseguir que ela seja aceita como verdade. Assim, o mais alto ideal pode tornar-se hipocrisia e a virtude ser um engano. A religião pode ser compreendida, no seu verdadeiro sentido, como uma forma de aproximação do S, mas também em direção oposta, em forma de AS, como um meio de desfrutar a ingenuidade dos crentes. Então, não temos mais lobos e ovelhas, mas lobos camuflados de ovelhas para melhor devorá-las. Esses lobos são os mais zelosos pregadores do Evangelho. Gritam mais alto que os honestos, pois estes cuidam mais de praticar do que de pregar.

Na prática a bondade evangélica pode reduzir-se a uma técnica para a formação de desarmados em favor dos devoradores. De outro modo não pode acontecer num mundo cheio de lobos (AS) a procura de boas ovelhas de Deus (S) para devorá-las. A virtude dos melhores pode resolver-se num lauto banquete para os piores. Então, a não-resistência do Evangelho serve somente para fabricar mártires, o que significa primeiramente alimentar o sadismo dos perseguidores, seguindo-se o desfrutar daqueles mártires por parte dos sectários da religião, que lhes glorificam a memória para a grandeza do seu grupo, utilizando-a para sua própria vantagem. Também o rico que renuncia, seguindo o Evangelho, pode parecer um desperdiçador, e a esmola para o pobre ser um estímulo ao ócio. Em virtude desta duplicidade de apreciação, o santo pode parecer um louco semeador de desordem, e o que renuncia pode tornar-se um parasita de peso para a sociedade. De igual modo, o conselho evangélico: "Não vos preocupeis com o amanhã; a cada dia basta sua tarefa", pode ser entendido como imprevidência de um inconsciente. A expressão "jesuíta" (homem de Cristo) pode não ter o mesmo significado. Assim um ato, visto em função do S, pode ser sublime e, praticado como AS, pode tornar-se uma culpa.

Depois dessas premissas sobre a dupla estrutura de nosso mundo, podemos compreender como, ao lado da economia vigente na Terra, caracterizada pelas qualidades do AS, possa existir outro tipo oposto, tendente a assumir as qualidades do S. Este corresponde ao ideal, antecipação do futuro; o outro, à realidade atual, sobrevivência do passado. Os princípios sobre  os quais se baseia a economia do mundo são o egoísmo, o separatismo, a rivalidade, enquanto a outra parte, que poderemos chamar economia do céu, fundamenta-se no altruísmo, na unificação, na cooperação. É natural que, se a luta é a lei de nosso mundo, ela, neste plano, domina também o fenômeno econômico, e que este, nos dois níveis, contenha valores e se realize com métodos do tipo oposto.

A economia terrestre apresenta-se entre dois elementos separados em um castelo, cada um fechado na torre do próprio egoísmo, que abre suas portas para fazer entrar ou sair qualquer coisa desse castelo constituído pelo egoísmo alheio. Verifica-se, então, a troca, base do fenômeno econômico, a qual se realiza quando é reciprocamente vantajosa. Por isso, ela é bem calculada por ambas as partes, pesada na balança do "do ut des". A troca baseia-se no equilíbrio entre duas forças rivais, em luta, tendentes cada uma a sobrepujar a outra, mas cada uma reduzida à justa medida do constrangimento imposto pela reação da parte oposta. Até o acordo é o resultado de um estado de guerra, de um equilíbrio alcançado entre impulsos contrários. Mais do que isso não é possível obter num regime de luta. A equidade só se pode alcançar por mútuas concessões do próprio egoísmo em favor do outro, mas com vista à vantagem própria, ou, então, por compensação entre direitos e deveres, entre aquisições e concessões, satisfazendo, assim, as exigências igualmente egocêntricas dos dois termos opostos. Cada um dos dois procura tirar do próximo para si a maior utilidade possível e valor, enquanto o outro, por seu lado, luta para fazer o mesmo. Cada uma das duas partes tende a aproveitar-se da outra, tão logo esta não lhe saiba resistir. Procura-se, todavia, regularizar tal estado de luta disciplinando-lhe os movimentos e estabilizando-lhes os resultados com leis e normas administrativas. Alcança-se, assim, uma ordem relativa, o máximo que se pode obter neste nível.

A economia do céu é outro tipo de economia, regida por uma psicologia totalmente diversa. Agora, os dois termos em vez de trabalharem como rivais, separados pelo egoísmo no qual se fecham um contra o outro, cooperam unificados pelo altruísmo, que os leva a se abrirem mutuamente. Segue-se daí que ao método de concórdia forçada, pronta a romper-se, sobreposta num regime de discórdia, se substitui o método de harmonia espontânea, não como fato excepcional, mas normal, tendo como consequência fixar-se um regime de ordem, estável e definitivo. Ao regime de desconfiança se substitui um de confiança mútua, no qual desaparece a tendência para se explorarem reciprocamente, antes ajudando-se uns aos outros, tomando em consideração não apenas o interesse próprio, mas também o alheio. Então, ordem e justiça não se alcançam por imposição de uma disciplina forçada, sobreposta a forças rivais, para constrangê-las a ficar dentro de limites estabelecidos que elas procuram violar a cada passo. Não há necessidade alguma de controles policiais e métodos coativos para conter os violadores. Em suma, uma economia aberta, em vez da atual a portas fechadas, com barreiras levantadas a cada passo, necessárias para impedir aos desonestos violarem a ordem em que se equilibram direitos e deveres de cada um.

Os valores de troca na economia terrestre são representados por vários produtos, mercadorias e, sobretudo, pelo dinheiro, que lhes destila em síntese a utilidade que eles representam. Surge, assim, o problema da valorização, isto é, a contabilidade com que se dá a cada produto um preço conforme o custo de produção e a utilidade de consumo. Os elementos constitutivos do outro tipo de economia são sujeitos também à valorização e contabilidade, mas segundo outros princípios, dada a sua diferente natureza. E, se ambas as economias podem ter a sua contabilidade, deveremos admitir também que cada um possa ter o seu tipo de instituto bancário. Poderemos, assim, ter dois modelos opostos: um que tem como ponto de referência o AS, o outro que o tem no S; o primeiro poderemos chamar banco do mundo, o segundo, banco de Deus. O fato de que ambos existem nos permite observar o seu diverso funcionamento.

Nos dois casos são diferentes as relações entre indivíduo e banco, entendendo-se este como órgão a que o primeiro confia as suas economias e valores. Dado que cada um dos dois bancos é regido pelo seu próprio tipo de economia, AS e S, é lógico que ele funcione conforme os seus respectivos princípios, acima expostos. Dessa maneira acontece com o indivíduo, cliente do banco. Temos, assim, duas técnicas diferentes, uma vigente no mundo, praticada pelo banco e seu cliente, e a outra num plano evolutivo mais avançado,  utilizada pelo banco de Deus, bem como pelo seu depositante.

No banco do mundo vigora uma economia separatista, na qual, como vimos passar-se com a troca, os dois elementos — indivíduo e banco — permanecem encerrados no seu próprio egoísmo, enquanto a contabilidade se baseia exclusivamente no cálculo do próprio interesse individual. Realiza-se a troca, havendo uma ponte, através da qual se estabelece a comunicação. Mas os dois castelos que ela une são fechados e armados; não abrem as portas senão numa medida calculada e com motivos visíveis, cada um no seu próprio interesse, prontos a reagir e a fazer valer os seus direitos, quando estes não forem respeitados. A confiança não vai além desta estreita abertura. E é armada, pronta para a luta. O cliente confia ao estabelecimento de crédito os seus valores em forma de dinheiro, que lhe sintetiza a essência no plano humano, e exige garantias de segurança, que, por sua vez, o banco oferece para obter os depósitos de que tem necessidade. O titular da conta reclama os juros pelo capital que dá, enquanto a parte contrária os apresenta, porque lhe servem os fundos, com cuja colocação aufere lucros. O cliente é honesto, porque observa as regras impostas pelo banco. Este também o é visto que, de outra maneira, ninguém mais lhe confiaria os capitais. É verdade que isso, dentro dos seus limites, significa ordem, embora relativa, em relação ao que possa vir a ser rompido (por exemplo, o banco pode fechar as portas e não restituir o capital). Sucede ainda que se trata de ordem imposta de fora, de um a outro dos dois termos, forçada, mantida pelos impulsos da parte oposta, não inserida na natureza deste tipo de economia, que, ao contrário, é de rivalidade e luta, ao nível de AS. Além da linha do interesse próprio a cada um dos dois termos, não importa nada do outro, isto é, não interessa ao cliente se o banco vai a falência, e a este se aquele morre de fome. O acordo de ambas as partes existe somente em função do próprio egoísmo e se rompe, logo que este não seja satisfeito. Vemos aqui realizada a economia de tipo AS.

No banco de Deus vigora uma economia de modelo S, não separatista. Nela os dois elementos, indivíduo e banco, não fica cada um fechado no seu próprio egoísmo, não se comunicam apenas pela estreita ponte do interesse pessoal. Os dois castelos não são fechados e armados, mas abertos e comunicantes, de modo que entre eles não passa somente a pequena corrente que a abertura apertada e calculada permite, mas todo o fluxo da vida, em qualquer das suas formas, para uma troca contínua e universal de valores. Estes não são somente os econômicos, que permitem a aquisição de bens materiais, mas também valores morais e espirituais, igualmente úteis e necessários para a sobrevivência. Trata-se de uma economia mais vasta e completa, que abarca, além dos valores do banco do mundo, aqueles mais altos que este ignora e que se encontra somente no banco de Deus.

Neste a confiança não é limitada e armada, pronta para a luta, como naquele. O cliente se oferece com ilimitada segurança; sem pedir controles e garantias defensivas da honestidade do órgão bancário, e isto de modo absoluto, sabendo que ele está automaticamente certo de que não será defraudado em coisa alguma. Tudo funciona dentro de um regime comum e unitário, em perfeita fusão de vantagens conforme a justiça, em vez de cálculo e luta entre interesses opostos. Os dois termos não são honestos de modo forçado, mas espontâneo, porque eles mesmos são constituídos de uma ordem interior, inserida na sua natureza, e que, portanto, não se pode destruir. Com os métodos do S a justiça não pode ser violada. Não existem antagonismos, mas acordo completo, convergência de finalidades, funcionamento em uníssono, ajuda recíproca e constante.

O banco de Deus atua com princípios diversos dos do mundo; ele é amigo do cliente e o ajuda em tudo aquilo de que este tem necessidade. Com previdência total, sustém-no em cada precisão, seja qual for; acompanha-o no desenvolvimento de seu destino, no cumprimento dos seus deveres; conforta-o e ilumina-o moralmente; procura o bem para ele e lhe dá forças para que o busque para si, inclusive aquilo de que precisa para viver. O cliente, por sua vez, é amigo do banco e o segue, enquadrando-se disciplinadamente na sua ordem, confiando-lhe todos os seus valores, cumprindo todo o seu dever, obedecendo ao mesmo regulamento de absoluta honestidade que o estabelecimento observa, tudo num regime de mútua confiança e de inviolável justiça. Cada valor depositado no banco de Deus recebe os seus juros equitativos, e, se ele concede empréstimos, não há possibilidade de usura. O valor de cada boa ação dá o seu fruto, que fica propriedade integral de quem a praticou. Não há rivalidades, nem possibilidade de evasão da justiça; não existe perigo de perda por furto, inflação, desvalorização monetária, crises econômicas, erros de contabilidade, desastres, guerras; não há necessidade de controle administrativo, de coações disciplinares, de desconfianças e defesas. O banco de Deus não engana, não comete erros, nunca entra em falência. O interessado é garantido de modo absoluto.

Se os valores que se depositam ali não são feitos de dinheiro, nem por isso eles deixam de ser tais e, portanto, sujeitos às leis econômicas. Eles representam um trabalho, logo um custo de produção. São suscetíveis de propriedade a favor de quem se esforçou para a conquistar; significam uma utilidade para vantagem de quem a possui; podem ser depositados no seio da Justiça da Lei de Deus, na qual se escreve o dar e o haver, a cargo e a favor de quem os depositou. A contabilidade fica toda registrada com exatidão nos equilíbrios da Lei, que tudo regula e dirige. Neste grande livro está assinalada a conta de cada um conforme as suas obras, segundo os reais valores que ele produziu, seja ao positivo S, seja ao negativo AS, calculados de acordo com a justiça divina.

Não se trata de fantasia. Um dia a ciência chegará a medir esses valores e a descobrir essas leis. No volume Queda e Salvação, calculamos a reação da Lei para tais valores, em bem ou em mal. Eles são investimentos que o cliente faz no banco de Deus. Esta reação representa o pagamento que ele recebe no guichê do banco, conforme o valor de bens ou ativo depositado a seu crédito, capital; ou de mal, acumulado como passivo, a restituir à justiça divina, como débito próprio. Trata-se de leis positivas como as da Física e da Química, de forças que podem produzir efeitos terríveis: trata-se de moral racional e religião científica que permanecem verdadeiras e funcionam tanto para os ateus, quanto para quem não as conheça ou não acredite nelas. Ignorar ou negar as leis da vida não pode impedir que elas se apliquem aos fatos.

É evidente que nos encontramos perante dois diferentes tipos de economia, e cada um deles toma forma e funciona no seu próprio banco. Qualquer deles faz parte de um mundo de diferente nível biológico. Eles correspondem a dois diversos planos de evolução. São, portanto, o expoente de dois métodos diversos de vida: o do céu, praticado pelo homem justo; e o do mundo, baseado no egoísmo, na rivalidade, na avidez e no engano. O primeiro é um sistema em equilíbrio, para o qual basta ser honesto, e tudo funciona, automaticamente, em perfeita justiça. O segundo é um sistema de lutas, isto é, de equilíbrios instáveis, mantidos pela força, a qual não pode garantir certeza alguma. No primeiro caso a ordem é alcançada de forma estável, bastando integrar-se nela pelo cumprimento do próprio dever, para que tudo funcione bem por si mesmo. Foi assim que o Evangelho pôde dizer: "Procura acima de tudo o reino de Deus e a sua justiça, e todo o resto te será dado por acréscimo" (Mateus VI, 53). No segundo caso, a ordem está ainda por alcançar, porque, no caos, não existe outra garantia senão a própria força com a qual cada indivíduo se pode impor a todos. No primeiro caso, ele vive num mundo de elementos amigos, e, reciprocamente, cooperam todos, pelo que basta unificarem-se para ter garantida a sobrevivência, que é sempre o problema fundamental. No segundo, o indivíduo está num mundo de elementos inimigos com quem deve fazer as contas a cada passo, se quiser sobreviver. No primeiro exemplo, é função da Lei dar o que esperamos, pelo que não é necessário pedir e exigir. No segundo, ficamos abandonados às nossas forças e nada podemos obter senão nos impondo, fazendo valer os nossos próprias direitos.

Usar um ou outro método, servir-nos de um ou de outro banco depende do nível evolutivo em que vive e labuta o indivíduo. Em nosso mundo cada um pratica o sistema que mais se adapta à sua natureza e recebe o correspondente tratamento. O fato é individual. Cada um põe em movimento o mecanismo que deseja e recolhe por sua conta aquilo que semeia. Assim, o banco de Deus pode funcionar também, na Terra, para vantagem do indivíduo, se este se achar em grau de saber comportar-se conforme aquele tipo de economia. Se ele trabalhar segundo o tipo oposto, também o banco funcionará ao contrário, com todas as consequências desfavoráveis. No fundo, esta ideia de banco significa a presença da Lei, a sua contabilidade quer dizer a técnica das suas reações, como acima dizíamos, e constitui fenômeno amplamente ilustrado por nós, noutros lugares.

Quem tem consciência e conhecimento sabe como funciona o banco de Deus e nele faz honestamente as suas operações para sua vantagem. Muitos, ao contrário, ignorando tudo isso, aplicam o método terrestre, próprio do involuído, segundo o qual o valor consiste em sobrepujar o próximo, e não prejudicar somente os seus semelhantes, porque, ao cometerem injustiças, estão defraudando a própria Lei, sem compreenderem que com isso não alcançam vitória alguma, mas se endividam para depois terem de pagar a Deus. Isso porque Ele é a própria Lei, a Quem ninguém se pode impor. Destarte, eles apenas se carregam de dívidas perante a divina justiça que depois exigirá que lhe seja restituído o que lhe é devido, porque dos seus equilíbrios lhe foi usurpado. Em suma, o emprego dos métodos do AS é totalmente vão no terreno do S, alcança até mesmo o efeito oposto ao desejado, isto é, em vez de se obter uma vantagem, recebe-se apenas um dano, o que não leva à vitória, mas à ruína. A astúcia se revela ignorância, a força, fraqueza, roubar significa endividar-se, enriquecer e empobrecer, a vitória não é mais do que uma derrota, a utilidade não ganha significa uma perda, porque, perante a justiça, é um vazio que depois se faz necessário preencher. É perigoso procurar lesar a justiça de Deus, gozando aquilo que não é merecido. No princípio ou no fim, tudo se paga, como deseja o banco de Deus. A sua inviolável contabilidade funciona para todos, a favor dos justos e em prejuízo dos desonestos. Quanto mais uma ação é pura, dirigida para o S, tanto mais acaba por trazer vantagem no sentido do bem; e, quanto mais é corrompida, rumo ao AS, tanto mais acarretará prejuízo no sentido do mal. Esta é a técnica com que se manifesta a Divina Providência. Ela funciona não só ao positivo, em favor de quem opera o bem e, portanto, deve receber ajuda, mas também ao negativo, contra quem pratica o mal e, pois, merece castigo. Isto não é devido a um Deus pessoal que esteja a ocupar-se de cada um, mas a uma lei onipresente, inserida na vida, que provê automaticamente que tudo aconteça de modo que, antes de mais nada, sempre se faça justiça.

Um exemplo terreno de depósito de valores calculados, não em dinheiro, mas como mérito e demérito, encontramo-lo no caso do aluno e do mestre. Se o primeiro estuda e aprende, o segundo é obrigado a premiá-lo com boas classificações e a promovê-lo. Neste caso o aluno deposita os seus valores intelectuais nas mãos do seu juiz, que é o banco que contém a sua contabilidade, onde eles estão depositados com segurança e podem ser retirados no fim do ano, como o homem justo pode depositar e encontrar os seus valores morais no banco de Deus.

Mas o banco do céu não é apenas contabilmente exato e justo. Ele também pode antecipar empréstimos, como pode esperar, dilatando o pagamento, conforme as forças do indivíduo. Possui uma misericordiosa elasticidade na cobrança, como uma inteligente bondade no emprestar. A sua finalidade é sempre benéfica e construtiva, sempre a favor da vida e da sua ascensão. A base de todos os direitos perante o banco de Deus é ser honesto trabalhador. O fundamento de todos os direitos diante do banco do mundo é ser economicamente forte, comercialmente hábil, astuto na pratica. Eis que o problema da vitória sobre a qual se baseia a sobrevivência se pode resolver de duas maneiras diversas: ou com a retidão, ou com uma guerra de competição contra todos. É  fácil averiguar quais são os produtos do segundo método, porque em nosso mundo ele é normalmente praticado e podemos constatar a que resultados conduz.

Agora podemos compreender em que consistia a força do método usado pelo nosso personagem, de quem narramos as vicissitudes. Se ele sobreviveu, isto foi devido à Divina Providência, que funcionou em seu favor por ele haver investido os seus valores no banco de Deus. Foi assim que ele venceu a batalha da sobrevivência, na qual todos estão empenhados a fundo, que representou o maior objetivo a ser alcançado na vida. A Providência funcionou, porque, como se vê nesta história, ele havia colocado as necessárias causas para a fazer funcionar. Sabemos que elas são a retidão, o espírito de sacrifício, o contínuo trabalho para o bem e por um ideal superior. Bastou esta força imponderável para salvar um indivíduo, humanamente desarmado pelo Evangelho, no meio de uma batalha de avidez desenfreada e de egoísmos ferozes. E pode-se considerar a sobrevivência como uma grande vitória da vida, à qual muitas vezes nem os mais fortes lutadores conseguem chegar. Eis, portanto, um fato experimentalmente controlado que vai contra os hábitos da natureza no plano biológico humano, onde, por enquanto, ele se encontrava vivendo, e que consistem em liquidar rapidamente quem não aceita a luta e não sabe vencer. Como poderia ele triunfar com a renúncia e a não-resistência, isto é, sem as armas necessárias e com meios tão antivitais? Então, o método do Evangelho possui uma potência que, mesmo que o mundo não o veja, conduz à vitória, e isto até no plano humano, onde tal método é abertamente repudiado pela vida como um absurdo que leva à morte. Como é que, neste caso, se salvou? Existe, certamente, outra potência mais no alto, mais sutil, porém nem por isso menos forte, capaz de vencer também onde vigora a brutal força do mundo.

Aqui nos encontramos perante o fato consumado de uma inversão dos métodos terrenos e do êxito feliz deste emborcamento. Vemos, em suma, o ideal triunfar na Terra, isto é, o S em pleno campo do AS. Além disso, esse homem teve uma esplêndida oportunidade para gozar a vida, e não a aproveitou; assim, derrotado perante o mundo, não deixou de vencer a batalha da sobrevivência. Isto prova que, lá do fundo do Anti-Sistema, o Sistema faz pressão para subir. Do baixo nível evolutivo da luta, da força e da injustiça, querem emergir a honestidade, a bondade e a justiça, com o propósito de se afirmarem, porque este é o conteúdo da Lei de Deus, que quer triunfar sobre todas as potências contrárias. Eis o segredo da força do cordeiro, contra os lobos devoradores. E assim que o fraco, porque é forte num plano mais alto, consegue vencer os poderosos da Terra. A arma que o defende é a sua superioridade moral, o fato de pertencer a um nível biológico mais elevado, próximo do S. Pode-se, então, verificar que o bem, a retidão, os valores espirituais também são forças que constituem um potencial biológico, porquanto são de tipo positivo e porque a vida está ao lado do S,  enquanto da parte do AS está a morte. É  deste modo que os métodos do Evangelho podem vencer os da Terra e que Cristo pôde afirmar ter vencido o mundo. Porque a Lei de Deus é senhora de tudo, pode-se garantir que no fim o bem triunfa sobre o mal, o S sobre o AS. Quem a segue acaba por personificá-la. Então, os princípios e as forças da Lei tendem a funcionar e a agir sobre ele, tomando corpo na Terra para se realizarem. Não obstante todos os assaltos das forças do mal, a vitória final da vida está na superação e no êxito do espírito.

Este tipo de filosofia evangélica exposta neste volume poderá ser considerado próprio só para os débeis e para os vencidos como consolação às suas renúncias e fatigantes virtudes, podendo ser olhado com desprezo pelos astutos e pelos fortes, vencedores no mundo. Esta filosofia de bondade poderá ser qualificada, juntamente com as religiões, como o ópio dos povos para os adormecer na tranquila aceitação da sua escravatura perante os ricos e os poderosos. Das superiores vitórias aqui explicadas o involuído não sabe o que fazer. Então, que permaneça feliz à sua maneira, no seu próprio plano. Mas não pense que desse modo ele sai sempre vencedor. Neste caso, esta é a única filosofia que lhe pode abrigar as ruínas, procurando curá-lo novamente. A vida não é feita só de vencedores, como sonhava Nietzche, com o seu super-homem. A maioria é feita de débeis e de vencidos, não de gozadores, mas de sofredores, necessitados de uma filosofia saneadora de ruínas que alivie dores e salve doentes. A vida tem necessidade não só de vencer no presente, mas também de preparar o futuro, não só de afirmar-se em baixo, porém ainda de subir mais alto. Se luta para se conservar, isto não é para outra coisa senão avançar e, na subida, encontrar a salvação. Esta história que estamos contando poderá ser de péssimo exemplo na Terra, onde se buscam coisas bem diferentes. Mas esta é a narrativa de um homem que sofreu de olhos bem abertos, procurando compreender e depois superar a dor, utilizando-a para o bem. Por isso, se ela não interessa a quem leva uma vida sem dificuldades, tenha um pouco de respeito àqueles para quem a existência é dura. E estes são muitos.

Por mais que o homem procure fazer da sua vontade a lei das coisas, ele não pode deixar de chocar-se com a lei delas próprias. Esta impõe as normas constrangendo-o a obedecer. Não obstante proclamar-se livre, fica prisioneiro nas malhas de uma disciplina que não pode violar sem cair num estado de desagregação que o golpeia, infligindo-lhe dano. Este fenômeno é tanto mais evidente quanto mais se intensifica a vida social, porque se torna cada vez mais função coletiva em posição de organicidade. Vemo-lo acentuar-se nas grandes cidades, onde só o fato de existir uma aglomeração urbana faz surgir problemas antigamente desconhecidos. Esse estado de convivência bastante compacto vai implicar certamente em limitarão de liberdade individual, bem como a necessidade de ordem e de disciplina. Vejamos isso de modo mais evidente no caso simples da circulação nas estradas. A contínua produção mundial de automóveis, à qual não corresponde uma proporcionada ampliação de estradas para recebê-la, tende a gerar sempre maior congestionamento de tráfego, porque absorve e restringe sempre mais o espaço disponível para cada indivíduo, que hoje não ocupa mais o lugar de uma pessoa a pé, mas de um veículo veloz. Assim, no fim, torna-se inútil possuir rápidos meios de locomoção, quando os imobiliza a dificuldade de circular. Da mesma forma empilham-se, uns sobre os outros, novos tipos de casas, não mais sobre terreno próprio, nem sequer residências geminadas, mas comprimidas, não apenas lateralmente, mas também, verticalmente, nos arranha-céus, com muitos serviços em comum.

Em virtude deste imprevisto impulso em direção à organicidade, produzido pela técnica e pelos novos tempos, o homem é constrangido a adotar novo tipo de vida, a descobrir e observar leis que lhe eram desconhecidas, aprendendo a comportar-se de acordo com suas exigências. Isto é verdade também no campo moral, ainda que o homem não saiba ver até esse ponto. Saber distribuir os meios econômicos, como os direitos e os deveres de cada um nas relações sociais, é uma arte tão necessária quanto saber repartir o espaço na circulação das estradas, ou as normas de convivência entre os apartamentos de um arranha-céu, sem que um elemento se choque com o outro.

Independentemente de qualquer programa político, a tendência ao coletivismo é hoje fenômeno universal. Esta nova posição da humanidade em forma de sociedade orgânica não é problema de democracia ou comunismo, mas biológico, e corresponde a uma fase de amadurecimento evolutivo a qual toda a sociedade humana está atravessando, em todos os pontos do globo. A cisão entre o que parece ser dois opostos, democracia e comunismo, é devida só ao fato de que eles representam os dois extremos do mesmo problema; são como os dois polos do mesmo planeta. A futura organicidade nascerá no seu equador, ponto intermediário que os une, onde os dois opostos se reencontrara-o depois de haver abandonado cada um os próprios defeitos como excessos, para se equilibrarem na justa medida, compensando-os e corrigindo-os com as virtudes assimiladas.

O equilíbrio da justiça social hoje não existe nem num polo, nem no outro, inclusive onde o indivíduo, em nome da liberdade, pode legalmente apropriar-se daquilo que não é fruto do seu trabalho, formando grandes riquezas, ainda que possa acumular e gastar, de qualquer modo. A justiça social não existe tampouco onde, em nome do bem coletivo, se tolhe ao indivíduo toda livre iniciativa, nem onde se lhe retira o prêmio da posse que o estimula ao trabalho, de modo a transformá-lo num robô sujeito à grande máquina do Estado. Nesses dois polos cada um mostra as próprias virtudes, gabando-se dos dois e com eles escondendo os próprios defeitos. Se se colocar como ética absoluta a liberdade, não se alcançará o bem comum. Se se puser no absoluto este último, não se atingirá a primeira. O erro está no exclusivismo que em ambos os casos sacrifica tanto a liberdade quanto a justiça social que deveriam se completar, e não separar-se.

É inútil, portanto, aplicar sistemas diversos, utilizando o mesmo princípio da unilateralidade, dado que o biótipo humano é o mesmo em ambos os lados, substancialmente, com métodos idênticos, no exclusivismo está a raiz de todos os males. A propriedade é ainda um fato sadio e necessário ao homem no seu nível atual, embora esteja pronto a fazer mau uso dela. E, então, aí surge o Comunismo, que, para o corrigir, a destrói. Disciplina e justiça econômica são outro fato salutar também necessário numa sociedade civil, ainda que o homem esteja sempre pronto a fazer delas mau uso com o escravagismo policial dos Estados totalitários. Por isso, aí estão as democracias, que para corrigi-lo querem a liberdade. De um lado, goza-se da liberdade, mas com o perigo de desordem, conduzindo ao abuso. Do outro, usufrui-se da ordem, mas com o perigo de que o peso da disciplina paralise no homem, que deseja ser livre, o impulso ao trabalho e produção. Em ambos os casos, falta, do mesmo modo, o indivíduo equilibrado e consciente. No primeiro caso, para fazer bom uso da propriedade e liberdade, sem excesso de egoísmo. No segundo, para possuir um sentido unitário coletivo que o faça renunciar ao seu individualismo separatista. E, quando falta equilíbrio e autodisciplina, quando está em falta o homem maduro adaptado, não existe sistema político que tenha o poder mágico de somente com a aplicação de um método, transformá-lo em novo tipo biológico que saiba comportar-se com inteligência. A evolução é lenta. Vivemos, no entanto, em fase de transição de um nível evolutivo para outro. Os dois polos se chocarão, para se destruírem reciprocamente e, assim, cada um deles não dominar sozinho o planeta. Mas isto será útil à fusão de ambos, necessária à vida que deseja criar novo tipo de sociedade, isto é, uma humanidade no estado orgânico unitário.

Não queremos aqui observar o que divide o mundo, mas, o que há de comum nas partes opostas, porque nessa aproximação consiste o seu futuro. Existe um mesmo processo de transformação no Oriente como no Ocidente, uma mudança em dado sentido que abrange tudo e todos, incluindo as coisas que parecem muito distantes umas das outras. Por toda parte a técnica tende a fazer do indivíduo um átomo econômico automatizado, que desaparece como unidade nos grandes planejamentos de trabalho e produção. A vida reduz-se a um método racional para satisfazer todas as necessidades, sem outra meta. A hipertrofia do progresso técnico produziu o enfraquecer do desenvolvimento espiritual. Tanto no Capitalismo, como no Comunismo, o homem está se tornando, como trabalhador, em simples instrumento de produção e, como consumidor, em máquina de consumo. Ele é considerado uma mercadoria racionalmente calculada, seja como produtor, seja como consumidor, em ambos os casos estudado e manipulado pelo psicólogo.

Integrado nesta máquina como engrenagem sua, o homem fica seu prisioneiro, com todos os seus desejos satisfeitos, mas constrangido não só a trabalhar para produzir, mas também a receber e consumir toda esta produção, se não quiser ficar sepultado debaixo dela. Assim, a vida gira em torno de si mesma; é vivida apenas no presente, sem nenhuma razão que a justifique e valorize perante metas mais altas, em função das quais nos deveríamos preparar para alcançá-las num futuro mais longínquo. Perante tal utilitarismo imediatista, até as religiões, como qualquer espiritualidade, tornam-se inúteis. Sem um ideal e uma fé que iluminem o caminho da vida, abrindo-a em direção a mais vastos horizontes, ela reduz-se a um simples instante sem significado que aparece encerrado entre o nascimento e a morte, isto é, entre dois abismos de tempo desconhecidos. Corremos para ganhar tempo e depois para desperdiçá-lo, para trabalhar e depois para nos distrairmos, para produzir e depois para consumir, para ganhar dinheiro e depois para gastá-lo. Com isso privamos o espírito, que constitui o íntimo de nossa personalidade, do alimento que lhe é mais vital. Colocados assim neste vazio, procuramos atordoar-nos com a corrida, julgando que velocidade e barulho constituam vida, enquanto não são mais do que agitação de superfície. A evolução conduz à conquista de novas qualidades, um setor de cada vez. É natural, portanto, que o progresso numa determinada direção anule o que foi realizada em outra. A vida não pode proceder à criação de demasiadas coisas e avançar por diversas estradas ao mesmo tempo. Assim, quando tudo se torna ciência, técnica, trabalho produção, industrialização e mercado, as qualidades espirituais tendem a atrofiar-se. Hoje o homem especializou-se na conquista daquele tipo de valores, mas, obedecendo à mesma lei, assistirá à reação representada por uma espiritualização em um plano racional e científico mais positivo e aceitável do que o fideístico atual.

Mas a presente fase significa já um passo à frente e corrige os defeitos e pecados do século XIX. Eram eles os seguintes:

1)    — O autoritarismo com o abuso do egocêntrico, pelo qual quem chegava ao comando se reservava o direito de dominar os seus semelhantes. Daí a autoridade do homem sobre a mulher dos pais sobre os filhos, do clero sobre as consciências, dos patrões sobre os empregados, dos estados sobre suas colônias etc.

2)    O egoísmo da posse de minha propriedade, exclusivamente reservada para mim.

3)    A desigualdade para com os outros. Nascia-se e vivia-se, contra os preceitos cristãos, em posições diversas, de favorecidos ou desfavorecidos, de soberba ou miséria, tudo isso fixado por leis civis e religiosas e transmitido por herança, com a pretensão de durar eternamente.

4)    A exploração do trabalho alheio para prover as próprias necessidades.

Essas culpas estão, hoje, diminuindo, quando controladas e limitadas em cada um dos quatro pontos examinados.  Assim, advém uma mudança radical do modo de viver e do tipo de relações sociais. Afasta-se aquela estrutura baseada no individualismo, assente sobre a injustiça do domínio do mais forte, vencedor do mais fraco na luta pela vida, com o direito de abusar, para substituir tudo isso pelo sistema da justiça social. Ao método do separatismo baseado egoísmo, que leva ao triunfo de poucos, sucede outro unitário, que leva à coletivização. Deste modo, indo ao encontro dos vencidos, a evolução se apressa a superar a lei animal da luta que recompensa o forte e esmaga o fraco. Ela alarga o círculo da sua zona de atividade, apossando-se agora dos que primeiramente se encontravam mais em baixo, inertes, esperando o despertar.

Acontece que, suprimidos aqueles vícios do século XIX e evitados os respectivos males, aparecem os do século XX. O perigo do primeiro era tornarmo-nos escravos, o atual é convertermo-nos em robôs. Assim a evolução ascende: corrigindo um defeito e subitamente oferecendo outro, mais avançado, para corrigi-lo depois.

Vemos que, na atual fase de transição, antes que se fixe o novo, ainda resistem os instintos velhos, porque a ciência está transformando o mundo pelo lado exterior, sem que o homem tenha tido tempo de, paralelamente, mudar interiormente. Explicam-se, assim, algumas posições contraditórias, próprias de todas as fases de transição. Até há pouco tempo, o tipo mais adaptado à sobrevivência era o primitivo forte, corajoso, astuto, conquistador. Isto porque era necessário vencer isoladamente em um ambiente inimigo. Este era o tipo admirado e premiado. Hoje o ambiente não é mais um terreno a ser conquistado, cheio de inimigos, a matar, mas é o vizinho igual a nós, e mesmo que não se ame, como aconselha o Evangelho, com ele se deve entrar em acordo, a fim de não se viver em regime de guerra e destruição recíproca. A vida moderna leva-nos cada ver. mais a viver comprimidos na cidade. E, quanto mais se vive juntos uns dos outros, tanto mais se reconhece a necessidade de deixar viver o próximo, para que também ele nos deixe viver. Desse modo, nasce à força um estado de disciplina tanto mais rígido, quanto mais a vida se torna coletiva e complexa, como é a tendência moderna. Ainda que nos queiramos proclamar livres, caminhamos todos necessariamente para uma ordem social cada vez mais compacta. Então, surgem leis de convivência, às quais somos constrangidos a obedecer, e que são próprias do mais alto nível evolutivo, no qual o homem se prepara para entrar. As guerras não se fazem somente com a coragem física, mas com inteligência e organização econômica e técnica. O herói de antigamente hoje não seria mais o tipo adaptado para vencer numa luta, porque esta se faz de forma totalmente diversa. Matar individualmente não serve mais para coisa alguma. Isso constitui apenas um delito, doravante inútil resíduo de instintos atávicos que nasceram quando era necessário matar para sobreviver. Hoje se procura desafogar tais impulsos agressivos, por falta de outros mais evoluídos, através de competições desportivas, de aventuras arriscadas dos romances policiais, das crônicas de delitos e outros equivalentes materiais e mentais com os quais se possam satisfazer os instintos bélicos e sanguinários elaborados no passado. Procura-se, assim, limitar o desabafo ao plano emocional, até que consigamos desabituar-nos desta forma mental.

Este fenômeno faz parte de um processo de coordenação dos elementos que se chocavam entre si no caos do AS, a fim de levá-los, progressivamente, para um estado de ordem dentro da Lei, próprio do S. Caminha-se, assim, de um regime de rivalidade, guerra e injustiça para outro de colaboração, paz e justiça. Hoje a força bruta já aparece limitada, e, mais tarde, será a vez de circunscrever também a astúcia. Trata-se de uma disciplina, como a do trânsito, também necessária para uma mais rápida e segura circulação mental no seio de uma sociedade civilizada. Será do interesse de todos que isso aconteça, porque invadir o recinto da liberdade dos outros em um mundo organizado será furto de espaço vital em prejuízo de cada um. Dessa forma, está-se formando, progressivamente, uma consciência coletiva contra tais atentados.

Assim está se sucedendo em nossos tempos. Um salto para a frente quer dizer evoluir para novos estados de unificação coletiva e orgânica, na qual vai aparecendo mais evidente a ordem da Lei. Tal organicidade significa um tipo de vida mais complexo e completo. Para isso a humanidade está laboriosamente se preparando. O movimento neste sentido se está iniciando hoje na forma de um nivelamento igualitário destrutivo das diferenças individuais das diversas personalidades, para fundi-las na uniformidade cinzenta do produto feito em série. Ora, se para o indivíduo pode ser mais cômodo e protetor assemelhar-se aos outros misturando-se na corrente, tal homogeneização, que reduz todos ao mesmo tipo monotonamente repetido, não é ainda o estado orgânico ao qual tende a evolução. Este, ao contrário, não consiste em sufocar e fazer desaparecer a personalidade, mas em desenvolvê-la e acentuá-la, para depois coordená-la com todas as outras, fundindo-se em seguida, para formar um corpo coletivo. O movimento atual terminará assim acabando por tomar uma forma diversa daquela com que ele hoje se está iniciando. Tal processo evolutivo não consiste em suprimir as diferenças, mas em colocá-las de tal modo que colaborem entre si. Logo, a especialização não prejudica, antes favorece o fenômeno, porque não afasta e, sim, avizinha e acaba não dividindo, mas unindo. Esta união não é, porém, do tipo representado pelo grupo formado da soma de elementos homogêneos, mas de outro tipo, constituído por indivíduos diferentes, engrenados num conjunto, para realizar um trabalho coletivo, em que cada um, conforme as suas respectivas capacidades, traz a sua contribuição em função das oferecidas pelos componentes do grupo. Eis a posição de organicidade a ser alcançada pela futura humanidade, isto é, a situação das diversas engrenagens de uma máquina para cujo funcionamento todos eles colaboram, precisamente porque são diferentes. Não se trata de um aglomerado de elementos, porém da sua função em uma unidade coletiva.

O esforço para dar este salto evolutivo manifesta-se hoje com um confuso desejo de renovação. É natural que as suas primeiras manifestações sejam desordenadas, dirigidas mais para destruir as coisas velhas das quais se conhecem os defeitos e de que se está saturado do que a construir o novo que ainda se ignora. Diz-se que o mundo hoje é pior. Mas isso é apenas porque o defeito agora é visível, enquanto antigamente estava encoberto. No entanto, assim se varre melhor a casa do que quando a imundície estava escondida e a casa parecia limpa. A função da nova geração é fazer limpeza. O mundo está cansado de truques camuflados de verdade e quer ver a realidade, qualquer que seja, nua e crua como deve ser. Os jovens puseram-se a varrer a casa, limpando-a precipitadamente e, assim, destruindo também o que é bom e belo. Mas, se é agradável ter tudo asseado, acontece que se jogam fora também as belas e boas coisas quando não estão limpas. Recomeça-se desde a primeira fase, e existe tudo para refazer. Feito o vazio, outras gerações deverão pôr-se a trabalhar para construir no terreno desimpedido. O nosso trabalho é mostrar nestes escritos o que se poderá fazer, quando se tratar de reedificar.

Uma das inovações em que se baseia essa reconstrução consiste em substituir o princípio de autoridade (segundo o qual quem comanda se interessa, em primeiro lugar, em submeter seus dependentes para conservar o poder) pelo da inteligência, que implica pensamento e consciência, para se chegar à compreensão e cooperação. Em resumo trata-se de passar do estado de luta separatista ao orgânico colaboracionista. Isto em todos os campos da estrutura social onde haja quem comande e aquele que obedeça: na luta de classes, na política, no trabalho, na economia, na educação, na religião. Enfim, procurar o entendimento, reconhecendo as recíprocas necessidades e, assim, entrar em acordo para satisfazê-las melhor, o que não se pode fazer lutando para se esmagar mutuamente. O progresso consiste em substituir este outro método pelo velho. Hoje o espírito de luta invade tudo. Quem comanda peleja para manter a sua posição; quem depende se esforça para libertar-se de tal estado de sujeição. Há luta entre ricos e pobres; entre governantes e povos; entre patrões e empregados nas organizações de trabalho e produção; entre educadores, sejam eles professores, moralistas ou progenitores, e os seus discípulos; entre a autoridade religiosa e os seus fiéis etc. Sempre luta em cada campo. Ora, o novo homem, mais inteligente, acabará por compreender que a opressão excita reações às quais depois terá de resistir; o tempo e trabalho desperdiçados para litigar e as energias gastas neste atrito significam diminuição de riqueza, bem-estar, harmonia, educação e progresso moral e espiritual.

Esta é a grande transformação que a humanidade deverá iniciar neste final de século para preparar-se a pô-la em prática, plenamente, no próximo milênio. Condenado, pelo menos entre os indivíduos, o uso da força, antigamente base do Direito, continua a sê-lo no campo internacional. Desta fase atual, que já é um progresso perante o estado primitivo de pura violência, a humanidade passará a outra ainda mais avançada, na qual a mente será usada para fins mais altos que não sejam conquistar vantagens tecendo enganos e mentiras em prejuízo do próximo, o que significa usurpação, sem nada ter de equidade. Então, a inteligência será usada menos estupidamente, de forma mais rendosa, para resolver o problema do conhecimento e os de nossa existência, a fim de vivê-la de modo menos doloroso e mais proveitoso do que o atual. Será, no entanto, necessário acabar com o sistema de pensar somente em si, não se importando com o dano que a própria vantagem pode acarretar aos outros, sem compreender que, num regime de contínuas trocas, o mal e o bem são comuns, e acabam por voltar ao remetente. A maior revolução deverá ser moral, como complemento da que já está em ação, a tecnológica, que por si só leva à transformação do homem em robôs mecânicos e não à espiritualização, o que não constitui verdadeiro progresso.

Nos países mais civilizados, já se começa a compreender a grande utilidade de ser honesto, em lugar de ludibriar o próximo com astúcias. Os países mais atrasados, ao contrário, por um feroz egoísmo e espírito de mentira, estão reduzidos a um inferno onde não se pode produzir para melhorar, mas somente roubar e fugir. Mas aqui e ali, em algum ponto do globo, começam-se a manifestar sintomas de mudança no método de vida. O movimento aparece entre os jovens, porque é através deles que a vida se renova. Eles procuram clareza, sinceridade; colocam a nu os problemas para resolvê-los, em vez de os esconder no silêncio. Os adultos são ainda da velha escola e preferem ocultar a verdade, julgando não existir aquilo que não se vê. Mas os jovens o descobrem, porque querem ver, compreender, resolver. E neste momento que nasce o escândalo, porque se descobre que muitos problemas não estavam de fato resolvidos, e, muitas vezes, a moral oficial era uma mentira, a autoridade um meio de comandar para vantagem própria, a religião uma hipocrisia, e assim sucessivamente.

Eis já um início de renovação contra o passado. Em alguns países, já se denunciam os erros dos adultos que se tornaram mestres para ocupar posições de comando e não para formar um sociedade melhor, isto é, denuncia-se a traição da missão da qual os dirigentes procuram conservar a investidura, mostrando-lhes que a realidade é diferente da que proclamam. Em vários pontos da Europa, já se vê despontar esta reação contra os velhos métodos de vida. Procura-se, assim, quebrar a cadeia a que se deveriam sujeitar os não saídos ainda da menoridade, os quais, uma vez adultos, dominariam a geração sucessiva. Passava-se este peso de uma a outra geração que tinha vencido na luta pela vida e que, agora, deveria pensar primeiramente em si, se quisesse sobreviver. A revolução consiste em substituir a noção clássica de autoridade-direito, com fim egoísta, isto é, para vantagem de quem a possui e prejuízo de quem a ela está sujeito, pelo conceito de autoridade-dever, para o bom coletivo. Neste caso, a autoridade, sendo também para vantagem de quem dela está dependente, não gera a clássica revolta dos subordinados contra os patrões.

Em novo estilo a orientação educativa não se baseia mais numa imposição dogmática assente em temores reverenciais. Pelo contrário, é eliminado tudo quanto provoca afastamento, e favorecido tudo aquilo que signifique aproximação, de maneira a estabelecer não mais um relacionamento baseado, de um lado, no comando e, do outro, na subordinação, temor e mentira, mas, sim, na igualdade, confiança e compreensão, de modo que se possa criar um diálogo. Até agora, por causa da imaturidade geral, não só dos educadores, mas também dos educandos, não se seguia o método da compreensão, mas o da imposição como sistema educativo. No regime de luta em que se vivia, o educador, para não ser vencido, devia por força tornar-se um domador. Mas com este processo a obediência que se conseguia era cheia de desconfiança e de rancor. Então, se a personalidade do indivíduo, apesar de torcida pelo esmagamento, sobrevivia, ela ficava esperando o momento da revolta, e a sua obediência era fingida, exterior e passiva. Se, entretanto, aquela personalidade era destruída pela opressão exercida, ela aderia, simplesmente como um autômato, ficando sua obediência ainda mais inerte e passiva. O resultado era sempre uma destruição o não uma criação de valores. Ora, a função do educador não consiste em exercer a sua profissão com a menor fadiga e a maior comodidade possível, fazendo o seu trabalho para submeter outras personalidades, mas em desenvolvê-las para que elas cresçam e se aperfeiçoem. Deste trabalho depende a formação da humanidade futura. Ele é, portanto, de fundamental importância. No passado fez-se isto demasiadamente ao contrário, tendo como resultado os belos exemplares de hoje.

Quantas energias se desperdiçaram e que prejuízo para todos, só porque cada um andava em busca da sua egoística vantagem! Deste modo, na realidade se educava com hipocrisia, sendo esta a substância daquilo que se aprendia, porque esta era a essência daquilo que se ensinava. Assim se fabricava ou um tipo de indivíduo que mordia o freio à espera de se revoltar quando chegasse a adulto, ou um tipo de falido não mais capaz de se afirmar na vida. Este é o resultado, quando o objetivo da autoridade é fabricar seres obedientes. Em resumo, o mais bem educado, segundo o velho sistema, era o que aprendia o jogo escondido, que consistia em saber conquistar a sua própria vantagem sob a aparência de pessoa de bem, religioso praticante, exaltador da virtude, cidadão irrepreensível. A autoridade tacitamente aprovava o sistema, porque detinha a parte que mais lhe importava: o respeito devido. Assim, educado na arte da hipocrisia, o indivíduo encontrava-se de acordo com todos, sendo tolerante para com as fraquezas dos outros, que cuidava de não denunciar, porque com isso poria as suas a descoberto. Não incomodava ninguém, até se tornava simpático, fazendo assim carreira no mundo, tudo isto de modo a alcançar uni ideal de paz e harmonia. O que de melhor se podia desejar? Até agora a sociedade tem avançado com esses acordos secretos, mas com os resultados que acabamos de ver. Como por um tácito consenso, cada um podia infligir certa dose de dano ao próximo, para isso tirar a respectiva vantagem, de maneira que permitisse ao semelhante aplicar outro tanto em prejuízo de terceiros, para colher também a sua própria vantagem. Assim se praticava a arte da convivência pacífica.

Com tal método, no entanto, aquele prejuízo se transmitia de indivíduo a indivíduo, passando-o cada um ao seu vizinho, até que chegasse àquele que deveria absorvê-lo e pagá-lo. Seria natural que existisse uma classe de prejudicados, adaptados à função de vítima: jovens, porque desarmados; dependentes, porque sem meios; crentes, porque simples; os quais, pela sua posição de inferioridade, deviam aceitar essa situação. Ora, o dano todos o sentem, porque queima. Mesmo que não cheguem a descobrir de onde lhes é imposta a queimadura para poder reagir contra a sua origem, forma-se nas vítimas um ódio tal que procura todas as ocasiões para desabafar, fazendo sofrer qualquer um. Até hoje a sociedade viveu arrastando este enorme peso de forças negativas que a agridem a cada passo.

O grande escândalo dos novos tempos é querer ser leal e honesto, é pretender descobrir e denunciar tal jogo, é querer finalmente destruí-lo para não ser mais vítima e, assim, truncá-lo definitivamente, para que não se transmita às gerações futuras. É natural que tais pretensões levantem o partido fortemente consolidado dos bens pensantes, acomodados nas suas posições, nas quais não querem ser perturbados. O problema deles é assegurar o respeito, que é a garantia da sua defesa e sobrevivência. Acontece que, descobrindo-se hoje o velho jogo, ele não serve mais, e quem o praticava com habilidade encontra-se por terra, desarmado. Por isso grita que é um escândalo. Assim, um dos elementos se deslocou, e os que deviam submeter-se àquele jogo não o aceitam mais. A cadeia ficou assim rompida. O passado, todavia, resiste a uma sociedade que já tem os pés no amanhã, mas, algumas vezes, ainda pensa com forma mental remanescente da Idade Média. É necessário, contudo, libertar-se de tais erros, se se desejar viver menos carregado com tantas lutas e dores. A moral permanecerá, mas as culpas serão diferentes, não as de índole privada, que não dizem respeito senão ao indivíduo, mas as que prejudicam a coletividade, como, por exemplo, viver sem trabalhar, possuir em excesso, o parasitismo econômico, o abuso de autoridade, o furto que sabe fugir à lei, tudo o que é contra a ordem e o bem dos outros. Será uma moral que respeita mais a liberdade privada e mais preocupada em satisfazer os interesses coletivos, o que significa, numa justa distribuição, satisfazer os de cada um.

Ora, não se pode impedir que o mundo se vá transformando nesta direção, na qual se move o fenômeno evolução. Já aqui e acolá se nota este trabalho, tanto no plano político, como no social, econômico, moral e religioso, com tentativas de adaptação a novos tipos de vida. Procura-se desmantelar a hipocrisia para se chegar a uma forma de coerência entre o que se prega e o que se pratica, mesmo que, para chegar a isso, seja necessário dizer de outro modo, para que tudo corresponda à realidade da vida. Perante o homem novo, que será mais inteligente, o ardil da hipocrisia se tornará uma ridícula puerilidade. Vemos aparecer sinais de tal transformação no fato de que, em alguns povos mais avançados, a mente — especialmente no ensino — não é mais usada nas suas qualidades inferiores e, sobretudo, como registrador mnemônico, mas nas suas funções diretivas de compreensão e orientação. Assim, não se carrega mais a inteligência com o peso de um árido amontoado de noções, para o que bastaria a técnica de pesquisa de biblioteca. O ensino não é mais imposição de ideias, porém desenvolvimento de personalidade, de capacidade de raciocínio e de juízo. É um exercício que, com o livre intercâmbio e o estímulo ao pensamento, tende à formação de uma mente autônoma e madura. Então, o professor não é mais um repetidor que transmite noções recebidas, ou que impõe ideias por autoridade, em vez de fazer demonstrações e expor suas convicções; não é mais o sapiente absoluto que não discute, mas apenas sentencia. O aluno, por sua vez, não é mais um recipiente para encher com dados e informações, mas um ser que pensa também com a sua cabeça, faz perguntas, critica podendo, inclusive, não aceitar os pontos de vista do mestre, quando saiba apresentar justificativa. São essas as qualidades que mais valem e que são desenvolvidas. É certo que para o professor é menos fatigante o método de repetidor de sabedoria, mas isso não basta para formar homens. A escola do futuro deverá servir para preparar os jovens a resolver os problemas da vida e não para fazer eruditismo e colecionadores de noções que os tornarão cultos, mas fora da realidade.

Concluindo: a nova posição é oposta à precedente, isto é, a geração dos adultos não se ocupará apenas de manter, com base na autoridade, as suas posições, nem os jovens pensarão em conquistá-las tolhendo os meios aos detentores. Acontecerá, ao contrário, que a primeira se ocupará de educar a segunda, estimulando-lhe o que tiver de melhor, e esta aceitará tal ajuda para colaborar depois com os adultos no interesse comum. E não pensará em libertar-se deles como se fossem um obstáculo à sua própria expansão vital. O que nos conforta é ver que, nos países mais civilizados, várias ideias sustentadas na Obra em seu início, então olhadas com desconfiança, começam agora a ser sentidas e postas em prática.

Um sinal evidente de tais mudanças o vemos nas novas atitudes do Concílio Ecumênico Vaticano II. Na parte final no volume Constituição, Decretos, Declarações (Editora Ave, Roma, l966), no Capítulo "Liberdade Religiosa", aparecem textualmente estas palavras:

Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem o direito à liberdade religiosa (...) os seres humanos devem ser imunes à coerção por parte de qualquer poder humano, de maneire que em matéria religiosa ninguém seja forçado a agir contra a sua consciência (...). Cada um tem o dever e, portanto, o direito de procurar a verdade em matéria religiosa (...). Os imperativos de lei divina, o homem os colhe e os reconhece através da sua consciência, a qual deve seguir firmemente para alcançar o seu fim, que é Deus. Não se deve, portanto, constrangê-lo a agir contra a sua consciência (...). O exercício da religião consiste antes de tudo em atos internos, voluntários e livres, com os quais o ser humano se dirige imediatamente para Deus, atos que não podem ser nem impostos, nem proibidos por uma autoridade meramente humana.

Mesmo que tais disposições possam ter sido provocadas pelo desejo de obter liberdade religiosa no seio de regimes que a negam, representam, entretanto, um grande passo à frente no terreno da liberdade de consciência, tendo sido esta até ontem oprimida a seu modo, como o Comunismo faz agora também de outra maneira particular. Isto demonstra não só que a Igreja com a sua divina inspiração não dirige os tempos, mas, no evoluir de tudo, é dirigida por eles, como também que a verdade, mesmo a inspirada por Deus, é relativa e progressiva. Por isso, se as teorias de nossa Obra até ontem eram condenadas, hoje é lícito ser convencido por elas e professá-las, em vez de Ler que se retratar, como antes havia sido ordenado pela condenação do Santo Oficio (ver mais à frente o Cap. "O Problema Religioso. A Obra Perante a Igreja").  Assim, arrastada pelo amadurecer da vida, a Igreja teve de atualizar-se à força, reconhecendo aquilo que, finalmente, era um fato inegável e incoercível, isto é, que com Deus se fala sozinho, que o verdadeiro diálogo é feito somente com Ele, sem ministros intermediários, livre de qualquer opressão de consciência.

Vê-se outro sinal dos tempos: o novo ajuizamento a respeito de Teilhard de Chardin, no mesmo ambiente eclesiástico. Em certas conferências e revistas, depois de se ter cuidado dos sofrimentos morais vividos por ele no longo exílio, admite-se que tenha sido um "gênio religioso e um dos maiores cristãos deste século". Tal mudança é intitulada: "Um Ato de Justiça". O sistema é sempre o mesmo: primeiramente se martiriza e depois se santifica; a autoridade, mais forte, salva-se, e o indivíduo, isolado e fraco, é submetido. Depois ela se atualiza, e tudo fica em ordem. Acontece como se um indivíduo depois de ter praticado o mal, sem ao menos reconhecê-lo, fosse considerado inocente por ter sido mudada a lei, de modo que, segundo esta nova lei, aquilo que ele fizera não mais teria sido mal; e dessa forma inocente. Admite-se: ele já que não fora punido, agora reabilitado, não chegou a sofrer, sendo a sua dor anulada. Quantas coisas pode fazer a autoridade, porque tem a força do poder, as quais, para o indivíduo, que não a possui, são condenadas como culpa!

Estes não são senão alguns aspectos do movimento evolutivo do mundo que está deslocando as posições tradicionais, às quais ele se havia adaptado durante séculos. Fala-se de diálogo, de encontros de cúpula, de aberturas, tanto no campo religioso, como no político. A novidade é que se procura um entendimento através de contatos. Lançando pontes entre as partes contrárias, procura-se resolver os problemas da vida, o que é interesse de todos, em vez de se lutar sempre para prejuízo recíproco. Começa-se a compreender como tal sistema é contraproducente e, assim, procura-se outro mais inteligente e rendoso. Não há dúvida de que se trata de um método mais civilizado do que o de discutir, matando-se uns aos outros e provando ter razão com o suprimir do adversário. Estamos nas primeiras tentativas, e já tomando esta direção, fato novo na História; como prova, sem dúvida, de inteligência.

Encontramo-nos perante um processo de aceleração da História. Estes sinais dos tempos nos mostram que vivemos num período onde as mudanças se sucedem com uma velocidade que, no passado, não se concebia. Parece que hoje o fenômeno do transformismo evolutivo se encontra em fase de precipitações, movendo-se a passo acelerado. Assim, o velho conservadorismo se extingue, apesar de em outros tempos ter existido no caos das ideias uma grande função estabilizadora, protetora dos valores conquistados e das posições em que eles se entrincheiravam. Mas, no momento necessário dos deslocamentos do equilíbrio em que a vida é tomada da febre de renovação criadora, aquele conservadorismo não serve mais, porque está freando, opondo obstáculos e, por isso, é posto de lado. Em matéria religiosa, o Concilio não enfrentou, nem resolveu nenhum problema de base. Disse apenas: começamos a raciocinar. Ao fiel foi reconhecido o direito de pensar; agora, ele mais do que acreditar, se pôs a pensar. De agora em diante, vê-se que a inspiração divina, guia infalível, na prática depende sobretudo da aprovação e aceitação da opinião pública. O grande progresso atual está no fato de que doravante se aderirá a uma fé não por obedecer cegamente a uma autoridade, mas porque esta dá prova de estar com a verdade. E, portanto, seguida por convicção e não por constrangimento. Hoje se começa a compreender que o ato de fé das religiões foi, pelo referido espírito de conservadorismo, cristalizado na forma de um tradicionalismo consagrado, e que dessa maneira se matava a fé na sua essência, que é crescimento e criatividade, vida e movimento, e não mumificação de antiguidades num museu.

Os refratários são constrangidos por esta onda evolutiva a se atualizarem, a fim de não ficarem ultrapassados. Assim, a vida confrangeu a Igreja, que, para se conservar, queria deter, em nome de Deus, a sua ação criadora no mundo. Verificou-se, então, uma inversão de posições: os que haviam sido condenados encontraram-se subitamente na vanguarda, e a autoridade pôs-se a correr para não ficar superada. Este é o caso do personagem de quem aqui contamos a história. Amadurecido por si só, em antecipação ao grande movimento coletivo da onda histórica, havia-o anunciado e explicado nos seus escritos, mas, não podendo nem determiná-lo, nem impô-lo, resolveu construir-se por sua conta, vivendo rapidamente, incompreendido, sozinho, aquela tempestade evolutiva que investirá a humanidade no terceiro milênio. E agora, na velhice, no fim do seu trabalho, ele se consola ao ver que também o mundo se move na mesma direção, iniciando o mesmo processo de transformação que ele terminava. Isto é natural, dado que os vastos movimentos de massa, que são os mais resistentes às mudanças, são também os mais lentos a se determinarem. No fundo, trata-se sempre da mesma onda histórica, que, antes e depois, arrasta todos. O fenômeno evolutivo, nas suas fases de preparação para amadurecer, é o mesmo para todos.

Tais afirmações não se baseiam numa filosofia pessoal, mas na demonstração da existência de uma Lei que tudo regula e na exposição do seu conteúdo, com o objetivo de chegarmos a nos comportar mais inteligentemente, evitando erros e, portanto, sofrimentos. O nosso personagem tinha controlado experimentalmente tudo isso durante toda a sua vida, colocando, no mais arrebatado voo em direção a realizações futuras, o mais positivo sentido da realidade. Ele tinha nascido do lado dos dominadores, e a sua salvação foi não ter cedido á tentação de aceitar esta posição de privilégio. Ao colocar-se contra o inundo, mas do lado da Lei, ele tinha usado a sabedoria do evoluído, aquela que será adotada pelo homem mais inteligente do futuro. Pondo-se a funcionar de acordo com a Lei, ele se viu imerso na correnteza da vida, que o levou para a frente, porque secundava os movimentos em direção aos seus fins. Assim, em vez de desperdiçar as suas energias em obras de destruição e correr atrás de miragens, como se usa no mundo, pôs-se a construir a sua nova casa num plano mais alto, onde a vida é menos dura. Ao trabalho negativo tinha preferido o positivo, realizado em função do amadurecer do momento histórico que ele tinha querido viver plenamente, antecipando-o. Nascido no coração do velho sistema, desafiando-o, recusou o banquete hereditário que o passado lhe oferecia. Em vez de deixar-se seduzir, quis seguir um método diverso de vida: aquele que temos ilustrado nestas páginas e que será o do homem evoluído de amanhã. Quis, em suma, viver com conhecimento e consciência, sem enganar, nem ser enganado.

Sentia à volta de si as leis da vida funcionando efetivamente, constituídas por muitas forças vivas e pensantes, com as quais era possível raciocinar, estruturadas ao mesmo tempo por uma inteligência, como por uma vontade própria e potência de ação. Conhecendo-as, ele se entrosou com o funcionamento dessas leis e movendo-se de acordo com elas, era pelas mesmas sustentado. Deste novo método de vida, num plano em que se é consciente da atividade orgânica do universo, ele tinha feito a sua arma de defesa na luta pela sobrevivência. Via que essas forças teciam a trama interior da História, da qual podia sentir o futuro desenvolvimento. Nesta urdidura ele se integrava e vivia com antecipação tais acontecimentos. Assim, a vida tornava-se uma coisa imensa, transportada a outras dimensões, lançada para planos de existência mais altos. Aquilo que poderia parecer loucura incompreensível era, ao contrário, a mais audaciosa aventura da vida: tentar o grande salto para a frente, em direção a mais avançado nível de evolução.

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Um novo sinal dos tempos aparece enquanto estou escrevendo na primavera de 1967, com a Encíclica Populorum  Progressio de Paulo VI. Ela enfrenta os mais escaldantes problemas atuais e foi definida como o documento mais corajoso de nosso século, tanto que nos ambientes imobilizados pareceu imediatamente como revolucionário. E, no entanto, ele constitui uma série de tentativa ao diálogo para um bom entendimento, colaborando, de comum interesse, conforme princípios de justiça, para resolver mais inteligentemente os problemas, em vez de usar o tradicional sistema de lutas, acabando com o matar-se uns aos outros. A Encíclica é um apelo à responsabilidade implícita na nova liberdade concedida, porque deveria corresponder a uma presumida maturidade de consciência que o homem, atualmente, teria alcançado. A imprensa viu na Encíclica unia concessão econômica notavelmente avançada, "quase marxista", um favorecimento em direção à  parte oposta, fato que escandalizou os velhos conservadores Até a Igreja através desse documento, mesmo que seja em sentido Cristão, se orienta para os programas de justiça social que pareciam monopolizados pelo Comunismo. Eles, no entanto, vão pertencendo sempre mais a toda a humanidade, porque representam o produto do momento histórico atual, um novo grau na ascensão evolutiva. Este documento confirma as nossas afirmações e previsões a respeito das futuras relações entre Capitalismo e Igreja de um lado e Comunismo do outro.

Não vamos analisar todo o documento. Desejamos tão somente resumir e focalizar, para nossa orientação, alguns dos principais problemas por ele tratados, sobre os quais a Encíclica chamou a nossa atenção lá dissemos noutro lugar que Capitalismo e Comunismo não constituem senão as duas posições extremas de uma mesma verdade que se alcança tomado de cada uma o que tiver de melhor, e eliminando o restante. Isto pelo fato de que cada extremo tem os seus méritos num sentido e os seus defeitos no sentido oposto, precisamente porque, como extremo, é unilateral, feito, portanto, para ser compensado, isto é corrigido com o elemento oposto que lhe é complementar. Isto no AS, em nosso Universo emborcado, é um processo utilizado pela vida para formar uma unidade, utilizando o método dos contrários pelo qual costuma construir e colocar em luta entre eles dois termos antagônicos para que cada um se compense e assim possa corrigir seus próprios erros; primeiro com o contato, depois com o choque e finalmente através da luta demolidora. No momento atual estamos ainda na fase do contato e do choque pelo qual cada um fica ainda fechado no seu recinto em posição de ofensiva e defesa, vendo e exaltando apenas os seus méritos sem ver os próprios defeitos, e acusando a parte oposta dos seus defeitos sem ver aqueles méritos. Assim, ouvindo as duas partes, se pode conhecer toda a verdade.

Quais são estes méritos e defeitos? O Capitalismo exalta a livre iniciativa, o Comunismo a justiça social. Mas cada uma das duas afirmações tem as suas vantagens e as suas desvantagens. A liberdade econômica, sustentada pelo Capitalismo, sem dúvida conduz à produção, porque corresponde à natureza egoísta do homem que, quando se trata dos próprios interesses, trabalha mais. Mas este sistema conduz a uma injustiça: a desigualdade econômica. Do lado oposto a justiça social, sustentada pelo Comunismo, conduzindo a uma coletivização, que sem dúvida é igualdade, e, no entanto, suprime ao indivíduo a sua livre iniciativa, que constringe a recorrer a um regime de produção forçada, ao qual a natureza humana se rebela, com resultado negativo, porque se trabalha muito e se produz pouco.

A primeira coisa que se deveria ter em conta ao elevar o edifício (tipo social) é o material (o homem) com o qual se deve construí-lo. Os sistemas econômicos e políticos procuram enquadrar o ser humano a seu modo. Verdadeiros capuzes colocados sobre o homem, que por sua vez continua a andar pela sua própria estrada, adaptando-os e torcendo-os a seu modo. Esta é a realidade O resto é superestrutura. Assim as teorias mudam com o tempo, com as necessidades do homem, conforme o seu grau de evolução e o momento histórico que as expressam.

Ora a diferença entre Capitalismo e Comunismo está no considerar o homem como indivíduo, ou como coletividade. De fato a primeira posição corresponde àquilo que realmente é a natureza humana, satisfazendo melhor a sua vontade. Conceber o homem em forma orgânica, como coletividade, pode representar um conceito evolutivamente mais avançado, mas ele tem de ser imposto coativamente para poder ser praticado por um biótipo, ainda não maduro. O primeiro sistema então, por ser mais adaptado ao atual tipo de homem oferece a vantagem de seu maior rendimento. Mas o segundo sistema é uma tentativa de novas construções, e como tal percorre os tempos, antecipando o futuro, oferecendo a vantagem de iniciar a evolução; dando á sociedade uma estrutura orgânica, que representa uma fase de vida mais evoluída e perfeita. Ora, o Comunismo é filho de uma revolução e o objetivo desta é sempre o de introduzir novos fermentos à vida. Mas a conquista é fatigante, cheia de lutas e contradições, de erros e excessos, como vemos acontecer. Custa muito a escalada a novas posições biológicas. Indubitavelmente a liberdade oferece vantagens, mas oferece também um estado de disciplina que a limita quando este conduz à organicidade própria de uma civilização mais avançada.

No fundo trata-se de um movimento emergindo da profundidade e tendendo a conduzir para novas formas de vida social, penetrando, hoje, em toda a humanidade. O momento histórico o aceita, o que prova ser ele oportuno, isto é, chegou a sua hora. E certo que o velho homem quereria permanecer nos velhos esquemas do passado. Mas os princípios de justiça social se estão expandindo em todo o mundo, e estão penetrando profundamente, em forma de previdências e providências, até há pouco desconhecidas nos mais diversos países. Poder-se-ia dizer que o Comunismo é um dos efeitos melhor observado de um fenômeno universal e que se manifesta em toda a parte, porque é o resultado de um estado de maturação da humanidade que se prepara a passar para formas de vida social mais progressistas. De fato este movimento não é isolado, mas é acompanhado de paralelos fatores de desenvolvimento, que são necessários para o seu afirmar-se com êxito: descobertas científicas, rapidez de comunicações, aumento de cultura, elevação de nível de vida etc. Assim tudo rapidamente se transmite, comunica, encontra os meios para realizar-se.

Eis que o contágio do melhor funciona e se estende até ao campo oposto. O resultado, no entanto, que mais vale e serve a vida, é selecionado e utilizado. Assim os princípios de justiça social lançados pelo Comunismo se transmitiram aos países capitalistas, aperfeiçoando o seu sistema de liberdade, com reconhecimento de muitos direitos, anteriormente ignorados. E, ao mesmo tempo, o princípio da livre iniciativa, lançado pelo Capitalismo, começa a ser reconhecido nos países comunistas com maior respeito pelo indivíduo e pela liberdade. Estes para obter maior rendimento humano, aqueles, os países capitalistas, para viverem com mais justiça. Ambos vão se avizinhando, compreendendo, assimilando.

O sentido profundo de todo este trabalho é de chegar a amalgamar num só organismo esta massa humana feita de elementos ansiosos por se dominarem e destruírem reciprocamente porque assim os construiu o animalesco passado biológico. Aqui também outros paralelos fatores de desenvolvimento concorrem para alcançar aquela unificação: a concentração do poder mundial em duas ou três nações principais, em torno das quais giram todas as outras como satélites; o potencial bélico atômico concentrado em poucas mãos de modo a suprimir as pequenas guerras não mais toleradas, a eliminar as grandes porque não haverá mais vencedores e sim a destruição de todos.

Ora, uma Igreja espiritualizada não podia ser contrária a este impulso ascensional que hoje domina o momento histórico. Este é o fato novo que aquela Encíclica representa. Procurando realizar a justiça social, a Igreja não contradiz os seus princípios evangélicos. É verdade que com a tão vasta aplicação ela chegue atrasada, e somente agora. Mas é também verdade: possuir princípios eternos não basta para que possam realizar-se enquanto não tiver chegado o momento histórico adaptado, que o permita de acordo com a maturação do grau evolutivo necessário. Nada pode acontecer fora da sua hora, isto é, enquanto o tempo não levar o transformismo até ao ponto devido, somente um evento pode reunir todos os elementos necessários para manifestar-se. Assim virá o dia, quem sabe ainda quão longínquo, da total aplicação do Evangelho.

O que dá razão ao Capitalismo é a imaturidade do homem, para saber comportar-se, coletivamente. O que não dá razão ao Comunismo é a necessidade de recorrer à força para poder aplicar a justiça social. Tudo isto se justifica porque o homem deseja permanecer como tal. Que não exista outro meio para impor a justiça social temos aí a prova: com o amor e as boas palavras, em dois mil anos o Evangelho, até agora, realizou bem pouco. Era necessário chegar à maturidade mental de hoje, para compreendei- que desinteressar-se pela sorte do próximo é um prejuízo  coletivo, que acaba por golpear também o indivíduo. Nos habituamos a acreditar: quando uma coisa pertence a todos, por esse motivo não é de ninguém e pode ser negligenciada e destruída; desta forma, acredita-se: o mal que se faz aos outros não é mal, porque não foi contra nós. Pelo contrário, estamos todos no mesmo mundo, onde é sempre mais difícil nos isolarmos. Assim não pode haver um rico feliz, enquanto ao seu lado existir um pobre. Por isso as várias classes sociais tendem a reagrupar-se em diversos bairros urbanos. Mas a tendência moderna não é a de distanciar o pobre, o que não resolve, mas erguê-lo da sua pobreza, de modo que com esta não infete mais o corpo social. A tendência é para uma homogeneização a um nível médio, fazendo de um mínimo de bem estar um fenômeno coletivo, resultado da colaboração.

Hoje se opõem ricos e pobres e ao contrário, em forma de luta de classe. Mas o tipo de homem que constitui estas classes é o mesmo. Então condenar ou exaltar conforme a posição social, em vez de se ter em conta caracteres pessoais, não corresponde à realidade. Não se pode portanto tomar uma só atitude nem a favor dos ricos, nem dos pobres, porque todos são levados aos mesmos abusos, Só que em posições diversas. Na prática pode tratar-se de um indivíduo demasiado rico e desonesto, ao qual então é justo privar do supérfluo. Mas pode também tratar-se de um indivíduo pouco rico e honesto, que com o trabalho se fez uma modesta base para viver civilizadamente, o qual merece gozar o fruto dos seus esforços e não tem nenhuma obrigação de distribuí-lo com os pobres que, podendo fazer aquele trabalho não quis porque não teve vontade de fazê-lo. Da mesma forma o pobre zombador, preguiçoso, desonesto, inclinado ao ócio, ao vício, ao esbanjamento, é justo que sofra. É  necessário distinguir este caso de outro pobre, verdadeiro desgraçado, cheio de boa vontade, que por força maior não pôde sair de sua pobreza.

Tudo isto nos mostra um outro aspecto da questão. Ora, se o pobre hoje está adquirindo direitos, implica para ele, também, o cumprimento de correspondentes deveres. O passar a melhores condições de vida obriga a um maior sentido de responsabilidade, necessário para mantê-las. A coletivização à qual aspiram os que não têm nada significa vida responsabilizada, e não apenas assalto à propriedade de outrem, condenando-a quando ela não é sua, mas disposto a mantê-la à maneira capitalista quanto é própria, seguindo assim o mesmo instinto egoísta, condenado nos outros, mas legítimo quando se trata do próprio interesse. É  assim que o homem da rua entende a justiça social, e no entanto ela é outra coisa: não significa seguir o atávico impulso à conquista, mas caminhar em direção a uma fase mais evoluída de convivência numa posição social de organicidade, o que traz consigo um estado de vida disciplinada, na medida em que é dever trabalhar com responsabilidade, fazer planejamento familiar, controle de nascimentos. Coisa bem diferente do que a fácil liberdade dos sonhadores do paraíso na Terra!

Os fenômenos são conexos: o econômico é ligado ao demográfico. Disso se ressentem sobretudo os pobres cuja primeira riqueza consiste na multiplicação da carne, o que significa das bocas a saciar a fome. O uso que os países subdesenvolvidos são mais prontos a fazer das ajudas recebidas, não é de utilizá-las para trabalhar e produzir, mas para multiplicar ainda mais a sua miséria. O resultado da excessiva proliferação é sempre um abaixamento do nível de vida. Ora, o novo modo de viver deverá ser regulado para todos por um princípio de responsabilidade. Os povos ricos terão o dever de ajudar os povos pobres e estes terão o direito de ser ajudados; mas estes terão o dever de fazer frutificar com o seu trabalho as ajudas recebidas para não se tornarem sempre pesados, e aqueles terão o direito de intervir, para que, na sua inconsciência, os povos pobres não multipliquem ao infinito as bocas para matar a fome. Em um regime de responsabilidade, de direitos e deveres, pelo qual só se pode ter direito quando admitido que se cumpram os próprios deveres, então os irresponsáveis devem ser constrangidos a reentrar na ordem. Assim, quem atenta contra o bem da coletividade será considerado, socialmente, um perigoso.

Quando a sociedade não assumia obrigação para com os deserdados, podia ficar livre da sua procriação porque eles estavam abandonados e não recaíam no balanço coletivo. Eis que ao direito do pobre de ser protegido, corresponde o dever do trabalho produtivo e da procriação proporcional aos meios de que dispõe. A justiça social não pode ser feita somente com os próprios direitos e os deveres dos outros. Fala-se tanto de exploração; todavia, para ser imparcial, pode-se afirmar: é explorador o demasiadamente rico desonesto que tudo monopoliza para si, como o pobre desonesto que aproveita da justiça social para ser sustentado por quem trabalha. Até a beneficência, como tudo, hoje tende a tomar uma forma organizada, que enquadra não só o benfeitor, mas também o beneficiado. Ela não é mais um desordenado ato de piedade à mercê de impulsos emotivos, mas uma coordenação de providências calculadas, que presume em todos uma consciência dos próprios direitos e deveres. É  exatamente este novo aspecto orgânico da beneficência que impõe sejam preventivamente eliminadas as causas do mal estar econômico com uma sábia conduta, para que ele não aconteça..

Julgou-se resolver o problema econômico com a abolição da propriedade. Mas esta faz parte da natureza humana e da estrutura do ambiente terrestre onde deve atuar. Assim onde se aboliu a propriedade privada, ela ressurgiu como propriedade de estado. Aconteceu a mesma coisa com as ordens religiosas pobres, que resolveram o problema de igual maneira, isto é, conservando a propriedade, é fazendo-a passar do indivíduo à coletividade - Explica-se este impulso abolicionista como reação aos abusos que da propriedade se fizeram no passado. Ela, de fato, era um direito absoluto, até de escravidão sobre as pessoas. Para corrigi-lo, hoje se desejaria fazer o oposto. Mas o homem encontra-se a mil milhas de distância para ser conduzido a um evangélico desprendimento dos bens. Quando na Idade Média se quis praticá-lo nas ordens religiosas, ele se transformou num meio para fazer-se sustentar com as esmolas do trabalho de outrem. Assim a espiritualidade se tornou parasitismo e obstáculo ao trabalho produtivo. Tais renúncias podem interessar ao evoluído, exceção na Terra; e não ao tipo médio normal, adaptado ao mundo e feito para nele permanecer. O desprendimento evangélico perante o trabalho e a produção, base do bem estar, se tornou negativo, como foi nos países comunistas a abolição da propriedade. Nos dois extremos opostos, a mesma tentativa de anti-propriedade produziu os mesmos resultados.

A solução não está em nenhum dos dois extremos, isto é, nem na propriedade absoluta, nem na sua abolição. O problema se resolve conservando o direito a ela (dado que para fazer mover o homem é necessário deixar-lhe o fruto do seu trabalho que por instinto sente seu, e sem isso não produz), mas ao mesmo tempo limitando aquele direito, de modo que não possa tornar-se exploração e injustiça social. Em resumo: propriedade corrigida, disciplinada, entendida não só pelo interesse individual mas também pelo coletivo. A solução está no ponto intermediário, no melhor de cada um, em que se possam encontrar, compensando méritos e defeitos, os dois extremos opostos: Capitalismo e Comunismo. Isto é o que, de fato, está acontecendo no mundo; e confirma as observações com as quais iniciamos este tema.

Hoje a luta entre ricos e pobres não é mais uma circunscrita luta de classes, mas é luta entre povos. O problema não é mais de ordem interna, mas mundial. Ele não respeita mais à justiça social, mas dele depende a manutenção da paz. Isto porque os povos pobres assaltam os povos ricos. O argumento é persuasivo. Depois de dois mil anos de pregação evangélica se passa da palavra aos fatos. A ajuda aos necessitados não é mais uma generosidade do benfeitor, mas está se tornando cada vez mais um direito do beneficiado. Hoje a norma evangélica se tornou executiva, como não o tinha sido até agora, porque encontrou o modo de fazer-se valer, imposto por uma autoridade competente. Desprovido de uma sanção, aquele direito tinha permanecido somente em teoria. Assim, de simples exortação o Evangelho pode tornar-se realização prática, porque os povos pobres estão se organizando contra os ricos, levando o mundo a uma guerra atômica. Dessa forma eles sentiram o coração pleno de amor pelos subdesenvolvidos.

Até o problema demográfico examinado acima toma hoje dimensões mundiais, e como tal representa uma outra ameaça. Não se trata mais do indivíduo pobre que pede esmola, mas de massas enormes de povos esfaimados, tendentes a proliferar e que, com a anulação das distâncias, estão vizinhos. O seu aumento quotidiano constitui um perigo crescente. A população mundial hoje é de cerca de três bilhões e meio. Calcula-se que em 1981 superemos os 4 bilhões, os 5 em 1999, os 6 em 2013, os 7 em 2025 e os 8 em 2033. Se hoje se cresce de uns 45 milhões por ano, em 2.033 este aumento será de 100 milhões. Continuando, em 2.050 seremos 10 bilhões de pessoas, assim por diante. Com tão vertiginoso aumento de bocas para matar a fome, a luta entre povos ricos e pobres sempre mais armados de bombas atômicas, torna-se uma ameaça alarmante. É sobre o fundo vertiginoso de tais previsões que se desenvolve a Encíclica Populorum Progressio.

O problema mais escaldante de nosso tempo, no qual se conjugam e culminam os outros, é o problema da manutenção da paz. A tendência e a esperança é chegar à supressão da violência entre as nações. Entre os indivíduos já se chegou a isto por meio da autoridade estatal que pode impor-se porque armada de força, constrangendo os indivíduos a permanecer na ordem. Pelo que observamos a vivência da não violência não foi praticada como uma boa exortação evangélica, mas com a presença de uma sanção penal. O uso da força não se pode disciplinar senão com o uso de uma força maior.

Eis então que à paz entre as nações não se poderá chegar senão com o mesmo sistema, isto é, com a formação de um poder central superior a elas, o qual lhes imponha a não violência. Hoje esta nova posição política mundial está em formação em fase de tentativa, pela qual as maiores nações procuram sobrepor-se às menores, o que acabará por construir uma nova ordem mundial. Se isso conseguir formar-se e estabilizar-se, como aconteceu com os indivíduos de algumas nações, teremos uma ordem pública internacional que tornará possível uma estável paz mundial. Serão punidas como criminosas as nações rebeldes à lei comum, livremente aceita e concordada por elas, ou, pelo menos, por uma sua maioria.

Hoje estes grandes indivíduos coletivos vivem ainda sem lei, no estado anárquico do selvagem. Antes entre eles, em guerra, o uso da força era considerado um ato de valor. O desabafo dos mais baixos torna-se um gesto heróico. Mas quanto mais o homem se civiliza, tanto mais ele vê que aquela glória, assim conquistada, se baseia em instintos que, durante a paz, são julgados de delinquência. Temos assim esta contradição pela qual o mesmo ato, como o matar, é delito no interior de unia nação, enquanto é dever e heroísmo, premiado se cumprido contra o povo de uma outra nação. No segundo caso quem não o cumpre é um vil, no primeiro caso quem o executa é um assassino.

Esta é a realidade da Terra. Aquela que nos mostra o Evangelho é uma outra realidade bem diversa, feita a ir para o Céu e adaptada a quem está maduro para atingi-lo, mas não para viver na Terra, pelo menos no mundo atual que nada tem de civilizado. Aqui aplicar o Evangelho a sério significa imitar o Cristo: gloriosa ressurreição no Céu, mas crucificação na Terra. E desta Terra que aqui falamos. As religiões fazem aquilo que podem para minorá-la, mas com escassos resultados. Os sistemas políticos e sociais, assim como as religiões devem fazer as contas com o mesmo tipo de homem. As leis do seu nível evolutivo dizem para ele não fazer nada se não lhe trouxer qualquer coisa de útil. São colocadas as miragens da vida para fazê-lo mover. Assim ele pensa sobretudo resolver cada dia o seu problema fundamental, que é o de fazer avançar a sua vida e para isso utiliza tudo, Deus e o diabo, religiões e anti-religiões, cristianismo, democracia, comunismo, os ideais de qualquer tipo para a mesma finalidade. Assim a religião se torna hipocrisia, a liberdade injustiça, a igualdade e a justiça social tornam-se regimes policiados, trabalhos forçados, opressão política, ditadura. Assim em forma de força ou de astúcia, reaparece por toda a parte a lei fundamental da luta pela vida. O poder em qualquer regime é sempre o resultado de uma conquista. A igualdade, perante a insuprimível realidade da vida, fica sempre teórica. O operário em vez de ser explorado por uma patrão o é pelo Estado. Muda a forma, permanece a substância. De novo não existe nada a não ser aquilo que pode conduzir a evolução. Mas esta hoje é apenas progresso tecnológico, não moral, portanto somente exterior, o que deixa o homem como o era anteriormente. Ele é o último e o mais difícil a modificar-se.

Hoje, se pedem e se obtêm novas liberdades. Mas deve-se ainda atingir a maturidade necessária para saber fazer bom uso delas, sem o que se arrisca que elas se resolvam no abuso e no dano que se lhe segue. O homem quer a liberdade para libertar-se da disciplina. Pelo contrário a liberdade presume e exige uma disciplina maior, livre, mas responsável, autodisciplina interior, mais difícil de possuir do que aquela estabelecida pela obediência, a uma autoridade, em função desta, somente exterior e irresponsável. Pediu-se e se obteve uma liberdade de consciência. Esta cessão de poderes de autodecisão por parte da autoridade do indivíduo, encontrará nele a capacidade de saber assumir o comando de si próprio? A sua posição agora não é tão fácil como ele pode imaginar, porque evadir-se de uma disciplina terrena não significa de fato impunidade quando se cai na desordem. As consequências das próprias ações se pagam da mesma forma, mesmo que se suprima qualquer autoridade em pleno regime de liberdade. Antes se paga mais do que quando se estava sob aquela autoridade, não se pode descarregar a própria responsabilidade porque conhecendo-se mais, tem-se o dever de se tornar mais consciente e responsável. A disciplina necessária para manter-se dentro da ordem estabelecida permanece sempre porque esta ordem é inviolável, fixada por leis invisíveis e interiores às coisas, que não admitem escapatórias como as humanas, e automaticamente reagem respondendo à nossa conduta restituindo-nos em bem ou mal o que livremente desejamos. Mesmo que se destruíssem todas as autoridades terrenas, as leis da vida permanecem. A existência é regida por uma ordem, codificada numa lei escrita no íntimo das coisas, funcionando sempre automaticamente, que rege e guia os seus movimentos. A ilusão do homem está no crer que a disciplina esteja nas leis humanas e que, afastadas estas, se possa gozar de uma liberdade ilimitada. E ele não compreende que a disciplina permanece e sabe fazer-se valer.

Eis o que significa liberdade: significa dever formar-se uma consciência para saber-se dirigir por si próprio, assumindo-se as próprias responsabilidades em proporção à independência conquistada, tanto mais quanto mais a autoridade retira para trás deixando-nos livres. Assim a vida não se torna mais fácil, mas se torna mais séria, com mais problemas a resolver cada um por si, com o risco de se dever pagar pessoalmente as consequências em caso de erro. Ninguém mais fará ao indivíduo o serviço de dirigi-lo e ele não pode descarregar-se senão sobre si próprio. Hoje o homem se encontra só com a sua consciência, no momento crítico da escolha. A liberdade lhe permite mais fácil o caminho da descida, da desordem, mas este caminho leva à ruína e ao sofrimento. Ele deve saber resistir à tentação e escolher o caminho difícil da subida, da ordem, que no entanto é o que conduz à salvação e à alegria.

Hoje para o homem começa a vida do adulto, deve portanto começar a fazer à sua custa, as experiências do adulto. Verá então que a liberdade é um poço de perigos e uma jaula de responsabilidades, que a vida do homem livre é mais difícil do que a do menino que deve obedecer. Mas tudo isto é necessário para aprender, e está escrito nas leis da vida que cada um deve evoluir à sua própria custa.

Na verdade, em nosso mundo predomina o princípio egoísta-separatista, próprio do AS, de onde derivam muitas consequências. Quando os elementos que compõem uma sociedade não se coordenam para colaborar, não se pode falar de organismo, mas apenas de grupo, que, para continuar a existir mantendo-se unido, tem necessidade do domínio imposto por um chefe. Realmente, a primeira coisa que se procura em qualquer associação é quem a comande, impondo a sua disciplina, porque, sem este sistema forçado, o grupo se desagrega. Nos verdadeiros organismos, não nas unidades coletivas em formação, como é o caso da sociedade humana, mas nas que alcançaram o estado orgânico, não existe chefe, mas somente um centro, em direção ao qual espontaneamente se orientam em obediência todos os elementos componentes. A disciplina, que é a base necessária da ordem, é automática, e não há necessidade de ser imposta à força por um chefe. Este grau de evolução já foi alcançado pelo corpo humano.

O modelo perfeito do estado orgânico no plano espiritual é o S. Quando se chega a este nível, a lei da luta, produto do separatismo do AS, desaparece. Assim, cada indivíduo, como sucede nas células do corpo humano, dirige-se livremente ao posto que o espera para executar o seu trabalho em função de todo o organismo. É evidente que a sociedade humana  está longe desse regime de ordem. O que nela domina é o caos, em cujo seio se vão experimentando tentativas de ordenamentos parciais, isolados, como oásis num deserto. Na História eles sucedem-se em cadeia; baseando-se na força, nascem e caem em função dela. Daqui se pode deduzir o que significa a palavra liberdade e o que dela pode advir. Num regime de caos ela quer dizer revolta contra a autoridade, em favor do individualismo separatista, que vê apenas o seu próprio eu contra todos, e não em função da coletividade. Nesse regime a liberdade é um elemento de desordem e não de ordem; para que não houvesse prejuízo deveria ser somente concedida aos povos maduros que dela soubessem fazer bom uso.

Esse é o mundo no qual o nosso personagem veio a encontrar-se, apesar de sua forma mental evolutivamente madura para viver à vontade no seio de uma ordem social do segundo tipo. Não se trata de programa político, mas de posição biológica. Daqui a dificuldade de adaptar-se a uma humanidade que, por estar situada em outro nível, vivia com uma psicologia diferente, sujeita a outro tipo de leis, que eram as do seu plano. Enquanto ele se oferecia para aderir a um sistema de ordem, seguindo espontaneamente seu impulso instintivo para colaborar numa sociedade que atingiu o estado orgânico, não encontrava senão normas impostas com sanções punitivas contra os desobedientes. Havia uma ordem imposta à força, mas sempre violada, como se a maior aspiração do homem fosse a rebelião em lugar da cooperação, ou o afastamento do próximo para agredi-lo, em vez de se unir a ele para o bem comum. Tudo isso era tão absurdo e contraproducente, e o nosso protagonista não conseguia entender como a humanidade quisesse permanecer neste estado tão penoso, quando teria bastado só um pouco de inteligência para compreender o erro. Porém era precisamente esta inteligência que faltava. Mas parecia-lhe impossível que pudesse faltar esta percepção, quando para ele era fato tão evidente. Assim, surpreenderam-no juízos estranhos a seu respeito, que o qualificavam de soberbo, como se ele quisesse isolar-se em posição biológica privilegiada, desdenhando ficar no pântano de todos e, sobretudo, satisfeito com isso, como se fosse dever de quem ama o próximo. Explicar, nada adiantava. Certas verdades são axiomáticas, produto do instinto, dado pela posição evolutiva de cada um.

Ele se encontrava perante contradições clamorosas e uma série de verdades relativas e contrastantes, cada uma afirmando ser ela a única. Por exemplo, nada há mais relativo e contraditório do que o conceito de culpa e de virtude no campo moral. A lei parece feita para ser violada. A autoridade religiosa repetia o mandamento mosaico: não matar. E depois abençoava as armas. Na guerra quem mata é um herói e é glorificado; quem não mata é um covarde e, por isso, é desprezado. No seio da sociedade quem mata vai para a prisão e quem não mata é um bom cidadão. Mas tudo se explica, se se põem de parte as superestruturas idealistas nas quais se escondem essas contradições. O fato básico constante nos dois casos, em função do qual tudo isso acontece, é biológico, não moral, ou de elementar moral biológica, isto é, constitui a defesa para a sobrevivência. Trata-se de uma moral egoísta, para proteção do próprio grupo. Quando na guerra matar é útil para a nação, isso é considerado virtude e premiado. Quando no seio de uma sociedade matar é prejudicial, porque não praticado contra estranhos, mas contra os componentes do grupo, isso é tido como culpa e castigado. Em suma, o problema é um só: o interesse próprio. E a moral muda em função dele. A base é absolutamente utilitária.

A moral que prevalece no mundo é a do interesse e não a da justiça. Assistimos ao belo espetáculo de um mundo dividido em duas partes; a dos que podem abusar do supérfluo e a daqueles que ficam a olhar e a servir aos primeiros. Muito embora, às vezes, a esta desigualdade pode corresponder uma diferença de capacidade, preparação e atividade que a justifique. É certo também que, se o pobres conhecem a necessidade e a preocupação para obter o necessário, os ricos sentem outra miséria, não econômica, mas que consiste na inquietação de poderem ser derrocados a cada momento, de terem de suportar a mentira em seu redor, e de arriscarem à decadência a que leva a vida improdutiva. Mas, se é justo que em tal mundo ninguém pode estar bem, não é boa a moral que ali se pratica. Isso porque a forma das construções mentais e legais quer fazer-se passar por justa. Ao menos, para ser honesto, bastaria reconhecer que, dado o nível evolutivo alcançado pela humanidade, ela hoje não pode fazer mais do que isto, embora possa realizá-lo amanhã.

O nosso mundo é feito de tentativas, de instabilidade, de luta. Por quê? O que é injusto, por esse mesmo motivo, não tem a força de governar-se. Trata-se de uma lei universal a que ninguém pode fugir. Em tal caso tem-se uma construção a que faltam fundamentos sólidos para que possa sustentar-se, então ela se desmorona; o edifício não está equilibrado e, por isso, cai. Isto se verifica em qualquer construção social. Quando as forças que a constituem não estão em equilíbrio, quando o impulso de cada necessidade não encontra satisfação, ele faz pressão num dado sentido, deslocando o centro de gravidade do edifício até fazê-lo ruir. Isto sucede sempre quando se verifica o desequilíbrio provocado por uma excessiva abundância de um lado e uma correspondente carência do outro, uma desproporção para mais e outra para menos, as quais por este motivo tendem a compensar-se reciprocamente. Acontece que o impulso da Lei, ordenadamente, quer reconduzir tudo à estabilidade, em uma posição equilibrada, deixando cair o velho edifício para que em seu lugar surja outro, são e forte, constituído por forças em equilíbrio.

Também aqui assistimos à luta entre S e AS. O individualismo separatista do AS desejaria fazer prevalecer interesses parciais e faz força para que cada um possa impor o próprio egoísmo, o seu ímpeto separatista. Mas não está em jogo apenas o impulso do homem, também existe o da Lei. Eis que esta intervém para agir segundo os princípios imparciais do S, levando assim ao equilíbrio aqueles impulsos, satisfazendo-os com uma distribuição equitativa. As forças da parte negativa da carência lançam-se, então, contra as do lado positivo da abundância, o vazio contra a plenitude, em forma de assalto, para dela se apossarem, enquanto a porção que está cheia não pode fazer outra coisa senão transbordar para a parte que está vazia. Assim, a vida, cada dia que passa, se torna mais coletiva. Em substância, a propriedade é uma passagem contínua de mão em mão, resolvendo-se num usufruto temporário.

Em nosso mundo, as construções sociais não duram, porque elas não se mantêm juntas por uma íntima coesão determinada pelo impulso unitário que existe dentro de cada elemento. Pelo contrário, este tende à revolta, conservado unido pela imposição de uma força estranha que o constrange à obediência. Mas, logo que o ímpeto dessa imposição se enfraquece, prevalece o impulso separatista próprio daqueles elementos. E eles se separam, levando à queda o edifício. Por instinto, eles se repelem em lugar de se atraírem. Isto, como é lógico, tanto mais se verifica quanto mais o homem é involuído, próximo do AS, onde mais aplica aquela força, estranha e imposta. Encontrando-se as coisas desse modo, tais derrocadas são inevitáveis. Este é o resultado de todos os regimes coativos. Mas também é verdade que, sem regime coercivo, no nível humano, é difícil construir seja o que for. Portanto, não há como remediar. O defeito está na natureza humana, que somente poderá ser mudada através de lenta e fatigante evolução. Para construir com estabilidade é necessário um novo tipo de homem, que hoje existe em tão ínfima minoria não chegando a ter importância social. Continuarão a erguer em sentido descendente, em vez de ascendente, edifícios sociais elevados com métodos anti-Lei, de tipo AS, em lugar de seguirem o modelo S. Mas ninguém poderá impedir que a evolução avance conforme o princípio das unidades coletivas.

Ademais, o modo comum de conceber a vida revela que estamos num mundo onde ela funciona ao contrário do que devia. Como podemos, pois, exigir que os resultados não sejam invertidos? E depois se grita que a vida é ilusão e engano! Mas, como pode acontecer de outro modo, se é errado o princípio sobre o qual se baseia! Imagina-se que se veio ao mundo para gozar e pensa-se apenas no bem-estar. A vida, ao contrário, é uma escola aonde se vem para aprender, trabalhar, experimentar e, muitas vezes, sofrer.

Durante milênios se insistiu neste erro, continuamente, produzindo uma acumulação de efeitos tais que instituem agora um enorme peso a suportar, uma lacuna que fará sofrer enquanto não for preenchida, um débito em constante aumento e que deverá ser pago. É uma grande massa a arrastar que a humanidade tem sobre as costas. No passado, em outras posições biológicas, era possível permanecer estagnado em condições mais ou menos estacionárias, nas quais o peso dos velhos erros se descarregava sobre as novas gerações, deixando-lhes depois a consolação de fazer o mesmo sobre as sucessivas, e assim por diante. Se o débito perante a Lei aumentava no decorrer do caminho, era um encargo para os outros, seus sucessores, enquanto a geração que o praticava recebia as utilidades imediatas. Foi assim que o débito sempre aumentou.

Ora, com o tempo, aquele peso se tornou esmagador, até ao ponto em que as gerações de hoje não o aceitam, como ocorreu no passado, herança que lhes foi transmitida pelas precedentes. Acrescenta aí o fato de que a cultura, os meios de comunicação e o progresso despertaram os adormecidos de modo que os jovens estão se revoltando contra as coisas velhas e as repelem para delas se libertarem e sobreviverem. Atingimos, assim, o ponto crítico de uma explosão, porque a saturação do equilíbrio chegou ao máximo, e os velhos edifícios não se mantêm mais; não existe mais hipocrisia que tenha o poder de esconder o peso do mal, nem há mais paciência que tenha força para suportá-lo. Os expedientes usados até agora para encobri-lo não servem mais. Vem à superfície a verdade nua e crua que é bem diferente da oficialmente proclamada para se fazer uma boa imagem.

Não se vem ao mundo para gozar, mas para aprender. Mas aprender o quê? Que existe uma ordem codificada numa Lei, pela qual a vida é regida por normas, equilíbrios, princípios, um todo não só abstrato teórico, mas também real, vivo, funcionando, que rege com fatos, infligindo dor a cada violação. Ora, todas essas coisas a vida não explica, mas elas estão aí para agir e golpear-nos quando provocamos a sua reação. E deste modo que elas falam se fazem compreender, não com raciocínios, mas com fatos. Quem tem olhos para ver percebe tudo isso; para quem não os tem continua da mesma forma, sem entender coisa alguma, até que, à força de repetição, a coisa se torna evidente e, assim, se aprende a ver e a compreender. Os olhos são os da mente desperta através do esforço e da dor. O trabalho da evolução consiste neste despertar. Com a queda o homem ficou ignorante. Agora, à sua custa, deve fazer o esforço de tornar-se inteligente. E, enquanto não o for, deverá pagar, com os seus sofrimentos, os erros, fruto da sua ignorância. Ele deve com o seu suor reconquistar toda a sabedoria perdida. Há muitas regras a respeitar, se não quiser sofrer. A cada erro chega uma chicotada da Lei, que reage. O mundo vive na escola dessas contínuas chicotadas.

É interessante ver como funciona esta escola. É fácil imaginar o que deve suceder a um ser humano, que está ansioso de possuir toda a felicidade do S, do qual é filho e se recorda: ficou livre, mas ignorante das consequências. Aquele seu desejo de felicidade o leva a todos os excessos, mas, ao mesmo tempo, ele está enjaulado dentro de uma Lei onde cada erro — desvio da justa posição de equilíbrio —    conduz ao sofrimento. Esta é a sua posição, como é lógico, em virtude da queda. Ocorre que o homem se lança loucamente em direção aos prazeres para os quais pensa que foi criado, mas se choca contra a Lei, que lhos nega até que seja cercado pelos caminhos do S, e não pelos do AS, isto é, de obediência, na ordem, conforme a Lei, e não de revolta, na desordem, contra a Lei como desejaria. O homem não gosta de permanecer preso a uma disciplina, que limita a sua liberdade. O seu sonho é destruir a Lei para substitui-la por ele próprio, pelo seu egoísmo, pela sua lei. Mas isto é impossível, e ele não sabe. Na sua ignorância crê isto ser possível e insiste em rebelar-se, julgando poder vencer mesmo contra a Lei, impondo-se, dando uma demonstração de força, como costuma fazer no seu baixo mundo. Então, a Lei continua a lhe infligir sofrimento, até que à força de tanto padecer acabará compreendendo que a revolta é absurda, ela não conduz à alegria desejada, mas semente dor. Eis a escola em que consiste a vida.  O homem é como uma borboleta atraída pelo esplendor da chama, e termina queimando as asas. Não vê, não entende, não lhe interessa perceber, mesmo com explicações suficientes. Então ele se queima na chama e depois grita e chora; aí começa a compreender. A lição não é de palavras, porém de sofrimento, aplicada na própria pele. E não poderia ser na dos outros, pois, deste modo não compreenderia.

Para poder gozar da felicidade do S, é necessário saber viver conforme a Lei. Mas o homem não sabe, nem quer fazer o esforço para tanto. É levado a viver em posição antagônica de AS. Então, é lógico que, em vez de alegria (S), não possa obter senão o seu contrário, isto é, dor (AS). Outra coisa não pode acontecer a quem, sendo livre, mas não sabendo agir, quer fazer tudo a seu modo; a quem sendo disciplinado por natureza, deve viver num universo feito de ordem e no qual esta é obrigatória. A escola consiste no constrangimento a essa disciplina até aprendê-la toda. Ser astuto, saber encontrar escapatórias para fugir poderão ter valor em nosso baixo mundo, mas não serve a ninguém perante a Lei. O homem pode lutar com o seu semelhante e vencê-lo, porque este se encontra no seu nível, mas não pode competir com a Lei de Deus, que está acima dele e de todos.

Temos: liberdade, erros, chicotadas. Esta é a história humana. Assim, uma a uma, vão se aprendendo todas as regras do reto comportamento. A cada lição aprendida sobe-se um degrau. Por se ter adquirido um conhecimento evita-se novo erro e, portanto, outro sofrimento. Trata-se de um ser ansioso de reencontrar a sua originária felicidade do S, para a qual foi criado e que ele sente como coisa sua. No entanto, por causa da revolta, não sabe procurá-la senão em sentido e em ambientes contrários, o que faz com que esta busca corra em direção a uma miragem, que depois, na realidade, se resolve em dor. Este é o drama humano. Alucinado pelo sonho de felicidade, o homem vai desesperadamente ao encontro dela para achar apenas o oposto daquilo que procura. Julga que nasceu para gozar e, ao contrário, existe para trabalhar duramente dentro da escola da evolução. A cada passo um engano, a cada engano uma dor, a cada dor uma lição. O mundo o atrai, e, na sua inconsciência, vai atraído pelas miragens, enquanto o alçapão o espera na passagem. Lá se encontra a mesa posta: sexo, riqueza, glória, poder etc. O incauto se precipita para gozar. Mas, dado o que ele é, abusa e se envenena. No fim da experiência, não lhe resta nem a posse da coisa cobiçada, nem o gozo, mas a desilusão e o sofrimento do veneno em ação.

Observemos agora, mais em particular, a técnica do processo de depuração. Ele se realiza através de três fases ou momentos:

O primeiro é o do prazer, no qual livremente se atinge pelas vias travessas da astúcia e da força, como se usa na Terra, a satisfação não ganha, violando os justos equilíbrios da Lei, endividando-se deste modo, perante ela e, portanto, preparando a sua reação.

Num segundo momento, que pode ser uma vida sucedendo a anterior, o indivíduo, viciado pela satisfação alcançada no passado, convenceu-se de haver encontrado o caminho certo, o método seguro para gozá-la e, então, experiente da vivência precedente, usa o mesmo sistema, contando chegar aos mesmos resultados. No entanto, a vitória obtida no primeiro momento foi uma derrota, porque confirmou este indivíduo na direção errada, aquela mesma que agora o obriga a repetir o jogo; mas, ele se encontra noutras condições para não deixá-lo mais obter o que deseja, dado que estão faltando as circunstâncias favoráveis, difíceis de repetirem todas juntas. A moral, como é lógico e justo que aconteça num mundo pelo avesso, tipo AS, é esta: quando se afigura que as coisas estão andando bem, de fato vão mal e, quando parece que elas vão mal, aí vão bem. Isto porque, no momento em que se goza de modo errado, aprende-se somente a errar, o que significa atrair a dor; e, quando se sofre conforme a justiça, aprende-se a corrigir-se, o que quer dizer salvar-se do sofrimento. Pretende-se chegar à felicidade, mas não se compreendeu que pelo caminho da desordem, contra a Lei, não se pode alcançá-la. E assim que, neste segundo instante, aprende-se a não cometer mais o erro, porque se experimentou que ele conduz ao sofrimento e sabe-se que a coisa deve ser evitada. Esta é a lição vivida na segunda fase.

No terceiro momento, que pode ser simplesmente outra vida, o indivíduo se encontra perante as mesmas tentações do segundo momento. Na Terra elas existem de todo gênero, em abundância, e cada um é atraído pelas correspondentes ao seu tipo. Delas se encontra, sempre, quantidade bastante para o seu caso. Por haver experimentado as consequências da violação à Lei, ele já não comete o erro como anteriormente e, desta vez, pode evitar o sofrimento. Eis que se libertou um pouco da ignorância e conquistou outro tanto de sapiência, o que significa um passo à frente na ordem e portanto, uma posição de menor sofrimento e maior felicidade.

Este procedimento se repete a cada imperfeição que nos induz a comportar-nos fora da perfeita disciplina que a Lei exige, se não quisermos sofrer-lhe aquelas consequências dolorosas por tê-la violado. A libertação da dor e a conquista da felicidade são fenômenos que se realizam por graus, à medida que se sobe ao longo do caminho da evolução. Para chegar à felicidade completa do S, é necessário haver percorrido todo esse caminho de purificação e redenção, experimentando tantos sofrimentos quantas são as imperfeições de que é feita a nossa natureza de cidadãos do AS. A dor não poderá cessar enquanto não houvermos aprendido a não cometer mais erros e a viver em total disciplina dentro da Lei. A conquista da felicidade consiste no reordenamento do caos do AS até a reconstrução da ordem do S. Vemos que, geológica e biologicamente, social e espiritualmente, a evolução é um processo de reordenamento contínuo, que caminha na desordem para uma ordem sempre mais completa. A moral aqui exposta se eleva sobre bases positivas de amplitude cósmica, enquadrando-se perfeitamente no plano do funcionamento orgânico do todo. É através deste processo que cada indivíduo, que se tornou de tipo AS por causa da queda, deve apagar de si, uma a uma, todas as qualidades desse tipo, transformando-as em outras consoante o modelo S. Este é o único caminho pelo qual se pode alcançar a libertação da dor.

Tudo isso é claro, lógico e justo. Mas não agrada ao homem, porque o declara culpável e dele exige trabalho e disciplina, enquanto ele deseja ser aquele que faz a lei, patrão, livre de tudo. Mas é precisamente este seu instinto luciferiano que o revela filho caído da revolta, com vontade de comandar egoisticamente, substituindo-se à Lei de Deus, fazendo isso em estado de ignorância e de incompetência para dirigir, não conseguindo desse modo nada mais do que cometer erros e atrair dores. O inferno que ele construiu para si na Terra, com as próprias mãos, prova a verdade dessas afirmações. E, quando ele procura uma via de escape, fá-lo para baixo, em direção ao AS, e não para cima, rumo ao S. Com este tremendo erro, julga ser inteligente, porque a sapiência para ele consiste em saber defraudar a Lei. Tal psicologia poderá justificar-se perante as leis da Terra, tão imperfeitas e, também, frequentemente injustas, mas é loucura ir contra a Lei de Deus, que existe só para o nosso bem. Quem se aproxima Dela com intenção de engana-la é justo que seja traído. Arriscar a vencer as leis humanas que possam merecer isso ainda se compreende, mas não é admissível que o mesmo aconteça com a Lei de Deus. É triste ver com que inconsciente leveza o homem procura enganar-se ao procurar burlar a Lei. Depois desencadeiam-se as tempestades pavorosas que vemos na História, e ninguém lhes entende as causas. Continua-se a semear como se nada houvesse ocorrido. Assim, este pobre ser que no AS queria voltar ao S, permaneceu ainda dentro da Lei do S, onde é Deus que domina. Por isso, a revolta foi o maior fracasso, porque se resolveu não em felicidade, mas no seu oposto, na dor. E o caminho para sair dela é somente um: a obediência.

Assim é o fatal destino do homem, como o de todos os decaídos. Explicamos tudo isso, também, para melhor esclarecer o caso em exame. O nosso personagem encontrava-se, com relação à riqueza, aos tesouros e alegrias do mundo, na terceira fase. Por já ter experimentado a queimadura que eles produzem, não mais os aceita. Tais fatos naturalmente dependem da posição relativa de cada um ao longo da escala evolutiva. Os problemas a resolver são diferentes de indivíduo para indivíduo, conforme a sua natureza e as qualidades velhas e inferiores a serem postas de parte e as novas superiores a serem adquiridas. Na Terra, nas mais diversas posições, há trabalho para todos. Aquilo que para uns é conhecimento adquirido depois de superada a prova, para outros pode ser problema longínquo, do qual nem sequer suspeitam a existência. O trabalho de polimento em geral começa de baixo, ao nível da animalidade do indivíduo. Nesse plano de vida as provas são grosseiras e pesadas, de modo que penetrem a insensibilidade do primitivo, infligindo os seus golpes no corpo: fome, miséria, morticínios, dores físicas, porque os defeitos são do mesmo tipo e as provas espirituais não seriam percebidas. Depois, à medida que o indivíduo se faz mais civilizado e intelectual, também as provas se tornam mais espirituais, até às do gênio e do santo, que se apressam a liberá-lo das últimas escórias, destacando-o completamente das coisas do mundo. Ela nos mostram que outra espécie de prazeres procura o evoluído, a quem os deleites da Terra não interessam, antes podem despertar repugnância.

Insistimos nestas explicações, porque o problema é de fundamental importância, e não havê-lo compreendido significa imensos sofrimentos. Mas, com exceção de poucos que são levados à compreensão pelo seu próprio sofrimento, para a grande maioria tal trabalho talvez seja inútil. O motivo é que uma escola como esta não se faz com palavras, mas à força de queimaduras na própria pele. É ali que se escreve, marcada a fogo, para todos, inclusive para o leitor destas páginas, a verdadeira história da própria evolução e redenção, porque só com tal método estes escritos podem ser lidos e compreendidos. Assim estão as coisas, e ninguém tem o poder de mudá-las. Disto não pode ser culpado quem se limita só a expô-las.

Dissemos que o erro depende da ignorância. Pode-se objetar: mas que culpa pode ter quem não sabe? Como pode ele ser responsável, se agiu por falta de conhecimento? Ora, se o erro está sendo pago, onde está a culpa sem a qual aquele pagamento não se justifica? Que se trata de ignorância não há dúvida, porque é evidente que, se o indivíduo soubesse quanto deve depois pagar caro o seu erro, não o cometeria. Se ele o pratica é porque não lhe conhece as consequências. De fato, quando depois o conhece, porque o pagou, ele não o comete mais.

Para responder a essas indagações, é necessário reconstituir o fenômeno em suas origens e verificar de que deriva esta ignorância. O ser fora criado sapiente e tornou-se ignorante como consequência da queda, devida à culpa da sua revolta. Demonstramos isso nos volumes: O Sistema e Queda e Salvação. Ora, a revolta foi feita em plena consciência e, portanto, responsabilidade. Eis e como foi a primeira culpa, e depois, em cadeia, derivou todo o restante, isto é, a involução e o atual esforço da evolução, por meio da qual, à força de erros e consequentes sofrimentos e com a técnica que vimos, reconquista-se o conhecimento, única via para evitar o sofrimento. A este destino, enquanto não readquirir totalmente o conhecimento, o ser ficará inexoravelmente ligado. Até redimir-se, ele estará prisioneiro na engrenagem atual que vai do AS ao S, ao longo deste caminho: revolta, queda, ignorância, erro, experiência, conhecimento, ordem, felicidade. Cada termo é efeito do precedente e causa do seguinte. Movido o primeiro, todos os outros lhe sucedem logicamente em cadeia.

Desse modo, de agora em diante, fica estabelecido para todos o jogo da vida, inclusive para aqueles que o ignoram, ou não querem admiti-lo. O funcionamento de tais fenômenos é independente da compreensão e aceitação humanas, como, no tempo de Galileu, não era necessário que os teólogos compreendessem o que sucedia, para que a Terra pudesse girar em torno do sol. É claro que a Terra não parava e o sol não começava a girar à volta dela só pelo fato de que, na Bíblia, Josué assim dizia e os teólogos desejavam isso, O funcionamento da Lei não pode ser alterado, unicamente, porque se pensa que as coisas sejam diferentes. Tudo permanece justo e benéfico, porque a dor, se queima, liberta da ignorância e com isso dela própria, fazendo adquirir sabedoria e, portanto, felicidade.

Com estes conceitos explica-se um fato que deixa muitos perplexos, porque parece que contradiz a justiça de Deus. Vemos, na Terra, muitas vezes, que aos maus tudo corre bem e aos bons tudo vai mal. Ora, podemos compreender o que realmente acontece sob estas aparências de injustiça. A Lei deixa o ser livre de mergulhar no mal à sua vontade. O sucesso que ele atinge no mundo, seguindo esta direção, em vez de o libertar, confirma-o nos seus defeitos, porque o convence de ter procedido bem, conferindo-lhe assim um hábito e uma segurança que o conduzem a tentar de novo o mesmo caminho nas vidas sucessivas. Ora, já vimos que esse jogo não pode dar bom resultado. E nesta segunda fase que os encontramos atribulados ao praticar o bem, porque anteriormente eram afortunados no mal. Agora o insucesso forma uma conexão de ideias opostas à precedente, determinada pelo sucesso anterior, e o mal efetuado desta vez não dá satisfação, mas sofrimento.

Pode-se objetar: mas por que a Lei não impede que se pratique o mal? Ela primeiramente o permite e depois o castiga. Mas responde-se: sem se atravessar a prova da dor, que segue ao mal, ninguém aprenderia. Eis a razão por que esta dupla experiência é necessária. No fundo, o mal é utilizado para chegar ao sofrimento que, por sua vez, o elimina. Este é o resultado final de toda a operação. E isso é sumamente benéfico. Este é o motivo porque a Lei permite que se pratique todo o mal desejado, desde que seja à própria custa, para ser resolvido em seu favor. Não se pode negar mesmo que seja duro, tudo isso é bom e justo.

Eis assim explicada a contradição acima. Os maus, para quem as coisas estão correndo bem, encontram-se na posição de pecadores, e os bons, para quem as coisas vão mal, na situação de penitentes. E, se estes parecem infelizes, acham-se, ao contrário, num estado mais avançado, em via de redenção, porque estão pagando: enquanto os outros, que se afiguram afortunados, estão mais atrasados, em via de perdição, porque se estão endividando. Os primeiros ascendem rumo à alegria, os segundos descem em direção à dor. É claro que não se pode compreender todo o complexo jogo da vida limitando-se a uma só existência.

Em substância trata-se de desaprender tudo aquilo que é AS, para aprender tudo o que é S. Isto não significa que aos maus não seja oferecida uma oportunidade de boa conduta. É a sua natureza de tipo AS que os leva a seguir o caminho oposto. Dada a estrutura deles, isto é inevitável.  Mas, na segunda vez, depois que a benéfica oferta não foi aceita, a lição chega em forma de martelamento. Assim, o que não foi aprendido através do amor, o é agora pela força. O mal formou sobre o nosso corpo um grande manto de penas. É preciso arrancá-las todas, uma a uma. Depois, à força de sofrimento, é necessário perder toda a pele e, por força de sacudidelas, toda a carne. Eis em que consiste a evolução. Com a queda cada virtude se tornou defeito. Com a evolução cada defeito deve voltar a ser virtude. Que se trata de endireitamento de uma situação virada pelo avesso, pode-se ver, também, nas posições agora consideradas. Quem segue o AS encontra primeiro o prazer, mas fica com um débito que deverá depois ser pago com o sofrimento. Quem segue o S não encontra encorajamentos traiçoeiros, mas duro e honesto esforço. No fim, porém, tem assegurado o prêmio merecido. O primeiro método agrada e atrai, não obstante, constituir um engano. O segundo não encoraja e repele, mas é sincero. Naquele caem os preguiçosos gozadores, que fazem jus àquela lição, e não os segundos, que não a merecem.

Assim caminha a massa humana ao longo da escala evolutiva. Há quem se encontre na primeira fase, da satisfação traiçoeira, quem se ache na segunda, da experimentação corretiva, e quem esteja na terceira, do conhecimento adquirido. O jogador, atraído pelo ganho fácil, senta-se à mesa do jogo e ali perde tudo. Assim, reduzido à miséria, aprende a não jogar mais. Eis a verdade simplicíssima: aquilo que é obtido sem justiça é traição. Mas como poderia aprender sem jogar e sem perder tudo? Custa caro adquirir o conhecimento, mas este vale aquilo que custa, porque é a coisa mais preciosa da vida. Não se pode viver como ingênuos em um mundo esterilizado, sem ataques dos micróbios. É o organismo que deve ser forte, hábil em resistências, para não cair nos inúmeros perigos dos quais o nosso planeta está cheio. O homem experimentado enxerga com olhos diferentes daqueles com que via antes da prova. As astúcias do mundo são pequenos jogos de curta duração. O grande jogo da vida, aquele que dá verdadeiro fruto, aquele que é feito por quem entendeu, é absolutamente justo e honesto. Somente este, porque está acima de todas as seduções e respectivas traições, recebe frutos a valer. Depois destas considerações, podemos compreender a conduta de nosso personagem, que o mundo julgava um imbecil.

Em nenhuma época se andou tanto em busca de justiça como hoje, especialmente no campo social. Assim, o mundo procura disciplinar de modo mais equânime, à base de mais justas formas de convivência, os direitos e os deveres de todos. Mas é interessante observar como, no âmago de tantas injustiças humanas que se procura corrigir, tenha existido a justiça de Deus, na qual aquelas injustiças terminam automaticamente por resolver-se. Ela é devida à presença no AS do Deus imanente, impulsionando o ser para que ele se dirija à salvação por meio da escola que vimos no capítulo precedente. As atuais injustiças, no fundo, não são mais que efeito de sua causa. Esta pode ser a incapacidade, a preguiça, a ignorância a ausência de esforço e de merecimento etc. Aquelas injustiças, as vezes, são necessárias para que determinada vantagem seja obtida Entretanto, não são virtudes, porque, na realidade, faltam qualidades de esforço e mérito.

Se observarmos bem todo o mecanismo da vida, compreenderemos que, não obstante ser ele tão cheio de ilusões e de sofrimentos, é precisamente por isso que está certo, porque, se assim não fosse, a vida não serviria para ascender, mas para descer. Neste caso ela seria o inverso de uma escola, isto é, feita para confirmar os defeitos do AS, em lugar de os corrigir com as virtudes do S. Mas ao homem isto não agrada, porque a sua vontade é vencer como AS e não como S. A sua desilusão está, exatamente, em não poder se impor com a revolta. Ele não compreende que a vitória do S ao negativo seria uma derrota a menos que ele sofreria. Então, na realidade, tudo caminha da melhor maneira possível. Isto parece uma traição. No entanto, é uma boa obra, pois impede um louco de dar um passo à sua própria ruína. Julga do primeiro modo quem pensa com a forma mental AS, mas quem raciocina com a psicologia de tipo S compreende que nisso está a sua salvação. Porventura, não será um bem que aquele que procura enganar fique enganado, para que assim não engane a si próprio? Não será justo que a falsidade recaia em quem é falso para que aprenda a ser sincero? Eis o drama dos caídos no AS: querer reencontrar a alegria do S onde, em posição emborcada, não se pode encontrar senão a dor. E quanto mais aumenta o esforço para achar a felicidade, movendo-se no sentido da revolta, mais se encontra o sofrimento. O drama está em procurar obter com a força e depois ficar esmagado; o drama está em movido pela astúcia, julgar que se é capaz de obter tudo com engano e terminar por ser enganado

O conhecimento e a sabedoria da vida estão em compreender esses íntimos mecanismos da Lei, esta sua misteriosa técnica interior que arrasta às mais duras provas, enquanto estão à procura de prazeres, aqueles que, obcecados pelo orgulho, se julgam os mais hábeis. A grande armadilha foi desejada, portanto, merecida. Consiste no fato de que, levado pela própria miopia, o homem caiu, usando métodos para obter vantagens imediatas que o iludem; e, a longo prazo, elas acabam sendo-lhe danosas. Ora, enquanto procura ardentemente a felicidade, ele continua pagando e sofrendo. Realmente, de outro modo não pode ocorrer para quem vive em posição emborcada. É assim que ele, porque se movimenta em sentido inverso, não pode obter senão o oposto do que deseja. Não se poderia explicar de outra forma como, em um mundo criado por um Deus bom, que nos ama, andasse o homem em busca de felicidade por toda parte e não recolhesse como fruto senão o sofrimento. Proponho a quantos neguem a teoria da queda que expliquem como na lógica da criação possa existir tão gritante contradição. É evidente que uma obra de Deus deve basear-se na lógica, na justiça e na bondade; sem isto, seria necessário admitir um Deus ilógico, injusto e mau, ou então Ele não existe, e tudo se tornaria um caos, sem nenhuma lei reguladora, não correspondente à realidade.

A nossa capacidade sensória oscila entre os dois polos do dualismo: alegria-dor. A primeira é qualidade própria do S, a segunda, do AS. O ser criado por Deus para a alegria, com a revolta caiu na dor. Com a evolução ele se redime do sofrimento e, reabsorvendo-o, regressa à alegria. Isto constitui a penitência que corrige a culpa; Perante a Lei, é o pagamento que extingue o débito contraído para com a sua justiça. A dor é o chicote que o conduz à força para a salvação, é o remédio amargo que cura a doença. Trata-se de uma escola, de uma lição a aprender, de um tratamento para curar, não de uma vingança ou punição. O objetivo não é atormentar, mas ensinar. A prova não pretende matar, mas tende a não ultrapassar dado limite. Se a dor fosse somente destrutiva e, perante os valores da vida, não tivesse uma função criadora e salvadora, ela não subsistiria na sábia economia do universo, apesar de sua posição emborcada de AS. Qualquer sofrimento encontra sempre na morte a válvula de segurança extrema que o faz cessar. É assim que a maior parte das dores é superada. E, para que se continue a viver e deste modo aprender, a alegria para sobreviver chega, em geral, no último instante, à guisa de oxigênio reanimador. Isto para os gozadores pode parecer uma traição, um a crueldade para prolongar a agonia, mas é um meio salutar para adiar a. prova que redime.

No fundo, alegria e dor são apenas duas posições opostas do mesmo fenômeno. Elas estão situadas ao longo da mesma linha comunicantes entre si, pelo o que mais (+) pode tornar-se o menos (-) e este pode transformar-se naquele. A sensibilidade do ser oscila de um ao outro extremo, até um limite máximo, dificilmente alcançado, além do qual se morre. Há uma fase intermediária, neutra, de indiferença, na qual, num estado de quietude, não predomina nem um, nem outro. Nestas deslocações há uma disciplina que tende a equilibrar os dois extremos para que eles não prejudiquem por excesso, tanto num sentido, como no outro.  A correção é automática. Acontece que, quanto mais se sofre, tanto mais diminui, com o hábito, a sensibilidade à dor e mais se adquire a capacidade de gozar. Desta maneira, o ser imuniza-se um pouco contra o sofrimento e se sensibiliza para o prazer, e será necessária uma quantidade cada vez maior de dor para sofrer na mesma proporção. Inversamente sucede que, quanto mais se goza, tanto mais diminui, com o hábito, a sensibilidade ao prazer e mais se adquire a capacidade de sofrer. Deste modo, o ser se insensibiliza ao prazer e se sensibiliza para o sofrimento, pelo que é necessário uma quantidade de prazer cada vez maior para gozar, sempre na mesma proporção. Em resumo, a abundância de qualquer coisa satura e tende a eliminar a capacidade de assimilação, aguçando ao contrário, a sensibilidade em sentido contrário. Assim, no primeiro caso, a dor torna-se mais suportável e passa a existir maior sensibilização à alegria. No segundo, a alegria produz maior indiferença ao prazer e maior vulnerabilidade à dor.

Como se vê, essas posições e a sua movimentação são canalizadas pela Lei ao longo de um binário, em virtude do qual elas não se movem ao acaso. De fato, a primeira dose de determinado bem produz, por exemplo, uma satisfação. A segunda dose, igual à primeira, não gera o mesmo contentamento, mas, por exemplo, meia satisfação. A terceira dá um terço, a quarta produz a quarta parte, a quinta não ocasiona nenhuma, a sexta faz mal e provoca a dor, a sétima causa ainda maior dor, e assim sucessivamente. A razão desta descrente capacidade de gozar é dada pelo fato de que ela está enquadrada no AS, onde a alegria, em vez de aumentar, tende a diminuir, invertendo-se na dor. Cada tentativa neste sentido, isto é, em direção ao AS, conduz automaticamente a uma progressiva diminuição da qualidade do S, a alegria; e a um gradual aumento da qualidade do AS, a dor; até desaparecer a primeira e ficar somente a segunda. Com a revolta ocorreu que o ser, em vez de conquistar uma alegria maior, emborcou-se na dor, que constitui a lição salutar forçando-o a fugir do AS através da evolução. Isto tem como consequência o seguinte: por este caminho ele deve acabar por regressar ao S para reencontrar o paraíso perdido, sua meta constante, que em vão procura alcançar no AS. Segue-se também que, quanto mais o ser aceita o merecido sofrimento do AS como expiação e pagamento do seu débito, tanto mais endireita em direção ao S o seu emborcamento no AS, redimindo-se da dor e caminhando para a alegria. Em cada caso, portanto, tudo tende para melhor. Assim, Deus pode dizer à criatura rebelde: "Distanciai-vos de mim; se quiserdes, pois, a mim devereis voltar, porque fora de mim não encontrareis senão dor e morte”.

Portanto, o movimento que vai da alegria à dor, e ao contrário, é uma oscilação contínua, como entre dois vasos comunicantes. As duas existem, uma em função da outra. A mesma percepção verifica-se entre os contrastes com posições opostas, dependendo destas muito mais do que das suas próprias intensidades. O prazer verifica-se, então, na medida em que elimina o sofrimento de uma precedente necessidade insatisfeita e diminui com a sua satisfação. Assim, pode haver prazer apenas pelo bem-estar que se segue ao desaparecimento de uma dor, contentamento que, quando é contínuo, pode deixar-nos indiferentes, sem a sensação de alegria. E, quando esta fica fora dos equilíbrios da Lei, pode transformar-se em veneno. Para esses equilíbrios, quanto mais ela se encontra em excesso tanto mais atrai o sofrimento que a compensa; quanto maior a dor, tanto mais a diminuta alegria tem o poder de compensá-la. Por exemplo, para sentir prazer com a comida, é necessário ter fome: para se contentar com a bebida, é preciso ter sede; para se satisfazer com o repouso, necessita-se de trabalho; para usufruir a riqueza, faz-se mister ter conhecido a pobreza; para ter satisfação com as honras, convém tenha sido humilhado; para valorizar a saúde, é preciso ter estado doente; para se apreciar a liberdade, é conveniente ter sido escravo. A grande justiça da Lei consiste no fato de que quem teve tudo está cansado e não sabe mais aproveitar coisa alguma, e quem não teve nada sente prazer com qualquer coisa. Daí podem nascer posições diversas, como a do rico que fica nauseado pela abundância; como a do pobre que, faminto de mil desejos insatisfeitos, assalta-o para espoliá-lo de tudo. Assim acontece com todo aquele que, além deste plano, encontrou alegrias superiores no nível do espírito e luta para conquistá-las; não regride, não guerreia, antes avança, como no caso de nosso personagem.

E por este processo de saturação que se verifica o fenômeno já mencionado no Cap. IV: a perda automática da riqueza não ganha honestamente. Aqui observamos mais particularmente o caso muito comum, segundo o qual o ciclo da riqueza, em geral, dura três gerações. A primeira é a dos pobres, que, estimulados pelo desejo e tornados ativos e inteligentes por causa da necessidade, acumulam com qualquer meio um capital. Eles o apreciam pela satisfação que lhes dá a riqueza como compensação da pobreza precedente. A segunda geração, ainda com a memória fresca da pobreza, é a dos gozadores que se sentam à mesa para banquetear-se. A terceira, crescida na fartura, não recorda mais fome alguma; não aprecia, portanto, aquilo que tem; não o defende, caindo, assim, vítima de assaltos de outras pessoas tão ávidas, como as da primeira geração, que lhe roubam tudo. Em geral trata-se de gente ociosa, inepta e cansada, que a vida se apressa em liquidar. Isto sucede às famílias, como às nações. Foi o que aconteceu na França com Luís XIV (1ª fase), Luís XV (2ª fase), Luís XVI (3ª fase), caindo com a Revolução. Isto ocorreu na Rússia, com a aristocracia do Czar. É assim que a justiça social resulta automaticamente aplicada pelos equilíbrios da Lei, independentemente das intervenções humanas.

O que pode parecer uma traição esse doce convite a uma vida fácil, levando ao enfraquecimento e, consequentemente, à ruína é, na verdade, um ato de justiça, porque quem gozar do que não merece é justo que disso seja privado. Assim, automaticamente, a Lei tende a eliminar os abusos. O hábito de viver sem fadiga fabrica ineptos para a luta, destrói sua capacidade de resistência, enfraquece-os e torna-os vulneráveis ao mínimo ataque. Ao contrário, viver afadigado sem recursos, torna o homem apto à vida difícil, faz adquirir capacidade de luta e resistência, reforça-o contra os ataques. A vida é um jogo contínuo, e a fácil vitória cria a inconsciência que impele a enriquecer, tornando-nos imprudentes e levando-nos à derrota. Os obstáculos, entretanto, criam a consciência das dificuldades, tornam-nos prudentes e mais preparados para a vitória. Aquilo que se apresenta como uma cômoda ajuda para a vida faz perder as qualidades preciosas para a sobrevivência, enquanto o que parece entravá-la leva a adquirir aqueles atributos. Logo, é desvantajoso, o que parece vantagem, e lucro o que parece prejuízo. No fundo, o que domina é uma justiça superior, contra a qual o homem nada pode. Aquele que goza o que não mereceu, desvaloriza-se e se destrói. Quem se esforça por merecer valoriza-se e se constrói. Por isso, ninguém é tão desgraçado e votado à pobreza como os que nasceram ricos, parecendo os mais afortunados e, portanto, invejados.

Considerando o fenômeno em escala social, vemos que a tendência da classe dominante é fixar para sempre a sua posição em forma hereditária, apoiada pela adesão da classe eclesiástica e protegida pelas leis do Estado. Esta foi a história da aristocracia francesa, russa e chinesa até às respectivas revoluções. Mas, justamente por causa dessas leis, exatamente quando se julga ter levado o sistema ao máximo de perfeição, ele se desfaz pela reação que surge do lado oposto. Precisamente, quando tudo parece definitivamente ajustado, é, então, que tudo desmorona, porque as aristocracias perderam as suas virtudes de luta e assim caíram como fácil presa de quem as conquistou por se ter encontrado em opostas condições de vida. Até a queda das aristocracias e o triunfo das revoluções são devidos aos equilíbrios da Lei. Assim se explica como as aristocracias tardam a desmoronar-se, dado que certo lapso de tempo é necessário para que elas, corrompendo-se no ócio, percam as qualidades de defesa, e, do lado contrário, as classes pobres, no estado de opressão, carregando-se de revolta e desenvolvendo a mente, adquiram o poder de decisão e a capacidade necessária para realizar o esforço da reação.

Eis que o período de tempo dos sistemas de opressão depende da duração da inépcia dos submetidos que se vão rebelar. Isto porque na vida, cada posição deve corresponder, rigorosamente, aos efeitos e valores que a justifiquem, e quando estes faltam ela se perde e cai na situação oposta, obrigando a desenvolvê-los. Se os do1ninadores gozam vantagens, porque estão vivenciando o que conquistaram como um esforço precedente, eles perdem quando aquele esforço não continua, ou foi consumado o seu resultado. E justo, portanto, que eles aproveitem, enquanto tem o poder nas mãos; por outro lado, é também justo que os fazedores das revoluções, quando se tornam poderosos, gozem por sua vez; assim como é legítimo que os servos permaneçam tais, enquanto não adquirirem a capacidade e a força necessárias para se tornarem patrões. Estes, com o seu exemplo, ensinam àqueles, que estão atentos a observá-los, ansiosos por aprender com eles e imitá-los. Ora, os mestres da injustiça, julgando ser astuciosos ao pretender realizar o seu próprio interesse, na realidade funcionam como mestres de justiça, oferecendo vantagens aos que eles julgam estar desfrutando. E através da luta e compensação entre as várias injustiças que a Lei atinge a justiça. Desse modo, permitindo que, reciprocamente, se corrijam os egocentrismos rivais, alcança-se entre inimigos um funcionamento coletivo cm colaboração.

Com este processo eles realizam todos juntos o trabalho mais importante: evoluir. As aristocracias caminham à frente gozando o fruto do esforço realizado e, por fim, se cansam no bem-estar e descem. Entretanto, descobriram e, sem querer, ensinaram um tipo de vida mais adiantado aos atrasados. Estes assaltam, enriquecem e depois, imitando, avançam um trecho, mesmo que depois parem e decaiam. Assim, às ondas, a humanidade toda progride, fazendo cada um a sua parte. As aristocracias, no entanto, não descem ao nível do qual partiram ao iniciarem a subida, mas a um plano um pouco mais alto. Nisto consiste o progresso, o verdadeiro fruto de todo este trabalho. Somente poucos indivíduos isolados não se esgotam no bem-estar, descendo tanto, porque os utilizam para trabalhar e desenvolver em outro terreno, no plano espiritual em lugar de esbanjá-lo nos prazeres.

Poder-se-ia perguntar: como é possível que os inferiores mais fortes em número, podem permanecer por tão longo tempo subordinados a uma classe de dominadores mais exígua que a deles? Isto se explica onde e quando as massas, ainda que numericamente mais fortes, são mais débeis, biologicamente menos evoluídas. Ser evolutivamente mais avançado constitui uma força que dá direito à vitória sobre os mais atrasados. Uma grande massa de indivíduos com ausência de valores, pode menos do que uma pequena massa poderosa. E assim que um pastor pode dominar um rebanho inteiro. Mesmo ao nível de luta egoísta no plano animal os vencedores superam, como valores biológicos, as massas que carecem deles e, portanto, podem dominá-las, porque elas são, evolutivamente, mais atrasadas. Mas em que consiste esta sua inferioridade, se não se pode negar que o primitivo seja um lutador forte e agressivo? É preciso ver de que forma e com que métodos ele usa essa força. Ele é egocêntrico, indisciplinado, desorganizado, antiunitário. Está em luta contra todos. Encontra-se isolado num oceano feito de guerra e de caos, sem um palmo de terra onde apoiar os seus pés com segurança. Isto torna débil aquela sua forca. Ele possui a potência do número, mas não a inteligência para saber utilizá-la com uma ação unida e convergente. Enquanto os elementos de tipo mais evoluído se dispõem, organicamente, integrados numa engrenagem, cooperando para uma finalidade única; os outros são dispersivos e gastam a sua força em atritos e em rivalidades individuais. A classe dirigente, apesar de ser da mesma raça, pelo menos se mantém unida por espírito de grupo, o que a torna mais resistente na luta. Isso lhe permite dominar as massas enfraquecidas pela sua íntima desagregação. O que as vence é o fato de que ao seu nível a força se apresenta dividida contra si própria. Não é surpresa, portanto, que ela seja abundante e violenta quando é dividida. Ela não pode produzir coisa alguma e se dispersa fragmentada em mil grupos rivais. A sua verdadeira potência estaria em saber inteligentemente organizar-se, evitando os atritos do  separatismo excessivo, para somar os esforços de todos os elementos em direção convergente, em vez de se anularem reciprocamente com os seus antagonismos em sentido divergente. Mas, para chegar a isso, necessário certa inteligência, certa consciência coletiva e espírito unitário que as massas ainda não possuem, porque essas qualidades aparecem somente em estágio evolutivo mais avançado.

Tal sistema biologicamente mais atrasado encontra-se em posição de desvantagem perante a economia utilitária da vida. E por isso fica vencido pelo outro sistema, evolutivamente superior, porque mais unitário, representando maior valor biológico. É por isto que em tal sistema a vida dá o direito de vencer. O outro método é formado de rivalidades, e a sua própria natureza faz com que o seu trabalho seja destrutivo. O método unitário, pelo contrário, é feito de colaboração, significa soma de energias em vez de subtração, e a sua própria natureza faz com que o seu trabalho seja construtivo. O futuro da humanidade será representado pelo estado orgânico; este será de nível superior, para onde ela caminha evolutivamente. Essa unificação representa uma potência de coesão, de resistência e, com isso, uma superioridade de método na luta e maior garantia de sobrevivência.  O primeiro procedimento não produz bens, mas guerra, uma seleção de seres fortes e violentos que sabem somente matar. Desse modo, não se pode obter senão a luta infernal do involuído. Com o progresso, mais útil do que a forma física, ou a coragem do guerreiro, a inteligência, a organização, a técnica. Isto está se verificando nas guerras modernas, onde o valor militar impulsivo está reduzido a zero perante a potência calculada das máquinas dirigidas pela mente do homem. Haver substituído este novo método de luta à velha ferocidade sanguinária já representa um certo progresso. Outro passo será dado quando força e astúcia, que hoje se usam em sentido destrutivo, isto é, ao negativo, forem utilizadas construtivamente, ou seja, ao positivo. Não basta a força se se quiser construir com estabilidade. É necessário que os elementos que esta força quer unir sejam amalgamados e mantidos juntos pela potência de coesão de outra força igualmente potente, que se chama justiça. Quando o homem for mais evoluído conseguirá entender que sem ela as construções não resistem e desmoronam, como costuma acontecer no mundo atual.

O fato de que as massas até ontem eram incapazes de se fazerem valer é demonstrado pela sua atitude perante as classes dominantes. Elas não se organizavam em busca dos seus direitos, mas cada indivíduo procurava sozinho subir por sua conta, arrastando-se aos pés dos mais poderosos e, assim, infiltrar-se no reino deles. Faltava uma consciência de classe, necessária para saber organizar-se; faltava um sentido de cooperação, indispensável para poder unir-se. Assim, isoladamente emergindo de baixo, somente poucos, os mais evoluídos, podiam chegar à altura dos dominadores, enquanto as massas permaneciam dominadas. Mas não podia suceder de outra maneira, pois, aquilo que é evolutivamente superior é mais potente e, naturalmente, domina o que lhe é inferior. Isto porque o primeiro é positivo perante o segundo, que, em relação a ele, é negativo. Sendo ele mais avançado na hierarquia e, assim, mais próximo do centro, funciona como polo de atração para os menos evoluídos, que se encontram em posição periférica, e por isso ficam-lhe submetidos.

A lei geral, é tanto mais visível quanto maior a diferença de nível. O indivíduo de um plano evolutivo inferior é, pela própria ignorância e capacidade intelectiva, excluído da compreensão dos acontecimentos num ambiente superior. Este permanece fechado para ele, não porque as portas de ingresso estejam cerradas e, sim, porque aquele plano é inacessível. Não obstante ser ali a vida mais feliz, ele não sabe conceber em que consiste tal felicidade. Não saberia usá-la, nem gozá-la, como aconteceria a um macaco retirado da floresta e instalado dentro de um apartamento luxuoso. E fácil admitir que os diabos não seriam capazes de sair do seu ambiente infernal mesmo que se lhes abrissem as portas do paraíso, como um peixe não pode desejar sair do seu “habitat”, à água, para o qual foi feito, a fim de aventurar-se no ar, onde certamente morreria. Para poder voar é necessário primeiro transformar-se em pássaro. Assim os involuídos ficam no seu inferno e não se apercebem da existência do paraíso, pelo menos enquanto forem atrasados.

Essas posições, no entanto, não são fixas, mas em contínuo movimento, este acompanhando o valor de quem o vai conquistando. Aquele que se encontra em baixo está sujeito a  uma escola contínua para amadurecê-lo, até que um dia, uma vez realizada tal maturação, ela o torna apto a subir. Como se vê, o ser vive dentro de uma rede de leis, sendo necessário aprender a conhece-las, se não desejar sofrer. Rede de leis significa malha de reações e sanções. O ser se encontra ali dentro, livre e ignorante. A cada erro paga com o sofrimento, mas sofrendo aprende e, aprendendo, erra e sofre menos, ao mesmo tempo que, evoluindo, aprende também a saber usar e gozar de alegrias mais verdadeiras e menos traiçoeiras.

As consequências de tais equilíbrios no terreno prático mostram que cada prazer somente se pode obter na justa medida estabelecida por aquelas leis. É inútil, portanto, tentar forçar a máquina do prazer, como o homem na sua ignorância julga ser possível. A satisfação só recompensa uma função quando esta é praticada dentro dos limites estabelecidos pela finalidade que ela se propõe alcançar. Se estes são ultrapassados, as leis avisam que se cometeu um erro, invertendo sempre mais a alegria em dor. E inútil, portanto, insistir artificialmente na procura do prazer, porque os efeitos, são decrescentes, até se inverterem em sofrimento. Moral: tudo é equilibrado, nada se rouba, tudo é merecido e estabelecido em dadas proporções que ninguém pode violar. Se se pretender demais, terminar-se-á por obter o oposto do que se procura. O ser é livre e pode tentar qualquer excesso. Mas a reação reequilibradora por parte de tais leis está sempre pronta a intervir para colocar cada coisa no seu lugar, naturalmente à custa de quem cometeu o erro. Se se quiser gozar, será necessário procurar a alegria somente na medida estabelecida. O método utilitário para obter a máxima satisfação possível, ou o maior rendimento em termos de prazer, isto é, de maior vantagem e menor dano, é manter as proporções entre o prazer e o esforço feito para obtê-lo em função da necessidade que daquele prazer decorre para realizar um bom trabalho.

Assim acontece com o sexo, com a gula, com o orgulho, com a riqueza e com o poder. A negação completa é defeito, como o é o abuso. Mas ela se explica como reação a este, para compensá-lo com o seu oposto. A vida não se transforma numa penitenciária, mas pode ser também gozada nos limites estabelecidos nela satisfação das suas necessidades.  E tudo isso não termina em si mesmo apenas como sabedoria para melhor gozar a vida, mas existe em função da finalidade suprema desta: evoluir. Isto não significa que para ascender seja preciso um masoquismo martirizante. O trabalho da ascese é já bastante grave por si só. Portanto, é saudável a renúncia que ajuda à superação, não a que oprima, impedindo-a. Mas a uma renúncia decidida e enérgica pode ser conveniente para quem se excedeu, sempre como correção do abuso precedente. Em tal caso, que é comum, isto pode ser necessário, mas como corretivo, para restabelecer o equilíbrio.  Na idade Média se praticavam excessos de ambos os lados: vida dissoluta e renúncia absoluta, insaciabilidade e abstinência, ferocidade e santidade. A virtude está em usar tudo com medida e desprendimento, com a finalidade de viver, e existir com o objetivo de evoluir; o vício está no fato de se usar tudo sem medida, com avidez, para gozar e, assim, involuir. O erro está em fazer de um meio um fim. Tratando-se de um emborcamento, é natural que ele não possa produzir senão resultados invertidos, isto é, sofrimento. A evolução é dura necessidade, mas é também uma arte que, se soubermos exercitá-la, pode dar resultados mais facilmente e, com menos esforço, produzir mais rápidas vantagens  menos dor. Mas o homem comum está bem longe de conhecê-la e, portanto, de praticá-la! Deverá, assim, realizar a sua própria evolução de forma não inteligente, caminhando dentro do mar de leis no qual está imerso, não funcionando regularmente como uma máquina bem lubrificada, mas cometendo erros a cada passo e depois obrigado a sofrer para corrigi-los, guiado pela força dos golpes das reações da Lei.

Vejamos, agora, a posição em que o nosso personagem se encontrou perante o mundo. Este o estigmatizou com três palavras: é um imbecil.

Desse modo, ele foi subitamente utilizado pela sua mais alta virtude, de acordo com o mundo: possuir riquezas. E foi assim colocado no lugar em que a nossa sociedade o esperava: o de derrotado. Parece que na Terra os bons não podem ser utilizados senão para serem explorados, aproveitando-se da sua bondade. Ele era um imbecil que, socialmente, apenas podia ser útil para ser vencido.

Mas como se pode afirmar que o atual biótipo humano deve constituir a única unidade de medida dos valores da vida? Na verdade, ela se pode preencher com coisas maravilhosas, não as do homem que só se interessa por sexo, pela riqueza, pelo orgulho, pelo poder etc. Estas são satisfações elementares, para primitivos. Existem outras paixões, outros prazeres, lutas e conquistas. Quem assegura que à vida não se possa dar outro conteúdo senão das coisas terrenas? Quem afirma que ela se exaure toda no plano físico e que não se pode concebê-la de forma muito mais vasta em relação a outros pontos de referência? É lógico que a evolução abra as portas para mundos e formas de vida que o atual homem comum nem sequer concebe. Então, pode-se viver em função de realidades situadas além do período terreno, de finalidades mais altas e longínquas, diversas da vantagem concreta e imediata. Quem permanece naquele primeiro tipo de vida, primitiva, pode ser apenas um míope, vendo somente uma pequena vivência que se realiza no presente, um ignorante que desconhece como funciona o grande mecanismo da existência, não se dando conta dos imensos poderes e desenvolvimentos contidos no processo evolutivo. Àquele homem conhecia-os e até os tinha explicado a quem os ignorava, não nos vagos termos da fé, mas com a lógica positiva do raciocínio, das provas, da experimentação e da ciência. Ele tinha, portanto, agido racionalmente, segundo uma visão profunda dos princípios da vida e, através deles, no caso particular do seu destino. Ele sabia por que tinha nascido e qual era o trabalho a realizar nesta sua atual existência. E o executava. Tudo isso ele fazia com conhecimento e consciência das razões pelas quais se vive e para realizar um plano de construção da personalidade em sentido evolutivo. Este era o homem que o mundo julgava um imbecil.

Mas era natural que o condenasse, porque, para se corrigir numa forma de vida de tipo S, tinha destroçado o modelo de vida na Terra, de tipo AS. Tendo-se colocado contra as leis do plano evolutivo humano, para seguir outras mais elevadas, era óbvio que aqui fosse condenado. Para o mundo a sabedoria está em saber enriquecer, não importando os meios, sendo o empobrecimento considerado ignorância e derrota. Os valores são imediatos e concretos e não uma meta a alcançar com a evolução. A finalidade é gozar logo, mesmo que se fique devendo, ou ainda que retrocedendo, inconscientes das consequências longínquas. Não se pensa em criar formas mais progressivas de vida, adquirindo-as com a ascensão espiritual. O ser, quanto mais é involuído, tanto mais tem vista curta e vive o dia-a-dia com reações imediatas; e, quanto mais é evoluído, tanto mais vê ao longe e é previdente organizador do seu futuro. O selvagem vive só do momento presente, o homem civilizado prevê por anos e o evoluído antevê a sua evolução em outras vidas. Como se percebe, o problema da vida nos dois casos é colocado de forma oposta. Além disso, é lógico que seja assim, dado que existimos no dualismo, cisão em duas posições antagônicas. Este condicionamento faz parte da própria estrutura de nosso universo constituído do S e AS, de positivo e negativo, de um contraste entre contrários. E a esta estrutura cósmica que pertence a contraposição Cristo e mundo e, no caso presente, a oposição entre o nosso personagem e o ambiente humano. Eis a amplitude das bases da sua conduta e da sua moral.

E certo que neste mundo são mínimas as proporções onde são reproduzidos tão vastos princípios, e, no entanto, estão aí. O mundo, contudo, gravita em direção ao polo oposto. E assim que tipos como o nosso personagem ficam isolados, fora da normalidade, que pela força do número, na Terra, decreta a verdade. Aqueles tipos vivem como marginalizados num meio que lhes é hostil. O nosso mundo está organizado para satisfazer os gostos de determinado tipo médio, que se intitula de normal. Tudo se destina à sua medida. Os outros devem adaptar-se. E, se são muito evoluídos, não têm outra alternativa senão animalizar-se. Só assim serão considerados normais e poderão reentrar na série e moverem-se de acordo com os demais.

Pouco a pouco o problema inicial desta história se dilata. O voto de pobreza não é um fato isolado; está conexo com outras questões e se nos apresenta como uma emersão da profundidade de um mundo subterrâneo: a personalidade humana, sua estrutura, seu destino.

Para o indivíduo espiritualmente mais avançado, há o tormento de ter de se adaptar, isto é, usar uma medida que não é a sua. A sociedade não admite no seu seio tais seres, construídos fora de série, porque eles não caminham na sua corrente. O tipo de inteligência que o mundo exige é diverso do que ele possui. Pertence a um nível mais baixo, destinado a realizar-se na Terra, no momento presente, e não para dirigir um padrão de vida mais evoluído a alcançar quando se esteja maduro. Trata-se da inteligência-astúcia, adaptada a fabricar enganos para neles enredar o próximo e vencê-lo, vantagem própria na luta pela vida. A outra é uma inteligência feita para descobrir aqueles enganos, e não ficar preso em suas armadilhas, evitando o próprio dano, vítima dos poderosos deste mundo. Em resumo: inteligência de guerra, egoísmo, rivalidade, atrito, mentira, em vez de ser individualmente construtiva e coletivamente organizada, sincera, colaboracionista, iluminada, ordenada e consciente. Com o seu tipo diferente de inteligência, o evoluído busca conhecimento e evolução, e não faz o jogo de conquistas e posições sociais, usando o próximo para fazer carreira e ganhar dinheiro. A esta bravura inferior a inteligência do evoluído não mais se adapta. Repugna-lhe desfrutar as suas capacidades espirituais, usando-as egoisticamente. À muitos isso poderá parecer a atitude de um orgulhoso aristocrata que tem repugnância do mundo. E ainda mais quando ele é rico e poderoso, porque sabe como isso se alcança na Terra. Entretanto, mesmo o tipo comum, quando enriquece, tende a fazer-se aristocrata e a repelir a plebe. Isso é fatal, porque qualquer ascensão provoca distância e estabelece divisão entre o alto e o baixo. Não se pode, por isso, impedir que a separação surja automaticamente, mesmo no caso da espiritualização, que representa um deslocamento muito maior do que o enriquecimento e o seu aristocratizar-se.

Observemos ainda outros aspectos de inconciliabilidade entre as duas situações. Quando o homem espiritual abandona as riquezas terrenas, ele se empobrece verdadeiramente, ou isso acontece somente para o mundo que não conhece outras? Se alterarmos o ponto de vista, pode suceder que a sua pobreza seja relativa à forma mental do mundo que o julga, mas não como uma conquista de outras riquezas ainda não compreendidas na Terra. Os valores econômicos e os espirituais constituem dois diversos tipos de bens, situados em dois níveis evolutivos diferentes, ambos úteis à vida, mas cada um tanto mais precioso quanto mais alta é a sua posição. Quando se abandona uma coisa de menor valor, para conquistar outra de maior interesse, não se pode negar que se trata de um bom negócio. E não se tratava, neste caso, de maior valor abstrato, mas prático, em termos de conhecimento, satisfação moral, resistência na luta, formação de personalidade. Tínhamos uma economia diversa, sem furtos, enganos, desilusões, traições e semelhantes desastres das riquezas terrenas. A essas conclusões, de fato, o nosso personagem chegou ao término da sua vida, depois de ter conduzido até ao fim a sua experiência evangélica.

No caso tomado em exame, as avaliações eram opostas: o que nele era positivo, para o mundo era negativo, e ao contrário. Assim, na pobreza, o mundo via somente uma perda material, a coisa mais importante, enquanto ele via um grande lucro espiritual. Julgamento inverso. A diferença entre os dois casos está no fato de que para o nosso personagem a renúncia não é sentida como perda, mas como um meio de conquista espiritual. Não se trata de um fato negativo antivital, porém positivo, em favor de uma vida maior. O mundo busca valores transitórios, só aderentes à parte exterior da pessoa, da qual se podem facilmente destacar; em nosso caso procuravam-se atributos interiores, definitivamente unidos à pessoa como qualidades suas, que ela não pode mais perder, virtudes que não podem ser vendidas, nem roubadas.  Tudo depende da própria potência visível e da amplitude dos horizontes que com ela se pode abraçar. De resto, o fundamental impulso da vida é essencialmente subir. E, neste caso, se ascende a dimensões mais amplas e com resultados mais estáveis, isto é, realizando não uma correlativa elevação econômica, mas um verdadeiro crescimento biológico, não acrescentando a si alguma coisa de fora, mas tornando-se absolutamente diferente, o que coloca o indivíduo em posição evolutiva diversa, conduzindo, portanto, a um definitivo melhoramento de tipo de vida.

Explicamos noutro lugar a função evolutiva do fenômeno da descida dos ideais na Terra. O nosso personagem a tinha compreendido e por isso seguia um ideal, para realizar o seu progresso espiritual, vivendo-o por sua conta em um ambiente social, evolutivamente inferior, levando um tipo de vida superior para se preparar a entrar individualmente em um mais alto plano biológico. Não podendo constranger o mundo a evoluir, não lhe restava senão abandoná-lo á sua sorte. Sendo este bem armado de resistência para permanecer no seu nível atrasado, ao nosso personagem só restava limitar-se a evoluir isoladamente. Ele tinha o seu modo de fazer carreira, não pelas pequenas estradas do mundo, mas pelas grandes vias-mestras da ascensão do universo em direção a Deus.

Também ele era um conquistador de riquezas, mas segundo um tipo de economia diversa à do mundo. Antes de tudo, sabia produzir e fabricava para si, depois oferecia gratuitamente aos outros o fruto do seu trabalho. Por isso, era contra os métodos do mundo que, ao contrário, utiliza a troca egoisticamente calculada. Então, é interessante observar o que acontece quando as coisas espirituais são oferecidas e têm de passar do seu tipo de economia àquele da Terra. É natural que as trate com a sua forma mental do "do ut des" (dou para que dês), isto é, de troca, conforme a lei da oferta e da procura, e que se ponha em primeiro lugar e utilizá-las não como um meio para evoluir, mas em função dos seus interesses materiais Assim as coisas espirituais são colocadas no balcão como mercadoria comercial dos vendilhões do templo.

O caso em exame nos faz ver o choque que nasce quando um produto espiritual, filho das leis do seu plano, é transportado para o terreno de nosso mundo material, onde vigora outro tipo de lei. Aqui o produtor de bens espirituais encontra-se em condições econômicas de imensa desvantagem. De tais bens poucos são os consumidores e, portanto, os adquirentes. Então, a oferta torna-se inútil e morre sem resultado, quando não lhe corresponde uma procura proporcionada. O produto pode ser sublime, mas não é comerciável. Fazem-no, pois, desaparecer do mercado, e o problema fica resolvido.

As massas querem outros artigos; é a procura que regula a oferta e, portanto, a produção. Deixa-se de produzir aquilo que não se vende. Há, no entanto, um meio para dar saída aos bens do espírito: consiste em rebaixá-los ao nível que satisfaça o gosto das massas. Quando se trata de coisas de primeira necessidade, sendo a procura assegurada pela carência do consumidor, o produto pode impor-se a ele. Mas, no caso contrário, é o que o consumidor que se impõe ao produtor, exigindo que sejam satisfeitos os seus desejos. Isto significa que em matéria espiritual os caminhos são dois: ou quem oferece tais bens os rebaixa ao nível terreno, prostituindo-os ao adaptá-los à satisfação dos seus gostos, da sua ignorância, superstições e interesses, ou o mundo o deixa só com os seus interesses e lhe volta as costas, para contentar-se com outros que lhe agradam mais. Passam pela Terra profetas, santos e gênios, mas ela toma deles só o que lhe serve, adaptando-o às suas preferências e necessidades, e não vê, ou abandona o restante. Quem na Terra se encontra em sua casa, em seu ambiente e, pela força do número, estabelece as suas verdades, não são os seres de exceção, super-homens descidos de outros planos exilados e solitários neste mundo, mas é este que os julga com a sua forma mental e se limita a utilizá-los para os próprios fins evolutivos.

Ora, a função de adaptar as altas coisas do espírito, rebaixando-as ao nível do involuído, vem sendo realizada pelas religiões. Este é o trabalho dos ministros de Deus, o qual é realizado aceitando uma interpretação materialista do que é espiritual, encenando espetáculos com as representações do rito, adaptando-se às massas onde estas não cedem. Poder-se-ia observar em que medida Cristo transformou o mundo, ou até que ponto o mundo transformou Cristo. É preciso, no entanto, reconhecer que não havia outro meio para chegar a essa simbiose, necessária para os fins da evolução. Reduzido a essas condições, o produto espiritual é aceito no plano humano, evolutivamente degradado, mas utilizável para os fins da vida.

Não se pode pretender que o homem mude de natureza, quando, como ministro, ou como fiel, se ocupa de coisas religiosas A substância de relação entre os dois é uma troca, na qual cada um dá e recebe alguma coisa. No fundo, também aqui vigora a psicologia humana do "do ut des". O bem, objeto do contrato, é a outra vida. O clero se apropriou dela e a usa em regime de monopólio. Trata-se de uma mercadoria-esperança, baseada na fé, de modo que os descrentes a deixam sobre a mesa. Mas, para quem nela crê e, portanto, a deseja, nasce a luta entre a procura e a oferta, como sucede com qualquer troca. Diz o fiel ao ministro: "se tu não me prestares obediência, o paraíso". Diz o ministro ao fiel: "se tu não me prestares obediência, eu te mandarei para o inferno". Deve-se pagar com a obediência o paraíso que se adquire. Mas aqui há qualquer coisa mais. Nas outras trocas o adquirente não é castigado, se não as efetua. Neste caso, se ele não as realiza, é sujeito a uma pena, de maneira que não está livre para recusar. Temos, assim, um mercado forçado em economia de monopólio. A realidade é que o ministro quer a obediência a qualquer custo e, por isso, utiliza os meios de que dispõe. No entanto, o jogo é totalmente psicológico e é descoberto, na falta de crentes ou ausência de fé. Tudo isso é inevitável num mundo em que a troca não é um balanço de justiça, mas é dirigida por uma forma mental egoísta, pela qual cada um luta para extrair do próximo a maior vantagem possível.

Esse é o mundo ao qual o homem espiritual oferece os seus produtos. Tais bens superiores ele os oferta gratuitamente, nada pedindo em troca. Estamos bem longe da psicologia econômica da Terra, que o mundo compreende e sabe praticar. Ele quer bens adaptados ao seu gosto, não importando se para isso são adulterados. Se não são manipulados, mesmo que sejam preciosíssimos, não lhe agradam e não os aceita. Não os compreende e volta as costas a quem lhos oferece. A moral é que a produção de bens espirituais genuínos é restrita ao uso individual. O mercado público é invadido por artigos adulterados, apresentados com infinitos objetivos por falsos profetas, em nome das coisas mais elevadas. Sendo assim, ao homem verdadeiramente espiritual não resta outra coisa senão isolar-se e viver a sua vida interior por si  próprio,  perante Deus.

É certo que devem parecer estranhos esses raciocínios para quem está satisfeito em nosso mundo e a ele proporcionado. Poderão até soar a escândalo, sobretudo para as almas piedosas, peritas na arte milenária de conciliar, com boas maneiras, as coisas terrenas, com as do céu de modo que possam ir para o paraíso sem se incomodarem demasiadamente. Poder-se-ia continuar ainda por séculos o belo jogo, mas a verdade é que a História está preparando golpes tremendos para quem  usa tal método não mais vigorante, constituindo, assim, dever de honestidade falar claro, sem os tradicionais floreados, que, em certas horas difíceis, podem significar um engano perigoso.

Neste mundo parecerá estranha esta nossa febre de evolução, esta mania de superação, esquisita a muitos outros e para quem se encontra tão bem acomodado no seu atual modo de viver. Para quem não se inflama na alta-tensão da criação espiritual certas renúncias e revoltas contra o mundo parecem loucura, pois o enriquecer é a causa da maior ambição e do maior trabalho. Na Terra certos valores considerados máximos são minimizados, enquanto agigantados outros, bem menores. No fundo, o problema de nosso planeta é digno de piedade, porque a fadiga que ele suporta é improba e traiçoeira. Mas, se o tipo corrente é de tal natureza, como pode a vida destiná-lo a trabalhos mais altos? É certo que seria mais belo usar a inteligência noutro nível, em lugar da guerrilha quotidiana; mas nenhum trabalho se pode fazer sem amadurecimento adequado. Se não fosse o constrangimento das necessidades materiais. a maioria não trabalhava. Tudo, portanto, está proporcionado. A avidez é útil, como o é a miragem que a excita e a ilusão em que se resolve. O tipo de trabalho-engano, ao qual o homem vive submetido, é adaptado à sua capacidade e necessidade evolutiva. E é natural também que tudo mude para os indivíduos que se deslocam em direção a outros níveis de existência.

Explicamos, assim, o voto franciscano. Mas o mundo está convencido de que tal pobreza é loucura, mesmo se, com palavras, a exalta. Faz-se boa figura, o que não custa nada. O homem normal sabe muito bem que isso são belas coisas a serem ditas, mas não para fazer. No entanto, elas podem ser utilizadas para outros objetivos. Se elas ainda são professadas, significa que servem para alguma coisa, sem o que teriam desaparecido. Ora, encontra-se sempre alguém de boa-fé. Estes, tomando para si a renúncia, aos outros oferecem generosamente o que é seu. E o idealista cai nisso. Também este é um modo de utilizar o ideal na Terra: recomendá-lo, elogiosamente a quem possui, mas colocar-se da parte de quem recebe. Considerando o comportamento humano, por que razão se poderiam fazer na Terra tantas glorificações, que em si mesmas não interessam a ninguém? Conforme as leis biológicas do nível evolutivo do homem, tudo deve ser útil à vida na Terra. Por isso, em tal ambiente, até os ideais podem ser importantes. Isto sucede em todos os campos. Apenas se forma um grupo, este glorifica o seu fundador sobre as virtudes baseadas em sua grandeza; exalta os seus mártires, porque com o seu sacrifício testemunharam a verdade sobre a qual esse grupo fundamenta a sua posição. E, se não há mártires, criam-nos, utilizando qualquer desgraçado que se tenha feito matar pelo ideal do grupo que o sustém. Isto é mais evidente em política, que está sujeita a rápidas mudanças.  O partido dominante se apressa a fabricar os seus mártires, que duram enquanto aquela agremiação continua existindo. Depois eles desaparecem e surgem os do novo partido, e assim sucessivamente.

Vamos refletir um pouco mais sobre as razões pelas quais o mundo julgava o nosso personagem um idiota. O que tornava fatigante a sua posição era o fato de ter de enfrentar simultaneamente duas lutas: uma, em alto nível, no plano espiritual, apropriada para evoluir; e a outra, a luta da Terra, no baixo nível material para sobreviver, que não o poupava, porque estava engajado em outro tipo de trabalho. O que agravava a sua fadiga era a sua forma mental de bondade e amor; mas estava imerso no ambiente humano, que, diversamente, queria aproveitar-se de tudo. Estava empenhado numa tarefa complexa, num mundo em estado de guerra, com as mãos atadas pela honestidade, desarmado pelo Evangelho, enquanto muitos outros, sem escrúpulos e preocupações espirituais, livres de tal peso, podiam pensar somente em lutar e vencer. Ele era altruísta e praticava justiça, os outros, com métodos opostos, facilmente o venciam em seu próprio plano. A sua superioridade espiritual o colocava numa posição de inferioridade material. Na prática aquela superioridade se resolvia numa inaptidão para viver e sobreviver neste planeta, onde devia permanecer. O mundo fazia-lhe pagar aquela sua superioridade. Não era porventura honesto e pacífico? Mas para que na Terra podem servir tais qualidades senão para serem exploradas? Enquanto ele sonhava com as superações, o que atraía o involuído, perito em outra sapiência, era cuidar de espoliá-lo e esmagá-lo. Havia a religião, a fé, os ideais, mas tudo isso na forma em que exista no mundo; em vez de ser uma ajuda no seu trabalho de elevação, representava uma resistência a vencer, muitas vezes um inimigo da espiritualidade, uma armadilha para pescar os ingênuos. Assim, ele devia defender-se sobretudo dos crentes das pessoas de bem que fazem a mesma luta dos outros, mas de forma mais sutil com a astúcia coberta de virtudes com vestes evangélicas.

À posição dos dois termos é clara. Se o evoluído pode ser logicamente superior, isso não interessa ao mundo, que evita roubar tesouros espirituais, porque não sabe o que fazer com eles. O involuído pode ser inferior, mas isso não lhe importa, porque possui aquilo que mais ama: as riquezas da Terra. Sabe procurá-las, defendê-las, gozá-las. Se os anjos para estarem bem têm necessidade do paraíso, os diabos sabem estar à vontade mesmo no inferno. Cada um está bem na sua casa, no ambiente que lhe é proporcionado, onde encontra satisfação das próprias necessidades. Se os diabos não podem ir para o paraíso é porque também ali eles se encontrariam muito pouco satisfeitos, não podendo exercitar-se na sua ocupação preferida, atormentando o próximo.

Tudo isso é justo, porquanto cada um, finalmente, recebe o que merece. O evoluído hoje sofre na Terra, onde se encontra exilado, mas com a morte vai-se embora e, amanhã, estará melhor, em ambiente de maior progresso, ao qual doravante pertence por evolução. O involuído hoje está bem na Terra, mas, a manhã, aqui retorna e é condenado a ficar até percorrer toda a sua “via crucis”, necessária para tornar-se um evoluído. Constata-se essa grande diferença na hora da morte: enquanto para o evoluído se abrem os céus, para o involuído ocorre que, desesperadamente, se volta para trás, prendendo-se àquilo que mais ama — a vida terrena que lhe foge. Para o primeiro a morte abre a porta à luz, para o segundo é um pavoroso mistério cheio de trevas. Mas a diferença se vê mesmo em vida. Na Terra tudo é instável, dependente das vicissitudes da luta, inseguro, condenado automaticamente a consumir-se. Vive-se de um presente que, na sua contínua fuga, não se consegue apanhar; o amanhã é incerto e a realidade está sempre pronta a dissolver-se numa ilusão. O que é sólido não é o concreto, como se crê, mas o abstrato. O espiritual, porque se encontra em cima, subtrai-se ao vórtice do transformismo que tudo arrasta.

Insistimos nesse tema das diferenças de posição evolutiva porque nelas está o significado da história que narramos e porque explicam o maior fenômeno biológico no qual a humanidade, sobretudo no momento atual, está empenhada, isto é, a passagem da fase evolutiva animal-humana á do homem evoluído e consciente. No fundo, durante a sua vida terrena, o evoluído é um desgraçado, porque não se encontra no seu ambiente, mas em posição de retrocesso involutivo, o que para ele pode significar a condenação. Mas é esta inconciliabilidade a sua salvação, porquanto, se ele pudesse adaptar-se, seria um involuído, o que seria a maior infelicidade.  É natural, pois, que no mundo se sinta no inferno, provando não ser dele cidadão. E isto o salva, porque o constringe a realizar a sua redenção, que aos outros pouco interessa, mas de que sente urgente necessidade. Ele faz esforços desesperados para chegar à superação, fuga do pior para, conquistar o melhor. O seu drama está no fato de que ele quer o céu, embora deva permanecer encadeado na Terra a uma lei feroz e não sua. Entretanto, sabe conceber formas de vida superiores que os outros nem sequer suspeitam; conhece a estrada para ascender àquele nível e luta para alcançá-lo, dando um valor imenso ao seu esforço, enquanto os outros se fatigam do mesmo modo, mas só para se esmagarem, fechados dentro da mesma prisão. É interessante observar o que está atrás do cenário, onde se vê o real funcionamento das leis da vida no plano humano. A riqueza no sentido de excesso, de supérfluo não ganho, não correspondente ao próprio valor é nas leis da vida um desequilíbrio que traz consigo a reação corretiva. Tal riqueza excita o ataque de quem não a possui e enche de saciedade e preocupações quem a obteve. E uma atraente miragem, e ao ser atingida revela o engano. Pode ser desejável para o pobre, inexperiente, e pode satisfazê-lo no primeiro momento da sua aquisição, para compensar as precedentes privações. Comer é agradável para quem tem fome, não para quem já está satisfeito. Eis que para obter prazer pela posse das coisas não basta possuí-las, mas são necessários outros elementos não econômicos, como a necessidade e o merecimento. Quem nasceu rico, não conhecendo a pobreza, com a qual pode fazer o confronto, não sabe apreciar a riqueza. Este é um desgraçado, porque já satisfeito, não habituado a lutar por ela, inepto para defendê-la, portanto destinado a perdê-la. Assim, a posse dos bens rola como as ondas do mar, num vaivém contínuo: os que nascem ricos acabam perdendo tudo, os que nascem pobres, e por isso esfomeados, acabam levando-lhes tudo, para condenarem depois os seus filhos ao destino dos ricos. A sabedoria da vida parece consistir no fato de induzir os ricos a criar um ambiente feito de propósito para levar automaticamente à perda da riqueza. Eis uma forma de justiça social já realizada e funcionando há tempos imemoráveis, antes da chegada do Comunismo. Por isso, as posições de rico e pobre são cíclicas, e todos as percorrem por turnos, obrigados a fazer esforços e a aprender lições, num trabalho útil para evoluir, o que representa o precioso resultado final desse belo jogo. Também na Terra, independentemente do "Discurso da Montanha", os pobres são destinados a enriquecer e os ricos a empobrecer. Sábios e justos equilíbrios da vida, para os quais todo o excessivo esbanjamento de um lado tende automaticamente a inverter-se para reequilibrar-se, reentrando no seu contrário.

O mesmo fenômeno se verifica no caso dos detentores do poder. Parece que cada fenômeno, quando alcança uma fase de excessivo  desenvolvimento, se esgota e regressa, por força das leis da vida, à sua posição de justo equilíbrio. Parece que os fenômenos se cansam por excesso e por carência, e quando se saturam num sentido ou noutro, a vida lhes freia o movimento desordenado, para reconduzi-lo à ordem dos seus equilíbrios. Assim, também a política flui na História como as ondas do mar, num ir e vir continuo. Coerente com a baixeza do seu nível evolutivo sempre fora da ordem, o homem é continuamente corrigido pelas leis da vida. Regimes e governos se cansam e se sobrepõem sem pausa. Este é o fator constante, o denominador comum de todos os partidos, de qualquer tipo de Governo.  Também este fenômeno se satura. Quando se move só num dado sentido, o poder se cansa e se esgota no seu funcionamento. Então, enfraquece-se e sucumbe ao assalto dos recém-chegados, repletos de forças e de desejos. No momento em que, caindo o velho Governo, todos lhe notam os defeitos eles se apresentam com um novo programa, por reação corretiva geralmente em antítese ao precedente, na ilusão de que basta lazer, o contrário para ser per eito.  Na realidade continuam a fazer as mesmas coisas, embora de forma e com nomes diferentes. O poder vai como um rio serpenteando pelo vale, procedendo por golpes e contragolpes de correntes, mas é sempre o mesmo rio. Independentemente do tipo de Governo, sua formação, funcionamento e queda, reencontram-se fatores que se repetem em cada caso, porque é sempre o mesmo tipo fundamental de elemento humano que concorre para a formação do fenômeno.

Assim funcionam as coisas de nosso mundo. Opõe-se um sistema político a outro, uma religião a outra, mas trata-se apenas de diversos agrupamentos feitos com o mesmo material humano, baseados em interesses diferentes e por isso em luta. A questão de princípio é puramente teórica. E inútil distinguir, ou, pelo menos, a distinção é apenas superficial, porque o tipo humano básico permanece o mesmo, situado num dado nível de evolução, regido por determinadas leis, levado, portanto, a comportar-se de certa maneira. Opõe-se, desse modo, o sistema democrático ao totalitário, como se se tratasse de duas coisas substancialmente diversas. Mas o poder fica sempre nas mãos dos especializados no mister do comando. Com o método totalitário, é conquistado à força, por meio das revoluções; com o método democrático, através da habilidade de granjear os votos, levando o povo aonde se quer. O poder é sempre o resultado de uma conquista; significa a posição de vencedores sobre rivais em competição. Os princípios são teóricos, os programas são superestruturas e simples embelezamentos. As massas respeitam o poder pela sua força material; é fruto de uma conquista, vitória do mais forte. Quando mais ele se enfraquece, assaltam-no e liquidam-no, para tomar a mesma atitude de respeito perante o novo vencedor. Rapidamente esquecem o velho poder e se inclinam perante o novo, porque, em substância, é o mesmo. Não existe senão uma pequena diferença; ele agora está em outras mãos. Mas isso diz respeito aos partidos em luta e não ao povo, mero espectador. Qualquer forma de Governo é sempre constituída por um elemento dominante, separado da massa, o qual pensa, primeiramente, em manter a sua posição. Naquele mesmo recinto, com as vicissitudes políticas, entram elementos diversos, mas trata-se sempre de especialistas por competência e longa preparação. De maneira que, mesmo se teoricamente qualquer indivíduo pode subir ao poder, na prática a escolha é limitada a um restrito círculo de candidatos elegíveis. São eles que tomam a iniciativa, que dirigem a própria luta para a conquista. O povo é guiado. E, ainda que creia escolher livremente, no fundo aceita, porque só pode fazê-lo no âmbito do que lhe é apresentado.

Em qualquer sistema político o rebanho não pode ficar senão rebanho. A luta é entre os pastores. A massa é feminina, e o chefe, de qualquer tipo, é o macho que a domina. A luta é entre machos para dominar a manada das fêmeas. Naturalmente, o cuidado de cada um é fazer crer no rebanho que ele é livre, escolhe e comanda. Mas até no organismo humano a parte óssea e muscular não poderá jamais assumir funções diretivas, nem mesmo eletivas. As células cerebrais não são escolhidas umas pelas outras, mas são elementos especializados, fruto de uma longa seleção. Não são células indiferenciadas que lutam para conquistar uma posição de comando no organismo, mas tipos aperfeiçoados no seu particular setor, para executar uma tarefa de interesse coletivo na qual, dirigentes e dependentes, todos concordam espontaneamente, porque esse trabalho é organicamente recíproco e dele depende a vida de todos. Daí se vê quanto a sociedade humana está ainda longe de alcançar um verdadeiro estado orgânico.

Neste capítulo quisemos apenas traçar alguns aspectos do ambiente humano no qual o nosso personagem se encontra vivendo, para poder melhor compreender a sua psicologia e atitude perante o mundo.