A Paixão almejada, por que? Uma conta a pagar à justiça do Pai. O regresso do ser a Deus. A recusa de Cristo de ser rei. Judas, Anás, Caifás, o Sinédrio, Herodes, Pilatos, a multidão, Barrabás, Cristo. A morte.

Observemos mais de perto o comportamento de Cristo para melhor compreender o significado da Sua paixão. Parece que Ele se tenha querido expor a todo o custo, porque enquanto provocava a ira dos seus inimigos, dizendo-lhes sem rodeios as mais escaldantes verdades, depois de ter, dessa forma, desencadeado a guerra, não preparou nada para levá-la avante, ou pelo menos, defender-se. Com isto Cristo nos fez ver quanto seja perigoso na Terra dizer a verdade, quando, depois de termo-nos engajados na batalha, não permaneçamos suficientemente armados para sustentá-la e vencê-la. Dizer a verdade, então, é um luxo reservado aos fortes e negado aos fracos. E Cristo, depois de se ter colocado em posição tão perigosa, abandonou-se nas mãos dos seus inimigos, que outra coisa não desejavam para assim liquidá-lo. Aparentemente, de duas coisas uma: ou Cristo não conhecia as leis biológicas do nível evolutivo humano que são de luta para um sobrepujamento recíproco, ou, então, queria dissuadir-nos de dizer a verdade, mostrando-nos com o seu exemplo quanto o dizê-lo em tal ambiente seja perigoso e como, portanto, seja mais aconselhável calar-se ou mentir, o fato é que Cristo desafiou as leis da vida de nosso plano e estas O mataram.

Todavia, estas duas hipóteses — a primeira baseada na ignorância  e a segunda na falta de senso moral — não se sustentam enquanto evidentemente inconciliáveis com a figura do Cristo. Poder-se-ia apresentar, ainda, uma terceira hipótese: que Ele fosse movido por uma firme vontade de suicídio. Sem dúvida, vê-se de sua conduta que ele agira em plena consciência e completa liberdade de escolha. Ele bem conhecia a aflição que o esperava; entretanto, nada fez para evitá-la. Perante Pilatos Ele se calou. Acusado, Ele não se defendeu enquanto, antecedentemente, com a sua decidida conduta provocara a Sua condenação. Com efeito, entregou-se sem reagir aos soldados que o prenderam e proibiu a Pedro de defendê-Lo. Estes fatos pareceriam confirmar uma vontade de suicídio, deduzível do fato de ter assumido posições que Ele sabia perigosíssimas. Entretanto, poder-se-ia dizer que Cristo atirou sobre Si mesmo o Seu martírio, quase o tenha procurado, e tenha sido Ele próprio o primeiro a querê-lo.

Então, se Cristo o quis, isto significa que aquele martírio tinha sido para Ele uma importância decisiva que o justifica, anulando assim a hipótese do suicídio. Ele não aceitou passivamente, mas escolheu aquele caminho. Por que? Não se pode dizer que Ele fosse um fraco e que os fortes e os malvados se tenham disso aproveitado para fazer Dele uma vítima. Ele os desafiou frontalmente com a coragem desmascarando-os abertamente. E, quando foi acusado não se pode dizer que Ele não teria sabido defender-se, desde que o quisesse. Ele teria podido ser Rei do seu povo, ou libertador político. Tudo parecia conspirar em Seu apoio neste sentido, pois as multidões O seguiam e O aclamavam. Mas Ele escolheu, pelo contrário, uma coroa de espinhos, entrelaçada de insultos e de aflição. O que significa tal loucura? Ou melhor, como podia ser louco um homem que deu provas de tanta sapiência?

Cristo, completamente rebelde à vontade do mundo, constantemente se refere, a vontade do Pai e a esta se submete com extrema decisão. Deste lado havia algo a que o Cristo estava vinculado e que o impelia para a cruz. Era este o impulso, que o empurrava para aquela direção? Ele não era um inconsciente, ignaro do fim ao qual ia sendo levado, e, no entanto, não parava. Há na conduta de Cristo algo misterioso, um motivo recôndito que devemos descobrir e que não é daqueles comuns, pelos quais são movidos os homens, devemos descobrir.

A primeira coisa que salta aos olhos de um atento observador de Cristo-homem é a sua coragem viril, sua revolucionária potência inovadora, sua capacidade de arrastar as massas. Ele se comporta como Rei que, consciente das consequências, desafia os poderosos desse nível, tanto no campo religioso como no político e deve como Rei ser tratado mesmo quando se faça isso pelo avesso, com uma coroa de espinhos e sobre a cruz com os dizeres: "Rei dos Judeus". Até Satanás o trata como Rei, oferecendo-lhe um Reino e Cristo o repele como tentador.

Cristo não se deixa levar até a paixão por inércia. Ele não é dominado pelas circunstâncias adversas, parece, pelo contrário, que as conheça e as secunda como se soubesse que o assalto das forças do mal, o leva a realização de seus próprios uns. Cristo obedece ao Pai, mas nisso é como se comandasse, porque obedece a si mesmo, pelo fato de que a sua vontade coincide com a do Pai. Os poderosos da Terra que querem matar o Cristo ficam assim logrados por um mal-entendido, porque em vez de fazerem seu próprio jogo, acabam por fazer o de seu inimigo, Cristo, que os utiliza assim para alcançar seus próprios escopos, para eles totalmente desconhecidos. Temos aqui um exemplo da utilização das forças do mal postas a serviço das forças do bem: trata-se aqui, de um caso cuja negatividade acaba se tornando um instrumento das forças positivas no seu trabalho de reconstrução.

Postos, então, de lado os sujeitos humanos que contribuíram — quais pobres inconscientes —para o desenrolar-se de forças por eles desconhecidas da paixão de Cristo, não resta como causa de tudo senão a vontade do Pai, da qual Cristo havia feito Sua própria vontade. O Pai não O obriga de modo nenhum, mas é Cristo que tem consciência da necessidade de obedecer-Lhe. É o próprio Cristo que perante a ordem estabelecida pela Lei, reconhece a absoluta necessidade de Seu sacrifício e o cumpre com conhecimento de causa. Assim: de um lado, permanece firme um princípio de ordem, do outro emerge a necessidade de um sacrifício. Havia, pois, uma conta entre os dois, e Cristo devia pagá-la à justiça do Pai. Era, então, esta que exigia tal pagamento e cumpria ao Cristo efetuá-lo, cônscio de Seu dever?

Qual era então a dívida que Cristo devia pagar à Lei? Diz-se que sejam os pecados dos homens que Cristo endossava, deixando só a eles a tarefa de cometê-los. Mas se o pagamento de Cristo era efetuado para cumprir um ato de justiça perante a Lei, como é possível que o mesmo redundasse num ato de injustiça qual o de pagar, com seu próprio sofrimento, as culpas dos outros? Assim sendo, o Pai por aquele Seu princípio de justiça deveria ter exigido o pagamento por parte dos homens, porque as culpas eram deles e não de Cristo. Como, ao contrário, exatamente para aplicar o Seu princípio de justiça, o Pai exigiria que aquelas culpas fossem pagas por um outro que é um inocente? Como pode Deus contradizer-se até este ponto? Num regime de ordem não é lícito nem ao amor sobrepor-se à justiça para violar aquela ordem. Em tal caso não se trata mais de amor, mas de anarquia, rebelião e desordem, de tipo AS.

Uma tentativa de salvar Cristo do martírio não vem do Pai que até chega ao ponto de o abandonar no momento do martírio quando estava na cruz. Uma tentativa dessas não vem do Pai, amigo, mas de Satanás inimigo. E Cristo repele aquela tentativa à guisa de uma tentação. O que significa este fato, que só as forças do mal se preocupam por salvar Cristo do martírio? Significa que aquela era uma salvação falsa enquanto a verdadeira consistia na cruz. E Cristo responde: "Queres que eu não beba o cálice que o Pai me reservou?" Assim, Satanás, o inimigo, propunha-lhe evitar o martírio que o Pai, o amigo, lhe oferecia. Portanto a salvação de Cristo estava na paixão.

Aquela paixão significa um choque entre S e AS, entre a positividade do primeiro (Deus), que quer superar e vencer a negatividade do segundo (anti-Deus). Mas o choque se dá em pleno AS, isto e, a nível de negatividade, lá onde esta é forte, bem plantada em sua própria casa. Isto explica porque a paixão de Cristo no plano humano, isto é, a nível de AS, foi massacre bestial. E ainda se explica como, logo depois de termos saído do campo de negatividade do AS para ingressar no de positividade do S, aquela mesma paixão se torna gloriosa apoteose. A paixão de Cristo é, então, devida a um último assalto do AS contra um elemento que lhe foge para reingressar no S, ao mesmo tempo em que constitui a libertação deste ser em relação ao AS, assim como o seu triunfo no S. E esta a razão da estraciante crucificação, assim como da glória da ressurreição. A primeira representa o método próprio do AS que se acirra contra o homem que está para retornar purificado ao seio de Deus. Mas a zona de domínio do AS está delimitada e logo que Cristo lhe ultrapasse os confins, aquele AS perde todo o poder sobre Ele. Neste momento Cristo volta a ser cidadão do S, como ser de um universo de outro tipo.

A paixão de Cristo nos mostra o maior fenômeno da existência que tenha sido experimentalmente vivido: o da superação evolutiva do AS e da evasão do mesmo para reingressar, vitorioso, no S. O fenômeno é bilateral, pois interessa simultaneamente ao AS e ao S, enquanto se realiza, ao negativo no primeiro e ao positivo no segundo. Cristo alcançava uma posição de avançadíssimo nível biológico, que nós todos deveremos atingir. Assim ele nos pôde mostrar a técnica de realização da passagem dos mais altos planos do AS para o S. Eis qual é o significado da paixão de Cristo: o do retorno do ser a Deus, depois de ter percorrido todo o ciclo involução-evolução. Com tal perspectiva, podia o Cristo recusar-se à paixão, quando sabia que com ela caminhava não para a morte, mas a uma vida bem mais esplendorosa?

Então Cristo é um elemento de nosso tipo AS, mas tão avançado no caminho que todos percorremos, a ponto de superar o nosso mundo e poder assim reingressar no S. Com isso Ele nos mostra aquilo que todos nós, cedo ou mais tarde, deveremos fazer. Daí o valor do seu exemplo, por ser o de um indivíduo situado nas nossas mesmas condições, que todavia realiza uma passagem normal em posição de perfeito enquadramento dentro da ordem da Lei. Isto não é mito, e sim realidade. Daí o seu valor positivo. Provavelmente Cristo tenha feito parte de uma humanidade tão evoluída a ponto de estar próximo do S, e dela descera à nossa humanidade involuída para sujeitar-se a uma prova purificadora muito mais feroz de quanto não comportasse Sua demasiadamente elevada humanidade

Talvez a culpa que Cristo tinha de pagar, consistisse no fato de ter exercido um grande poder nessa outra humanidade, mas em sentido egoísta, de tal modo a ter de repelir, com terror, qualquer soberania de tipo AS para usar todas as suas forças em sentido altruísta. Assim se explicam as humilhações a que ele foi submetido quando de Sua paixão: Sua paciência em suportá-las e seu espírito de sacrifício, oferecendo-se qual cordeiro expiatório para pagar as culpas dos outros, o que Lhe conferiu a qualificação de Redentor. Ora é evidente que a um indivíduo que se oferece como cordeiro, num mundo como o nosso baseado sobre um princípio de luta, não possa ter outra sorte senão a de ser liquidado. Num ambiente em que é lei que quem vale é o forte que sabe vencer o mais fraco, não pode ocorrer outra coisa.

Cristo, com o seu método da não-resistência e amor para com o próximo se rebela contra tal mundo e pretende revirá-lo, ou melhor endireitá-lo em forma de S. Então o AS reage e emborca o Cristo Rei, crucificando-O como um malfeitor. O povo, pelo contrário, queria um Rei terreno, prepotente e dominador, de tipo AS. E nada faltava para que isso pudesse verificar-se. Bem poderia isso ter-se realizado no dia do ingresso triunfal de Cristo em Jerusalém, quando Ele estava no meio da multidão que o aclamava. Mas Ele recusou-se a ser um Messias nacional de tipo político, preferindo ser um Messias universal de tipo espiritual. O reino que Ele queria realizar não era deste mundo. Então o povo, quando se viu desiludido repeliu Cristo que pouco antes havia aclamado. Também Satanás oferece a Cristo o seu reino e mas Cristo não o aceitou.

Tínhamos aqui duas vontades e dois tipos de domínio opostos e Cristo estava no meio da luta, entre ambos, entre o AS que queria vencer o S, e o S que queria vencer o AS. Compreende-se, daí, o alcance apocalíptico do ato de Cristo. Seu exemplo nos transfere de relance dentro do maior fenômeno do universo —  o da evolução — para ensinar-nos que o verdadeiro escopo da vida não consiste em gozar dos frutos do AS a não ser como um meio para alcançar sua verdadeira meta, que equivale a fugir daquele AS, mediante uma contra-revolta que se endireita no S. Cristo quis imprimir um sentido escatológico à  fadiga de enfrentar a labuta de nosso caminho evolutivo no tempo, apontando-nos um outro e bem mais alto aspecto da vida e um seu mais profundo significado, consistente na supremacia do espirito sobre a matéria, proposta como ressurreição final do existir.

De tudo isto o mundo de então nada compreendeu. Este viu em Cristo um Rei vencido e como tal o desprezou. Cristo, personificando o ideal do S, emborcava o modelo do AS. Entre os cálculos que o mundo fazia para os seus interesses e o grande discurso que Cristo entabulava com o Pai, não havia ponte de comunicação, nem possibilidade de entendimento. De um lado as paixões humanas, de outro a Lei. O jogo é entre estas duas psicologias demasiado diversas. Cada qual age a seu modo, com sua respectiva forma mental. Neste choque entre AS e S vemos os dois métodos, um ao lado do outro, que se mostram mais evidentes no momento da transição do AS ao S, que se verifica na hora da paixão de Cristo. São dois mundos, dois modos de existir que naquele momento se tocam. Astúcia, mentira, prepotência, injustiça, ignorância e ferocidade de um lado; sinceridade retilínea, bondade, justiça, sabedoria, amor, do outro lado. Naquela hora da paixão pôde-se ver como age o cidadão do AS e o que o homem é capaz de fazer.

Poderia, porventura se imaginar mais cruel maltrato para um justo? Atraiçoado com um beijo, vendido ao preço de um escravo, tratado como malfeitor, abandonado pelos discípulos, insultado, torturado, morto, tudo isso por ter pregado bondade e justiça e não ter praticado senão o bem. Vê-se nisto a volúpia do AS, de destruir tudo o que é S, sobretudo quando este ousa penetrar no seu Reino. O AS acirrou-se contra Cristo com pressa febril, porque sabia que os momentos em que a vítima deveria ficar prisioneira no campo do AS, estavam contados, depois dos quais a mesma ter-lhe-ia escapado para sempre. Mas mesmo Cristo o sabe e permite que as forças do mal desabafem e cumpram a sua função purificadora, para que em tudo se realize a vontade da Lei. Tudo é previsto, pré-ordenado, medido. Assim o AS permanece sempre servo do S, encarregado de cumprir a função que o S lhe faz executar e não mais. Pobre AS! Construído de cabeça para baixo, não pode funcionar senão para obter resultados opostos aos que desejaria. E o emborcamento de que ele nasceu o constrangera a agir em tal sentido, até ser destruído pelas suas próprias mãos, para maior glória de Deus.

Com o enforcamento de Judas o AS nos faz ver como ele recompensa os seus sequazes. Os métodos do AS se revelam no modo de comportar-se do Sumo Sacerdote Caifás, do sogro Anás, do Sinédrio, de Pilatos, da multidão dos Saduceus e dos Fariseus que assistem ao julgamento, de Herodes etc. Mas, perante este bando de indignos, com quanta evidência o comportamento de Cristo em cada momento de Sua passagem sobre a Terra dá testemunho com a palavra e com a ação — dos métodos que caracterizam o SI Todavia, que podiam entender aqueles homens? Assim Cristo foi tratado como um louco. E quando ele explicou a Pilatos que o seu Reino não era deste mundo e que Ele tinha vindo para testemunhar a Verdade, Pilatos soube apenas, distraidamente, perguntar-Lhe o que seria isso, o que induziu Cristo a nem sequer perder tempo em responder-lhe, tão longe estava Pilatos de poder compreender.

Tampouco Cristo responde a Herodes, que estava ansioso apenas por magias e prodígios. Cristo mantém-se sempre acima desta algazarra humana. Não perde tempo em se defender, pois isto não Lhe interessa. Seu escopo não é permanecer no AS, salvando a Si mesmo, mas sim testemunhar o S, para regressar a este. Sua finalidade é cumprir o Seu dever perante o Pai e de- pois partir. Quem merecer, que fique então no AS.

Eis então a reação de Herodes confirmando a acusação da qual era o Cristo imputado, de pretender ser rei e colocando-Lhe sobre os ombros, por escárnio, um manto vermelho, de falso rei e assim escarnecido manda-O de volta a Pilatos. E bem sabemos com quanta seriedade jurídica e com qual senso de equidade continua este o processo! Diante de Caifás chovem os falsos testemunhos, diante de Pilatos as falsas acusações do povo, todos desabafam, todos se divertem, e ao mesmo tempo os primeiros se eximem de qualquer responsabilidade. As diversas autoridades preocupam-se por defender seus cargos e suas respectivas carreiras. A proposta de libertar Barrabás é uma ignóbil escapatória, assim como a flagelação oferecida como alternativa em lugar da pena de morte. Mas quando Pilatos percebe estar periclitando a sua posição e a sua carreira, porque absolvendo Cristo, podia parecer O estar protegendo no momento em que era Este acusado de sedição contra César, então Pilatos, embora já tivesse declarado não julgar Cristo culpável ("Não acho culpa alguma neste homem"), não examina mais a questão, não fica indeciso e O condena a morte.

O ideal de Cristo é um problema remoto, enquanto o problema próximo e real estaria na necessidade de evitar o seu prejuízo. Se Cristo quer arruinar-se, que se arruíne. Se Ele almeja, pelo contrário, a superação, que a atinja. Os outros não querem superar coisa nenhuma, e de modo algum desejam fugir do AS. Pilatos quer respeitar a justiça, mas não é tão tolo a ponto de sacrificar-lhe sua posição. Perante esta premente preocupação, a outra que consistiria em aplicar os princípios éticos cumprindo o próprio dever é postergada. Por isso a sua conduta se reduz a um ceder contínuo até o momento de tirar o corpo fora, lavando suas mãos, enquanto se declara inocente. Assim Pilatos —  jogando-a sobre os outros — livra-se da responsabilidade do mal praticado e pode até tranquilizar a sua consciência e salvar as aparências.

Tudo isto é lógico, e o é de ambas as partes. Pilatos, o homem do AS, cede violando os princípios da ética (S), mas salva os seus interesses (AS), que para ele eram a coisa mais importante. Cristo — do outro lado — o homem de tipo S, renuncia a seus próprios interesses (AS), mas salva os princípios (S), que para Ele eram a coisa mais importante. Pode parecer que os dois tenham feito duas coisas opostas, mas apenas, devido às suas opostas posições de AS e S, pois, na realidade eles obedeceram, por caminhos opostos, à mesma exigência de descartar tudo quanto discrepasse de seus escopos respectivos. Existe no entanto uma diferença entre os dois casos: enquanto, na eminência de reingressar no S, o ideal de Cristo se apresentava como uma realização a curto prazo, para Pilatos e seus companheiros aquele mesmo ideal, encarado do AS, aparecia-lhes como um sonho de muito remota e duvidosa realização. Daqui a diversa conduta dos dois tipos.

Eles não podiam dialogar. Cristo dizia que o seu reino não era deste mundo e que Ele havia nascido para testemunhar a Verdade. Mas para Pilatos a Verdade era apenas um problema de disquisições acadêmicas de sofismas, de bizantinismos que não levam a nada. Como poderia ele entender o Cristo? Nem mesmo sobre o conceito de justiça podia haver entendimento comum entre os dois. Para Pilatos ela correspondia a uma formulação positiva, eu diria inflexível, como era a forma mental dos Romanos, para quem a justiça era uma regulamentação codificada em leis específicas, com efeitos concretos, de realização imediata; era um fato limitado dentro das dimensões humanas. Para Pilatos a justiça de Cristo era um ideal longínquo, uma coisa vaga e incontrolável, um princípio que abstraía da realidade da vida, e no qual, portanto, não se pode confiar. Para Cristo que conhecia a Lei de Deus, Sua justiça era uma realidade em ato, uma coisa próxima (S), um princípio que Ele via funcionar, no qual, portanto é possível e útil confiar. Mas não podiam pensar assim os outros que, pelo contrário, estavam longe do S, situados no AS. Compreende-se Pilatos quando se leva em conta o fato de que ele tinha de resolver o problema imediato deste mundo, perante o povo dos Hebreus e perante Roma do imperador Tibério a quem devia prestar contas, enquanto Cristo vivia com a mente fixada em problemas remotos de um outro mundo perante o Pai e a Lei.

O    próprio conceito de autoridade diverge nos dois casos. Para Pilatos e para o mundo a autoridade é o Estado, o Chefe, o grupo que detém a força, faz as leis e impõe a ordem social. Para Cristo esta é uma autoridade secundária, enquanto a verdadeira, a que comanda realmente, é a autoridade da Lei de Deus, á qual todos estão igualmente sujeitos e que se serve daquela autoridade humana como de um instrumento. Quando Pilatos diz a Cristo: "Não sabes que eu tenho o poder de te libertar ou de te crucificar?", Cristo lhe responde: "Não terias sobre mim nenhum poder se não fosse dado pelo Alto". Está aqui claramente definida a posição subordinada do poder humano perante o poder de Deus.

Para compreender a paixão de Cristo é necessário enxergar este jogo escondido, que está no fundo do fenômeno; é necessário entender esta sua realização, dado que estamos aqui perto do S, em função da Lei do Pai, antes que em função das leis humanas, que, pelo contrário, estão ligadas ao AS. Esta posição de espera e de regresso ao S é claramente expressa pelas palavras de S. Francisco: "Tão grande é o bem que me espera que cada pena me causa deleite". Temos sempre o mesmo reviramento, primeiro entre S e AS acontecido com a Queda, e agora com a nova subida, o emborcamento do AS em S, isto é, o seu endireitamento. No momento da paixão de Cristo quando o AS parece alcançar o máximo grau, de fato ele perde, porque sua vítima está prestes a fugir-lhe; e quando simultaneamente, o S parece perder, paralisado por aquela destruição, então ele vence, porque em pouco tempo a vitima estará nele, para sempre fora do AS.

Na sua ordem, a Lei deixa as forças do mal esgotarem todo o impulso da sua potência, até o ponto em que Cristo grita: "Eli, Eli, lemá sabactani?" ("Deus meu, Deus meu, porque me abandonaste?"), mas aquela potência de AS não vai mais além e se esgota. No momento em que o AS atinge o cume do seu triunfo, ele perde toda a sua força, porque acontece o afastamento do indivíduo em relação ao AS, pois deste automaticamente se destaca. Mas o S o espera. A sua maneira o AS já venceu. Mas venceu de modo negativo, porque destruiu tudo. Todavia o que destruiu? Apenas aquilo que lhe pertence e estava em seu poder, isto é, a parte material, pois é a isso que se limita todo o seu reino. Neste ponto o AS termina e mais além não chega. Perpetrada sua execrável façanha ele deve parar. Não pode dar nenhum passo adiante. Cristo, superada a paixão, está fora do AS e já no S, onde as forças do mal não podem chegar, porque são expulsas de volta para o seu reino. Aí não lhes resta outra coisa a fazer senão dilapidarem-se reciprocamente no triste domínio de sua miséria.

Nas páginas antecedentes referimo-nos brevemente ao ingresso triunfal de Cristo em Jerusalém e ao desejo do povo de ter um Rei terreno. Para não interrompermos o fio do raciocínio adiamos para o fim deste capítulo a descrição da cena que aqui nos dispomos a relatar. Vale a pena observá-la com atenção porque ela esculpe com vivacidade a figura do Cristo e põe em evidência a natureza íntima da sua missão. Se. bem que Cristo tivesse admoestado o povo a não interpretar o Reino de Deus no sentido de potência terrena e para isso abandonar os seus sonhos de glória humana para conquistar, pelo contrário, os tesouros imperecíveis do espírito, não obstante isto, Jerusalém almejava um Messias poderoso na Terra, voltado para triunfos políticos, rico de meios e de honrarias, vencedor dos inimigos do povo de Israel. Por isso o triunfo do Cristo no dia de seu ingresso em Jerusalém se baseou sobre um mal-entendido. Observemos a cena:

Aquela chegada foi extraordinária. A multidão saía de Jerusalém ao encontro do novo triunfador e a ela se juntavam os peregrinos para lá dirigidos. Um indescritível entusiasmo arrastava a todos. O ingresso foi memorável. Durante horas as ondas desse imenso mar da multidão se agitaram e se abriram dando passagem à modesta cavalgadura até quando o aclamado dela desceu, tendo chegado aos pés da imensa escadaria que do Cedron subia até o templo, e, pressionado por todos os lados, subiu até atingir o alto da escadaria. Dos declives das oliveiras, do vale Cedron, dos terraços das casas, dos beirais das portas e das árvores, de cada saliência do terreno que permitisse uma vista mais livre, toda uma imensa multidão aclamante fitou aquela figura que havia parado e olhava em seu redor.

Então a multidão que gritava: “Osana! Bendito aquele que vem em nome do Senhor", emudeceu. Em silêncio todos esperavam um gesto, uma palavra. Jamais houve um instante tão decisivo na história do Messianismo. Aquele gesto e aquela palavra teriam podido desencadear o povo, expulsar os poucos romanos do Presídio, proclamar o Reino de Israel. Jesus olhou á volta e no meio daquela imensa multidão sentiu-se só. Era o ocaso. Enrolou-se no seu manto e foi-se embora. Sobre quantos ali ficaram desceu uma densa sombra de desilusão. Deste momento em diante inicia-se uma surda rebelião contra o falido Messias e assistir-se-á a sua explosão, com o furor do povo perante o Tribunal de Pilatos. Este —conforme relata Marcos em seu Evangelho — assim se expressou: "Que desejais, pois, que eu faça daquele que vós chamais Rei de Judeus"? E eles gritaram com insistência: "crucifica-o!" Pilatos replicou-lhes: "Qual é o mal que Ele fez?" Responderam eles gritando mais forte: “crucifica-o”.

Cristo quis permanecer fiel à sua ideia e repeliu à guisa de uma tentação a oferta de seu povo. Assim, Ele foi verdadeiramente Rei, mas de valores espirituais eternos, em vez de ser um dos tantos Reis da Terra erguidos sobre sangrentas vitórias e vacilantes poderes. Deste modo não teme Ele o decorrer do tempo e continua reinando. Poder-se-ia objetar que se a Sua doutrina era válida perante o mundo de então — bem longe de ser espiritualmente elevado e socialmente justo — a mesma doutrina não é mais hoje totalmente aplicável dadas as diferentes condições sociais pelas quais os problemas da coletividade são hoje colocados diversamente: razão pela qual o Cristo não teria exposto verdades eternas, e seu próprio reino espiritual teria se revelado efêmero como todos os remos da Terra aos quais renunciara.

Ora, a objeção cai por terra se refletirmos que a ideia de Cristo permanece sempre válida como impulso da vida volvido à superação do passado em direção a formas de existência mais evoluídas. Este fenômeno não é um fato circunscrito a um povo e a um dado tempo, mas é uma realidade biológica que, mesmo se colocada a níveis evolutivos diversos conforme o grau alcançado, repete-se em todo tempo e em todo lugar seguindo o idêntico princípio da superação evolutiva, que é fundamental no caminho ascensional da vida. É neste sentido que Cristo permanece hoje como sempre, válido e atual, mesmo em relação às novas posições alcançadas neste momento, e com igual eficácia, nos ensina como superar a dor.

Cristo nos ensina a conquista dos valores espirituais e não se pode dizer que isso não pertença à evolução de qualquer tempo, dirigindo-se esta exatamente neste mesmo sentido. Trata-se de princípios que apesar de se desenvolverem em diferentes graus permanecem verdadeiros em todos os níveis. Há uma constante tendência à superação, à espiritualização, ao amor recíproco que facilita a convivência social e o progredir em direção ao estado de coletividade organizada. Eis que a doutrina de Cristo e Seu Reino, naquela parte que supera a mutável contingência do momento, permanecem sempre atuais, como são em todo o tempo, em formas diversas, as leis da vida.