A Ressurreição. Do AS ao S. A necessidade do mito. A morte mata só o corpo. Cristo espírito permanecendo vivo. O problema de um corpo humano no céu. As aparições. A fase mítica das religiões.

Depois da morte de Cristo, entramos numa outra fase do desenvolvimento do fenômeno. As posições se invertem, à morte do corpo sucede a ressurreição, uma vida maior no espirito, a dor sucede a alegria, o vencido se torna um vencedor, o vencedor fica derrotado. Os matadores de Cristo encontram-se agora perante um cadáver que não pode mais ser atormentado nem morto. Portanto, deixam-no e vão-se embora. Eles não têm mais nada a fazer que seja de sua competência. No terreno deles terminaram. Cada qual dirige-se ao posto que o espera conforme a sua natureza e a ordem determinada pela Lei. Os homens ficam a rastejar na terra como vermes e Cristo sobe triunfante na glória dos Céus.

O    importante neste acontecimento está no fato de que o mesmo nos mostra, em forma positiva, experimentalmente vivida, como, objetivamente, se realiza a passagem do AS ao S. Aqui temos o fenômeno debaixo dos olhos e podemos estuda-lo como estamos fazendo, para compreendê-lo e assim tornar-nos aptos a realiza-lo, cada qual de seu particular ponto de vista. Podemos assim submeter a analises de laboratório um fato que nos interessa de perto, porque mais cedo ou mais tarde, todos deveremos vivê-lo, dado que esta é a Lei da vida.

Mostra-nos Cristo com a sua paixão de que maneira todo indivíduo, que tendo atingido a maturidade, poderá realizar a maior revolução biológica: a mencionada passagem do AS ao S, fechando assim o ciclo involutivo-evolutivo iniciado com a Queda. Trata-se da passagem da esfera de ação do elemento negativo ao elemento positivo, trata-se do momento crítico no qual abandona-se um campo gravitacional e sua respectiva influência para ingressar num campo oposto.

Quanta gente o AS havia mobilizado nas pessoas daqueles que se empenhavam a disputar a vida de Cristo? Vê-se que eles se moviam em série numa única direção, como movidos sob um único impulso. Mas depois do fato consumado, até o AS parece dar-se conta da gravidade do ato cumprido, a convulsão dos ânimos se transmite à  terra, e a agitação se revela também no plano material; o céu obscurece, a terra treme, o solo se abre e a fenda chega até Jerusalém, atravessa o templo, afasta um pouco as paredes de maneira a causar um rasgão no velário que cobria o Sacrário do templo, o "Sancta Sanctorum" que perde, assim, sua sacralidade. Depois deste último desabafo revelador de sua natureza destrutiva, o AS esbarra contra os próprios limites que o definem e se detém. Entra, então, em ação a força oposta, a do S, que é fonte de vida e fomento de ressurreição.

Observemos este fenômeno. Sempre que se trate de fatos extraordinários na vida de Cristo, como é a ressurreição, os escritores católicos fazem dele um argumento em favor da grandeza da Igreja; os anti-católicos fazem dele um argumento em contrário. Mas poucos se ocupam de compreender o que tenha verdadeiramente acontecido, deixando-se guiar pela lógica em lugar de se deixar levar por impulsos sectários. A maior parte está interessada em demonstrar ou a verdade ou a falsidade do mito, mas poucos estão ansiosos de lhe explicar a gênese e de lhe respeitar a presença por lhe ter compreendido a importantíssima função.

É inegável que o Cristianismo teve logo plena consciência da importância dessa ideia da ressurreição, como da própria chave para compreender a doutrina de Cristo, da qual constitui a razão de ser e o seu coroamento. Esta ideia encerra a da superação da vida terrena em um outro tipo de vida, sendo fundamental naquela doutrina. Esta é a grande ideia que Cristo trazia consigo na Terra, com a missão de testemunhar-lhe a verdade mediante Sua própria ressurreição. É a mesma ideia que nós, com outras palavras, chamamos de retorno ao S. Não importa a forma. O Cristianismo achou por bem expressar-se com o mito, admitido por fé, por ser o meio mais apropriado para a psicologia das massas; nós nos expressamos utilizando a análise e a razão, porque isto é melhor aceito pela mais evoluída mentalidade do homem de hoje. Mas a verdade é uma só: o caminho da evolução com a sua conclusão é o mesmo, cumprindo a todos o regresso ao S, isto é, o feito sublime que Cristo realizou e que nos quis ensinar.

Ora, é incontestável que desta ideia da continuação da vida em uma forma mais alta com o retorno ao S, bem era necessário oferecer uma representação compreensível no plano humano para a forma mental comum. Então para este fim, o derrubamento da pedra do sepulcro, qual impulso de uma explosão de vida, é quanto de melhor se podia imaginar. Devemos compreender que para tal mentalidade, sempre que se fale de vida, entende-se a vida ao corpo. Diz-se que uma pessoa morre quando não vive mais o seu corpo. Deste ponto de vista, para se afirmar que essa pessoa vive é necessário que o seja sobretudo como corpo e não apenas como espírito. A mentalidade materialista — que predomina também no campo religioso — impõe que se permaneça no plano físico. Para ela Cristo era a pessoa física que pisava sobre a terra e não a Sua personalidade espiritual. Era, pois, indispensável a ressurreição do corpo para que o povo compreendesse que Cristo havia permanecido vivo. Se o povo se enganou é porque Jesus preexistia, e se tomou um corpo, foi porque Lhe fora possível existir antes, independentemente dele. Por isso pôde o Cristo subsistir, após a morte de Seu corpo.

Na realidade a morte não mata a verdadeira pessoa que é espiritual. Por isso como tal, Cristo não estava morto, porque o espírito não morre. Então como podia Ele ressuscitar se não estava morto? Então o que podia ressuscitar era somente o seu corpo que estava morto. Mas Cristo era o espírito e não o corpo. Para nós Cristo é algo que está além da Sua forma física. Para nós Ele é o Cristo eterno que tomou e deixou uma sua veste física, razão pela qual Ele não tinha necessidade do seu corpo para poder sobreviver: por isso não ia levá-lo consigo e o abandonou na terra.

Repugna-nos, pois, pensar que no Céu, isto é, no S, se pudesse colocar definitivamente um elemento de tipo oposto, próprio do AS. É difícil de imaginar como Cristo pudesse necessitar de um tal invólucro em um ambiente tão diverso e em tão novo tipo de vida como é o S. Como podia, com um tal corpo, sentar-se Cristo à direita do Pai que é o pensamento diretivo do S, e que como tal não pode ter corpo que é prerrogativa do AS? Que tremendo problema não acarretaria o arrastar essa carga de matéria dentro de um mundo de outras dimensões! Além disso, com seria difícil viver, eternamente, no S, com aquele corpo, executando funções vegetativas a ele conexas, para mantê-lo vivo!

Mas, a mente popular não raciocina assim. Ao contrário, exige e assim cria para si — uma lenda que mais a satisfaça, o que aliás, é justo, porque este é o alimento da qual ela se nutre. Assim ela construiu para si uma ressurreição a seu modo, de fundo físico, sem pôr em evidência o fato espiritual que é a parte mais importante. Sem uma ressurreição de tipo material, o Cristo que não estava morto, teria sido considerado morto, porque terrestre havia morrido o seu invólucro terrestre.

Para o povo era necessário um sepulcro vazio e um corpo desaparecido. Daí o fato de imaginar Cristo assumido ao Céu o passo é breve. Para persuadir as multidões da existência de uma outra vida — razão fundamental da Paixão de Cristo — era pelo menos necessário que seu corpo desaparecesse da Terra, sem o qual para as mesmas seria impossível que Ele tivesse sido acolhido no Céu. Isto era necessário para mostrar que a Paixão de Cristo havia alcançado o seu escopo, porque estava na lógica do fenômeno e ela exigia ser satisfeita. Hoje que se começa a conhecer o que seja deveras o Céu, sabe-se como seja difícil a permanência de um corpo humano no espaço extraterrestre. Torna-se, portanto, cada vez mais difícil recorrer àquele Céu, e ali construir mitologias. Está na ordem da própria Lei de Deus que cada organismo só possa viver no ambiente em relação ao qual foi construído.

O próprio Cristo tinha previsto a necessidade desse mito da ressurreição e tinha preparado o terreno anunciando, em vida, que ressuscitaria. Ele sabia que esta ressurreição fazia parte integrante do fenômeno por Ele vivido, constituindo o lado positivo do mesmo, como contrapartida ao lado negativo, representado pela morte. Esta ressurreição era necessária para confirmar a tese de Cristo, para explicar e valorizar a sua Paixão, Cristo devia provar que esta conduz à vitória da vida que expressa o S, sobre a morte que expressa o AS. Sem o triunfo de Cristo no espirito, o seu sacrifício teria sido uma derrota ou simples loucura.

O que sabemos de positivo depois da morte de Cristo é que o seu corpo desapareceu. No entanto Cristo está vivo, porque foi visto na Terra, mas aquele não era o seu corpo físico. Existem fenômenos de materializações paranormais de indivíduos cujo corpo se desfez há tempo. Eles não implicam de modo nenhum uma ressurreição física. Não foi com o corpo físico que Cristo ficou presente na Terra. De fato, Ele aparece e desaparece em Emaus, caminha sobre as águas, entra nas salas de portas fechadas, diz a Madalena: "Não me toques", para que ela não se apercebesse que aquele não era seu corpo físico. Tomé que exige colocar o dedo nas chagas de Cristo, fica convencido por haver acreditado, mas não por haver tocado, coisa que os Evangelhos não dizem que ele tenha feito. Falam estes de fé que ilumina, não de uma certeza experimental. A presença de Cristo na Terra é feita de aparições. E então o corpo onde estava?

Este pertencia ao AS, representava a forma e a expressão de um dado nível evolutivo, que não pode ser concebido em outro nível mais alto sobretudo fora do AS, ou seja, no S. Aquele corpo era apenas uma veste temporariamente assumida por Cristo para poder cumprir Sua missão no plano humano, uma veste para Ele não mais aceitável quando de Sua transferência para o S. Não se concebe como uma tal forma pudesse entrar a fazer parte de um mundo exclusivamente espiritual e quais funções pudesse ali exercer um organismo feito para outros objetivos, escravo da gravitação, da atmosfera, de sistemas nutritivos, de funções biológicas, de meios sensórios etc. Isto, contudo, não significa que o mito da Ressurreição não fosse necessário para um dado tipo de indivíduos e que, por isso, não mereça o mesmo todo o respeito. Usado na forma relativa e temporária é justa uma representação mental, ainda quando ela não corresponda à realidade efetiva desde que a mesma venha a constituir um meio útil à realização da evolução, por cumprir uma função capaz de contribuir ao alcance deste escopo.

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Encaram-se, hoje, tais fenômenos com critérios racionais e objetivos para sua melhor compreensão. Mas é certo que eles não podiam ser apresentados assim nos tempos de Cristo e nem mesmo posteriormente até ontem.  Então, o homem necessitava acolher e interpretar os fatos de maneira a ele compreensível e adequada a sua mentalidade. Para o passado, tais interpretações eram cabíveis porque proporcionadas as necessidades psicológicas das massas. Tudo dependia do desenvolvimento da sua inteligência. Por isso, há de se convir que tais interpretações, ainda que inaceitáveis para nós, modernos, cumpriram sua devida função.

Todas as religiões atravessam uma sua primeira fase mitológica e o Cristianismo não faz exceção. A lenda brota a cada passo. Ela é uma criação da alma coletiva, que sem falta se manifesta na formação de cada religião. Não há razão para que o Cristianismo lhe fizesse exceção. Assim o homem, baseando-se nalguns fatos, os mitificou, acrescentando-lhes elementos ideais que a realidade não contém nem pode conter. Obtém-se, deste modo, uma fusão de realidade e de sonho, uma construção excelente para os fins da evolução, porque consegue revestir os puros fatos reais de uma luz que lhes proporciona alma e consistência e com isso um impulso evolutivo que os mesmos não teriam capacidade de dar sozinhos. Ora, isto não significa um estéril devaneio, pois esta mitificação cumpre a importantíssima função de fazer descer o ideal na Terra, contribuindo, assim, à realização de formas de vida mais avançadas e, portanto, ao verdadeiro progresso do homem. É por meio do mito que o ideal toma corpo na consciência coletiva onde se fixa realizando a evolução.

A vida quer alcançar seus fins em cada nível e o faz com a forma apropriada ao caso. O primitivo vive no plano emotivo e não ainda no plano racional. Ele é como um menino que, encontrando-se perante o ignoto, procura dar-lhe uma explicação por meio da fantasia construindo para si uma fabula capaz, no momento, de satisfazer sua necessidade de desvendar o mistério. Mas tal construção é dele, existe só na sua mente, não é uma visão objetiva da realidade. A esta o menino substitui o seu sonho, que é tudo aquilo que a sua forma mental sabe produzir. Mais do que isso não se podia pretender no passado. Por isso a religião primitiva não passava de magia, o sacerdote era o feiticeiro, atitudes que ainda vemos sobreviver na psicologia do milagre.

Hoje, que o homem se torna mais amadurecido, tudo isso tende a desaparecer, e ao devaneio ele procura substituir a reflexão racional, deixando o método fideístico-sentimental as criaturas menos desenvolvidas que dele ainda precisam. Mas as próprias religiões estão sujeitas a um processo evolutivo e se vão intelectualizando cada vez mais por ser este o caminho da evolução que conduz da matéria ao espírito. O Céu dos pagãos era uma sociedade de tipos comuns, com todos os seus defeitos e paixões, um mundo terreno transferido no Olimpo. O selvagem encontra-se ainda mais atrás com seus sacrifícios cruentos. Baste confrontar com estes últimos o sacrifício celebrado na Eucaristia, para vermos a quão imensa distância se encontra este em relação ao primeiro, pois na Eucaristia o sacrifício está a tal ponto espiritualizado que até a matéria do pão está reduzida a uma partícula quase simbólica E assim que o ideal avança em direção ao divino, assumindo dele, cada vez mais, as características da imaterialidade e da espiritualidade. Passa-se, dessa forma por graus, do nível subumano ao nível humano e super-humano. Por este processo a evolução avança.

É natural, quando o ser atinge uma fase mais avançada, as formas mais baixas não sejam mais necessárias. É um fato que aquele mundo lendário resiste cada vez menos as críticas dos tempos modernos. Assistimos hoje a um processo de desmitificação que não é destruição do passado, senão no sentido de que o velho tipo de compreensão é substituído por outro mais complexo e progressista. As antigas religiões colocavam o homem ao nível dos mais elementares instintos animais, como fome e sexo, luta e medo, ódio e morte etc. Sucessivamente essas religiões se humanizaram, saindo da fase selvagem, mas conservando-se sempre no nível dos impulsos instintivos do subconsciente. Com o Cristianismo a religião se espiritualiza até ao nível do sentimento, do amor ideal, das razões do coração. Realizam-se, assim, maravilhosas construções no terreno fideístico-emocional. Não se trata de vãs fantasias, mas de criações do inconsciente que têm um profundo significado biológico. Isto porque elas cumprem uma real função criadora, expressando uma técnica de aquisição de novas qualidades superiores por parte da personalidade; representam, em suma, um instrumento de conquista biológica, em sentido evolutivo, a nível espiritual.

Com tais criações ideais, manifesta-se o inconsciente que, pela repetição dos respectivos atos e pensamentos, procura fixar sob a forma de qualidades algumas das suas superiores aspirações. E enxertando na crua realidade biológica essas mais elevadas aspirações, que o homem consegue erguer-se ao longo da escala da evolução. Que importa se não se afasta ainda de lendas e representações mentais não é este um terreno de investigações científicas, mas de criações espirituais lançadas em frente para antecipar o futuro. O que há de sólido neste fenômeno está no fato de se constituir numa técnica de aquisição de novas qualidades, ou seja, naquele importantíssimo processo que consiste no evoluir. Trata-se, portanto, de uma função biológica de grande alcance e é por isso que a vida permite que se realize.

Compreendido, assim, o significado do mito e o valor que ele representa, poder-se-á entender a necessidade de se usar a máxima cautela na destruição do velho, à qual se é naturalmente levado no processo de desmitificação das religiões, ou seja, é necessário não abater o passado enquanto não se tenha conseguido substituir-lhe algo melhor, como é indispensável para evoluir. É certo que a vida quer renovar-se, porém, para avançar e não para retroceder ou ficar estacionaria no vazio. Então, há de se cuidar que a desmitificação não paralise a função evolutiva cumprida pelas criações mentais das massas. É certo que hoje o homem está se tornando adulto e, assim, começa a transferir o fenômeno religioso do terreno emotivo aquele racional. Assim ele subirá ainda de um grau, acima dos que subiu no passado. Mas é um passo laborioso, porque presume uma maturidade que as massas não ainda não alcançaram.

Cada manifestação da vida é proporcionada aquele seu grau de maturação. Cada coisa a seu tempo. A religião do futuro terá uma base científica. Estamos hoje numa fase de passagem. O de que necessita a humanidade infantil não é o de que precisa uma humanidade adulta. A atual crise do Cristianismo é profunda, porque é devida precisamente a esta passagem da fase religiosa (lendária, fideística e emotiva) aquela positiva e racional.

O caso é grave, porque não se trata de crise desta ou daquela religião, mas de uma crise psicológica global que leva a um novo modo de conceber a vida, do qual decorre a mudança da forma mental do homem e de tudo o que dela deriva, incluindo as religiões. A verdade é relativa e progressiva. Assim como se passou da religião do Deus vingativo a do Deus de bondade, da mesma forma se passa hoje a religião da inteligência. Como se passou da fase do temer àquela do amar, assim se passa hoje aquela do compreender. É assim que hoje se procede a uma rápida desmitificação, demolindo o passado. Mas neste trabalho é necessário que os dirigentes estejam atentos a não propor verdades antes que as massas as possam compreender. A revelação da verdade há de ser proporcionada à capacidade de compreendê-la; por isso não deve ser concedida levianamente quando pode ser prejudicial às massas. Estas, com efeito, dada a sua ignorância, poderiam ser levadas a fazer um mau uso delas. É por isso que elas, às vezes, não podem ser iluminadas enquanto não alcançarem a maturidade necessária para entender o verdadeiro no seu justo sentido. E necessário sempre fazer as contas com as reações da forma mental, à qual um princípio é aplicado.

A atual crise é profunda, porque se muda de religião facilmente, de acordo com a maturidade biológica e forma mental de cada um. O velho está caindo, enquanto o novo não está pronto para substituí-lo. Estamos, assim, pairando no vazio. Ora, apesar de o nosso tempo contestar os valores espirituais, eles são necessários à vida. É, pois, fatal que quando o homem sentir falta deles e deles tiver fome, então ele deverá apressar-se a reconstruí-los, se bem que num nível mais evoluído. Esta é uma crise laboriosa e perigosa. Mas, afinal de contas trata-se de uma crise salutar, uma crise de desenvolvimento.

Vivemos numa época de transição, feita de dois momentos históricos: o primeiro representa o velho mundo na hora de seu ocaso; o segundo representa o novo mundo que agora está surgindo. A nossa Obra levada a termo nos quarenta anos situados no centro do século XX, representa esta época de transição porque se situa em cima desta transformação. Ela com efeito se iniciou quando o velho mundo estava em pleno vigor e se conclui agora, quando o mesmo está em declínio e o novo mundo desponta. Por isso entre a primeira e a segunda parte da Obra poderá parecer a um observador superficial que haja contradição. Trata-se, porém, de uma continuação que é maturação devida a um desenvolvimento natural que acompanha o do momento histórico e a Obra é um espelho.

Essa transformação e contínua e diversas interpretações estão hoje se processando, também para a figura do Cristo, que é objeto principal deste volume. Como hoje se faz com tudo, até a figura do Cristo é dissecada com a análise. Mas, assim fazendo, o mundo se arrisca a ficar tendo em suas mãos a figura de um Cristo totalmente destruído. É por isso que procuramos satisfazer a necessidade de uma síntese reconstrutora do Cristo, em forma adequada aos novos tempos, baseado não sobre a crença, que hoje não rege mais, e sim sobre a compreensão. Também aqui não se trata de contradição entre o velho e o novo, mas de uma continuação que é maturação e natural desenvolvimento do modo humano de entender as coisas.

A desmitificação deve ser uma atualização não um aniquilamento. Quando os mitos já cumpriram a sua função, então, naturalmente, se tornam falsas e morrem por si próprios de velhice. Não é necessário destruí-los. A vida pensa sozinha em renovar-se. Em muitos casos, tratar-se-á apenas de dizer as mesmas verdades, embora de um modo mais completo, mais controlado, mais racional, mais genuíno, sem mitos; o que torna as mesmas verdades ainda mais verdadeiras. Que um espontâneo processo de desmitificação esteja hoje em ação, é mais que evidente. Ele revela a superação da fase infantil da humanidade da qual está saindo. Em vez de se construírem mitos e impô-los, em seguida, em nome da fé, a ciência se colocara perante a Lei de Deus e estudara com objetividade seu funcionamento.

Será este o novo modo de caminhar em direção a Deus. É por isso que tanto insistimos em falar naquela Lei. É sobre ela que se baseará a nova religião positiva e a ideia de Lei é, com efeito, a que melhor satisfaz a forma mental dos adultos, por estar ligada a um princípio racional, experimentalmente controlável. A mente infantil do passado queria envolver os fatos no encantamento do mito, acalentava o mistério, a fé, o prodígio, o estado emotivo, o sentimento; pois, à mesma mente repugna tudo aquilo que, como a Lei, é positivo, racional, rigorosamente estruturado, o que exige um espírito crítico e processos de investigação da mesma espécie. É por isso que muitos ainda resistem à atual necessidade de redimensionar sua forma mental, libertando-a das míticas construções do passado.