Cristo

A Lei e seu significado. Para Deus a Satanás pelo sangue do Filho, o resgate da humanidade? A visão de Deus em forma emotiva e em forma mental. A sensação da presença. O cientista e o místico procuram o mesmo Deus por caminhos diversos. Na visão — sublimação do ser — encerra-se no vértice da obra, a história de uma alma em evolução.

O que registramos no término do presente volume como conclusão da Obra e de uma vida — como seu centro — é a Lei de Deus. Ela aparece após um caminho de maturação que, para quem o realizou, representa o maior rendimento útil que se pode obter do trabalho de haver vivido uma vida. O Mundo, Cristo, o Pai, o fenômeno da evolução do AS para o S revelam-se agora como integrantes de um só organismo de conceitos, que — pelo menos como orientação — aponta a solução de todo o problema do saber considerado em suas linhas fundamentais.

Assim, encontramo-nos perante o imenso panorama da Lei, na qual tudo o que existe encontra o seu lugar e se explica observado de sua verdadeira e justa posição. Tudo, com efeito: se torna harmônico e lógico, quando assim conseguimos olhar em profundidade, quando — através das trevas do AS em que estamos mergulhados — logramos ver a luz proveniente do centro do S.

A Lei nos mostra uma verdade que não é relativa, pois ela constitui o grande organismo no qual se coordenam todas as verdades relativas, cada uma na sua exata posição e função. A Lei não pode ser confundida com uma das tantas teorias e ideologias construídas pelo homem para interpretar a seu modo realidade, porque ela constitui a realidade vista pelos olhos penetrantes do homem maduro, que rasgam o véu das aparências. A Lei não é uma verdade particular ou de grupo, concebida com o fito de combater e vencer outros grupos. A Lei é a verdade universal, válida em todos os tempos e em todos os lugares. Ela é a realidade que atua em nós e em tudo quanto nos cerca, podendo sua presença e funcionamento ser verificados experimentalmente em cada momento e em cada fenômeno. Portanto o que realmente vale não é o fato de pertencer nominalmente a este ou àquele grupo religioso, mas sim o nosso efetivo comportamento perante a Lei.

Ela é uma norma de justiça que não se encontra escrita neste ou naquele código, pois preside a cada movimento do ser, fazendo-nos assim recolher – em bem ou em mal – as justas consequências de cada um dos nossos pensamentos e ações. Então, para cada erro, a Lei funciona como escola de correção, sendo seu único objetivo salvar. Ela nos explica a dor, mostrando-nos não somente a sua razão de ser, como consequência direta da persistente humana vontade de errar, mas também a sua função redentora, inserindo-a na lógica do organismo universal, como instrumento de evolução, na lógica do Organismo universal.

A Lei nos ensina que a felicidade se conquista evoluindo e que a condição de maior poder e vantagem é a da retidão. Sabemos, assim, que a dor não é sempre apenas uma consequência do erro, pois, constitui-se, ao mesmo tempo, num eficiente catalisador do próprio mecanismo da evolução, equivalendo à  própria tensão do esforço necessário para ascender e à necessidade de arrancar as próprias raízes plantadas no polo negativo. Tal trabalho é dura fadiga, porque deve vencer as opostas forças do AS, que atacam, para detê-lo, quem tenciona subtrair-se a seu maléfico império. Isto porque elas sabem que quanto maior for o número dos seres que ascendem ao tanto mais esvazia-se o AS, significando isso o seu próprio fim, com a vitória de Deus. Cristo quis ensinar-nos sobretudo este tipo de dor-sacrifício, necessária, conforme a justiça da Lei, para atingirmos a alegria do S. Esta é a dor-resgate da grande queda, uma dor radical inerente a vida, e a fadiga necessária ao próprio endireitamento no S mediante a superação do AS.

Há, pois, uma razão profunda que explica e justifica a existência da dor. Ela redime e salva. E ela que dá um significado a vida, porque é a disciplina que ensina, é o método mais eficiente de libertação do mal, limpando-nos da lepra do AS, que estava grudada em nossa pele. Assim a dor é um instrumento de evolução. Podemos, pois, defini-la como um processo saneador consistente na remoção de toda a negatividade do AS até eliminá-la toda na positividade do S.

Ora, quem conhece a Lei, sabe que durante tal operação cirúrgica não está só, porque apesar de atuar, a mesma, no terreno negativo do AS, é dirigida pelas forças positivas e benéficas do S, que fazem sofrer apenas o mínimo necessário a permitir a recuperação da saúde. Quem é contra tal operação é o AS. O S, pelo contrário, faz passar por esta dor para compensá-la depois, conforme a justiça, mediante a felicidade a qual se tem então direito, porque ela foi conquistada e paga. Cristo nos precede neste caminho e nos espera de braços abertos bem no ápice da escala da evolução, para fazer-nos ingressar no Sistema.

O involuído luta e sofre nas trevas. Mas quanto mais se evolui tanto mais se adquire consciência da Lei, da ajuda necessária conforme a justiça, conquistando-se, deste modo, a paz interior que se torna independente das tempestades do mundo. Para nós o conceito científico de evolução coincide com o religioso da redenção. Constatamos, então, que esta não é apenas uma concepção teológica, mas também uma realidade biológica positiva. É o conhecimento da Lei que nos permite colocar no presente volume a vida de Cristo como um retorno do AS ao S, seguindo a Lei que estabelece que o caminho da salvação é o próprio caminho da evolução. De outro modo aquela vida não se poderia compreender porque é absurdo que Deus tenha sido constrangido pelo poder de Satanás a pagar a este — pelo sangue de seu primogênito — o resgate da humanidade que foi induzida ao pecado por instigação de Satanás. Como pode Deus justificar esta culpa até o ponto de reconhecer uma dívida própria para com Satanás, isto é, uma dívida da justiça para com a injustiça? Constitui-se num emborcamento de tipo AS o admitir que o bem tenha o dever de reparação para com o mal por ter feito o bem. Justificando semelhante absurdo, conceberíamos e converteríamos Deus numa espécie de servo de Satanás. Tudo isto é evidente para quem compreendeu a Lei.

Quem compreende o significado da Lei não se limita a um mero ato mental e não poderá deixar de vivê-la. Passa-se, assim, irresistivelmente, da simples visão à atuação e aos necessários efeitos de maturação evolutiva, pois a Lei não é só pensamento, mas também vontade e potência realizadora e impulso criador e, enquanto tal, tende a manifestar-se logo que encontre o caminho aberto. Compreender a Lei, vivê-la e evoluir para o S, são momentos conexos e contíguos do mesmo fenômeno.

Alcançar a visão da Lei significa atingir a visão do pensamento de Deus, e, quando nos construímos com olhos apropriados, como fazer para não ver aquele pensamento se ele está presente em cada lugar? Desde o instante em que descobrimos a lei que regula o desenvolvimento de um fenômeno, começamos a ler o pensamento de Deus. Para nós que vivemos na periferia, este pensamento se apresenta subdividido em mil ramificações. Porém, à medida que penetramos com o olhar para além da superfície das coisas e das aparências fenomênicas, aquele pensamento se torna sempre mais evidente, vivo e unitário. Isto sucede até um ponto no qual se percebe um deslumbrante centro de luz, que, como princípio unitário, dirige todo o universo. Compreende- se, assim, porque o monoteísmo, é uma concepção mais central mais verdadeira porque utilitária ,do que o politeísmo periférico eseparatista.

É esta, em síntese, a visão que de Deus se pode atingir no plano mental. Mas ela se pode alcançar também no plano emotivo, isto é, não só por meio da razão, mas também pelas vias do sentimento. Esta visão é o ponto culminante a que tende a nossa Obra e que alcançamos agora ao concluí-la. Nos primeiros doze volumes nos mantivemos sobretudo no plano emotivo, seguindo a visão no seu aspecto místico, pelas vias do sentimento. Nos doze volumes sucessivos desenvolvemo-la no plano racional, mais consciente e controlado. Procuramos, assim, aproximar-nos desta visão seguindo ambos os caminhos humanos, para dela alcançarmos o mais completo conhecimento possível.

A primeira Obra é exclusiva, ardente de entusiasmo, baseada prevalentemente na fé; a segunda Obra é trabalho de controle, baseada na razão Assim o produto de tipo intuitivo é elaborado sobre outro plano, sendo, sempre que possível, submetido à  observação e à  experiência, em contato com a realidade. Isto era necessário, porque é perigoso abandonarmo-nos apenas à fé que poderia ser tomada como uma fantasia ou um mero produto dos impulsos do subconsciente. A primeira Obra é um produto intuitivo do superconsciente, que está situado acima da consciência normal; a segunda Obra é o resultado de um exame operado pela mesma consciência no plano racional, é o efeito de um desdobramento equivalente a absorção e assimilação daquilo que foi intuído, até constituir-se numa qualidade pessoal de conhecimento adquirido.

Vê-se, então, que esta dúplice Obra não é apenas um trabalho de tipo literário, como uma espécie de exercitação ou realização mental, mas sim o resultado de um amadurecimento evolutivo que foi realmente vivido por quem a escreveu e que poderá ser vivido também por quem a lê. Esta Obra permaneceu toda impressa na alma do instrumento humano que a com- pilou. Este trabalho constituiu para ele uma espécie de escola, uma escada que, por degraus sucessivos, ele subiu com fadiga. Assim, ele se aproximou sempre mais do cimo, onde encontrou o conhecimento para responder aos seus quesitos, tendo resolvido os problemas para os quais o mundo não lhe dava respostas. Outro tanto poderá fazer o leitor que sentir essa necessidade, por ter chegado à maturidade.

Aqueles volumes são um meio para uma finalidade bem mais alta do que uma glória ou um sucesso terreno. Deste, tão importantes em nosso mundo - vitória ou derrota,- naturalmente, fica alheio quem alcançou outra finalidade, que para ele tem um valor bem mais elevado. Aquelas coisas são efêmeras, passam, se abandonam com a morte. Enquanto, a consciência de ter procurado realizar uma obra de bem para os outros e de ter adquirido para si novas qualidades, permanece definitivamente aderente à própria personalidade com o resultado que a morte não pode anular que depois dela. O Ter conquistado para si esta construção é um fato individual, "interior", indestrutível, livre dasapreciações do mundo que ficam no nível dele, sejam elas de louvores ou de censuras.

O fato de haver realizado uma boa ação se traduz num resultado individual, intransferível, porque representa uma posição biológica na qual não pode chegar a colocar-se quem não tenha, com o seu próprio esforço, percorrido todo o caminho necessário. É justo, de resto, que a deslocação de uma posição evolutiva não possa acontecer apenas com a leitura de livros, sem se cumprir toda uma íntima elaboração biológica. Não se trata aqui de adquirir conhecimentos para enriquecer a própria cultura, mas de realizar um salto para a frente — o que não se improvisa — mas pode verificar-se apenas depois de séculos e de vidas de maturação interior. É conforme a justiça da Lei que nenhuma vantagem se possa obter, se não for ganha. Cristo nos mostrou o caminho da redenção, mas cada um deve percorrê-lo com o seu próprio esforço.

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Ora, em que consiste esta visão de Deus? É possível descrevê-la para fazê-la compreender a normal forma mental humana? Como foi anteriormente apontado, podemos aproximar-nos da visão por três diversos caminhos: o emotivo ou do sentimento; o intelectual, ou mental; o concreto, ou seja o da realização. Esta visão de Deus, podemos senti-la, compreendê-la e vivê-la. A presente Obra abraça todos estes três momentos, e pode ser entendida separadamente a partir de cada um destes seus aspectos, que se apoiam, contudo, e se completam reciprocamente.

O indivíduo escolhe, via de regra, o caminho que melhor condiz com o seu temperamento; conforme a faceta que teve nele maior desenvolvimento: o coração, ou a razão, ou a ação. As religiões exotéricas, devendo satisfazer as camadas sociais menos intelectualmente desenvolvidas, representadas. Pelas massas que não sabem superar o estado emotivo, apoiam-se prevalentemente sobre o sentimento e sobre uma aceitação passiva pela fé. A ciência, que se apoia, pelo contrário, no fator lógico e racional, encontra maior acolhida junto às classes mais cultas. Assim, religião e ciência são ambas unilaterais e incompletas, cada uma concebida apenas com a sua própria forma mental, cada uma exclusivista, pronta a repelir as verdades da outra, que afinal não são senão complementares nos pontos que não são localizados por uma ou por outra.

A nossa Obra procurou evitar tal unilateralidade ao mesmo tempo em que quis ser completa, alcançando a mesma Verdade primeiro pelos caminhos da intuição, depois pelas vias racionais. Assim os dois aspectos se fundem e se sustentam reciprocamente para convergir à mesma e única visão do pensamento que tudo dirige e move, e que chamamos Deus. Desse modo, espírito e matéria constituem alma e corpo de um mesmo organismo. Logo do centro à periferia e da periferia ao centro, a existência, ora como pensamento, ora como ação, constitui uma coisa só. Assim, do S ao AS e do AS ao S, e apesar do antagonismo entre posições contrárias, Deus é uno com o todo e o todo é uno com Deus.

Eis que a visão é simples, porque é aquela da presença de Deus em toda forma de existência, seja qual for seu tipo, mesmo se afastadas do centro, ao qual, contudo, cada uma permanece ligada, como se fosse uma sua emanação ou ramificação. A visão é unitária, porque Deus está presente em cada forma, seja qual for o seu nível de desenvolvimento evolutivo, porque Deus é o Princípio que todas dirige, a força que lhes anima o funcionamento e a própria forma com que as mesmas se expressam e realizam. Esta visão representa uma penetração nas profundidades do AS até o seu centro diretor e animador que é o S, sendo a contemplação da beleza deste para além das deformidades daquele.

Se nós não vemos Deus, não é porque Ele se esconda no mistério, mas porque ainda não nos construímos os olhos apropriados para vê-Lo. Mas a evolução, restituindo-nos a vista, nos reconduzirá ao S, oferecendo-nos de novo a visão de Deus. Vive-se então em função de uma outra realidade, de uma outra existência de tipo positivo e não mais negativo, iluminada de conhecimento, de vida e de alegria, e não mergulhada nas trevas, na dor, na morte. Tudo se transforma, então, vivificado por uma divina luz que é potência interior.

Essa visão da presença de Deus não é uma abstração, mas é a percepção de uma realidade viva e positiva. Esta realidade objetiva é o S, cuja percepção se alcança por evolução. Que o S constitui uma realidade objetiva é provado pelo fato de representar a própria meta da evolução. Ora esta é um fenômeno universalmente aceito, que vai da matéria ao espírito, caminho que não pode deixar de ter um ponto de chegada, o qual terá de ser forçosamente o mesmo que o ponto de partida, ou seja, Deus.

Resumindo, esta visão pode ser alcançada por dois caminhos diferentes: 1º) o da compreensão por parte do intelectualmente desenvolvido, da estrutura e funcionamento orgânico do todo, isto é, por meio de um estado de iluminação da mente que atingiu o conhecimento, que, através da obra na qual Deus se expressa, contempla o seu lado espiritual; 2º) o caminho da percepção, por parte do evoluído sensibilizado, da irradiação de positividade e potência criadora e saneadora que emana do centro, Deus, com a imensa e arrastadora onda da vida que tudo investe, sustenta e impele para o bem.

Assim, a visão de Deus pode ser tanto racional (Ciência), como emotiva (Religião). Ela pode ser alcançada pelas vias da mente, como pelas do coração, e pode ser gozada tanto como brilho do intelecto, quanto como alegria de sentimento. Cada um escolhe a via que lhe é mais adequada. Assim o cientista e o místico parecem dois seres opostos visando a trabalhos diversos, quando, na realidade, eles procuram o mesmo Deus que fala a cada um conforme sua diversa forma mental. É natural que Deus possua todos os aspectos e atributos que a nós, situados no relativo, aparecem como diferentes e separados. Mas a visão completa é a do intelecto unido ao sentimento, isto é, a do cientista que também sabe orar e a do místico que também sabe pensar, operando uma análise consciente do seu fenômeno. Dotada desta ambivalência será completa a religião científica do futuro.

Esta visão pode representar um estado de sublimação de todo o ser humano, nos seus dois aspectos fundamentais, dos quais, um racional, emotivamente frio, e o outro incandescente, em êxtase, arrebatado, típico de quem é incendiado pelo esplendor de Deus. Tal visão nos coloca em contato espiritual com o S, o que transfere o nosso método de vida, levando-nos a funcionar na ordem. Isto torna mais leve o nosso fardo de dores que é tanto maior quanto mais se involve, e que é tanto menor a medida que se sobe. Evoluir significa aproximarmo-nos do S, aprender a mover-nos sem provocar, com o erro, o choque da desordem causadora da dor, a qual, não tem mais razão de existir quando tenha cumprido a sua função de ensinar e quando o sujeito tenha aprendido a lição. A visão serve para andar de acordo com Deus, o que, eliminando o mal, resolve o problema da dor.

Assim, a visão é alegre, positiva, benéfica. O conhecer a Lei, o senti-la presente, o vivê-la, dá aquele sentido de segurança de quem se apoia sobre o solido, conhece as consequências de suas próprias ações e sabe que em cada ocorrência a última palavra pertence sempre a justiça de Deus. Quem conhece a Lei sabe que quem a segue é por ela protegido, que o resultado de seu reto operar é garantido, sabe que o bem é o mais forte e destinado a vencer, seja quem for que o pratique, mesmo se estiver situado no meio do mal do AS. Ele sabe que a dor, enquanto ensina, é um benéfico instrumento de evolução e assim o utiliza para a sua vantagem.

Quem vê a estrada e a meta, sabe que está a caminho e sabe para onde vai. Ele não se move mais por tentativas como um cego, porque, através do longo trabalho da elaboração evolutiva, construiu novos olhos para ver, e, por isso, pode agora contemplar uma esplêndida visão, precioso prêmio que, conforme a própria justiça da Lei, mereceu.

Quem possui estes novos olhos, mesmo se situado de cabeça para baixo no AS, vê em cada momento e lugar funcionar a Lei que lhe expressa o pensamento de Deus. Sentindo a Sua presença em tudo o que existe, estabelece-se um íntimo diálogo entre a alma e Deus, sem que nenhum ser humano — por mais poderoso que seja — possa intervir. Então o indivíduo é penetrado por esta presença espiritual que para ele é viva e lhe fala com a Voz interior. Então já não se sente mais só porque se irmana e comunica com tudo o que existe e que expressa a presença de Deus. Torna-se então célula pensante do grande organismo de pensamento que é a alma do todo. Esta comunhão confere um sentido de imensa potência vital, porque se coloca em contato com a própria fonte da vida que é Deus. É inebriante beber na taça do conhecimento. Esta é uma exploração contínua perante a qual caí, passo a passo, o desconhecido, é uma corrida a superação de horizontes cada vez mais longínquos, é um mover-se livremente num oceano sem limites, onde cada gota é um momento da sapiência de Deus. Então todas as formas do ser se nos revelam na divina substância que as anima e elas nos contam uma sua longa história de criaturas de Deus, vivas de Sua vida, movidas pelo Seu pensamento, guiadas pela Sua Lei. Tem-se então a sensação da própria eternidade, percebendo-se que no profundo do ser está Deus, centro radiante de vida, potência suprema, conhecimento, bondade, amor. Quanto mais estão abertos os canais da nossa compreensão, tanto mais conseguimos escancarar as portas em direção à luz de Deus, tanto mais ela irrompe em nosso ser, o inunda de uma luminosidade alegre e vitoriosa, e o arrebata para um plano de existência mais alto e feliz.

Esta é a visão do Deus Pai, o ponto de chegada de toda a Obra, vértice no qual ela se conclui. Seguindo Cristo, elevado para fora do AS, chegamos à visão do S. Iniciei a Obra em 1931 num estado de trevas, pedindo em vão às religiões e a ciência uma resposta aos fundamentais porquês da existência. Estou terminando a Obra em 1971, depois de quarenta anos de trabalho, num estado que, pelo menos para mim, é de iluminação.

Agora, na profundeza de cada coisa existente, sinto, com crescente assombro, um pensamento que me fala de Deus. Por vezes aquele pensamento se torna palavra e a ouço com um sentido que está nas profundezas do meu ser, e onde, como em tudo, está Deus. Então é possível se entender porque Deus fala com a Sua linguagem ao Deus que esta dentro de mim. Por isso é possível comunicar porque em Deus encontro a mim mesmo e Ele se encontra em mim, assim como o Filho se encontra no Pai e o Pai se encontra no Filho. Eis que no turbilhão de todas as formas que mudam, ouço a palavra que as mesmas dirige, imóvel, do centro de cada movimento.

Este fenômeno não é desconhecido. Ele se chama intuição, inspiração etc., e se explica psicanaliticamente, como já fiz alhures. No homem comum o superconsciente jaz adormecido no inconsciente. Nesse estádio primordial Deus é captado como uma ideia longínqua, como um pressentimento, mediante um ato de fé. Mas acontece que alguns indivíduos, com o evoluir, começam a despertar para níveis espirituais mais elevados então a ideia de Deus desabrocha, emerge das névoas do inconsciente e se torna consciência de Sua presença. É assim que o evoluído pode atingir uma aproximação cada vez mais clara da visão de Deus, por estar Ele no ápice da escada da evolução, no fim do percurso que vai do AS ao S. Esta visão é o produto de um amadurecimento e, por isso, ela se faz tanto mais clara quanto maior é o desenvolvimento que pôde alcançar cada indivíduo.

Assim, um degrau após o outro, no final da Obra e da vida, encontro-me agora de olhos abertos diante da Lei de Deus. Escrevendo, fui à escola e aprendi. Mas ao mesmo tempo quis explicar também aos outros. Todavia eu não posso fazer com que o desejo de transmitir se possa adquirir por simples leitura de livros. Isto porque não posso mudar a Lei que exige que a ascensão só se realiza com o esforço pelo qual se conquista sua própria evolução. Nestas condições, contudo, o caminho pode ser percorrido e a meta atingida por todos. É por isso que, com a Obra, contei uma tão longa história!

É a história de uma alma em evolução. Ela poderá interessar a quantos estejam prontos e dispostos a percorrer tal caminho. Por isso a tracei e descrevi nos 24 volumes que se sucederam, e dos quais é este o último. Isto para o bem de quem quiser tirar proveito dela.

Eu estava desorientado, e agora tenho como orientar-me; duvidava e agora estou seguro; estava desarmonizado no caos e agora estou em harmonia na ordem do Todo; então não sabia e agora sei. O meu desejo é que tanto trabalho permita que também outros compartilhem destes benefícios, dos quais, por ter seguido este caminho, agora, no fim da minha vida, posso usufruir.

Fim

Cristo mostrou ao Mundo a Lei do Pai. Por que o antagonismo Cristo-Mundo? Os dois opostos colaboram. Mestre de Redenção do AS ao S, Cristo é a ponte entre o Mundo e o Reino de Deus. A retidão e sua função saneadora. Aplicações no campo econômico. O fator moral do cômputo dos valores humanos. Evolução e retidão.

Chegado a este ponto, o leitor poderá perguntar-se porque insistimos tanto na Lei de Deus e em sua aplicação neste mundo, e se isso não significa ter saído fora do tema deste volume intitulado Cristo. Pois tranqüilize-se o leitor, acima dos acontecimentos que circunstanciaram a vida de Jesus, foi nossa constante preocupação captar o aspecto fundamental e o mais profundo significado de Sua missão terrena, que consiste principalmente na revelação que Cristo nos fez da Lei do Pai, com o qual estava em contínuo contato, mostrando ao homem como deve vivê-la para poder elevar-se de maneira decisiva no caminho da evolução do AS para o S. Pelo mesmo motivo, deixamos também de lado as tradicionais construções de cunho mitológico que foram acrescentadas à  vida e à  figura de Cristo, insistindo em lugar delas sobre este outro aspecto que mais interessa ao homem, pois ele diz respeito à sua passagem de um plano de evolução a outro, superior. Este de fato é o maior fenômeno da vida da humanidade, o mesmo que hoje ela esta realizando com o preparar-se para assumir um tipo de civilização mais avançada.

Ao homem que esta percorrendo este caminho Cristo mostra como meta a alcançar a Lei de Deus na sua forma mais evoluída, que é aquela a que se chega no S. Trata-se de emergir sempre mais do AS, que representa uma forma de vida inferior, que Cristo chama de mundo porque é aquela em que ainda se encontra o homem, contrapondo-a ao Reino de Deus que é o tipo de vida superior, ao qual se devera chegar no futuro por evolução. Temos assim uma contraposição, estabelecida por Crista entre o seu Reino e o mundo, entendendo-se este como uma fase atrasada e involuída da vida, destinada a ser superada numa fase mais avançada e evoluída. Trata-se de um antagonismo de posições biológicas situadas em dois níveis de desenvolvimento do único fenômeno da evolução.

Passamos, agora, a compreender a razão pela qual Crista condena o mundo. Esta condenação é recíproca. Eles se excluem porque Cristo e o mundo pretendem realizar-se em dois diferentes níveis evolutivos. O homem quer fazê-lo conforme a sua natureza no plano do mundo, enquanto Cristo quer atuar num plano mais alto, o espiritual. Mas por que o homem resiste se este deslocamento resulta em sua vantagem?

É a estrutura do ser que estabelece fase por fase qual há de ser a zona a que deve pertencer a fim de realizar-se à vontade. Sucede assim que ele nega as outras zonas que não constituem o elemento em que ele possa naturalmente satisfazer os seus impulsos. É assim que o ser aceita como positivo o que esta em seu nível, e repele como negativo o que esta fora, em um nível evolutivamente mais baixo ou mais alto, no qual não esta ambientado. É assim que o mundo, que corre atrás de escopos materiais adequados ao seu plano evolutivo resulta negativo perante Cristo, que propõe realizações espirituais. Da mesma forma, visando Cristo as realizações espirituais do seu plano, aparece como negativo ao mundo que se propõe realizações materiais. É assim que cada um dos dois, sentindo-se positivo no seu nível, condena como negativo o outro, situado em outra posição evolutiva.

Sendo opostos os pontos de referencia, a posição que para o homem é positiva, para Cristo é negativa Cada um dos dois tipos biológicos se realiza só no seu plano, de modo que a plenitude da vida de um é morte para o outro. Assim sendo, quando para o mundo a vida acaba, para o homem espiritual ela começa. Destarte lá onde há a plenitude do AS, ali há a negação do S; e onde há a plenitude do S, ali a negação do AS. É evidente que um demônio feito para viver no Inferno, não saberia viver no Paraíso; e um anjo, feito para viver no Paraíso, não poderia viver no Inferno.

Assim, colocando cada coisa no seu devido lugar, explica-se o fenômeno da inconciliabilidade entre o Evangelho e a realidade de nossa vida. As leis biológicas vigentes no planeta pertencem a um nível evolutivo diverso do que vigora no nível evolutivo a que se refere o Evangelho. Eis que ambas as morais tem razão, mas cada uma só relativamente a sua ubiquação. O antagonismo nasce da diferença de posições. A oposição entre os dois princípios é devida à distancia evolutiva que separa a atual realidade da vida da realidade em que a mesma se transformará futuramente. A presença do ideal num ambiente que lhe é adverso explica-se pelo fato de representar uma meta já a caminho de sua realização, mas num presente que lhe é contrário, porque de tipo oposto.

Eis como e porque o Evangelho existe na Terra apesar de sua aparente inaplicabilidade. Este fato que parece um absurdo representa, pelo contrario, uma função de contraste para fins de auto-elaboração e de conquista. Assim, não obstante o antagonismo, Cristo por meio de sua doutrina, se insere plenamente nas leis de nossa vida atual, como um poderoso fator de evolução. Daí a sua importância biológica. O ideal não é sonho vão, mas uma verdadeira antecipação de realidade a alcançar, que, à guisa de uma luz esplendorosa, mostra ao homem o caminho mais seguro para avançar com o seu esforço até chegar ao S, emergindo do AS. Eis como o ideal cumpre a sua função no AS. Eis porque Cristo, que tinha compreendido bem a essência do problema, pregou o ideal na Terra, não obstante parecesse absurdo e inaplicavel.

Assim se explica também e se justifica — apesar de sua aparente falsidade — a posição de um ideal pregado na Terra mas não praticado. Prega-se esse sonho porque é belo e, por isso, desejado e amado. Eis porque, quando se trata de realizá-lo deveras o homem tem que arcar com as resistências desse diferente plano de vida que não é feito para favorecer esse caminho ascensional. E então, a resultante do encontro entre as duas forças opostas é o caminho oblíquo da hipocrisia que concilia ambas as exigências: aquela vertical da ascensão e a horizontal da adesão a solidez da matéria.

Como modelo, o Cristo propõe o ideal; e a vida na Terra propõe o animal forte e esmagador. O super-homem do Evangelho esta nos antípodas do super-homem de Nietzsche. Ambos visam o seu próprio reino, que para um é o Céu e para o outro, a Terra. E cada qual se propõe a alcançá-lo com o seu próprio sistema. Eis que não há razão de escandalizar-se e condenar, pois cada um vive no seu próprio nível evolutivo, que constitui o fundamento, isto é, a máxima de seu comportamento moral. De fato é daquele nível que decorre o critério de julgamento do indivíduo, acerca daquilo que há de considerar bem ou mal. Moral relativa a. própria natureza, segundo a qual uma coisa é boa ou má. Então é natural que um involuído se recuse a viver um tipo de vida para o qual não está preparado. Neste caso, é uma posição de legítima defesa.

É por isso que, na pratica, temos um Evangelho vivido por percentuais e aproximações mínimas, conforme a maturidade de cada indivíduo. Mas que fazer se não se pode exigir mais de quem não é maduro e se o estado de involução não permite mais? De quem está a caminho não se pode pretender que já tenha chegado, de quem vai à escola não se pode exigir que já seja doutor. Não é possível que um indivíduo acostumado a viver no AS se liberte de vez de seus hábitos para viver conforme o S; não conseguiria, nem teria a força de resistir a pressão do ambiente de tipo AS em que vive. Cada um dos dois tipos de vida não admite espaço para o outro. O indivíduo do AS, para voltar ao S, não pode endireitar-se de repente, mas só mediante longo e doloroso esforço.

O AS é ambiente de luta sem trégua entre egocêntricos rivais, de modo a não deixar margem ao consumo de energias necessárias a conquista de ideais. Também estes implicam um desgaste de energias que somando-se ao da luta terrena, põe em perigo o êxito desta última. Não se pode fazer guerra e vencê-la em duas frentes. Quem vence na Terra perde a partida no Céu e quem vence no Céu a perde na Terra. Cada um faz a sua luta e a vence no seu próprio nível. Ou se realiza no plano humano ou no super-humano. Para poder dar o salto do primeiro ao segundo é necessário, antes de mais nada, ter construído as pernas adequadas para tal fim. Daqui se vê quanto seja perigoso para os imaturos se aventurarem em arrivismos espirituais, baseados na hipocrisia e no orgulho. A via é longa e cheia de dificuldades.

O que pode, então, acontecer com os princípios de ordem, bondade, amor, de que é feito o S, quando transferidos entre os imaturos no AS na Terra, pode-se ver claramente pelo modo com que o ideal é utilizado para condenar o próximo que não soube observar tais princípios. Esse ideal é assim usado em posição emborcada, isto é, para acusar os outros em vez de o ser para evoluir a si próprio. Dado que praticar o ideal constitui um estorvo, prefere-se colocá-lo nas costas dos outros em vez de o colocar sobre suas próprias, cobrindo-se, assim, mas só aparentemente sob o manto da virtude. Assim desgraçadamente a palavra ideal acabou por adquirir um sentido de mentira em vez de ascensão evolutiva, tanto que aquele termo não se pode usar sem que seja entendido no primeiro significado, e não no segundo. É por isso que insistimos em explicar o que entendemos pela palavra ideal.

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Sabemos que a vida é desperdiçada caso não seja utilizada para evoluir. Mas cada um em seu nível, cumpre o trabalho que lhe é apropriado, de acordo com a sua posição no caminho da evolução. O homem da Terra faz aqui sua experiência de tipo terreno, enquanto o homem evoluído enfrenta no mesmo ambiente as provas espirituais. Mas ao mesmo tempo em que cada um se realiza, não deixa de permanecer solidariamente unido a todos os outros. Vejamos dois casos típicos desta coincidência de opostos, em que cada um cumpre a sua parte: a do homem do Céu no seu âmbito espiritual e a do homem do mundo no seu plano material. Ambos são necessários para realizar a descida dos ideais na Terra, fenômeno fundamental para os fins da evolução. Se o apóstolo Paulo não tivesse operado a propagação do Evangelho e se a Igreja não se organizasse política e economicamente em função da construção terrena do ideal cristão, a doutrina de Cristo teria corrido o risco de ficar desconhecida na Palestina. Analogamente, se São Francisco não tivesse tido em frei Elias um homem prático, construtor de basílicas e conventos, sua memória dificilmente teria transposto o âmbito restrito das lendárias crônicas campesinas da Umbria.

Eis que a própria vida realiza seus fins mediante a junção de dois fatores complementares: o homem instaurador do ideal e o pratico, realizador. Sem esta união integrante, o primeiro, sozinho, dificilmente fixaria na terra suas sublimes visões do mundo celeste, enquanto faltaria ao segundo a ideia fulgurante sobre a qual construir. Eles colaboram ambos nos superiores designíos da Lei da evolução.

Assim colaboraram S. Francisco e Frei Elias, apesar deste, devido à  natureza material de seu trabalho ter julgado S. Francisco apenas um visionário, o que levou os fiéis aos ideais da pobreza (como Frei Leão) a julgarem Elias como um traidor.

Podemos, assim, imaginar um santo no papel de um industrial e vice-versa, seria desastroso para ambos. O      s dois tipos vivem uma vida completamente diferente. Cada um escolhe para si aquilo que considera ser os seus maiores valores, deixando os outros de lado. Há quem esqueça sua alma dominado pela preocupação de enriquecer e quem afaste a riqueza como um obstáculo à  ascensão. Para eles os pontos de referência e os objetivos da vida são completamente diversos. Embora em posições aparentemente divergentes, os opostos se integram convergindo para o mesmo fim, porque no fundo são ambos complementares, um no mais restrito âmbito terreno, o outro na mais ampla economia da esfera celeste. E ambos são úteis porque cada um no seu nível e no seu específico campo de ação, permitem que o trabalho da evolução se realize.

   Podemos assim compreender as duas posições no seu lado específico: positivo e negativo. A vida para o homem espiritual não é só rejeição dos valores do mundo, mas é também operosidade de conquista dos valores do Céu. Por outro lado, o homem do mundo repele estes valores do Céu, mas conquista os da Terra. Tanto o evoluído como o involuído são ambos ativos, mas cada um só do seu lado, e são negativos do lado oposto. Assim, — cada um no seu nível — realizam a sua construção, e cumprem o seu trecho do caminho evolutivo. São, deste modo, importantes, ambos, relativamente à  sua particular posição. Isso é verdadeiro para todos: não se pode sair repentinamente do próprio nível, porque quando se é imaturo não existe outro caminho senão ficar na Terra para aprender neste plano e, quando se esta maduro, não há outro caminho senão ir embora para subir a um plano de vida mais alto. O imaturo que fica ligado à Terra está muito satisfeito, a tal ponto que, por falta de conhecimento, julga louco o outro que aponta para o Céu. Um alcança riqueza, glória, poder e os perde com a morte. O outro alcança a visão de Deus, o que é conhecimento e identificação com a Lei. Mas o primeiro, da visão de Deus não sabe o que fazer porque não a compreende, assim como o outro não pode perder tempo com os triunfos terrenos porque tem outras metas a alcançar. Trata-se de dois biótipos diferentes, cada um dos quais sabe fazer uma coisa, porque esta situado em nível diverso da escala evolutiva. E ambos são sapientes e têm razão em relação a posição que ocupam e são ignorantes e não têm razão na outra. É certo que o homem espiritual é negativo na Terra, mas é positivo num plano superior onde o outro é negativo. Então para sobreviver num ambiente adverso como é o AS, o evoluído não pode deixar de, com sua conduta, entrosar-se com a positividade do S da qual a sua natureza mais se aproxima. Pelo fato de os maduros já viverem os princípios do S: estes podem vigorar para aqueles até no AS. Eis porque tencionamos —  no fim deste capítulo —  insistir na retidão, depois de a termos apresentado no capítulo XVIII como um método de defesa para sobrevivência.

Compreende-se assim a necessidade que tem o homem espiritual de referir-se a Deus ou à Lei, segundo o exemplo de Cristo que apelava ao Pai a fim de não perder o contato com o plano superior do S, ali haurindo alimento para sustentar-se e vencer no mundo, para Ele terra inclemente. Assim se compreende a vida e a paixão de Cristo em termos positivos, em função da evolução como prerrogativa fundamental da sua existência. Desse modo não nos colocamos aqui perante elucubrações teológicas mas perante uma realidade biológica que interessa ao homem de todas as raças e religiões. Isto porque a evolução é lei universal, positivamente existente em cada tempo e lugar. Nos encontramos perante um fenômeno suscetível de experimentação e de análise, porque sempre presente e sempre atuante. Falamos não só de uma positividade exterior que se limita como a ciência à realidade do plano físico, mas também de uma positividade interior que penetra com métodos objetivos na realidade do mundo espiritual, com tais métodos alcançados a estrutura imaterial desse mundo. Isto conduz o conceito de evolução a um mais alto nível, o pensado por Cristo, qual fenômeno de redenção.

Com Cristo, a evolução torna-se redenção, o problema da ascensão biológica converte-se no problema da salvação. Mas o fenômeno é o mesmo, seja ele visto sob o aspecto científico ou sob o aspecto religioso. Compreende-se, assim, que os dois problemas constituem uma realidade só, e que, deste modo, a doutrina de Cristo se nos revela à guisa de uma técnica evolutiva, enquadrada na biologia universal do espírito. Dessa forma a evolução é vista por dentro, nas suas mais profundas razões e impulsos, qual segunda parte do ciclo involutivo-evolutivo, como regresso ao S, depois da Queda no AS.

O regresso ao S é o retorno do ser – redimido da queda no AS, por meio da evolução – ao Pai. Trata-se do mesmo fenômeno que, expresso em termos científicos, chama-se evolução e, em termos religiosos, redenção. O reino de Deus consiste no estado evoluído, enquanto o mundo constitui o estado ainda involuído, a caminho da realização da Lei. Este é o significado da doutrina da redenção. Eis que, com esta Sua doutrina, Cristo, ocupa a posição central no âmbito do fenômeno da existência – a evolução – porque ele representa a restauração do Universo despedaçado.

Cristo se coloca ao centro entre os dois termos AS e S, e assim se nos apresenta como uma ponte que permite a passagem do primeiro ao segundo estado e como guia no caminho da evolução que conduz ao Sistema. Cristo pode fazer isto porque situado simultaneamente nas duas diferentes dimensões: Ele vive em contato com o Pai, isto é, a Lei ou S, mas ao mesmo tempo vive encarnado em nosso mundo, isto é, num organismo de tipo animal, e — embora sem aceitá-lo — no nível biológico do involuído. Em tal posição Cristo opera como anunciador do Reino de Deus, lançando a Boa Nova para o mundo, elemento oposto a ser civilizado que justamente por sua baixeza, é indispensável ao Cristo para realizar Sua missão redentora. Sem esta finalidade de salvação obtida, transferindo o baixo para o alto, a paixão de Cristo careceria de sentido. Eis que o mundo, embora tão execrado, é para Cristo um necessário campo de trabalho, onde semear os princípios da Lei do Pai.

Foi por isso que, para falar de Cristo, tivemos de nos referir sobretudo a essa Lei, porque só foi em função dela que se realizou a encarnação e paixão de Cristo. Esta é a verdadeira história de Sua vida, vivida em função do Pai, história interior que as vicissitudes exteriores deixam apenas entrever. É assim que no pensamento de Cristo quisemos reconhecer o pensamento do Pai que é a substância de todo o fenômeno da redenção, pensamento do qual o Cristo não é senão o espelho e o mensageiro. É assim que neste volume, em vez de se insistir nos episódios terrenos da vida de Cristo, fomos à fonte e procuramos expor o pensamento que Cristo seguiu e que nos dá o significado de Suas ações. É justamente na revelação da Lei — isto é, do princípio de bondade e justiça que tudo rege — que há de ser vista a essência da Boa Nova trazida a Terra por Cristo.

Pudemos, assim, alcançar, do Cristo, uma visão cósmica, isto é, não já limitada apenas a vida terrena, mas projetada, pelo Ser, em direção aos mais elevados planos da evolução, aqueles em que, realizada a imensa viagem do ciclo queda-salvação, regressa o mesmo ao S. As vicissitudes humanas da vida de Cristo o diminuem porque O rebaixam ao nível humano, não nos deixando captar a parte mais importante do fenômeno que não é a que se volve para o mundo, mas a que tende para o Pai. É assim que, em vez de aderirmos ao hábito de citarmos trechos dos Evangelhos, procuramos apontar em Cristo o elo de conjunção entre a Lei e o mundo, nele reconhecendo quem propôs e realizou uma efetiva aproximação entre aquele dois extremos, eliminado a imensa distancia que os separa. Em resumo, Cristo ensinou ao homem o caminho da redenção.

Desse modo, foi possivel resolver o que parecia uma insanável contradição entre a Lei e o mundo, considerando-os como duas diversas posições do mesmo fenômeno. Observando o Evangelho sem esta interpretação, acabaríamos endossando a crítica que muitos hoje lhe dirigem, pela qual permanece, o mesmo, anacrônico e inaplicável. Pelo contrario, seguindo — como seguimos — bem diversa orientação, chegamos a conclusão de que a doutrina desse Evangelho pode ser vivida, também hoje, apesar de os tempos terem mudado, e poderá ser mais fielmente vivida no futuro. Conseguimos isto transferindo o Evangelho daquela tradicional atmosfera de retórica a qual estávamos há séculos acostumados, a qual lhe impediria de sobreviver em novo mundo que está nascendo procuramos assim fazer de uma coisa morta uma coisa viva e indispensável a vida, e isto seguindo o pensamento de Cristo, que se propunha a levar a luz do S ao AS para salvá-lo, isto é, a Lei do Pai ao nosso mundo para redimi-lo.

Esta nossa visão do Cristo não colocado apenas no tempo, no seu momento histórico, mas no seu aspecto eterno de manifestação do Pai, fora do tempo, como universal princípio de redenção, pareceu-nos necessária para fazer sobreviver a figura do Cristo através da atual revolução e desmoronamento de valores. Sem dúvida, libertar-se de muitas superestruturas do passado é hoje indispensável, mas é também necessário evitar o erro —  no qual é fácil precipitar — de destruir, junto com o velho, valores que são preciosos para a vida.

                                                   *   *   *

A função do Cristo foi, pois, a de fazer descer a Lei do Pai dos altíssimos planos do Absoluto — tão longe da realidade de nossa vida — até o nível humano, convertendo aquela Lei numa norma moral diretora de nossa conduta. Cristo expressou assim a qualidade central da Lei, que é a positividade (S), em oposição a qualidade dominante no mundo, que é a negatividade (AS). Cristo expressou tal positividade na forma de retidão, isto é, de prática da honestidade e da justiça, indicada como meio de endireitamento do emborcamento provocado pela queda, ou seja, como meio de redenção e salvação. A função do Cristo é de transportar do S para o AS este princípio saneador, enxertando-o no AS, a fim de elevar este último até o S. Assim na prática de nossa vida a Lei do Pai se identifica com a prática da retidão, isto é, de uma universal positividade de conduta que nos corrige e, portanto nos redime da negatividade do AS Desse modo o Evangelho representa uma técnica reconstrutora de positividade, e é por esta razão que o mesmo significa redenção.

Encontramo-nos, assim, perante os seguintes conceitos que entre si reciprocamente se entrosam; a Lei do Pai anunciada por Cristo; sua descida na Terra graças a Ele, enquanto representante do Pai; a norma moral da retidão indicada como via de salvação; a correção do erro e a redenção por meio da dor. Vê-se, claramente, tratar-se de um processo de endireitamento oposto àquele de emborcamento operado pelo mundo. As duas posições estão nos antípodas, e a primeira (Lei, S) corrige a segunda (Mundo, AS) por meio da evolução que realiza a redenção.

A substância da doutrina de Cristo consiste num processo de reconstrução da positividade ou saúde num ambiente contaminado de negatividade, processo, este, decorrente de uma vida de retidão, a qual equivale ao regime que cura a doença. A retidão é salvadora porque é positiva e  — conforme a ordem da Lei — corresponde ao método do S. Não esta escrito que não se possa viver neste sentido mesmo estando no mundo. Isto será difícil mas não impede que possamos comportar-nos conforme tal ordem apesar de mergulharmos na desordem do AS. Mas o escopo da fadiga necessária a evoluir consiste exatamente em lutar pela realização do Reino de Deus, embora possamos estar situados num ambiente de baixo nível evolutivo. E o indivíduo que automaticamente vai situar-se ao longo da escala evolutiva bem no ponto que corresponde à  sua natureza. E se este encontra-se em baixo é por isso que ele precisa subir, o que no âmbito religioso se exprime pelo termo de redenção, e do ponto de vista científico exprime o conceito de evolução. Trata-se do mesmo fenômeno no centro do qual Cristo se inseriu.

Procuremos imaginar como poderá ser um novo mundo no qual, passando-se da retórica à  prática, seja consentido começar a realizar no AS este princípio de retidão que é próprio do S. A retidão a entendemos aqui no vasto sentido de positividade em qualquer campo, o que significa altruísmo, construtividade, espírito de colaboração e unificação que levam ao estado orgânico da sociedade baseado na ordem, ao mesmo tempo em que afastam do egoísmo, da destrutividade, do separatismo, do espírito de rivalidade e da agressividade determinantes do caos do AS. São estes últimos os fatores doentios que vão contra a vida, conduzindo ao sofrimento, enquanto a retidão é a via saudável que conduz a plenitude da vida.

Forneçamos um exemplo para ver de que maneira o princípio de retidão, próprio do S, pode descer ao AS, observando um caso em que um aspecto da Lei pode ser aplicado neste nosso mundo. Veremos, a seguir, como pode isso acontecer, sem recorrer a nenhuma religião, só com base na lógica e na inteligência, mediante o calculo sublime da vantagem de introduzir no campo econômico o fator moral.

É um fato positivo — que averiguamos experimentalmente — pelo qual cada pensamento e ação constituem a projeção de um impulso que, no desenvolvimento de nossa vida, estabelece uma trajetória, ou de tipo positivo que redunda em nossa vantagem, ou de tipo negativo, que nos leva para o nosso prejuízo. Esta lei funciona também no campo econômico. Tem suma importância, portanto, para os efeitos que disso derivam, levar em conta os meios pelos quais um determinado bem foi por nós adquirido. O tipo de caminho trilhado para tal estabelecera a natureza positiva ou negativa daquele bem. Isto significa que se aqueles meios foram ilícitos, tal aquisição será malsã, maldita e nociva; se, ao contrário, aqueles meios foram conforme a retidão, tal aquisição será sadia, bendita e benéfica.

Vê-se disso que - embora não se costume levá-lo em devida conta - o fator moral tem um peso real mesmo no campo econômico. De tal positividade ou negatividade, com as respectivas consequências, pode estar impregnada tanto a substância mal obtida quanto a pessoa que mal agiu para obtê-la. Há assim indivíduos cheios de riqueza e de poderes, mas de tipo negativo, que em tudo são destrutivos, e há indivíduos pobres de meios e de poderes, mas de tipo positivo, que são construtivos em tudo. Eis que tanto as coisas quanto as pessoas estão encarregadas de impulsos, e de automatismos, que as impulsionam para a salvação ou para a ruína.

Do primeiro posicionamento que constitui a carga recebida a partida depende o imponderável que depois fatalmente pesa e decide sobre coisas e pessoas. Constitui-se ele do fator moral com seu sinal positivo ou negativo, isto é, sadio e portador de bem conforme justiça ou doentio e portador de mal, se contra a justiça. Entretanto, um elemento tão fundamental permanece desconhecido nos cômputos de quem quer alcançar o sucesso e ser vitorioso na vida.

Apercebemo-nos, então, que a técnica para a solução de tão importante problema, hoje tão vivo em nossa sociedade, se faz mais profunda, mais sutil, mais inteligente e completamente diversa da dos velhos métodos usados para vencer. Segue-se disso que o tipo do assaltante, do atravessador desonesto, resulta ser um ignorante das leis da vida, destinado, portanto ao insucesso e a pagar pelo seu próprio erro. Eis então que a vida tende a selecionar um novo tipo biológico dotado de outras qualidades que o fazem vencedor em lugar de qualquer outro tipo, que conjuntamente com o insucesso é impelido para os mais baixos planos da evolução.

Cria-se assim uma nova forma mental e um novo modo de agir, primeiramente na elite dos vencedores que depois, descendo até ás massas, procura deste modo, construir um tipo novo de sociedade humana,  regido pelas leis biológicas de um mais alto nível evolutivo. Trata-se de uma verdadeira revolução que leva para o primeiro plano e a um grau de plena eficiência como elemento de valor e de conquista, não a agressividade guerreira, mas a retidão de comportamento, qualidades sufocadas num mundo involuído e caótico, mas extremamente desenvolvida num mundo evoluído e orgânico.

Para chegarmos a mais precisas conclusões práticas, restrinjamos o campo de observação ao funcionamento do fenômeno da riqueza. A conclusão é que uma riqueza alcançada por caminhos escusos esta inquinada de negativismo e é, por isso, perniciosa para quem a possui, sendo, portanto conveniente que se liberte dela. Compreende-se então que em certos casos ser rico pode significar um débito a pagar, enquanto ser pobre pode constituir uma posição bem melhor, porque isenta de tal condenação.

Poder-se-á então estabelecer — a guisa de exemplo — a seguinte contagem: se eu possuo 10 unidades de valores econômicos mais 10 unidades de valores morais ao positivo (isto é, de mais retidão) será como se eu tivesse 20 unidades de valores positivos a meu favor. Se, pelo contrario, eu possuo 10 unidades de valores econômicos mais 10 unidades de valores morais ao negativo (isto é de menos retidão) será como se eu possuísse 20 unidades de valores negativos em meu prejuízo e zero unidades em minha vantagem, isto é, sou mísero e endividado. Se, pelo contrario, eu possuo 10 unidades de valores econômicos mais 100 unidades de valores morais ao negativo (isto é, de menos retidão) será como se tivesse 110 unidades de valores negativos em meu prejuízo, ou seja, é como se possuísse um montão de débitos a pagar. Eis que no campo econômico o fator moral pode tomar a dianteira e assumir uma função decisiva, porque é ele que confere à  coisa possuída o seu caráter benéfico ou maléfico, de positividade ou negatividade. Então para saber o real valor de um capital, é necessário calcular o grau de positividade (mais retidão) ou de negatividade (menos retidão) que ele possui. Segui-se disso que um pequeno capital honestamente ganho pode valer bem mais que um grande capital mal ganho, que pode representar uma verdadeira desgraça para quem o possui.

Destarte, o cálculo das unidades de valores econômicos deveria ser integrado pelo cômputo das unidades de valores morais, isto é, de mais retidão, a crédito, ou de menos retidão, a débito, e isso perante a Lei, que os aquilata e os torna eficientes. Tratando-se de um princípio universal, qual é o da positividade e o da negatividade, poder-se-ia o mesmo aplicar a todo tipo de trabalho, a cada elemento do sucesso, a cada campo de atividade. Então o caminho de uma vida será ascendente ou descendente em proporção a percentagem de positividade ou negatividade que cada vida contém, e as probabilidades de se resolver em bem ou em mal dependerão de tal percentagem.

Ora, além de um certo limite de suportação a doença o da negatividade torna-se mortal. Mas a incessante tendência da vida consiste em sanear, com a sua positividade, essa negatividade. O que é possível em virtude da presença do S no centro do AS. Esta automática cura da doença de nosso organismo moral é um fenômeno análogo a cura que a vida executa espontaneamente das doenças de nosso organismo físico. O que é doente é o AS, o que é sadio é o S. E por isso que a tarefa de curar é própria do S, sendo esse o motivo pelo qual Cristo se colocou perante o S. É então evidente que a negatividade não passa de uma doença própria do lado negativo do existir, doença esta que cumpre ao centro positivo curar totalmente. Compreende-se, assim, a tendência natural á restauração da saúde por parte da vida em cada nível.

Isto é inerente ao processo evolutivo, que consiste na extinção da negatividade dos elementos do AS, para reconstruí-los em posição de positividade, quais elementos do S. De fato o impulso motor da evolução é dado pela força de atração da positividade do S, a qual a esta meta suprema quer reconduzir os elementos negativos do AS. Eis então que o principio da retidão, sendo positivo e solidamente radicado no fenômeno da evolução que representa o S, é destinado a realizar-se sempre melhor quanto mais evolve em direção ao S, como é fatal que aconteça. Assim o impulso do S, saneador do AS, deverá transformar em forma de mais retidão a doença da menos retidão; de modo que o primeiro tipo de vida está destinado a afirmar-se prevalecendo sobre o segundo.

Vimos, todavia, como, em nosso plano de evolução, a vida tenda, pelo contrário, a selecionar o mais forte fazendo dele um opressor do mais honesto. Qual é então a técnica que a vida utiliza para fazer triunfar a retidão sobre a força? Como pode ser resolvido o problema da sobrevivência mediante um método tão alheio ao da força, como é o da retidão? A resposta está no fato de que cada um dos dois métodos é proporcionado às diversas condições de vida e aos diferentes níveis de evolução. O método da força é apropriado à defesa da vida no plano animal, que é de tipo individualista separatista, num regime de caos, enquanto o método da retidão visa à defesa da vida no plano do evoluído, que é de tipo coletivo orgânico atuante num regime de ordem. É assim que a vida é levada por evolução a passar do primeiro ao segundo método.

Como funciona tal técnica de vida e como se realiza, na prática, uma tal transformação? O homem, dado o conhecimento limitado do seu nível de evolução e dadas as qualidades do mesmo, julga inicialmente, que baste tornar-se o mais forte para ter direito a vencer, impondo-se acima de todos. Mas eis que, vivendo ele em sociedade, quanto mais a vida se torna coletiva, tanto mais nocivo se torna ele para a comunidade devido a seus impulsos egoísticos. E, por isso, a coletividade reage em sua própria defesa, procurando destruí-lo. Eis que, paralelamente, e em proporção à força dele cresce a capacidade de defesa dos outros. Eis que a vitória do egoísta prepotente produz o efeito contrário e torna-se uma derrota, porque provoca e atrai uma reação em seu prejuízo.

Ninguém se sente, naturalmente, impulsionado a matar um inocente passarinho, mas cada um pode ver-se induzido a matar uma perigosa serpente. Eis que a força que é positiva em certo nível, torna-se negativa num nível superior. Eis como a vida elimina essa força quando pretenda a mesma transferir-se a um plano mais elevado. A civilização tende de fato a tudo disciplinar na ordem, mediante a eliminação da força. Assim sendo, o melhor e o mais favorecido pela vida não é mais o homem forte, mas o homem honesto. Revelando-se este benéfico aos outros, acaba sendo aceito por todos e sua posição torna-se mais segura que a do forte. Eis como a retidão se torna um valor positivo em favor da vida.

É um fato inegável que a seleção biológica tende a assumir uma nova direção, logo que se supere o nível animal. Esta transformação é automática. Para cada defeito a vida responde — poder-se-ia dizer – a formação dos respectivos anticorpos, porque faz nascer uma reação proporcional com funções corretivas. Assim a cada qualidade negativa, corresponde com funções positivas salvadora uma contrapartida positiva. Assim à força de golpes e contragolpes de ação e reação, se realiza a evolução.

Quando se olha em profundidade se vê quanto a vida é perfeita. Mas é necessário encará-la em relação aos fins que ela deve alcançar. Ela parece mal feita porque o homem, qual ser colocado de cabeça para baixo no AS, quer dobrá-la aos seus fins egoísticos. É natural então que, deste ponto de vista, a vida pareça ilusão e traição. Vê-se, porém, quanto ela seja sábia, quando nos apercebemos que é feita para evoluir e não para gozar na inércia, sendo que, para evoluir, é necessário experimentar e — esforçando-se e sofrendo — aprender.

O homem pretenderia fugir até à morte. Mas precisamos compreender que uma vida terrena eterna representaria, ela sim, a verdadeira morte, porque deteria o transformismo ascensional da evolução.

O problema da justiça e do perdão. Aparentes contradições. O perdão não é injustiça. O método de pagamento de tipo S a cargo da Lei. As vantagens do perdão: para o ofendido e para o ofensor. Involuído e evoluído. Duas verdades e respectivos métodos de vida. A evolução sana a contradição. Reconstruir. A retidão, método de defesa conforme o Evangelho.

Tratemos, agora, o problema da justiça e do perdão. Contra uma ofensa o mundo faz justiça com o método da reação e punição, e o Evangelho com o do perdão. O primeiro é o sistema da luta, vigorante nos planos evolutivos mais baixos, os do AS, segundo o princípio separatista ali imperante. O segundo é o sistema da coordenação, o que vigora nos planos evolutivos mais altos (os do S), conforme o princípio unificador ali imperante. Esta diferença se faz tanto mais evidente quanto mais se desce, de um lado, e quanto mais se sobe, do outro.

Diz o Evangelho: "Vós ouvistes que foi dito: olho por olho e dente por dente. Eu, pelo contrário, vos digo que não deveis fazer resistência ao malvado (....). Ouvistes que foi dito: amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Pelo contrário vos digo: amai os vossos inimigos, fazei o bem àqueles que vos odeiam (... ). Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros (....). Bem-aventurados os mansos (....). Bem-aventurados os misericordiosos (....). Bem-aventurados os pacíficos" (....).

O mesmo Evangelho põe em evidencia a contraposição entre os dois métodos de fazer justiça: o da sanção imposta contra o violador e o do perdão. Perguntemo-nos, agora: como resolver conforme justiça o método do perdão? Trata-se de dois conceitos absolutamente antitéticos. O perdão altera a relação e rompe o equilíbrio entre culpa e pagamento, entre erro e correção, assim ele paralisa a função saneadora da Lei. O perdão representa uma evasão das sanções, ou seja, violação da Lei, fato que, conforme esta, deveria ser punido.

Eis os termos do problema:

1º — Há uma culpa, que é uma violação da ordem. Ela redunda num desequilíbrio que deve ser compensado num desvio, o qual por sua vez deve ser neutralizado e reconduzido à posição de equilíbrio.

2º — Há a justiça que exige e realiza este pagamento e, com o método da sanção primitiva, restabelece a ordem.

3º — O perdão, pelo contrário, é semelhante ao pagamento de uma dívida, mas não o realiza. Ele tão somente deixa ficar sem solução o problema do restabelecimento da ordem, como também aceita e confirma a violação da Lei.

Existe, portanto, uma inconciliabilidade entre justiça e perdão. Se a justiça consiste no não-perdão, então o Evangelho que defende o perdão, pareceria propor a injustiça. Isto porque a Lei de Deus se baseia num fundamental princípio de equilíbrio que no plano moral significa justiça. É por este princípio que se deve reconstruir a ordem violada, pelo qual o mal feito se deve pagar, o erro deve ser corrigido com a dor, o que foi deslocado ao negativo deve ser recolocado na sua justa posição ao positivo Ora, quando o ofendido perdoa, com isso ele induz o ofensor a violar tal equilíbrio, porque o mal feito deste último não é pago e seu erro não é corrigido, pelo fato de, com o perdão, escapar à sanção punitiva. E então, como se restabelece o equilíbrio da justiça, se o cômputo do dar e haver é alterado pelo perdão? Quando Cristo se encontrou diante do Pai, Ele se colocou na posição de pagador perante a justiça da Lei e não pediu perdão. Ao contrário daquilo que faz o homem — que pleiteia o perdão para si sem concedê-lo aos outros — Cristo praticou em relação aos outros, mas para si antepôs ao perdão a justiça. Com isso mostrou que os débitos devem ser pagos.

Ainda há mais. O próprio Deus se comporta conforme a sua lei de justiça, que exige o pagamento. Não usa o método do perdão, quando, pelas ofensas recebidas, exige do homem um pagamento e, para que este seja executado, manda à Terra o Seu “Filho Unigênito”. Eis então que o Evangelho, pregando o método do perdão em vez do justo pagamento, parece ter-se colocado em contradição com o Filho e com o Pai. Mas será que o Evangelho ignora a Lei e se coloca contra ela? Afinal, qual das duas vias se deve seguir? A do pagamento obrigatório, imposto pelo Pai e praticado pelo Filho, ou a do perdão, pregado pelo Evangelho?

Um caso de contradição não poderia ser visto, também, quando Moisés, que havia descido do Sinai com o mandamento de não matar escrito sobre a Tábua, haver mandado matar três mil idólatras? Foram estas as palavras de Moisés: “Assim disse o Senhor, o Deus de Israel: „Cada um tome a sua espada e passe de porta em porta, e cada um mate o seu irmão, cada um o seu amigo, cada um o seu próximo‟. E assim foi feito conforme a palavra de Moisés, e naquele dia tombaram do povo, três mil homens”.

Não nos abalam estas contradições. O fato é que, enquanto a Lei nos oferece princípios do S, o subconsciente humano propõe princípios do AS. Vemos tal forma de se evadir do pagamento com o perdão encontrar confirmação também alhures, por exemplo, no caso de São Tomás de Aquino, quando ele se exprime assim: “Beati in Regno Coelesti videbunt poenas damnatorum ut beatitudo illis magis complaceat” (“Os bem-aventurados no reino dos Céus verão as penas dos dana- dos, para que seja mais intensa sua própria bem-aventurança”).

É compreensível que tais sentimentos de egoísmo possam naturalmente aflorar do subconsciente humano em quantos se sentem imunes diante das desgraças dos outros. E compreende-se como o controle mental, bem mais reduzido no passado, deixasse ingenuamente escapar confissões desta espécie. Mas que estes sentimentos — entre os comuns mortais — pudessem atribuir-se também aos eleitos do Céu, isso não é mais concebível hoje em dia. Seriam eles tão malvados a ponto de gozarem com os tormentos dos seus semelhantes? Como admitir que a perspectiva de tão iníqua alegria pudesse servir de encorajamento a fazer o esforço necessário no a conquista do Paraíso? Os gozos celestiais consistiam portanto em violar o fundamental princípio do Evangelho: "Ama a teu próximo como a ti mesmo"? O perdão só serviria então para adiar a vingança ao além que ficaria provisoriamente incubada até a intervenção de Deus, que ao cumpri-la viria a satisfazer à  nossa mesquinhez evitando-nos, com o esforço de persegui-la, o risco da reação por parte do ofensor.

Tais contradições nascem do fato de os princípios que regem a religião e a moral como teórica norma de conduta, serem de tipo diverso dos que funcionam na realidade concreta. Mas como se justifica que os moralistas ignorem tal contradição e porque deveria haver antagonismo entre os dois métodos de vida? A situação é aquela tão frequentemente registrada no mundo, que consiste em dizer uma coisa e fazer outra. De um lado temos a afirmação de altos ideais, do outro lado, uma realidade mesquinha presente e imperante na vida de cada dia. Belas e luminosas nuvens que voam no céu, enquanto na Terra se caminha sobre ásperas pedras. Belos os sonhos do espírito, mas quase sempre contraditos pelas imperiosas e massacrantes necessidades da vida. No alto resplandece a bondade e o amor, mas em baixo, no mundo, triunfa o mal e geme a dor. Quem vive feliz no Paraíso não sabe porventura que existe também o inferno e que nele se massacram seres vivos? Como podem os idealistas ignorar que a vida se baseia sobre a rivalidade e sobre o contínuo esforço da luta, e que em tal ambiente as suas teorias permanecem como inaplicáveis utopias? Então, se o perdão existe, o que significa e como se justifica esta sua estranha economia tão contrastante com as leis da vida? Se esta se comporta tão diversamente, deve existir uma razão para tal. E a realidade destas leis impõe que o mal feito seja pago, conforme justiça.

Observemos como funciona o fenômeno. Em nosso mundo aquele pagamento pode-se obter tanto com o método do macho que reage como pessoa com as suas próprias forças sem pedir a ajuda de ninguém, quanto com o método da fêmea, que, carente de forças, pede ajuda confiando a mesma sanção à  justiça de Deus. O primeiro é o método ativo, de reação positiva ou da vingança; o segundo é um método negativo, passivo; mas ambos tendem ao mesmo resultado final, que é o de fazer pagar ao réu a sua culpa. No primeiro caso temos uma reação direta e imediata, no segundo uma reação indireta, reenviada no tempo, por delegação, a outros. Diversa é a forma, a substância é a mesma: a necessidade de pagar. Assim o perdão evangélico, na realidade, corresponde à mesma necessidade de defesa, conseguida, porém, com um método de tipo feminino, mais condizente com os fracos, incapazes de se defenderem sozinhos.

Depois disto, o Evangelho é espontaneamente aplicado pelo tipo feminino, ao qual, portanto Cristo não tinha necessidade de dirigir-se para ser obedecido Dirigiu-se, pelo contrario, de preferência, ao tipo macho, aquele que mais repele o Evangelho, porque sabe defender-se por si, embora sendo ele quem do mesmo mais necessita para corrigir-se de sua tendência a se fazer justiça por si próprio — como anárquico egoísta que é — em vez de obedecer a Lei. Mas, ao mesmo tempo, Cristo quis ajudar os débeis, os oprimidos e atribulados — que confiam a Deus sua própria defesa — mostrando-lhes que existe todavia uma justiça, também para eles, na qual podem confiar. É assim que vemos como a religião, mais que pelo tipo macho, seja seguida pelo tipo fêmea, que nela encontra a proteção de que tem necessidade. Em primeiro lugar a defesa para a sobrevivência.

Esta é a realidade da vida, cuja economia esta bem longe daquela do perdão. Tal realidade é um fato. Para superá-lo não adianta ignorá-lo ou desprezá-lo, como se não existisse. Ele na prática constitui o que é norma neste mundo. E se o Evangelho afirma o contrario, significa isso porventura que aquela regra esta errada ou que é má? Mas como pode a vida ser tal se ela é regulada por leis que coincidem com a própria vontade de Deus?

Procuremos compreender. A contradição nasce do mal-entendido pelo qual se acredita que, se com o perdão desaparece uma sanção visível e imediata, não exista por isso pagamento, e, portanto, de tal modo se cumpra a injustiça do não-pagamento. As referidas objeções nascem da opinião pela qual o perdão signifique subtrair-se à justiça com o não-pagar, enquanto se trata de um diverso e mais perfeito modo de pagar, pelo qual se permanece sempre dentro da ordem da justiça, permanecendo sempre inviolada. Eis então que o método do perdão não representa mais um ato contra a justiça, mas um acordo com ela para que funcione de um modo ainda melhor. Fiquem tranquilos os que vêm no perdão uma impunidade do ofensor e com isso um evadir-se à justiça da Lei. Isso não pode acontecer, pois ela é inviolável. Então nos perguntamos: qual é a técnica segundo a qual se verifica este fenômeno?

A função de fazer justiça da maneira mais segura, adequada e completa, implica a presença de outros elementos, que não são apenas os usados para executá-la em forma simplista pelo único método da sanção punitiva. Além desta finalidade a Lei quer alcançar outras paralelas. O trabalho é complexo, o que exige uma sapiência que o sujeito normal não possui. Daí a necessidade, em primeiro lugar, de tirar-lhe das mãos a função de justiceiro. Que ele, portanto se ponha de lado e deixe trabalhar a Lei. Então esta só lhe pede perdoar e colocar-se fora do fenômeno, cuja direção de desenvolvimento só pode ser confiada à  Lei. E quem compreendeu como esta funciona, bem sabe o que ela pode fazer.

Observemos primeiro aquilo que se dá com o indivíduo ofendido. Com o perdão este confia a reação à justiça da Lei e assim se liberta de qualquer vínculo com o ofensor, que deste momento em diante fica entregue à lei. Este não se vai embora, como pode parecer livre de sanções, sem pagar, pois entra na engrenagem das consequências dos atos que praticou. O ofendido, pelo contrário, com o perdão, retraindo-se da luta, logo encerrou a conta e não entra nesta engrenagem de pagamentos. O caso para ele esta liquidado. Na balança da justiça da Lei ele colocou o seu perdão, isto é, um crédito à sua vantagem. Recordemos que a Lei funciona para todos os indivíduos submissos a ela, que vivem seus princípios e estão ligados à engrenagem de suas forças. O perdão faz parte deste comportamento e posição.

Desse modo o poder do indivíduo não depende da sua potência terrena perante o ofensor, mas da sua posição perante a justiça da Lei. Trata-se de uma técnica de defesa completamente diferente daquela que o mundo segue. A conta individual entre ofensor e ofendido substitui-se a conta entre o indivíduo e a Lei de Deus. O primeiro é o método do AS, separatista, caótico, no qual o ser esta sozinho, contra todos e não tem em sua defesa senão suas forças, numa posição de contínua violação, injustiça e endividamento perante a Lei. O outro é o método do S: orgânico, feito de ordem, no qual o sujeito unificou-se com as forças da Lei que ele portanto possui para sua defesa, quando se encontra em posição de contínua adesão, justiça e equilíbrio diante dela.

Em tal posição, o indivíduo se torna parte de um todo no qual ele se completa e se potencializa, dado que as forças da Lei, atraídas por afinidade, acorrem em proteção de quem se move em sintonia com elas. Isto porque a Lei se defende a si própria quando defende quem, obedecendo-lhe, se fundiu com ela e dela se tornou um elemento constitutivo.

Eis a vantagem do método do perdão: o de colocar-nos na ordem do S, em vez de na desordem do AS, com todas as consequências que daí derivam. Eis o significado e o grande valor utilitário da atitude que nos é proposta pelo Evangelho, que nos quer conceder uma posição de inocência, e, portanto, de segurança na ordem, coisa que o desequilibrado sistema de luta no qual se baseia o AS jamais poderia garantir. É evidente que as forças do indivíduo, por mais potente que ele seja, não poderão nunca sustentá-lo e protegê-lo como podem, pelo contrário, as do grande organismo quando ele consiga integrar-se nele. Tudo isto é verdadeiro, grande, belo, mas é difícil fazê-lo compreender a quantos não tenham ainda construído olhos capazes de ver em profundidade.

Os dois termos do problema são ofendido e ofensor. Estamos observando os destinos de cada um dos dois. A preocupação do Evangelho é a de libertar o ofendido das consequências de uma sua reação pessoal que o ligue ao ofensor, iniciando com ele o cômputo do dar e do haver. Via de regra se tem pressa em fazer justiça por si, porque ao julgar o fenômeno, o homem míope se engana vendo apenas os efeitos imediatos ou a curto prazo, enquanto não vê os efeitos longínquos a longo prazo nos quais a justiça se cumpre. Acontece, com efeito, que a imediata reação pessoal provoca uma contrarreação, e assim sucessivamente ao infinito. Dá-se o mesmo com as guerras, todas projetadas para chegar a uma vitória definitiva, enquanto na realidade não se alcança senão um perpétuo estado de guerra, em que cada uma delas não acaba nunca de castigar a injustiça da outra. O Evangelho tenciona resolver este problema quebrando ao seu início a cadeia de ações e reações, que imediatamente se estabelece quando se usa o método da força.

Naturalmente o Evangelho — como já vimos — fala aos fortes, levados a usar tal método e não aos fracos que não precisam receber conselhos de moderação porque não têm força para reagir. Mas, se estes forem justos, a Lei defenderá neles o próprio princípio da justiça. Quando o ofendido se encontra nestas condições, o ofensor não mais se encontra perante apenas um homem, mas também perante a Lei, que exige justiça. Isso implica uma grande disparidade de condições entre o ofensor e o ofendido, mesmo se o primeiro – quando forte e astuto – pode fugir da reação do ofendido; quando, porem, este último perdoa e entrega sua proteção e defesa à Lei, para o ofensor não há mais escapatória. A primeira condição se verifica no AS e a segunda no S, regime de ordem e disciplina em que todos estão enquadrados, porque a ele pertencem.

Mas também para este constitui uma vantagem o cair — mesmo que seja à força — em poder da Lei. A reação desta é diferente da do ofendido. Este só desabafa a sua raiva, obedecendo ao impulso da defesa ou da vingança, o que não vence o mal, mas o aumenta, porque à violência do ofensor se acrescenta à do ofendido, aumentando, assim, a desordem em vez de elimina-la. O escopo da Lei, pelo contrario, é o de reconstruir a ordem, e de fazer justiça, de educar e salvar o ofensor, mediante a sua correção, constrangendo-o a reingressar no justo caminho.

Ora, um semelhante trabalho não pode ser confiado ao homem, mas só à Lei que possui a sapiência necessária para podê-lo executar. Aqui falamos da Lei como de uma coisa viva, porque ela representa a onipresença de Deus. O método de vida em nosso mundo é completamente diverso do proposto pelo Evangelho. O primeiro é de tipo AS e o segundo de tipo S. Isto significa que eles estão nos antípodas. Eis que um trabalho de ordem e justiça não pode ser confiado aos cidadãos do AS, mas só a quem adere ao S, mesmo no caso em que tal trabalho deva ser realizado no seio do AS. As reações deste não sabem ser corretivas para o bem do ofendido, ao ponto de reconduzi-lo na ordem sobre a qual se apoia o S; pois são imbuídas de egoísmo e vingança, maléficos filhos da desordem, sobre a qual se apoia o AS. Logo, a função de cumprir uma verdadeira justiça não pode ser confiada ao homem, que não pode possuir todos os elementos para julgar, como só Deus pode, o único que pela sua superioridade tem para tanto a capacidade e o direito. E tanto menos tal função pode ser confiada ao ofendido, pois sendo parte em causa, não pode deixar de colocar a si mesmo no prato da balança em seu próprio favor. Assim, propondo-lhe o perdão, o Evangelho quer preservá-lo do pecado da injustiça do seu julgamento parcial.

Temos, então, uma forma de justiça por delegação, pela qual o homem não a exercita, mas a confia à  Lei. Outra maneira não há se quisermos uma verdadeira justiça. Para quem vive no AS, não há outra salvação, a não ser apoiar-se no S, deste aplicando os métodos. Isto é o que Cristo quis fazer, pregando a aplicação da Lei do Pai neste mundo.

Vimos o significado da contradição entre o Evangelho e a realidade da vida. Trata-se de duas verdades, cada uma relativa a um diferente nível evolutivo. Relativamente a seu próprio ponto de referência cada uma delas é verdadeira, mas o ponto de referência do Evangelho é a Lei, o mais alto termo do conhecimento, aquilo que para Cristo é o Pai e para todos é o S. Pelo contrario, o ponto de referência do homem é o seu mundo, situado muito mais em baixo, no AS. É natural que de tudo isto derivem dois opostos métodos de vida.

Estas duas verdades e os respectivos métodos de vida podem ver-se representados na Terra por dois tipos opostos, cada um expressando a sua verdade parcial em contradição com a do outro. O primeiro é o verdadeiro involuído movido pelos instintos mais baixos de nível animal. Ele é um imaturo que se encontra atrasado em relação ao grau de evolução alcançado pela atual sociedade humana, apesar de se encontrar em seu lugar em relação à sociedade mais selvagem dos séculos passados. O segundo é o evoluído, honesto, compreensivo, pacífico. Ele é mais que maduro, e assim se encontra antecipadamente deslocado para a frente em relação ao grau de evolução alcançado pela nossa sociedade, mas com certeza ele se encontrara no seu devido lugar numa sociedade mais civilizada, nos séculos futuros.

Trata-se de dois extremos – ambos fora de série – um por falta e outro por excesso de adiantamento. As massas, situa- das na metade do caminho, formam o grosso do exército em marcha ascensional. Situados num tal ambiente de nível médio, ambos os tipos são marginalizados. O primeiro deles acaba na prisão. O segundo é isolado como sonhador utopista, fora da realidade, sendo ele de fato assim em relação ao tipo comum neste mundo.

Contudo, diversa é a sua posição perante a Lei. Enquanto o primeiro é por ela canalizado à força, através da dura mas salutar estrada do ressarcimento, sendo impelido, embora à força, para frente com a técnica trifásica explicada por nós no volume A Técnica Funcional da Lei de Deus, o segundo, ao contrário, é secundado, no seu esforço ascensional, pela Lei, que o ajuda, mesmo quando ele – apesar de querer – mais não sabe nem pode fazer.

Compreendemos, agora, a razão que explica a aparente contradição entre as opostas verdades, problema que outrora nos parecia insolúvel. Porém tal contradição não só é explicável, mas também sanável. Isto é compreensível pelo fato de as nossas verdades humanas, assim como as nossas posições religiosas e morais, serem fases de transição, que sé colocam ao longo do caminho da evolução. Elas fazem parte de um processo de transformação cuja função é a de tornar sempre mais verdadeiro e atual na Terra, o ideal que no presente soa utopia. É com tal orientação que se compreende a verdade do Evangelho. Ele é uma ponte lançada pela vida em direção ao futuro, ainda hoje em fase de tentativa de realização, contra o qual ainda resistem as leis biológicas, num nível mais involuído, mas em relação ao qual, apesar de lentamente, vão cedendo, já introduzindo e assimilando o novo em suas entranhas. É por isso que as duas opostas verdades — a do Evangelho e a do mundo — poderão um dia coincidir. Eis aqui racionalmente reconhecida a função biológica de Cristo e da sua doutrina.

O nosso momento histórico esta todo empenhado no trabalho de destruir o velho. Mas sempre que se execute tal operação cirúrgica se corre o risco de matar o doente, enquanto o escopo dela deve ser o de curá-lo e fazê-lo viver ainda, pelo menos, o de salvar o salvável. A operação empreendida pela ciência materialista ficou pela metade parando na fase destrutiva. Mas ela há de ser levada a termo até o fundo, isto é, até a fase reconstrutiva, pois é esta a sua verdadeira finalidade.

Esta segunda parte, que ainda não vemos realizada é aquela que tentamos, aqui, levar a cabo. E seu resultado final não será a demolição do Evangelho, mas a sua própria confirmação, não apenas em termos fideísticos como no passado, mas de maneira racional e positiva, como exige a mente moderna se quisermos que do mesmo ela aceite a doutrina. Tínhamos um Evangelho velho, não compreendido, cheio de superestruturas; um Cristo retórico e mitológico, fora da realidade, situado num mundo em que foi sumariamente liquidado e condenado sem se lhe compreenderem as leis e a função. Quisemos fazer do Evangelho algo atual, assimilado, um Cristo vivo, presente entre nós, situado na realidade de nosso mundo para levar o mesmo à frente e redimi-lo na forma necessária à  mente moderna e ao atual momento histórico.

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Antes de abandonarmos este assunto queremos insistir no esclarecimento de um ponto que, para o homem habituado a um regime de luta, parece-nos o mais difícil de compreender. Trata-se de nos explicar como o perdão possa constituir uma técnica de defesa em vista da qual o indivíduo, que com este recurso aplica o Evangelho, não fique abandonado, como parece, nas mãos do ofensor. O ofendido, por sua vez, se pergunta: qual será, então, no sistema da Lei a minha arma de defesa? Respondemos que —embora possa isto parecer estranho — esta arma não é a força ou a astúcia, mas a retidão. Tratemos de compreender de que modo possa ser verdadeira tão estranha afirmação.

O universo, desde o plano físico ao espiritual, é um sistema orgânico, dirigido por um princípio de ordem que sempre melhor realizamos, quanto mais evoluímos. O evoluído — sendo mais avançado — se enxerta no aspecto orgânico do todo, deste seguindo o princípio ordenador. Funciona, assim, dentro dele, conforme as normas da Lei, nesta inserido como o disciplinado elemento de um organismo. O involuído — sendo mais atrasado — se enxerta, pelo contrário, no aspecto caótico do todo, seguindo o próprio impulso individual separatista, que representa o princípio oposto feito de revolta e de desordem. Assim, dentro do todo organicamente dirigido, funciona ele em posição anti-Lei (de independência e rebeldia), qual indisciplinado fomentador de desordem.

Decorre disso que a posição do indivíduo no seio do mesmo universo é diferente conforme o nível em que vive, isto é, o do evoluído ou o do involuído. O primeiro existe em função do centro em torno ao qual gravita; o segundo se faz periférico, pretendendo, contudo, ser o próprio centro. O primeiro é feito de harmonia, o segundo de contrastes, o primeiro é afirmativo, o segundo, contestador; o primeiro personifica a aplicação da Lei, enquanto o segundo pretende sub-roga-la pelo seu próprio eu.

Da diversidade destas duas posições depende todo o resto, isto é, o método de vida, a técnica de defesa, o instrumento de que nos servimos. Na primeira posição o sujeito vive num campo de forças que se somam, porque convergem para a mesma direção; na segunda posição vive o mesmo num campo de forças que se elidem porque contrarias e se dispersam porque divergem em cada direção. Eis então que a arma que o involuído usa para se defender — sendo ele um rebelde anti-ordem — fica circunscrita, e não vai além de seu âmbito pessoal. Não se colocou ele contra a Lei, negando-a? Pois bem, a Lei colocar-se-á contra ele, renegando-o. Assim ela o repele, deixando-o só. O evoluído, pelo contrario, aderiu à Lei. É lógico então que esta vá ao seu encontro. Assim ela o incorpora e o torna comparticipe de seus próprios recursos. Nem poderia ser de outro modo. Assim, quem segue o princípio do caos, em contraste com o próprio princípio de ordem, só poderá ser repelido e ficar isolado, abandonado a si próprio, no caos.

Eis porque é necessária a retidão, porque pode a mesma constituir uma arma de defesa para o humanamente indefeso que aplica o Evangelho e o princípio do perdão. Quem faz isto se insere na organicidade do todo e nela encontra a sua força e defesa. Só quem vive em sentido orgânico pode fruir de tais benefícios, os quais decorrem precisamente do fato de se observar uma justa regra de conduta, condição fundamental para poder pertencer àquele Organismo. Está aqui explicado porque o enquadrar-se na ordem, pode constituir uma arma de defesa para sobreviver e para avançar. É esta uma arma muito mais poderosa do que as humanas, porque ela faz parte do organismo do Todo, do qual não pode dispor quem segue apenas a economia do mundo.

É necessário compreender que o homem evangélico, mesmo quando materialmente situado no AS, vive conforme o S, isto é, não em posição egocêntrica ou separatista, mas organicamente em função de todos os elementos do seu tipo, isto é, espiritualmente ligado a uma coletividade de mais alto nível evolutivo, da qual ele faz parte. Nasce deste fato para o evoluído uma condição de reciprocidade com a Lei, que, se o carrega de deveres que o involuído repele, enche-o de direitos de que este último não goza. O homem evangélico não vive isolado, mas em função do todo, e com isso ele é também um momento do todo, fato que a vida tem em conta. Assim ele goza da defesa que encontra quem pertence a uma coletividade, Esta tem a função de defender e prover, desde que os indivíduos que lhe pertençam, respeitem a disciplina e unificados observem os mesmos princípios de retidão.

Viver na organicidade do todo, numa rede de intercâmbios sem atritos, compreendendo-se e fundindo-se em comunhão com todos outros elementos para com eles colaborar, significa tornar-se grande e forte como todo o organismo, ao qual assim se ajuda a construir e do qual se faz parte. Então a nossa vida se dilata, tornando-se imensa, porque ela é a vida do Todo e a vida do Todo é a nossa. Todas as barreiras do separatismo egocêntrico caem, todos os canais de comunicação estão abertos, e a vida flui através deles triunfante. Tudo é luminoso, livre, lógico, convincente. Tal abertura é dada pelo amor, que conduz à unificante colaboração. Então nenhuma criatura está só, pois, quando há necessidade, todas as outras, que formam com ela um só corpo, acorrem para ajudá-la. Ninguém acorre para ajudar o involuído um anti-Lei, que se isola e devido ao seu egocentrismo, não tem amor, os canais estão fechados e não há colaboração. A redenção é compreendida às avessas em posição invertida, numa contração sobre si mesma; as barreiras são levantadas e não há abertura nem expansão vital. O Evangelho inverte a posição emborcada, defendendo a vida com diverso sistema de amor e de perdão, abatendo barreiras e abrindo canais.

Há uma forte razão para a Lei proteger o homem evangélico que vive conforme a justiça. A vontade que prevalece no funcionamento do universo e a de evoluir, e isso significa regressar a Deus, saindo do AS para entrar no S. A Lei personifica esta vontade e estimula para que ela se realize. Dirige-se então para o involuído tratando-o com o chicote da dor e fazendo-lhe pagar seus próprios erros, para que aprenda e assim evolua. Dirige-se ao mesmo tempo para o evoluído ajudando-o a superar as dificuldades, encorajando-o, assim, a subir mediante seus próprios esforços. A finalidade é sempre evoluir. No primeiro caso o estímulo é ao negativo, como reação e pressão, no segundo caso o estímulo se converte em convite e atração. Dessa forma, o involuído vê-se fatalmente constrangido pela sua conduta anti-Lei, a precipitar-se na engrenagem dos ressarcimentos, sanção da qual esta isento quem segue o sistema da retidão. O evoluído, pelo contrario, graças à sua conduta conforme a Lei fica por esta secundado porque ele a ajuda no seu impulso fundamental que é de fazer evoluir. A ação da Lei para cada indivíduo é estabelecida pelo seu débito a ela.

O resultado pratico dessa técnica funcional da Lei está no fato de que, para a defesa e o bem do indivíduo, o fator retidão é importantíssimo, mesmo se em nosso mundo, lhe é atribuído um valor relativo apesar dela ser exaltada com palavras. Esta é a realidade: quem se afirma mediante o sistema anti-Lei na conquista de bens materiais (poder, glória, prazeres etc.) trabalha em perda. Com efeito, enquanto julga estar tendo vantagem, faz o seu dano, enquanto julga estar ganhando se endivida perante a Lei para depois ter de responder perante a sua justiça. Alcançar tais triunfos ao negativo porque não merecidos, significa ter de expiar depois, porque eles formam a base para destinos de sofrimento. Ao contrário encontra-se em posição vantajosa — como credor perante a justiça — o indivíduo que, apesar de perder os valores do mundo (riqueza, glória, prazeres etc.) trabalha conforme a Lei, mesmo que se por esse fato é incompreendido e desprezado.

Se o escopo fundamental do existir é evoluir, eis que tudo vale em relação a este fim supremo. Mas evoluir significa sair do separatismo do AS para voltar ao S, isto é, a Deus, mas em posição oposta à  do AS, isto é, em posição unificante. Trata-se de reconstruir a unidade do Todo, pulverizado com a Queda, e de reconstruí-lo através da unificação dos elementos dispersos no Caos, uma unidade após a outra, mas sempre maior. E a unificação é também organização. Trata-se então de reconstruir toda a organicidade do S, por meio da construção de sistemas sempre mais complexos e mais vastos, até a perfeição do S. Trata-se, assim, de reconstruir — em contraposição a todos os elementos anti-Lei feitos de desordem — a ordem total da Lei e isto por sucessivas etapas de reorganização, sempre mais profundas e extensas, até aquela perfeita que caracteriza a Lei.

Tudo isto já o divisamos, podendo reconhecer suas diversas fases de realização. Assim à fase caótica das formações galácticas vemos seguir-se a fase mais orgânica dos sistemas planetários. Na vida há um instinto de unificação que leva a organizar-se na ordem proporcionalmente ao maior grau de evolução. Alguns animais se unem em verdadeiras sociedades. O homem saiu da unidade familiar à do grupo, do castelo, da cidade, do partido político e religioso, da nação, do povo, da raça, da humanidade. Quanto mais se sabe, tanto mais estas unidades com o seu ampliar-se perdem consistência, porque são em formação: uma tentativa de construção ao longo do caminho da evolução. Mas se caminha para uma unificação sempre mais vasta, o que implica um ordenamento orgânico constitutivo de um sistema sempre mais complexo e completo, até ao máximo, o único, o perfeito: o S. Esta é a estrada da evolução, o caminho que leva a Deus. É sobre este caminho que nos coloca a economia do Evangelho.

O problema da violência. Ela constitui culpa num regime de ordem, mas é instrumento de luta num ambiente de violações. A injustiça pode legitimar a revolta. A evolução elimina a violência. Reconhecimento dos direitos do indivíduo. A injustiça institucionalizada. A desconfiança recíproca e o instinto de luta impedem o diálogo. A vantagem de suprimir os atritos e a nova técnica das relações sociais. O fim das guerras.

Analisemos, agora, o problema da violência. O Evangelho a condena. Mas enquanto o seu convite à  não-resistência e ao perdão se dirige a quem é golpeado, o convite à não-violência se dirige aquele que golpeia. Depois de ter observado os primeiros dois aspectos do problema, observemos agora este terceiro aspecto concernente à  pacificação proposta pelo Evangelho. A sua solução é de fundamental importância para alcançar a de outro grave problema, o da convivência social, agora de grande atualidade. Dada a técnica da sua evolução, a vida vê-se constrangida a afastar-se do seu primitivo estado separatista de luta e a tentar a eliminação da violência, porque ela — como já vimos — caminha para a unificação. Deve-se avançar do AS para o S. Isto significa ter que mover-se em direção a ordem, à colaboração, à organicidade, coisas que exigem o pacifismo e excluem a violência. Eis que biologicamente ela é condenada a desaparecer porque a evolução fatalmente leva a superação da luta entre elementos inimigos. Já se vê quanto ela seja contraproducente e como deva ser eliminada nas grandes organizações industriais e nos trabalhos de investigação científica de equipe. A atual conquista da Lua é o produto de uma tal organização. Até no setor religioso a nova tendência é anti-separatista e unificadora. As novas ideias políticas se baseiam na coletivização.

O que é a violência? Ela é a expressão mais viva e evidente do estado de luta, que é por sua vez produto do impulso egoísta desagregante, próprio do AS. Desse modo, a violência está nos antípodas do S, tendo natureza anti-Lei e, portanto, constituindo mal e culpa. Não há dúvida de que a violência seja assim, quando observada em relação a um regime de justiça, da Lei do S tomados como pontos de referencia.

O homem, porém, não vive no S, mas no AS, isto é, num regime de violação e de injustiça. Como estabelecer a culpabilidade de um ato, quando é cometido num ambiente de culpa que constitui o ponto de referência? Quando nesse ambiente a violência é reputada necessária para a sobrevivência, como pode considerar-se culposa uma conduta que é indispensável para não perecer? Ao contrário, quanto mais se desce involutivamente, tanto mais a violência, em vez de culpa é virtude, enquanto é um meio de vida, porque é necessário viver para que se realize a evolução. Com efeito, para os seres do plano animal, renunciar a violência pode significar a morte. E isto, em certos momentos e ambientes, pode ser verdade também para o homem. Então, como sustentar o direito de seguir uma virtude que pode reduzir-se a um suicídio? E como pode o ideal evangélico querer anular instintos basilares, fixados como automatismos por repetições milenares e, portanto necessários a conservação da vida? E são tão necessários e tão preciosos que se deve aos mesmos ter o homem sobrevivido até hoje.

É verdade que, para quem aprendeu a se comportar conforme a Lei, não é necessária a violência, pois ali reina a disciplina. Mas, onde existe esta necessidade – como entre os involuídos, situados fora da Lei, no AS – o discurso é bem outro. O homem, devido ao seu atraso evolutivo, está num ambiente ainda anti-Lei, no qual, para viver, é necessário lutar, sendo a defesa individual confiada às próprias forças de cada um. Como se pode pretender que o indivíduo siga a seu risco e perigo uma conduta que contrasta com o ambiente, impõe seus próprios métodos?

Então, o que acontece? É um fato que a evolução quer alcançar um regime de justiça. Esta é a tendência da vida, e, onde vigora a Lei, esta meta já se alcançou. Mas onde vigora a anti-Lei, mesmo lutando-se para alcançar a justiça, o ponto de partida do caminho do ser é ainda a injustiça. Logo, onde a violação da Lei constitui a regra, forma-se uma cadeia de injustiças sem fim, cujos elos ligados entre si, segundo uma sequência de causa e efeito, degladiam-se incessantemente a procura de urna justiça, que por este método nunca será alcançada. Verifica-se então que a verdadeira culpa da violência recai toda sobre as primeiras causas de que ela é a consequência, as quais consistem num abuso em prejuízo do ofendido que, por instinto, reage. Ora, a primeira violência e culpa está sempre no fato de ter agido contra a justiça, o que se verifica via de regra nas posições de comando, precisamente onde deveria triunfar o dever de observar aquela justiça. Então esta injustiça por parte de quem tem autoridade leve os ofendidos a fazer uso da justiça com suas próprias mãos, por meio da violência. E esta é culpa quando usada contra um regime de justiça, converte-se em justiça, quando se dirige contra um regime de injustiça. Em tal caso a violência pode ser conforme a Lei, na medida em que se procura a justiça contra a injustiça. No entanto, para se ter o direito de admitir com o legítimo o uso da violência para fazer-se justiça, precisa reconhecer que vivemos num mundo ainda selvagem, em que obter justiça, a violência é necessária contra uma abusiva ordem estabelecida.

Assim, por exemplo, na Revolução Francesa as culpas mais graves não hão de ser vistas nos delitos cometidos pelo povo exasperado, mas nos abusos da aristocracia que os havia provocado, levando aquele mesmo povo ao desespero. Em tais casos a violência, quando não exista outro meio para obter justiça, pode tornar-se legítima. Então é a vida que rompe as barreiras construídas pelos parasitas acomodados nas posições de domínio, para que estes não interrompam a evolução. E em tal caso que a Lei faz vencer as revoluções por mais ilegais que possam parecer.

É por este caminho que se chega ao absurdo de reconhecer a legitimidade de uma estranha moral que admite a revolta violenta, quando reputada necessária para restabelecer a ordem da justiça num regime baseado na desordem da injustiça. Assim um mal de tipo anti-Lei excepcionalmente pode tornar-se lícito. E, contudo, necessário que não haja outro caminho para se obter justiça. Mas além deste, há ainda um outro motivo: a escolha deste tipo de conduta não se pode fazer ao acaso, e sim, por uma necessidade que a justifique. Isto presume uma capacidade de se julgar com retidão, uma sã consciência para auto dirigir-se; presume ainda que o indivíduo assuma a responsabilidade desse seu modo de agir, a qual recai toda sobre quem julga ser justa a sua violência. Como se vê não é fácil estar moralmente autorizado a usá-la quando se trate de um tipo humano naturalmente levado ao abuso por egoísmo. Vê-se, pois, que são muitas as restrições a um reconhecimento da legitimidade no uso da violência.

O problema da legitimidade da violência é de grande atualidade, porque assistimos hoje a um levantamento mundial, nada pacífico, contra o princípio de autoridade em todas as suas formas. Os conceitos acima referidos nos ajudam a compreender o fenômeno. A autoridade, no passado, foi usada com frequência contra a justiça, para manter subordinada algumas classes de indivíduos que hoje se rebelam. Assistimos, assim, a fatos diversos, todos conexos por um fundo comum, como a emancipação da mulher contra a autoridade marital e a supremacia do macho em todos os campos; a rebelião dos pobres reclamando os seus direitos contra os ricos; a vontade de independência dos filhos perante os pais; a intolerância por parte das novas gerações perante os sistemas das velhos gerações. Isto acontece até no campo eclesiástico, outrora modelo de disciplina. Antigamente a mulher, o povo, os jovens, eram mantidos na ignorância, impedidos de conhecer a realidade da vida, zelosamente escondida sob ideais, usados como máscara protetora. Hoje, as mesmas classes que lhe estavam, outrora, — por terem despertado — não suportam mais semelhantes abusos. Trata-se de um movimento mundial que arrasta todos, por cima de todas as divisões e que pode ser considerado uma revolução da própria vida onde a violência parece encontrar guarida na necessidade de progredir. Como se poderia condenar tudo isto quando é necessário a evolução? Quem pode impedir a vida de avançar?

Impõe-se, finalmente, resolver o problema da definitiva eliminação deste mal que é a violência. Que ele as vezes seja necessário não quer dizer que não seja um mal. Como se pode chegar a tal resultado? E um fato que o homem está imerso num mar de violações e reações, mas é também inegável que a vida exerce uma pressão incessante para subtrair-se a essa fatalidade. Por isso, apesar de tão tristes constatações, deveremos, por evolução, alcançar a supressão da violência. Se esta é um produto do AS, isto é, da involução, o remédio consiste na evolução, que a corrige, levando-a para o S. É fatal e onipresente a técnica de desenvolvimento deste fenômeno.

De fato, vemos que o furto pertence à fase involuída da propriedade legitimada por lei; como a escravidão representa a fase involuída do trabalho remunerado; assim a violência é a fase primitiva do direito codificado. A evolução disciplina e organiza a atividade humana, construindo uma ordem sempre mais perfeita da qual a injustiça é cada vez mais eliminada e com ela a necessidade de uma reação que faça justiça. Caminha-se assim em direção a observância da Lei, com o reconhecimento para todos do direito de viver, que num regime anti-Lei é negado e, portanto deve ser exercitado a força, o que pode justificar o uso da violência.

A humanidade está, hoje se aproximando da eliminação deste mal com o reconhecimento daquele direito a vida do qual permitirá a observância em todos os campos. Tende-se assim a exercitar a autoridade cada vez menos em forma egoísta e opressiva como no passado, mas sempre mais em forma protetora e educadora. Eis que a violência não se elimina mediante outra violência que provocaria reação, mas com o civilizar-se, enquadrando-nos todos — dirigentes e dependentes — num regime de ordem e responsabilidade, caracterizado por direitos bem precisos e por deveres efetivamente respeitados. A violência não se pode eliminar a não ser eliminando suas causas, as quais hão de ser vistas — via de regra — no mau uso que os detentores do poder vêm fazendo de sua autoridade, dos meios de vida e das diretrizes sociais em qualquer uma de suas formas, quer econômica, quer política, quer religiosa etc.

Observemos a técnica deste fenômeno. Hoje vivemos numa fase de transição, do velho regime da injustiça ao novo caracterizado pela, instauração da justiça social. Vejamos como era constituído o velho regime. Não existia nele uma definição de direitos e deveres. O princípio sobre o qual se baseava era o seguinte: o direito vai até onde chegam as forças que tem o indivíduo para fazê-lo valer; o dever depende, pelo contrário, de sua fraqueza e se mede pela mesma. No campo bélico internacional é este o sistema que ainda vigora, de tal forma que o direito e sua legitimação são impostos pela força, por parte do vencedor. Então o vencido é julgado um criminoso de guerra, só porque é vencido.

O regime do passado era um regime de força, não de justiça. Mas a vida evolui do primeiro sistema ao segundo. No passado cabiam ao forte todos os direitos justamente porque, enquanto tal, ele sabia fazê-los valer; ao débil cabiam, pelo contrario, todos os deveres, porque não sabia fazer valer seus direitos. Ao reconhecimento dos direitos e deveres de cada um, não se chega senão numa fase mais evoluída. Na fase antecedente, a honestidade era pregada só para paralisar e assim melhor sujeitar o mais fraco.

Era justo então que este se defendesse com a hipocrisia, porque perante o forte, outro meio de defesa ele não tinha. A astúcia então se explica e se justifica como legítima defesa, pois quem a usava se encontrava perante uma injustiça legalizada. E porque a arma do engano usada pelo fraco em sua defesa não deveria ser admitida como o é a arma da força usada do lado oposto? Aos fortes, a força; aos débeis, a astúcia. A vida dá imparcialmente a cada um os seus meios para a sobrevivência, tanto mais que ela igualmente, no segundo caso, alcança a sua finalidade de salvação, quando, para além da superioridade física da força, faz vencer também a força mental da astúcia.

Formou-se, assim, no passado uma moral feita de uma mistura de força e de hipocrisia, isto é, de aparente honestidade sob a qual fervia subterraneamente uma encarniçada luta pela vida. Formara-se deste modo o clássico tipo de pessoa de bem, o respeitável bem-pensante. Havia, desse modo, estabelecido um certo equilíbrio na convivência entre a classe dos patrões e a dos servos, o primeiro esmagado com a força, o segundo enganando com a astúcia, sem que nunca chegassem a uma clara definição ou a uma exata observância dos recíprocos direitos e deveres. Quem se encontra hoje em idade avançada, pode ter conhecido aqueles dois regimes. Hoje a vida, apesar de ser contestação e revolta, busca definições e soluções claras, enquanto antigamente tudo parecia um jardim florido, mesmo se, em substância, não passasse de um campo minado.

Naquelas condições, quando não existiam direitos proporcionalmente à força imposta pelo patrão, o servo podia mentir e roubar. Enquanto o segundo era obrigado a conviver com o primeiro, este devia pagar pelo seu abuso contra a justiça . Assim, naquele nível, a Lei alcança o máximo grau de justiça possível. A convivência de ambos é foçada a concordar, reciprocamente, num mesmo espaço vital. Ainda no passado, não tendo sido alcançada uma consciência dos recíprocos direitos e deveres, não se podia resolver o problema senão com esse equilíbrio entre os dois opostos egoísmos, de um lado o forte e de outro o fraco, cada um lutando com os seus meios. Por este caminho, a solução do conflito não podia ser dada pelo fato de o fraco fazer-se forte, até o ponto de conseguir o reconhecesse seus direitos.

E isto, em substância, o que está acontecendo hoje em dia. Trata-se de um produto da evolução e para se chegar lá era necessária e indispensável uma proporcionada maturação em todos os campos. Esta é a grande revolução de hoje. Eis porque os princípios do passado, como o da autoridade etc. estão em crise. Mas, há de se lutar para que esta reação seja realizada com sentido de justiça e não mediante um abuso em sentido contrário, porque o abuso só consegue dar lugar a uma cadeia de reações do mesmo tipo. A solução se alcança com o equilíbrio, e não com um novo desequilíbrio.

Eis porque o Evangelho condena a violência. Entretanto, quando ela é condenada para outros fins, como o de manter quietas as massas para conservar de pé a injustiça institucionalizada de regimes que violam os direitos fundamentais do homem, então se compreende e se justifica a reação das massas submetidas. Em tal caso a responsabilidade da revolta não cai tanto sobre os revoltosos quanto sobre as classes dominantes, porque são elas que com a sua conduta provocam as reações explosivas do desespero. Logo pode tornar-se legítima, como referimos acima, uma insurreição revolucionaria, quando ela seja contra uma tirania evidente e prolongada.

Eis que o pensamento moderno é orientado de um modo totalmente diverso daquele que vigorava até o mais recente passado, quando o homem se apoderava das melhores posições e depois, para mantê-las, pregava a não violência do Evangelho aos excluídos daquelas posições, das quais eles não tinham sabido empossar-se. Assim a legalidade da ordem estabelecida cobria a injustiça e a revolta tornava-se justiça.

Hoje, este jogo é evidente e por isso não vigora mais. Hoje a vida procede a um nivelamento de direitos e deveres, imparcialmente, porque pretende chegar a organizar toda a massa humana numa única sociedade em que cada qual cumpre a sua função, seja de comando, seja de obediência, conforme as suas respectivas capacidades. Antigamente a vida queria fazer sobreviver o mais forte, eliminando o mais fraco. E naquele nível evolutivo isto era justo. Mas hoje ela tende a deslocar-se para novas posições, e, além de procurar realizar tal seleção, tende a coletivização para alcançar a fase orgânica. Seque-se daí que o nivelamento, que parece supressão dos valores individuais, leva, pelo contrário, ao alcance de um seu maior rendimento, enquanto faz realizar um passo para a frente em direção a unificação.

É certo que se trata de uma revolução e não apenas de um fato superficial. Mas ela implica também um outro deslocamento, na medida em que se realiza com uma técnica menos sanguinária e mais inteligente. Não tende esta de fato à mera substituição de pessoas nas mesmas posições, mas a uma exata definição de direitos e deveres, para se chegar a um estado orgânico unificado. Isto concorda com um outro aspecto da técnica evolutiva, para a qual uma posição mais avançada e mais perfeita, enquanto mais exatamente definida nos particulares, dado que a evolução é ainda um processo de aperfeiçoamento e de maior complexidade do modo de existir.

Ora, quanto mais se avança em direção a tal posição, na qual são reconhecidos os direitos do indivíduo e se vive num regime de justiça, tanto mais a violência se torna verdadeiramente culpa e a Lei de Deus com as suas reações severamente a corrige como toda verdadeira injustiça. Em um regime de ordem, o violador não pode atribuir aos outros suas ações, porque estes observam a lei de justiça para com aqueles que praticam a injustiça. Neste caso, a violência torna-se legitima porque os dirigentes deveriam dar o exemplo de justiça e fazem o contrario.

Então, o que de bom se pode pretender quando a primeira violação vem do alto? Não é possível se praticar a injustiça da opressão para com seus próprios dependentes sem que eles não adquiram o direito de praticar a injustiça da revolta para com seus próprios superiores. No fundo é natural que estes procurem revidar o dano que recebem. Então como podem falar de deveres aqueles que, em primeiro lugar, não cumprem com os seus próprios? E esta falsidade que autoriza a desobediência. Triunfa então o regime do AS, da luta de todos contra todos, no qual é inútil procurar justiça.

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A lei da luta na desordem, própria do nível evolutivo humano que ainda não alcançou a fase da harmonização; é este o estado de fato que torna difícil a eliminação da violência. A evolução que este aguarda é obstaculizada pelo fato de que a humanidade emerge de um regime de injustiça profundamente fixado no seu subconsciente.

Antigamente as revoltas dos subalternos eram todas ilegítimas porque era inconcebível que eles tivessem direitos. Isto produziu um inevitável estado de desconfiança sobretudo por parte dos dependentes em relação aos dirigentes. Não existe colaboração entre os dois extremos, mas um antagonismo dificilmente sanável. Pudemos observar na Europa casos em que o velho instinto de revolta do servo contra o patrão —  voltando a tona — induziu os primeiros a não aceitar propostas para sua vantagem, ofertas feitas por patrões inteligentes. Estes as ofereciam porque tinham compreendido que nos próximos anos ver-se-iam constrangidos a concedê-las à força. Então, antecipando os tempos, tinham decidido oferece-las de sua espontânea vontade, em vista de seu interesse futuro.

A vantagem para eles consistia em assegurar à sua própria indústria um longo período de paz, o que significa uma produção maior e portanto uma utilidade maior, pelo fato de eliminar a dispersão de energias provocada pela luta, associada a greves, vandalismos, sabotagens, escasso rendimento de trabalho, discussões com sindicatos etc. As concessões queriam prevenir tudo isso e os consequentes prejuízos, procurando resolver o problema da violência através da eliminação de suas respectivas causas, para instaurar assim um regime de justiça. É seguindo este exemplo que os dirigentes demonstram ter compreendido o quão mais conveniente é darem prova de justiça e generosidade– concedendo aos seus dirigidos espontaneamente aquilo que eles, conseguiriam, mais tarde, pela força.

Pois bem, nestes casos pudemos observar que os dirigidos recusaram tais ofertas, pacificamente, para eles realmente vantajosas, preferindo palmilhar o método da ofensiva e da sucessiva extorsão pela violência. Isto porque este é o seu instinto, fruto de longa experiência no passado — que os induziu a desconfiar da oferta interpretada à guisa de uma enganosa armadilha. Aquele instinto os leva, pois, a não aceitar, porque eles acreditam que é somente extorquindo com a força que conseguirão algo de verdade. Nem é possível se esperar uma atitude diferente de indivíduos habituados por milênios a desconfiar. Até ontem os servos não sabiam sequer quais eram os seus direitos. Sabiam apenas que o mais forte os tinha todos e o mais fraco nenhum, e que cada uma das suas reclamações era julgada e punida como uma revolta.

Os modernos conceitos de justiça social são recentíssimos para poderem vencer as resistências de todo um passado fixado no inconsciente coletivo Vive-se ainda um regime de desconfiança contra todos porque se esta habituado a ser golpeado pelos fortes e enganado pelos mais astutos. Continua-se, assim, com o sistema da violência por puro desabafo de instinto, mesmo quando ela não é legitimada por nenhuma necessidade. Eis que o passado ensinou ao homem: o que vale é a força, muito mais que a justiça. O vencedor tinha direito a tudo, porque vencedor. Assim o homem tinha qualificado Deus como Onipotente, para o colocar no lugar que lhe parecia de maior valor, o do poder, antes que da justiça. A velha natureza humana ainda sobrevive e impede a formação do espírito de compreensão e colaboração necessário nas modernas grandes organizações econômicas, políticas, sociais, industriais. Estas têm necessidade de resolver os conflitos com o menos tempo e menor dispêndio de energias possível.

Disso advém à necessidade do diálogo inteligente que valorize os interesses comuns evitando o atrito que deteriora e não resolve. Mas, infelizmente, sempre pelo referido instinto de desconfiança e de luta, o diálogo pode resolver-se num engano, pois pode não passar de uma astúcia para imobilizar com palavras e promessas a parte contrária afim de vencê-la melhor. O diálogo presume de ambas as partes certa dose de boa vontade para concordar e cooperar, pois de outro modo não passa de uma enganosa arma de guerra. Explica-se assim como é os jovens contestadores de hoje, que não aceitam mais o dialogo como meio para se entenderem, mas a força. Eis então que a técnica do diálogo ainda não funciona, devido a imaturidade dos dialogantes, levados a usar os velhos métodos de luta para o predomínio individual ou mesmo coletivo. Assim a última palavra decisiva está entregue a luta, prevalecendo a tendência de recair nas posições mais atrasadas da evolução.

Tal tendência involutiva é, contudo, corrigida pelo contínuo esforço ascensional da vida que, pelo contrário, quer evoluir. A vida é utilitária. Segue, por isso, o método da procura da maior vantagem com o mínimo esforço, tendendo sempre mais ao estado orgânico e unitário. E se ela admite a luta é precisamente para fazer com que elementos estranhos possam conhecer-se, e assim juntar-se e cooperar. A guerra é a primeira e mais involuída forma de contato e de diálogo que a vida impõe aos sujeitos separados, para que se avizinhem e se unifiquem. É assim que a evolução, através da guerra, acaba por eliminar a guerra. É assim que nas relações sociais a compreensão que aproxima e unifica tende a substituir-se a luta que isola e divide.

Sabemos que o ponto de partida da evolução é o AS, isto é, o estado caótico separatista e que a meta a que ela tende é o S, isto é, o estado orgânico de ordem e cooperação. Desse modo, quanto mais se desce involutivamente, tanto mais o esforço se consome em atritos de luta e tanto menor é o trabalho produtivo. É assim que no estado involutivo temos esforço máximo e rendimento útil mínimo, enquanto no estado evolutivo temos um esforço mínimo e um rendimento útil máximo. Eis que a vantagem da eliminação da luta e da coordenação dos esforços para colaborar, é avaliável em termos utilitários. É impossível que a inteligência humana não chegue — desenvolvendo-se — a compreender e a aplicar, para sua própria vantagem, uma verdade tão elementar como aquela pela qual o estado de ordem, e a disciplina social que implica, são mais úteis — enquanto menos dispersivos e mais produtivos — mesmo se são, muitas vezes, considerados como uma limitação da liberdade. É por isso que, por se terem experimentado as tristes consequências de um abuso da liberdade, corre-se o risco de uma recaída no regime policial com a esperança de se reconquistar ou de se instaurar, de novo, tal disciplina.

Logo, o fenômeno da supressão da violência encontra-se ao longo do caminho da evolução, cuja função é a de superá-lo e resolvê-lo. E o que se verifica hoje sobretudo nas relações sociais pertencentes ao campo do trabalho, é que aos velhos e cansativos sistemas de luta vão se substituindo outros de maior rendimento. Aos atritos entre patrão e servo substitui-se o método da colaboração entre co-interessados. Quando o operário se torna co-proprietário e o proletário se torna burguês, não é mais necessário abolir a propriedade para alcançar a justiça social. E isto já começa a funcionar nas indústrias dos países mais avançados por obra de especializados em tecnoestrutura. Retrocede a violência e em seu lugar avança a inteligência. Prevalece então, e sempre mais se afirma, o princípio orgânico sobre aquele tradicional do ataque e defesa. Esta é a atual revolução incruenta, a maior conquista que se tenha verificado na história, porque não é apenas substituição de classes, mas de métodos de trabalho. Superando os velhos métodos de luta e renovação violenta, leva a mesma bem mais à frente, ainda que no homem, possam de vez em quando reemergir os velhos instintos agressivos. Pouco a pouco chegamos aos antípodas da escravatura e à opressão substitui-se a coordenação.

Neste novo regime, destinado a prevalecer cada vez mais, os dependentes não serão mais levados a exigir o reconhecimento de seus próprios direitos, pois os dirigentes — como já vimos acima — espontaneamente os concedem, no interesse comum. Isto não tem nada a ver com o tradicional, elástico e egoísta paternalismo bonacheirão, por tratar-se de uma vantagem positiva racionalmente aquilatada e não mais fundamentada sobre interesses de parte. Porém, os dependentes imaturos não estão em condições de compreender e continuam a fazer-se guiar pela desconfiança que os leva a contar somente com aquilo que se pode obter com a força do próprio inimigo, o patrão. Para eles é incompreensível que, neste, possa verificar-se um comportamento de autêntica generosidade e que, de qualquer forma, possa tal conduta redundar em sua própria vantagem. Aliás é bem natural que pareça anacrônico tudo aquilo que antecipa a evolução. Mas é lógico: os métodos de vida da nova civilização do III milênio devem ser deste novo tipo, mesmo se — especialmente nos países atrasados — continuam a parecer um absurdo.

Assim, do velho sistema do muito trabalho, mal pago e mal feito, com produção péssima e mínima, se passará à semana de trabalho sempre mais curta, com melhores salários com produção ótima, de cuja vantagem os operários participarão. Antigamente o problema dos dirigentes consistia em subjugar, hoje consiste em produzir melhor; antigamente se usava a força, hoje a inteligência. Tais são as características do desenvolvimento do fenômeno trabalho.

Antigamente em tudo vigorava o sistema do comando e da obediência, às vezes temperado pelo paternalismo do bom patrão que prodigalizava favores, mas apenas para induzir ao servilismo. Tais relações hipócritas acabaram por converter-se numa atmosfera de clareza em direção à tecnoestrutura. Mesmo que seja isto apenas, no momento, um começo de realização, mas é evidente: esta é a direção que está tomando a evolução. Tende-se, em todos os campos, a planejar, a organizar, a unificar, para dar mais rendimento ao trabalho e melhor segurança à vida. Os indivíduos que galgaram o vértice já palmilham conscientemente este caminho, que sempre mais os afasta do métodos agressivos. Ontem, os superiores usavam a opressão com hipocrisia, de modo a não restar outra alternativa aos subalternos. Hoje, porém a tendência é a de usar métodos claros, com reconhecimento de direitos e deveres que podem resolver todos os problemas econômicos, sem uso de violência.

No futuro, o homem, sem perder a sua individualidade, antes valorizando-a pelo seu rendimento, pensará a funcionar sempre mais organicamente, porque a ordem não é inimiga da liberdade. Num regime sem disciplina posso fazer aquilo que quero mesmo em prejuízo do próximo, mas também os outros podem fazer aquilo que querem, até em meu prejuízo. Eis a cada passo a guerra que me tolhe a liberdade de fazer qualquer coisa. Quando existe uma ordem, sei aquilo que posso fazer e o faço quando quero, em pleno direito e segurança. Nesta condição a ordem me protege, enquanto na liberdade absoluta devo defender-me sozinho. A ordem me dá segurança porque eu, que cumpro o meu dever para com os outros, sei que os outros devem cumpri-lo para comigo. O utilitarismo da vida não pode renunciar a estas vantagens, e a evolução não pode deixar de avançar em direção a um tal melhoramento. Isso não significa basear-se sobre ideologias, mas sobre fatos positivos quais são o utilitarismo da vida e a evolução.

A tarefa da evolução consiste numa progressiva e sempre mais perfeita reordenação do caos. O sistema da guerra é o de assaltar a nação vizinha para roubar-lhe os haveres, mas é punido como furto e assassinato no direito privado dentro dos confins de uma nação. Aquele mesmo sistema, no campo internacional, não só é licito, mas é qualificado como ato heróico que merece as honras da pátria. Como se vê, a amplitude da reordenação do caos chegou à unidade do grupo nacional, mas não a do grupo internacional. Isto prova como a evolução procede por reordenamentos sempre mais vastos e complexos.

Antigamente, a guerra era entre famílias e facções na mesma cidade e entre cidades vizinhas. O processo de unificação era mais atrasado do que nos tempos atuais, nos quais já se formam confederações de Estados e se entrevê a possibilidade de um governo mundial único, em que a guerra será ato criminal punido, como o é hoje no direito privado. Mas para chegar a isto o homem tem necessidade de se conscientizar como elemento de uma coletividade orgânica, meta esta que não alcançou ainda.

Ora, se a guerra ainda subsiste, é porque não deixa de continuar a cumprir uma função útil. Ela serve para romper as barreiras que se erguem como fronteiras entre uma nação e outra, porque o fim da vida é o de unir, até fazer de todos os povos uma só nação. O melhor resultado da última guerra foi a ideia de criar os Estados Unidos da Europa. Também este é um passo ulterior no avanço progressivo da desordem do AS para a ordem do S.

Por enquanto, ainda subsiste a luta de classe. Mas ela serve para a formação de grupos, e com estes a e uma consciência de grupo de dimensões sempre mais vastas. Assim se organizam as massas e as primeiras iniciativas tomadas neste sentido pelos vários socialismos e comunismos se expandem no terreno das democracias, realizando um processo de organização mundial. A ideia de justiça social que antigamente era prerrogativa de um determinado partido extravasa para além dos confins dos grupos que primeiramente a haviam pensado. Assim o princípio pelo qual a assistência ao pobre e a supressão ou a suavização das desigualdades econômicas é um dever, e se expande sempre mais no mundo inteiro inclusive nos regimes capitalistas.

Se as revoluções e as guerras exercem a função de amalgamar os povos e difundir as ideias, as revoluções e as guerras são cada vez menos necessárias hoje, porque a unificação se alcança com outros meios, tais como as facilidades de comunicação entre todos os povos da Terra. Abrem-se assim, sempre mais, as grandes estradas da vida, o que elimina progressivamente a necessidade de recorrer àqueles velhos métodos, baseados na violência. A vida, quando não tem mais necessidade da violência, tende a eliminá-la, porque, para alcançar os seus fins, pode substituí-la por outros meios.

Verifica-se, desse modo, que os métodos outrora indispensáveis para evoluir princípios de conduta antes fundamentais, sejam superados e abandonados. Então, por um processo natural de desenvolvimento, a violência, própria das níveis biológicos mais involuídos, tende a desaparecer. Acontece isso relativamente aos sagrados nacionalismos avaliados antigamente acima dos valores sociais. Começou-se a compreender que as guerras são vencidas somente pelos terceiros que ficam fora da luta. O mundo tende a coligar-se contra os provocadores de brigas considerados como um perigo público. É evidente que o processo evolutivo está pondo em ação uma nova técnica para realizar-se. E é natural que a vida prefira substituir os velhos pelos novos caminhos, porque estes dão melhor rendimento. Logo, os sistemas, antigamente em pleno vigor, tornam-se anacrônicos, porque não funcionam mais em nossos dias e são liquidados juntamente com os indivíduos que os personificam. Eis então que o sujeito que tivesse uma personalidade semelhante à de um grande chefe de outrora, poderia não passar, hoje, de um caso patológico, isto é, de um involuído a ser reeducado.

Antigamente o mundo era impregnado de espírito de domínio. Grande virtude era ser forte e vitorioso. A educação visava acima de tudo a inculcar a obediência, tanto que também a moral era imbuída daquele espírito de domínio inerente ao princípio de autoridade. A classe dos dirigentes procurava exercitá-la para ter todos submissos a ela. Agora todos estes sistemas de vida estão desaparecendo para darem lugar ao mais positivo e eficiente princípio evangélico da não resistência.

Eis que evolução e Evangelho caminham de acordo e convergem para a mesma meta. Vemos assim que o Evangelho visa a enfrentar o mesmo problema biológico que é para nós fundamental: o da luta pela vida. E vemos ainda resolvê-lo porque o enquadra num superior tipo de civilização, no qual a humanidade terá alcançado o estado unitário e orgânico. E é fatal que se deva evoluir até esta nova posição biológica, na qual o Evangelho é de necessária atuação e isto pelas próprias leis da vida.

Os dois métodos de viver: em função do presente ou em função do futuro. A lógica da loucura da Cruz. O evoluído sente a presença da Lei. Quem vence no mundo com a força, perde; e quem paga à Justiça Divina, vence, porque evolui. A função evolutiva da dor, trabalho de purificação e instrumento de salvação. A técnica da redenção.

Iniciamos o capítulo precedente expondo, com respeito ao princípio evangélico da não resistência, dúvidas que ainda não tínhamos dissipado. Em tais casos não existe senão um meio: o de compreender como funciona o fenômeno. Uma primeira observação: se em tal matéria o Evangelho pode parecer um absurdo perante as leis biológicas do planeta vigentes para o homem, não se pode negar a verdade daquele espírito de redenção de que esse Evangelho está perpassado, que assim se afirma como princípio basilar de evolução. Trata-se de purificação de tudo o que está em baixo, de natureza inferior, ascendendo do AS ao S. Isto é um dinamismo sadio, construtivo, vital. Eis que não se pode negar o valor biológico do Evangelho, porque a doutrina da redenção o coloca em posição central, na vida, em pleno acordo com a lei do seu desenvolvimento.

Mas isto não basta para sanar aquelas dúvidas. A primeira vista, não conseguíamos compreender porque o Evangelho quis fazer do homem um derrotado, um vencido; em vez de um vitorioso, um vencedor; dado que, perante as leis de nosso mundo, isto é absurdo, antivital. Eis que devemos explicar a lógica deste modo tão estranho de elevar a virtude o que para a vida é um grave defeito que, de fato, ela pune com duras sanções. Mas por que Cristo nos quer derrotados em vez de vencedores? Tenciona Ele ir contra a vida? Seria, assim, a sua mensagem uma mensagem negativa, de morte? E se Ele quer andar em direção à vida, porque então nos propõe a Cruz? Como eliminar tais contradições?

Procuremos compreender. A vida pode ser entendida de duas maneiras e ser assim dirigida para duas diversas finalidades: ou vivemos para realizar-nos imediatamente na Terra tais quais somos, conforme nossos próprios instintos; ou então para alcançar amanha — através do superamento desses instintos — um outro tipo de vida, num plano evolutivo mais alto. O primeiro caso é o do involuído que na sua ignorância  não vê outra coisa senão os limites do AS do qual não pensa sair, nele se debatendo a procura de felicidade. O segundo caso é o do evoluído que entrevê, para além aos confins do AS, o S, do qual procura aproximar-se, lutando e sofrendo para alcançar nele uma verdadeira felicidade. Todos igualmente a procuram, mas em planos e modos diversos. Mas, por ser a meta de todo o caminho evolutivo, ela está longe em ambos os casos. A realidade presente não a pode conter porque esta é feita de AS onde só há lugar para a infelicidade. Em ambos os casos prevalece a dor. Com efeito, quanto ao involuído, o que ele recolhe é desilusão e insatisfação, e quanto ao evoluído, seu programa de vida não pode ser senão renúncia e esforço de conquista, ou seja, exatamente o programa da Cruz, realizado por Cristo. Em ambos os casos é natural e insuprimível a presença da dor, porque a posição atual e consequência do emborcamento do S no AS, isto é, da felicidade na dor.

Pois bem, tratando-se de dois modos de viver que estão nos antípodas, um do outro, porque próprios de dois opostos — o AS e o S — é lógico que o segundo pareça absurdo para quem segue o primeiro. E parece-lhe tal porque, como involuído fechado no AS, não construiu ainda os olhos necessários para ver aquilo que o evoluído vê, estando no S. E pelo fato de este ver, que para ele resulte lógico o que para o outro, que não vê, resulta absurdo. Assim se explica como a doutrina do Evangelho encarada por quem pertence a este mundo parece um absurdo. Pois, quem está evolutivamente em baixo não sabe ainda conceber a presença do S e o valor do esforço para chegar até lá. Este detesta as vias do superamento, enquanto o evoluído deseja percorrê-las. Com efeito, no AS são as próprias leis involuídas de tipo animal, ali vigentes, que amarram o ser, fechando-lhe os caminhos de superamento que são bem mais estreitos quando se está em baixo e que tanto mais se abrem à medida que se sobe de nível evolutivo.

A grande diferença, entre o modo de viver do mundo e o tão diverso proposto por Cristo, está no fato de que o primeiro é de tipo AS e o segundo de tipo S, mesmo porque o S está longe e se trata, logicamente, de uma tentativa para avizinharmo-nos da realização deste novo modo de viver. Entre os dois métodos existe a mesma oposição que distingue o positivo do negativo. Pela própria oposição desses dois métodos, é fácil imaginar que contraste pode nascer quando eles se defrontam, isto é, quando alguém se propõe a viver o Evangelho neste mundo. Isto redunda então numa verdadeira loucura. Mas agora que desvendamos este mistério, bem podemos compreender como por parte de uma mente, logicamente desperta, possa a loucura da Cruz ser encarada como sublime sabedoria.

É evidente que o homem do mundo não pode compreender esta estranha psicologia que aponta para realizações longínquas. Entretanto, se é verdade que a vida evolui, estas outras metas a alcançar representam um fato positivo, como tal é a necessidade da dolorosa fadiga da evolução para chegar até elas. É, pois, bem lógico que tudo isto venha a ser levado em conta, logo que se alcance um estado de consciência que nos permita compreender. Trata-se, aqui, então, de desenvolvimento mental, sendo que só para quem o alcançou é compreensível a filosofia da Cruz. Assim, para quem compreende isso, resulta evidente a diferença de amplitude visual entre os dois pontos de vista, sendo o primeiro dirigido a pequenos escopos imediatos, e o segundo visando metas de vastidão cósmica, podendo-se disto inferir quão alto grau de consciência seja necessário para que se possa optar pelo modo de viver proposto por Cristo.

Como é, visto o mundo pelo o evoluído, que alcançou este estado de consciência, a ponto de ser capaz de compreender e viver o Evangelho? Exatamente por esta sua aproximação evolutiva do S, que se tornou o principal objetivo da sua vida, ele começa a sentir a presença viva da Lei, que vigora nele e em tudo que o circunda. Esta sua sensação se faz sempre mais forte e evidente à medida que ele evolve. Esta é a visão do S, da qual ela se aproxima. Isto é natural consequência do contínuo avanço de sua posição biológica, que o evoluído vai cada vez mais realizando, mudando “pari passu” o modo como ele concebe a vida. Seus pontos de referencia são outros. É natural que ela seja sentida e vivida de modo diferente, quando é vista sob posições evolutivas diversas.

Quem sente a Lei vê aspectos da vida ignorados por quem não a sente. Vê-se então que, quanto mais se sobe nos planos mais avançados em direção ao S, tanto mais o mundo é dirigido por outras leis que não coincidem com as vigentes no plano biológico humano. A medida em que construímos os olhos que nos permitam enxergar as profundezas do fenômeno, mais claramente perceberemos que quanto mais evolvemos tanto mais a existência se nos revela dirigida por leis amigas e justas, e não mais pelos caminhos da rivalidade e da força que imperam em nosso mundo. Cada plano biológico tem as suas leis. Para o evoluído não mais vigoram as leis da força, mas as da justiça. Por isso o Evangelho torna-se para este realizável. Com a evolução o homem se civiliza e a sociedade passa do estado caótico ao estado orgânico. Então a virtude da força   útil naquele primeiro estado é encarada agora como anarquia e a vida a substitui pela virtude evangélica da justiça conforme a Lei. Muda, assim, toda a técnica da luta pela sobrevivência, confiada a novas forças que atuam com outros métodos.

O evoluído, portanto, adquire consciência da presença de tais leis amigas e justas e, agindo de acordo com elas, alcança bem outros resultados. Por isso, sua vida não se estriba mais — como no AS — pelo princípio da imposição, mas — como no S — pelo princípio da Justiça. Acima nos havíamos perguntado o motivo pelo qual o Evangelho parecia querer-nos colocar numa posição absolutamente anti-vital de fracassados que se entregam, em lugar de triunfadores que vencem. Agora podemos responder. O Evangelho faz isto porque nos coloca perante posições da lei mais avançadas em relação as próprias do homem primitivo. Nesta nova fase a. lei é feita de justiça, perante a qual se verifica o contrário daquilo que se verificava antes perante a força. Se no regime de injustiça os assaltantes vencem e os assaltados e derrotados perdem, num regime de justiça os assaltantes vencedores contraem um débito a pagar, enquanto os derrotados sabem que estão pagando suas dívidas Num regime de justiça o jogo do vencedor e do vencido se inverte. Deste novo ângulo o primeiro é um criminoso a castigar e o segundo uma vítima que se sacrifica Então, como é natural porque se passa do AS ao S, se invertem as posições e quem vence perde e quem perde vence. Enquanto se esta no reino da força vencem os fortes e perdem os débeis, mas quando se entra no reino da justiça perdem os prepotentes e vencem os justos.

Desse modo , quando o indivíduo julga ter vencido por se ter imposto e ter satisfeito seus instintos, ele perdeu com isso, porque em vez de progredir retrocedeu. E quando este fica desiludido e acredita ter perdido porque não conseguiu impor-se e satisfazer os seus instintos, na realidade ele venceu porque progrediu na evolução, afastando-se do seu velho modo de viver.

Eis em que se baseia o princípio da redenção, racionalmente enquadrado no máximo fenômeno da existência, que é a evolução. Redenção significa pagamento à  justiça da Lei por meio da dor a que e reservada a função purificadora dos nossos contínuos erros, dos quais é necessário libertar-nos para ascender. Eis porque estão ligadas entre si as ideias de Cristo, redenção e dor Eis que Cristo se fez crucificar para mostrar-nos o caminho da redenção! Não se trata de uma irracional exaltação da dor, mas de uma real função evolutiva e, porque evolutiva, fundamental para a vida e seu desenvolvimento. Pode-se chegar a tal conclusão só depois de ter compreendido toda a estrutura e a técnica funcional do fenômeno da vida. A posição do ser no S é de felicidade. Então é natural que a sua posição nos antípodas do AS — seja de dor. E é natural também que para poder retornar ao estado de positividade (felicidade) do S, seja necessário reabsorver toda a negatividade (dor) do AS, através do trabalho de evolução.

Chega-se , desse modo, ao conceito de dor como instrumento de redenção, isto é, de um mal que pode ser utilizado como meio de salvação. Tudo isto conforme a lógica da evolução. Trata-se de uma dor consciente, purificadora, o que esta bem longe da aberrante procura medieval da dor-pela-dor, reduzida a sadismo ou masoquismo improdutivos, o que é perversão e não redenção. É doentia a ideia de querer fazer de todos uns pecadores que —  porque tais por nascimento — estariam condenados à penitência, quando o objetivo da vida não é expiar mas subir. Assim sendo, o expiar não é mais admitido em sentido negativo, mas só no sentido positivo da ascensão.

O nosso não é, pois, o conceito de uma dor que embrutece, mas de uma dor que eleva e que é, por isso, sadia, dinâmica, criadora. E é este o conceito que Cristo nos proporciona, enquanto conjuga a idéia da cruz com a da ressurreição. E neste sentido que Cristo é mestre de redenção, embora por meio da dor. Cristo nos mostra a Cruz e aceita a morte, mas para ir em direção a uma vida mais alta e mais plena. A dor para Cristo é um meio para chegar a felicidade. Toda a evolução é esforço de ascensão, é trabalho de purificação e, por isso, é feita fundamentalmente de dor, sem a qual ela não se realizaria. Mesmo quando Cristo se coloca contra o mundo, isto Ele faz com um fim de superação. E a redenção é feita de ascensão, purificação, maturação, superação, exatamente porque ela é um fenômeno evolutivo.

Para encerrar o assunto, não podemos deixar de observar o que se realiza percorrendo este caminho. Poderemos ver como funciona a técnica da redenção. Tudo avança por graus. No final de cada fase, de cada esforço de superação é alcançado um estádio mais avançado de iluminação. Ele é dado pelo progressivo evolver que nos avizinha do S. Só depois de ter percorrido um dado trajeto, compreende-se o que se conquistou, e quando, então, se abandona aquela zona de negatividade, em que não se enxerga, para ingressar numa zona de positividade, na qual tudo é percebido com clareza.

Isto se verifica com cada setor de nossa personalidade ou com o campo de forças que a constitui. A redenção não é instantânea, súbita, global, genérica e indiscriminada, mas gradual, parcial, especifica e analítica. Este é o seu método. Antes de mais nada, a lei não nos faz teorias, nem se perde em dissertações para explicar- os a sua técnica operativa. Ela se exprime com fatos e nos corrige bloqueando-nos e golpeando-nos no ponto fraco. Ela se faz compreender fazendo-nos sofrer, isto é, fechando-nos as portas à livre expansão das qualidades inferiores e simultaneamente abrindo-nos as portas à explicação das qualidades superiores. Sufocação na parte baixa, expansão na parte alta.

Para cada qualidade da sua personalidade o indivíduo é submetido a este processo de sublimação, o que significa um doloroso esforço de superação, constituído por uma destruição em baixo e por uma reconstrução em cima. Cada uma destas qualidades da personalidade é constituída por um feixe de forças movidas segundo uma sua dada trajetória. O esforço da evolução consiste em corrigir esta trajetória, imprimindo-lhe uma outra direção, mais consoante com os princípios do Sistema, e que mais se distancia dos princípios do AS. Tal correção se realiza qualidade por qualidade e respectivas trajetórias, até que elas tenham sido todas corrigidas, Isto é, transformadas do seu tipo originário de AS ao de S, resolutivo da evolução.

Com que técnica se realiza tal correção? Ela é automática e fatal. O bem e o mal que se abatem em cima de nós dependem da estrutura de nossa personalidade, isto é, do tipo de forças que ela contém e daquelas que por conseguinte no seu ambiente ela coloca em movimento, determinando assim a atmosfera em que vivemos. Eis que a primeira causa de tudo quanto acontece conosco está dentro de nós. Desse modo, se o indivíduo for constituído de forças negativas, a sua ação será em qualquer parte destrutiva e seja onde for que ele toque, mesmo na coisa mais preciosa, que para ele se transformara em dano. E se estiver constituído de forças positivas a sua ação será de todo construtiva e seja qual for a coisa que ele toque, mesmo a mais danosa, tudo tenderá a sarar, tornando-se útil.

Eis como tudo isto acontece. Uma personalidade é um feixe de forças lançado numa dada direção. Temos assim um impulso dirigido conforme uma trajetória já assinalada, segundo um caminho obrigatório que deverá atravessar campos de forças de tipo similar, porque por elas as forças da personalidade são atraídas por afinidade, e porque estas por sua vez encontram nesses campos elementos semelhantes a atrair. Assim que a mesma personalidade acaba por construir em redor de si um ambiente congenial a sua natureza, o qual será de bem ou de mal, ou ao seu tipo, seja de bem, seja de mal.

Portanto, a primeira raiz do mal ou do bem esta dentro de nós, trazendo cada qual o seu destino dentro de si, em sua natureza. Assim sendo, pertencendo o involuído à  negatividade do AS, é fatal que, com tal tipo de personalidade e campos de forças, atraia sobre si a dor incumbida pela providência da Lei a cumprir a função corretiva daquela natureza de tipo AS. Destarte, não pode o mesmo viver senão num regime de correção, o que significa dor, mas exercendo a função de sanear aquele mal, levando para a felicidade do S. Esta é a técnica salvadora que a Lei fatalmente impõe para libertar-nos do mal e conduzir-nos ao bem.

Com esta técnica corretiva, não somos punidos por sermos culpados ou por estarmos fora do lugar. Serve a mesma para possibilitar a cada um cursar a sua escola e receber a lição que lhe cabe e que lhe é necessária para evoluir. Cada um está no seu justo lugar cumprindo o trabalho evolutivo que é proporcionado ao seu nível. Cada um realiza as experiências do tipo que é útil para a sua evolução, o santo como santo, o delinquente como delinquente, partindo cada qual de seus próprios impulsos para chegar a seus resultados respectivos.

Todos devem experimentar. Não se vive para evolver? E então, se e este o escopo da vida, não é justo que cada um deva viver as experiências que servem ao mesmo fim? E por isso que cada um deve fazer o tipo de experiências que correspondem a sua natureza e que servem para a sua evolução. E é justamente a isso que conduz a técnica de redenção que aqui estamos observando.

Se, como acabamos de dizer, o bem e o mal que nos atingem dependem da estrutura de nossa personalidade, então cada indivíduo recebe automaticamente as provações mais adequadas a fazer com que cada um possa corrigir-se e envolver.

Pois bem, dizíamos acima que tal correção acontece progressivamente, qualidade por qualidade. Quando a Lei – por meio de provas corretivas – alcança o endireitamento de uma trajetória errada, a fadiga da evolução cessa naquele campo de forças e o resultado fica definitivamente adquirido. Começa então o trabalho em outro setor ainda atrasado, de tipo AS. O instinto se move nesta direção, sendo que a ignorância das consequências, devido à inexperiência de quem ainda não passou por elas, impele à satisfação daquele instinto, fazendo o indivíduo se lançar atrás de sua miragem. Movendo-se ele em direção ao AS, ou seja, anti-Lei, a insatisfação final e a desilusão são inevitáveis. Tratando-se de movimentos em sentido negativo, às avessas, eles não podem conduzir à alegria, mas apenas à dor. A Lei permite que a miragem convide ao erro, porque o ato de errar serve para o indivíduo aprender e assim corrigir-se, melhorar e, finalmente, salvar-se. Esta é a vontade da Lei. Chega- se, deste modo, ao choque contra a realidade, por meio do qual o indivíduo sofre, enxerga, compreende e se corrige, alcançando aí seu objetivo.

Terminada a experiência nesse setor ou qualidades ou campo de forças da personalidade, continua esta em outro campo ainda não experimentado. Assim a exploração e correção vão se estendendo sempre mais, de tal forma que, quando tiverem sido explorados e corrigidos todos os campos de forças da personalidade, o indivíduo ter-se-á transformado a ponto de poder sair do AS e reentrar no S. Naquele momento o processo evolutivo terá sido cumprido. Então, houve um conjunto de correntes de pensamento ou feixes de forças ou qualidades de tipo AS, cujas trajetórias negativas de tipo anti-Lei coube a evolução corrigir em trajetórias positivas de tipo Lei ou Sistema.

É nisso que consiste a técnica da redenção. Quando nos tivermos corrigidos —  por dolorosa experiência — de um dado defeito, filho da ignorância num determinado campo, e, dentro dos limites deste, aquela ignorância tiver desaparecido, passa-se, então, a errar em outro setor da vida, no qual somos ainda ignorantes. Depois de ter quitado o novo débito, acabamos por redimir-nos de novo, e assim sucessivamente, até que se tenha vasculhado toda a nossa personalidade e corrigido todas as suas qualidades negativas de tipo AS. Chega-se, desse modo, a ultima crucificação, depois ressurgiremos como Cristo para reingressarmos, salvos e redimidos no S.

A crucificação de Cristo mostra-nos o mais alto momento desta técnica de recuperação. Esta última fase da evolução é espontânea. Dá-se, portanto este fato que: quanto mais estamos atrasados na evolução, tanto mais esta nos é imposta à  força pela Lei como é indispensável para a nossa evolução, enquanto seres que somos, por ignorância  incapazes de auto dirigir-nos E quanto mais avançamos na evolução tanto mais o esforço e as dores necessárias as para realizá-las são aceitos livremente. Com efeito, quem é consciente da Lei sabe quanto é vantajoso segui-la. Passa-se, deste modo, de uma dor tenebrosa, infernal e maldita, como é a de Satanás, para uma dor luminosa, santa e bendita como foi a de Cristo. Vê-se, então, que juntamente com a evolução se transforma o seu instrumento: a dor. De fato a dor de Cristo na cruz não é mais uma amarga e raivosa derrota como no AS, mas é o glorioso e feliz triunfo do regresso ao S.

Como se aproximar desta última fase, o indivíduo converte-se num consciente colaborador da Lei no trabalho da correção de seus próprios defeitos e atitudes anti-Lei. Quem vê a Lei não pode deixar de compreender sua vantagem em colaborar com ela. Só então o indivíduo consegue compreender quanto seja útil para ele aceitar a escola da Lei. Assim aquele trabalho torna-se mais fácil, menos fatigante e doloroso. Então, como fez Cristo, é o próprio indivíduo que se oferece em holocausto a justiça da Lei, porque ele sabe que, pagando-lhe o que lhe deve, se liberta e se salva. É assim que podemos entender a razão pela qual Cristo abraça a Cruz.

Vê-se, dessa forma, claramente como Ele se encontra nos antípodas do homem do AS, o qual resiste a correção e persiste no erro, recusando-se a mudar de caminho, sujeito, portanto, as suas consequências. E deve-se ao fato de se encontrarem em posições opostas, que o homem decidido a ficar no AS não esta em condições de compreender a verdadeira finalidade e o verdadeiro significado da paixão de Cristo.