As Noúres

Esse mundo em que nos temos agitado até agora não é um mundo fantástico. Num campo muito menos elevado, a rabdomancia, renascente hoje com o nome de radiestesia, demonstra que se o sensitivo que passa sobre um manancial de água ou uma jazida mineral sente algo que pode especificar com grande exatidão, isso quer dizer que eles emitem qualquer coisa, alguma irradiação de ondas eletromagnéticas que o sistema nervoso humano, sensibilizado, percebe. Os minerais, portanto, também emitem correntes e no seio do universo subsiste toda uma emanação imaterial. E se emitem correntes os minerais, também as produzem as plantas e uma paisagem será uma sinfonia de vibrações que o musicista poderá transformar em harmonias musicais. E correntes transmitem todos os seres e, entre todos, a central mais dinâmica, que é a psique humana.

Assim, as noúres assume uma importância muito mais vasta que a mediúnica, tornando-se fonte de inspiração artística, que só as noúres podem explicar; é o problema do desenvolvimento psíquica da humanidade, dos sistemas de aquisição cultural, dos novos métodos de pesquisa necessários do ulterior progresso da ciência, métodos de concepção que deem novos rumos à filosofia e a todo o cognoscível humano, com repercussões na direção da vida social, de modo a tornar possíveis as bases de uma nova civilização.

Observemos estas últimas consequências que enunciamos.

É um fato verificado, para os que estão habituados à criação intelectual e artística, que esta não se realiza, verdadeiramente, pelas vias da consciência quotidiana normal, que é tão útil para as necessidades e relações da vida. Parece quase que o processo da racionalidade consciente e reflexa é como que suspenso para que, por construções superiores, um mecanismo mais íntimo e complexo seja posto em movimento, numa zona mais profunda de nosso eu, a funcionar com métodos supervolitivos e super-racionais.

Os inspirados sempre tiveram uma voz; os poetas, as musas; os musicistas, a inspiração.

Wagner dizia no seu diário de vida veneziana, a propósito de uma passagem do seu Tristão: “Aquela passagem me apareceu clara, transcrevia-a rapidamente, como se há muito já a soubesse de memória”.

Perosi diz que o compor é para ele uma necessidade impulsiva do temperamento, que tem necessidade de produzir.

Chopin compunha numa espécie de êxtase.

Na realidade, artistas e gênios são ultrafanos, registadores de noúres.

É um fato que todas as mentes, sejam de artistas, sábios ou santos, cada um em seu campo, todas as vezes que verdadeiramente se projetaram na direção do Alto para arrancar uma orla do grande mistério das coisas – verdadeiros tentáculos que a evolução lança, antecipadamente, de encontro ao infinito – usaram esses meios que escapam à racionalidade comum; esta aparece, em confronto, como coisa vulgar, inferior, condenada por natureza a jamais saber elevar-se acima do plano em que se move no infinito trabalho de análise, sem esperança de síntese. É questão de grau; porém, a inspiração artística se esfuma na mediunidade, como no caso de Rosvita Bitterlich, a menina de Innsbruck, cujas telas, tanto pelo conceito como pela técnica, assombram os pintores e confundem os psiquiatras.

Existe um outro fato, que é a fundamental unidade interior da inspiração, idêntica para todos em suas origens e que se espedaça e modula em diversas formas somente quando desce ao mundo exterior, pelos caminhos oferecidos pela capacidade do sujeito. Isso corresponde àquela unidade de princípio, de que já falei, e a que se tende por ascensão evolutiva.

Desse modo, a ideia abstrata do bem pode tornar-se música, poesia ou pintura, renúncia, martírio ou ação heroica, conforme o ambiente humano em que se materializa. Cada realização concreta é um processo involutivo em que a unidade se ramifica no particular. Por isso, cores e sons e as várias sensações humanas se equivalem num plano mais alto e não passam de diferentes vestiduras do mesmo conceito. Esse conceito foi percebido por Franz Liszt quando, de Roma, escreve ao seu amigo Berlioz dizendo-lhe como sentia um secreto parentesco entre Raffaello e Mozart, entre Michelangelo e Beethoven, entre Tiziano e Rossini. Poder-se-ia afirmar que na profundeza da consciência se tocam os planos superiores, onde a ideia, antes de descer e diferenciar-se na forma concreta, é abstrata e existe em tipos simples e únicos para muitos grupos de manifestações diversas; e que, quanto mais subimos para o centro, tanto mais a ideia originária se faz abstrata e única, até identificar-se naquele monismo absoluto, que é Deus. Assim, a arte e a fé, a ciência e a ação não passam de diferenciações produzidas pela descida daquele mesmo e único princípio.

Estes elevados problemas de psicologia têm também uma grande importância prática, porque sua compreensão e solução revolucionam todos os rumos intelectuais e científicos de nossos tempos. Revolucionam os métodos de pesquisa científica, tanto quanto os sistemas de aquisição cultural.

Estou persuadido de que o saber humano, em todos os campos, não mais pode avançar com os velhos métodos e que é iminente e necessária uma mudança de rota. É evidente que a verdade, que tão laboriosamente se acomete, já existe íntegra, completa, funcionando desde toda a eternidade. O universo é, não de agora, um organismo perfeito e não espera, por isso, a compreensão humana. Possui ele sua sabedoria e suas leis e sabe aplicá-las com consciência e equilíbrio. Não se trata, pois, de criar coisa alguma, mas de saber enxergar o que já existe, de atingir conceitos que se distanciam de nosso relativo. É absurdo continuarmos a observar eterna e exteriormente os fenômenos, multiplicando observações e classificações, e permanecermos esmagados sob a mole divergente do particular. Importa aperfeiçoar e potencializar esse instrumento de pesquisa que é a consciência humana, se quisermos algo que produza um resultado prático.

Para mim, o método racional analítico não passa de uma redução involutiva do método intuitivo sintético. A evolução psíquica do homem impõe a ascensão a este método mais profundo. Estou convencido de que a solução dos problemas não se acha no exterior sensório, mas no interior intuitivo e só pode ser alcançada se nos projetarmos dentro de nós mesmos com a introspecção e não fora de nós, com a observação.

Sinto que os princípios não se podem encontrar senão por visão, por uma transformação de consciência que se identifique com o fenômeno, por uma transferência do eu a um novo plano conceptual; enquanto se permanecer na dimensão atual da razão, certos problemas permanecerão insolúveis. É fato comprovado que as mais elevadas verdades, as sínteses conceptuais sempre se descobrem a golpes de gênio, isto é, de revelação por inspiração e não por análise objetiva e racional. Esta não sabe tomar a seu cargo senão o desenvolvimento metódico de um princípio, quando este e sua orientação já foram apresentados.

A audácia de minhas conclusões está no propor à ciência o método de pesquisa por inspiração noúrica como método normal, a fim de que o método da intuição complete o dedutivo experimental; estou convencido de que os conceitos já existem em forma de emanações radiantes, de correntes em expansão, e que basta captá-las; sinto que o problema do conhecimento só é solúvel com este novo método de sintonização noúrica que tenho vivido, aplicado e aqui amplamente descrito. Certamente que é um método delicado e complexo. É necessário antes compreendê-lo para se saber usá-lo. Exige uma delicadeza psicológica para que não se maltrate nem prejudique o delicadíssimo instrumento de pesquisa que é a psique do ultrafano. Será preciso tempo; dever-se-ão superar as resistências opostas pelo misoneísmo do passado; será laborioso reformar a psicologia da ciência, mas não existe outro caminho para avançar.

A própria evolução tem de levar, inevitavelmente, à normalização da intuição.

O homem, chegado a uma determinada fase de sua evolução psíquica, tem de atingir, normal e naturalmente, o conhecimento pelas vias da captação noúrica.

Os tempos já sentem, confusamente, essas iminentes revoluções que abalarão em suas bases o pensamento humano; já se pronunciam vagas palavras que exprimem tentativas e tendências. Importa indicar exatamente, aprofundar, falar de coisas reais e casos vividos, já haver aplicado o método e realizado os resultados. Os inspirados se têm mantido até agora, comumente, no campo dos princípios gerais, nos termos vagos do sentimento, nas elevadas, mas imprecisas aspirações do misticismo; se mantiveram na ilha da inspiração artística, não fizeram da intuição uma verdadeira técnica de pensamento, metodicamente dirigido na direção da pesquisa científica. Importava chegar a uma revelação científica exata, dando à ultrafania um conteúdo vasto e concreto, que dela fizesse um instrumento portador de contribuições tangíveis à ciência.

Nesta efervescência dos tempos, ansiosos de novas direções, foi lançada uma corrente de ideias que não poderá ser detida. Achará ela ressonâncias que a amplificarão. Repercutirá nas consciências que, fazendo-a sua, a elevarão a grandes distâncias.

O futuro da humanidade está biologicamente em sua espiritualização. Ou espiritualizar-se ou morrer.

O materialismo aprisionou e comprimiu o espírito na matéria, talvez somente para que ele pudesse melhor explodir. Um sopro novo tem de dinamizar tudo no espírito, pois, de outro modo, a vida se apagará. E deve ser uma espiritualidade não vaga, sentimental, enfermiça, porém viril, operante, científica, volitiva, consciente do titânico trabalho construtivo que a espera e que ela tomará para si. A luta pelo espírito será a luta mais digna da vida.

Ainda outras consequências de índole prática se podem extrair desses conceitos. Frequentemente tenho perguntado a mim mesmo: – Sabemos pensar e aprender? Não encontraremos nessas profundezas psicológicas novos métodos mais fáceis e mais produtivos em favor da aquisição cultural?

Ao estudar e aprender atemo-nos aos sistemas mais empíricos, como ler, repetir, memorizar, sem percebermos a essência do pensamento e dos fenômenos psíquicos, nem de que complexa entrançadura de vibrações e de ressonâncias sejam eles a síntese, sem nos preocuparmos de quais interferências de ondas e de quantas captações noúricas a mente seja suscetível. Não atiramos, talvez ao acaso, diante da mente um alimento para que ela o assimile, não se sabe como?

Reconheço bem quanto a psique humana é imatura, na massa comum, para estas sutis operações de pensamento e minha audácia está justamente em pensar na normalização de tais métodos. Entretanto, estou certo de que o homem se acha numa grande curva de seu caminho evolutivo, que a eterna criação biológica está operando atualmente no nível psíquico e que novos métodos se impõem pela lei do meio mínimo. Por que o método intuitivo deve limitar-se apenas às formas artísticas e poéticas? E por que não poderá existir uma nova e normal inspiração filosófica, matemática, social, moral, científica? Por que não reconheceremos que a sabedoria não se encontra nos livros, farrapos do passado, mortas cristalizações do pensamento, mas, sim, nas vivas correntes conceptuais em que palpita e em que se sustém todo o universo? E que, para saber, esse grande livro do infinito é o único que importa ser lido? E para a formação cultural, por que às longas e exaustivas vias do estudo não se preferirão as da purificação da consciência, da evolução que a conduz à dimensão superconceptual, onde a visão da verdade é espontânea? No Alto, a sabedoria é gratuita e, através de sua progressiva espiritualização, o homem adquirirá, um dia, o conhecimento por imersão em estados vibratórios e por exposição da psique às correntes noúricas.

Por que, ao invés de um esforço mnemônico para acumular noções, a formação cultural não deverá ser um processo de sensibilização da psique, que lhe permita a captação das ondas-pensamento por sintonização?

Tenho a sensação de um erro fundamental em todo o sistema cultural moderno, consistente na descentralização do conhecimento no particular, o que conduz ao desnorteamento na especialização; tenho a sensação de que sob o peso esmagador de uma série enorme de noções, ao invés da centralização conceptual que, nos princípios, nos fornece a chave de todos os problemas, se atinge a dispersão. O saber não é uma congérie de conhecimentos: é uma superfície que não se domina permanecendo no chão, percorrendo-a em todos os sentidos, mas, somente, elevando-se à altura de uma dimensão superior. A verdadeira cultura é algo de qualitativamente diferente da erudição, é um sentido. Para o registo e armazenagem da erudição não bastam as bibliotecas? A psique tem funções diretivas a cumprir mais importantes que as registações mecânicas, semelhantes a pesada carga para a inteligência, correspondente ao trabalho material de caráter inferior.

Na verdade, hoje se começa a pensar, mas como? A produção é caótica, paleontológica, estrondeante: não é um concerto. Tenta-se, mas não se domina. A mole cultural é embaraçosa, não auxiliando, antes dificultando a síntese; o saber é exterior e desorientado e não destila na transparência que deixa ver os princípios. É raro o caso da intuição que se desembaraça do passado, deixando de repetir velhas coisas que existem em todos os livros e se lança, virgem, pelas vias da criação. A orientação materialista do século mecanizou também o saber, criou um tipo de sabedoria utilitária acessível a todos, uma vestimenta que todos podem usar; a cultura, porém, é um impulso interior, cujo segredo está na força da alma.

É necessário impelir o atual desfraldar de competições para uma direção diferente, importa deslocar o centro psicológico da vida. Atualmente o pensamento é um esforço, porque tem de emergir da cegueira da matéria; porém, em fases mais altas de sensibilização, é espontâneo, jubiloso, repousante. As atmosferas mais rarefeitas da evolução são construídas de pensamento; basta atingi-las.

A escola deveria ser uma palestra de formação de consciências, nunca de fatigados carregadores de conhecimentos, oprimidos pelo trabalho aquisitivo de noções.

A sufocante supercultura moderna deve ser aligeirada em verdades mais simples e sintéticas. Estas podem parecer coisas longínquas, mas o são talvez menos do que se acredita. A vida caminha e não pode parar. A evolução se dirigirá necessariamente à normalização de todas estas audácias; a ciência não poderá permanecer sempre tão limitadamente utilitária e sentirá necessidade de completar-se. E o mundo explodirá nesses psiquismos superiores. O pensamento superará seu hodierno período paleontológico e será a potência do homem do futuro, pois o mundo tem vivido sempre e sempre viverá de superações.

Já agora tudo disse a respeito do meu caso. Em A Grande Síntese descrevi as noúres como as senti; aqui descrevo as minhas sensações ao senti-las. Observamos o fenômeno inspirativo em muitos outros casos, superamo-lo tecnicamente e agora concluímos com as consequências práticas. Agora se pode compreender o que é A Grande Síntese. Exteriormente, é uma nova filosofia da ciência com conclusões ético-sociais, uma demonstração racional de problemas científicos e éticos até agora ainda não resolvidos e demonstrados. É uma reconquista de todo o disperso conhecimento humano para levá-lo à unidade. É por esta sua amplitude de visão conceptual que reúne o pensamento religioso e o científico, a gênese mosaica e o evolucionismo darwiniano já expresso pela esfinge egípcia, porquanto, religando-se a todas as revelações, atinge a verdade única e é realmente a obra da unificação. Unificação mais profunda do pensamento humano, mais completa fusão de ciência e fé não se poderia imaginar. A evolução biológica tem seu prosseguimento na ascensão espiritual das religiões, ao longo de uma única linha. A Grande Síntese realizou a audaciosa obra de fazer a ciência flanquear a revelação na mesma linha de desenvolvimento. É também o fato completo a demonstrar a prática aplicabilidade do método da intuição, que nela oferece seus produtos, concretos, úteis. É uma nova pedra do edifício inspirativo, que prova a realidade da captação noúrica e, mais longe, da evolução psíquica em vários planos de consciência.

A Grande Síntese, porém, é algo mais. Possui um seu aspecto interior e é o documento que comprova a existência real do supersensório, atingido através da inspiração. Poderá tudo isso parecer exaltação, entretanto, tudo está preso em cadeias de lógica. As pedras são inertes, o espírito é vivo e audacioso e eu o prendi num cárcere de racionalidade a fim de que esta oferecesse a garantia da seriedade.

No seu aspecto interior e profundo, a Síntese é uma revelação. Num mundo em que todo o ser é constrangido por uma lei feroz a reclamar da carne do semelhante para seu próprio alimento, esta é uma voz que tem um timbre diferente. É uma revelação atingida conscientemente através de métodos precisos de que apresentei a técnica. Sua vestimenta científica é exterior e cobre, realmente, uma substância evangélica que une a Síntese ao desenvolvimento gradual, na Terra, do pensamento de Cristo, que, como vimos, é uma contínua emanação. A Grande Síntese torna a trazer ao seio da vida o Evangelho, que hoje parece constituir suprema utopia, unido à grande inimiga – a ciência – como um novo passo no caminho milenário que conduz à realização na Terra do Reino dos Céus.

Séria afirmação! Ondulou vagamente na profundeza de minha consciência, através de todo este escrito, e somente agora, quando tenho de concluí-lo, encontrou um caminho para explodir em sua plenitude. Eu mesmo não havia avaliado a profunda significação desta ou daquela sentença por mim proferida e este conceito só agora o compreendo, ao investir-me ele como uma revelação. A forma da mediunidade possui uma gradação evolutiva: envolve na direção da forma física; evolve no sentido da forma inspirativa.

“Agora compreendo” o significado da dor, da purificação, da ascensão moral, colocados no caminho da evolução de minha mediunidade, caminho único que me permite alcançar estas noúres mais elevadas que são minha meta. “Agora compreendo” porque, no conjunto dos grandes inspirados, escolhi, instintivamente, por simpatia, os inspirados da revelação cristã, apartando-me dos outros, embora também grandes. “Assim, compreendo agora” que me movo na linha da inspiração cristã e reconheço com que imensa noúre que me acho em sintonia. Entendo porque ao traçar a história dos grandes inspirados, anteriores ou posteriores a Cristo, sempre os vi, encaminhando-se para Sua figura, central no mundo, e eles me apareceram naturalmente unidos em corrente na linha de lógico desenvolvimento desta grande noúre em cuja esteira também se arrasta minha inspiração. “Agora compreendo”, todo o significado de A Grande Síntese e como existe, na verdade, essa grande noúre cristã que, de Moisés até hoje, jamais silenciou.

Com tudo isso, quero indicar apenas a direção de proveniência da minha fonte noúrica que, localizando-se no Alto, está próxima daquela unificação em que tudo se funde em Deus. Não é Ele a fonte de todas as coisas? Que há de extraordinário em uma inspiração descer do Alto? Por que essa grande potência central deveria estar ausente, distante da Terra? Não existe lá para erguer continuamente as criaturas no caminho das ascensões do espírito? Falo do Cristo cósmico, imensamente maior que o Cristo histórico. Com isso, repito, somente indico a direção, porque, como já disse, a luz, filtrada através de potências intermediárias e noúres de redução, não sei quanto teve de ofuscar-se para chegar até mim, não obstante minha tensão ascensional e isso por causa da opacidade de minha mediação; na registação, certamente o pensamento original assinalará traços de meu cansaço e de minha inferioridade humana. Nada disso é prodigioso; tudo é lógico, normal.

O martírio era um meio feroz, necessário em tempos ferozes, para fazer compreender a verdade a uma humanidade feroz. Já não é ele hoje necessário porque se entendeu a psicologia de reação que as perseguições geram e é, por isso, considerado ato de má política. Atualmente, importa trabalhar não com o sangue, mas com o pensamento.

O momento histórico justifica essa descida de pensamento dos planos superiores, e já vimos que a História é uma consciência viva que lança forças próprias e produz os acontecimentos necessários à sua evolução. O momento histórico é grave. Há, em seus eventos, um preparar-se de maturações solenes como jamais houve em tempo algum. Encontramo-nos numa grande curva da História do mundo e todos a pressentem. A humanidade está lançando as bases do novo milênio, está jogando a carta de sua salvação ou de sua ruína. Há hoje aquela mesma plenitude da civilização romana que se precipitou nas invasões bárbaras, a mesma plenitude da realeza da França que se precipitou na Revolução.

Importa dar novamente à Europa a consciência da unidade de civilização e de destino; depois da conciliação política entre o Estado e a Igreja, na Itália, urge atualmente esta maior conciliação espiritual entre a ciência e a fé, no mundo; é necessário encontrar em Deus a unidade fundamental da verdade e do pensamento. Existe, porém, nas almas o desejo da verdade e a cisão entre ciência e fé é um caso de involução. A evolução, entretanto, é a grande lei da vida, é irresistível lei de unificação.

As civilizações se cansam; só o espírito pode dar-lhes a força capaz de rejuvenescê-las. E o espírito está no Alto, sob a direção de Cristo, Que está presente, sabe e vela.

Compreendido o mecanismo interior da vida e da sua evolução, tudo isso é lógico. É lógica também esta minha sinceridade. Agora, pode-se entender como este segundo volume é necessário para esclarecer, no mais íntimo, A Grande Síntese, que, de outro modo, poderia permanecer ininteligível, mas interpretada em sua linguagem, por vezes audaz e apocalíptica, a ponto de poder parecer ironia se aceita como produto de minha consciência normal.

Eu mesmo deveria e só eu poderia explicar certas coisas. Através desse dobrar-se sobre mim mesmo, tinha de chegar a compreendê-las.

Com o presente volume, não apenas cumpri um novo dever, mas este trabalho de reflexão foi indispensável sobretudo para mim mesmo, para minha própria compreensão.

Fiz, neste escrito, afirmações graves: elas me empenham. Destruí as pontes à minha retaguarda: não mais me é possível retirar-me. Este também era um dever meu.

Que sucederá agora? Aonde me conduzirá a evolução de minha mediunidade? Que novos conceitos registará minha captação noúrica? Que nova maturidade espiritual e sensibilização perceptiva me trará o futuro? Que sucede nas profundezas de meu destino? De qual meta, na eternidade, me aproximo eu?

Espero a maturação de meus estados interiores e através dela o contato com novas correntes de pensamento que revelem, primeiramente a mim mesmo, qual seja a direção que deve assumir meu trabalho. Sei que a fonte de pensamento é inesgotável. Entretanto, o que seja que possa acontecer, de uma coisa estou certo: o passado não morre; o passado é a base do futuro, no qual sempre ressurge e, por isso, jamais foi vivido em vão.

Quando, do estudo do meu pequeno caso, nos elevamos à interpretação dos gigantescos casos da inspiração, devíamos ter percebido que a ciência com suas concepções é muitíssimo pequena para contê-los, pois eles envolvem algo de sobre-humano, indispensável para sua compreensão, e fatores transcendentais que a ciência ignora. Existem no fenômeno elementos substanciais e determinantes que encontramos em todos os casos, que representam, portanto, suas características fundamentais, elementos não menos reais por serem imponderáveis, embora a ciência moderna, por suas premissas e orientações, se houvesse tornado incompetente para apreciá-lo.

Para trazer o fenômeno aos termos da psicologia científica moderna, impõe-se uma redução, quase uma mutilação do próprio fenômeno, em seu aspecto técnico e mecânico, qual é o da psicologia. É este lado particular, técnico e científico, do problema que vamos aprofundar neste capítulo. Buscaremos, simultaneamente, elevar a ciência, infantil neste campo, até à compreensão destes fenômenos e das forças imponderáveis que os governam.

Temo-nos movido, até agora, num campo supercientífico, num mundo de sonhos, de emoções e de esperanças, o mundo do espírito. Para quem o sente, tudo isso já é por si mesmo supremamente persuasivo. Agora vou mudar a engrenagem do meu pensamento e falar a quem não sente, a quem, para convencer-se, tem necessidade de tocar, medir, experimentar. Importa, porém, considerar aqueles fatores espirituais, embora exista quem os negue por não os possuir na própria consciência, porquanto constituem fatores integrantes do fenômeno, fundamentais na definição de seu desenvolvimento. De resto, já afirmei que eles são produto de estados evolutivos que se elevaram além da mediania. É óbvio, pois, que somente através de uma descensão eles se possam reduzir aos limites da psicologia normal da realidade sensória.

Assim, pois, ao falarmos sobre vibrações e ondas, recordemos que apenas tocamos a fase perceptiva humana do fenômeno, a última e mais baixa zona da transmissão noúrica, seu termo inferior e seu momento final de chegada, que é o mais compreensível por ser o mais próximo da fase sensória que chega ao contato humano. A fase mais elevada é uma emanação abstrata, supersensória e superconceptual, que se verifica numa outra dimensão de consciência e num outro plano de evolução, fase que a ciência e a própria psique humana normal não podem perceber e conceber por falta de meios, a não ser que haja uma redução dimensional, que é justamente o que a recepção inspirativa opera nas correntes noúricas.

Quando, na fonte, nos encontramos num nível evolutivo supertemporal e superespacial, é absurdo pretender compreendê-lo inteiramente nos termos de uma pura questão técnica. No seu estado de emissão, a noúre não é ainda pensamento, qual normalmente o concebemos. Para falar nos termos da psique normal, eu mesmo tenho de operar uma redução da emanação originária e de minha percepção dela à dimensão pensamento, que é um estado vibratório muito mais denso; operarei um regresso involutivo ao mundo mais concreto das oscilações da matéria, vestindo a irradiação primitiva de um invólucro físico que lhe permita estimular a reação sensível da psique imersa nos centros cerebrais. Recordemos, pois, que este estudo do fenômeno no seu menor aspecto técnico não o abrange senão no plano humano de chegada e não no sobre-humano, de partida. Neste estudo, a fim de atingir a solução desses inexplorados problemas, para a qual não encontro no conhecimento humano elementos guiadores, servir-me-ei, quando não me bastarem cultura e razão, do método intuitivo e da pesquisa por captação de correntes noúricas. Neste momento, sinto que apenas possuo uma ideia vaga e inicial do assunto, mas sei que, ao escrever, irei tendo resposta a cada interrogação.

Ao estudar o fenômeno, em seus casos grandes e pequenos, já delineei uma sua interpretação sumária; nas características, que vimos retornarem com uma constância que tem um significado, traçamos uma linha fundamental de sua figura. Entre essas características, vimos estar em primeiro lugar a progressividade, pela qual defini o fenômeno inspirativo como um caso normal de sensibilização por evolução biológica, continuada nos superiores estágios de evolução psíquica e ascensão espiritual. O caso, como evolução, é normal; como posição, em face da relativa da mediania, é supranormal. Trata-se de um processo evolutivo de desmaterialização do ser em planos superbiológicos, de um processo de purificação psíquica e orgânica, cujos fatores são dor, renúncia, regime de purificação passional e dietética. A esse respeito já falei nos capítulos: “O Fenômeno” e “O Sujeito”.

Encontramos esses elementos na história dos grandes inspirados. Suprimindo-se esses fatores determinantes, naturalmente o fenômeno se detém ou retrocede. Estes conceitos, embora vão ter a um campo supercientífico, possuem bases científicas, pois representam a continuação da evolução biológica darwiniana, evolução orgânica que, se deve continuar, como a lógica impõe, já não pode ser senão psíquica e espiritual.

Se a ciência materialista, se quer continuar seu progresso, compreenda justamente este problema da desmaterialização do organismo humano, obtida lentamente por progressiva atrofia de funções orgânicas e hipertrofia de funções psíquicas. Refiro-me a posições relativas ao momento evolutivo atual. Também isso é lógico e sobre o assunto já falei. Esses princípios gerais, como sempre sucede na natureza, passam por adaptações no caso particular, que é sempre o de um tipo especializado, e permanecem verdadeiros, embora não apareçam no breve âmbito de uma vida.

Falei em progressividade de sensibilização. O que é a evolução senão um processo de sensibilização contínua? Num primeiro plano temos o mineral, que também sabe modelar-se, sentindo a resistência do ambiente nas formações cristalinas, depois a planta, com uma sensibilidade que abrange a vida vegetativa; em seguida, o animal que vê e ouve, nele se delineia o mundo sensório; logo após, o homem, que da síntese sensória se eleva a uma interpretação racional da vida; depois, o super-homem que, com a capacidade da intuição, supera os limites da razão e sente diretamente o universo. E poderíamos continuar com os seres incorpóreos chamados anjos, através de toda a hierarquia de sua elevação.

O mineral se orienta, a planta sente, o animal percebe, o homem raciocina, o super-homem conhece por intuição – eis a evolução da sensibilidade.

Se, com a civilização, diminui a ferocidade é porque aumenta a sensibilidade, à qual é ela inversamente proporcional. Como se cultivam as plantas, cultivam-se os espíritos e se domesticam os animais. E a planta cultivada perde os espinhos; o animal domesticado, os instintos ferozes; os homens civilizados se enobrecem nos pensamentos e nos atos. É um idêntico e universal processo de sensibilização esse, que absorve a ferocidade. Por isso, a sensibilidade dolorífica dos animais e dos selvagens é muito menor que a do homem civilizado. A reação investe sempre mais os estratos profundos. Os limites do universo são dados unicamente pela capacidade perceptiva e se dilatam à medida que essa capacidade aumenta.

Notamos também uma outra característica do fenômeno inspirativo, comum a certos inspirados, isto é, a crise espiritual em que o fenômeno explode, após uma longa e invisível maturação. Essa explosão se liga a profundas deslocações nos equilíbrios evolutivos e a novas estabilizações em planos mais elevados. Vimos, depois, o problema das melhores condições de ambiente e a importância deste para a pureza da recepção. Existe sempre, para todos os inspirados, uma necessidade de solidão, que funciona como isolante. E também de oração, que é elevação de espírito, que põe a psique em estado de receptividade, o que significa corrente elétrica negativa, necessária para fechar o circuito com a corrente das noúres, que é positiva e ativa. A prece pode ser também um desejo, que auxilia a elevação da tensão nervosa necessária para atingir os planos superiores de consciência, mais sutis, porém, mais potentes, e que representam, portanto, em face das correntes nervosas no estado normal, correntes de alto potencial. Tudo que eleva o potencial nervoso facilita a recepção noúrica, porquanto dinamiza; e na evolução, a desmaterialização é proporcionalmente compensada por esta sua inversão dinâmica. A percepção noúrica, de fato, dá uma sensação de alegria e de potência ao espírito, verificando-se em organismos purificados da animalidade e representando, em si mesma, um raio de ação e sensibilização muito mais vasto que o normal.

Descrevi minhas progressivas posições até alcançar a sintonização com a emanação noúrica, processo de adormecimento da consciência a um potencial normal e de ativação da consciência a um alto potencial, que momentaneamente neutraliza e reabsorve o funcionamento da outra. Começam a delinear-se aqui o significado e o porquê das condições do fenômeno.

Nesta primeira parte do capítulo, procurei eliminar os aspectos mais espirituais e menos técnicos da questão, a fim de sondar o fenômeno até seu aspecto mais simples e esquemático, mais facilmente analisável, portanto. Das outras características, sumariamente indicadas nos primeiros capítulos, como captação consciente e ativa das noúres, individualidade ou natureza de sua fonte, minha capacidade de oscilação entre consciência e superconsciência, sintonização por afinidade entre centro transmissor e meu centro psíquico registrador etc., falaremos no estudo técnico que se segue, que não poderia ser feito na primeira parte, preponderantemente descritiva, mas só agora, que já expus e fixei os elementos de fato.

São dois momentos, estes, que tinham de ser bem distintos: primeiro, a descrição e depois, a interpretação dos fatos; observação exterior de conjunto, de início; e penetração do significado, no final. Compreender-se-á, então, a necessidade de um ambiente bem sintonizado, como o dos bosques e montanhas, dum templo ou do próprio gabinete saturado de emanações noúricas; a necessidade de estados de ânimo de paz e do afastamento de interferências de vibrações psíquicas baixas, que perturbam a pureza da registação; compreender-se-á a necessidade da purificação orgânica e psíquica, processo evolutivo que leva à afinidade com a fonte, possibilitando, portanto, a sintonização, com ela, do instrumento de ressonância, que é toda a personalidade do médium; compreender-se-á o paralelismo que existe entre ascensão espiritual e sensibilização receptiva. Compreender-se-á como o instrumento, como tem acontecido com alguns místicos, possa a princípio interpretar mal, se ainda não se encontra bem maduro; compreender-se-á, no meu caso, a transformação progressiva da minha mediunidade, de passiva e inconsciente, a princípio, a uma forma sempre mais ativa e consciente, em seguida. Compreender-se-á, finalmente, como todos esses fenômenos noúricos, não obstante a diferenciação individual que os separa, encontram sua unidade na grande corrente central que se chama DEUS.

Aprofundemos, pois, o aspecto técnico do fenômeno, focalizando novamente nossa observação. Qualquer fonte de emanação irradia em torno de si um impulso que se transmite. Chamemos essa fonte de centro transmissor. Verifica-se por lei geral, em todos os planos de evolução, inclusive os superpsíquicos e, portanto, superespaciais, este fenômeno de expansão cinética, que é um princípio de unidade e amor que coliga em suas partes e elementos todo o universo. Faltam-me palavras superespaciais, supertemporais e superconceptuais que me permitam exprimir-me; mas, evito qualquer referência às dimensões espaço e tempo, que no centro transmissor não existem mais. Para entender também este aspecto técnico, importa haver compreendido o universo, escalonado como é em suas fases evolutivas, que significam planos ou níveis de existência, de sensibilidade, de concepção. As fases mais concebíveis e mais próximas de nosso universo são matéria, energia e espírito: o universo físico evolve para universo dinâmico, que evolve para universo psíquico; mais além, evoluciona para planos superpsíquicos que, atual e normalmente, constituem para o homem um inconcebível. É preciso haver compreendido e ter presente a teoria da evolução das dimensões, como é desenvolvida em A Grande Síntese, pois, a passagem, por evolução, de um plano a outro, provoca mudança de sua dimensão ou unidade de medida. Volvendo ao conceito inicial: aquele princípio de irradiação lança, nas várias dimensões de evolução, emanações que, ao encontrarem um centro sensível, podem ser registadas. Veremos, depois, se se trata de recepção passiva ou de captação ativa. Este segundo centro é o instrumento receptor.

Então, assim, determinados os dois termos do fenômeno, que é essencialmente um fenômeno de transmissão e recepção, que tem sua correspondência no plano inferior do universo dinâmico, na transmissão acústica e, num nível relativamente mais elevado, na transmissão radiofônica por meio das ondas hertzianas, forma de energia mais evolvida das ondas acústicas.

Trata-se sempre de oscilações no centro transmissor, comunicadas por vibrações do meio (ar ou éter) ao receptor (ouvido ou aparelho radiofônico). As variações ou modulações do impulso originário são repetidas exatamente pelo órgão de chegada, pois os dois centros distantes são aproximados pelo meio, que os torna realmente comunicantes e fundidos numa união de movimento. O símile acústico ou radiofônico não prejudica a espiritual imaterialidade do transmissor, porquanto, efetivamente, o universo, nos seus vários planos, responde a um princípio único que, embora no Alto seja um inconcebível, reflete-se em nosso universo físico, se bem que tornado rude pelo seu revestimento mais denso. No Alto, apesar de nos movermos em dimensões superespaciais, permanece, ainda quando destilado como pura emanação cinética, o princípio que, nos planos inferiores, é transmissão espacial por ondas esféricas. A analogia implica uma redução de potência e de pureza, mas é exata, considerando-se que a vibração ondulatória é a forma de chegada (pensamento) e não a forma noúre, de partida. Por isso, apenas chamamos emanação, a fim de exprimir o mesmo princípio de difusão, recordando, entretanto, que estamos além do plano espacial, dinâmico e do próprio plano psíquico.

Existe, todavia, uma grande diferença entre o caso inspirativo e o confrontado. Ao passo que neste, transmissor e receptor se localizam ambos no mesmo plano de evolução (dinâmico), no caso inspirativo os dois termos comunicantes estão situados em dois planos diversos de evolução e, portanto, em duas dimensões diferentes. Na recepção radiofônica, o período final é acústico como o inicial; a vibração acústica originária é transformada em vibração elétrica para retornar, finalmente, acústica; tanto melhor será a recepção quanto mais o fenômeno final se identificar com o inicial. Houve apenas uma transformação da forma dinâmica menos evolvida e, portanto, mais lenta, menos ágil e veloz porque mais aprisionada na matéria, o som, na forma elétrica, mais evolvida, mais rápida, mais livre da dimensão espacial e que, portanto, domina um campo espacial muito mais amplo. E nisso consiste justamente a utilidade e o progresso da descoberta.

Na recepção ultrafânica, temos muito mais. Não existe apenas uma transformação temporária, com o objetivo único de transmissão, para voltar ao ponto de partida. Em radiofonia, há uma permanência no âmbito da dimensão espaço-tempo do mundo dinâmico. Em ultrafania, atravessa-se uma mutação muito mais substancial e profunda, que não é uma simples transformação de ondas acústicas em elétricas e vice-versa, nem uma simples transmissão espacial. A fonte inspirativa se localiza numa outra dimensão e a transmissão não se dá num sentido espacial, isto é, no campo da mesma dimensão espaço, porém, através de diversas dimensões.

Como já disse, aqui, os conceitos científicos não bastam e é necessário que a ciência faça seus estes conceitos transcendentais, indispensáveis à compreensão também do aspecto técnico do fenômeno.

O centro genético das emanações noúricas não possui nem os caracteres do mundo dinâmico nem os conceptuais do mundo psíquico humano, mas está situado numa dimensão superconceptual de caráter abstrato, onde se encontram os princípios universais. A fonte não vibra, não irradia vibrações no sentido por nós conhecido, sejam elas embora de pensamento; não transmite ondas-energias na dimensão espaço-tempo, mas emana um “quid” absolutamente imaterial, um impulso, uma potência que não se pode definir com os atributos das dimensões de nosso universo. Dessa sua dimensão mais elevada, a emanação deve descer; essa potência deve precipitar-se sobre a dimensão conceptual do pensamento humano e a chamada recepção não pode realizar-se senão em virtude dessa descida.

O fenômeno muito mais complexo da inspiração, e que a distingue da radiofonia, é justamente este. Os dois termos do circuito estão qualitativamente distantes e, portanto, a comunicação, que determina a repetição do impulso originário no receptor, não se pode estabelecer senão através de um processo de transformação dimensional. Este processo noúrico poder-se-ia comparar ao de um transmissor que pensasse ou compusesse diretamente em ondas hertzianas que, para serem percebidas no plano sensório, devem sofrer uma transformação involutiva até se tornarem energia mecânica (vibração da membrana microfônica) e, finalmente, sonora.

Para unir os dois pólos do circuito, é necessário realizar esta inaudita operação, que é a passagem de um plano evolutivo a outro, o que significa mudança de substância, de uma a outra forma sua. Noutros termos, para exprimir a emanação originária como pensamento, dentro do concebível humano, importa operar uma redução de dimensão; essa descida à Terra significa que aquela potência tem de percorrer um regresso involutivo: é esta a condição para que ela possa manifestar-se na dimensão humana do inteligível. Essa redução de dimensão e esse regresso involutivo são um processo de íntima transformação da substância cinética da forma radiante e se realiza não no espaço, mas atravessando várias dimensões de diversas fases evolutivas para chegar, sozinho, ao termo de sua transformação, à nossa dimensão e fase de evolução. O caminho não é, pois, percorrido em sentido espacial mas, sim, em sentido evolutivo, isto é, ao percorrer a dimensão evolução, evolvendo se ascende para o transmissor e involvendo se desce para o receptor.

Como vemos, não obstante a correspondência entre os vários planos, inevitável num universo orgânico regido por um princípio unitário, o fenômeno inspirativo é bem mais profundo e complexo que o fenômeno radiofônico. Se, por exemplo, em telepatia se pode falar de ondas-pensamento porque existe pensamento, na ultrafania falar de vibrações é um absurdo, porquanto a dimensão da zona psíquico-conceptual foi superada. Direi mais exatamente: no fenômeno inspirativo não encontramos a forma vibratória da onda-pensamento senão na extrema fase da recepção, no final da redução involutiva, qual último derivado, por continuidade, da emanação original traduzida em termos do pensamento humano. Por tudo isso se compreende quanto estes fenômenos superam a psicologia experimental de gabinete e como é necessário, para seu estudo, que a ciência se afine e faça seus esses elementos do transcendental.

As duas estações estão, pois, situadas, uma, na fase evolutiva ou plano dinâmico (se se trata de mediunidade à base de percepções sensórias) ou psíquico (se se trata de conceitos como na mediunidade intelectual-inspirativa), isso do lado humano; a outra, do lado super-humano, está situada na dimensão superconsciência, que supera a do psiquismo humano. Não me refiro à mediunidade barôntica ou física, em que o transmissor pode encontrar-se no mesmo nível humano ou ainda inferior a este. E se evolução é desmaterialização e espiritualização, a comunicação entre o transmissor evolvido e o receptor humano relativamente involvido não se pode realizar senão materializando a emanação, o que significa redução de potência e revestimento do conceito abstrato, sintético, instantâneo com a forma do pensamento objetivo; analítico e progressivo na palavra, qual é o humano.

Vejamos, agora, como se pode estabelecer a comunicação entre os dois centros. É evidente que, sendo o universo sempre todo presente em suas várias fases evolutivas e dimensões, os seres atravessam no infinito o limite do perceptível, existindo somente nos meios individuais de percepção e não nos fenômenos. Assim, por exemplo, o ouvido humano não abarca senão uma determinada amplitude na frequência de vibrações dos sons, além da qual não há percepção. É óbvio também que, como com a criação de novos instrumentos e recursos de pesquisa se alcançou a revelação de um novo mundo, do mesmo modo toda extensão de sensibilidade desloca o limite do cognoscível, que é justamente uma função daquela, um relativo suscetível de contínua evolução. O perceptível, pois, não tem fronteiras em si mesmo, mas apenas na relatividade de nossa posição evolutiva; se esta se eleva, automaticamente também se dilata o perceptível.

Já expliquei como evolução é progressividade de sensibilização. A percepção e a concepção do universo são, portanto, relativas à sensibilidade individual, e mudam, dilatando-se, com o progredir desta. Amplia-se a visão do universo à medida que a consciência evolve. Do mesmo modo, também, o concebível é progressivo, a visão da verdade é relativa à potência individual e não pode ser atingida senão por sucessivas aproximações. Se quisermos traduzir graficamente o conceito, poderíamos graduar a sensibilidade progressiva do ser em evolução ao longo de uma escala, nesta ordem: mineral, vegetal, animal, homem, super-homem – capazes de responder a uma gama de radiações sempre mais vasta e profunda. Isso equivale ao processo de exteriorização cinética, que é a substância da evolução; é simultaneamente dilatação de consciência ao longo da linha da sensibilização psíquica e manifestação da Divindade, duplo processo de aproximação dos dois extremos, através do qual a criatura volta ao Criador.

Pode-se, pois, estabelecer para todo indivíduo, conforme o ponto mais elevado que alcançou na escala, uma amplitude de capacidade perceptiva que compreende todas as menores, mas em que se excluem as mais amplas. Para que dois seres, inclusive no mundo humano, possam comunicar-se, isto é, compreender-se, é necessário que usem a mesma linguagem e expressem a mesma sensação do universo, o que significa que sua sensibilidade abranja o mesmo campo de capacidade perceptiva. A compreensão só é possível até onde o campo se sobrepõe, até onde haja coincidência de amplitude. Assim, o mais pode compreender o menos, mas não ao contrário. Experimentemos explicar um conceito abstrato a um ignorante; ele não o compreenderá se não soubermos reduzir a ideia abstrata à sua dimensão conceptual de representação sensória. Esta é a condição da comunicação.

Tudo isso também pode ser dito doutro modo. Se, postos dois diapasões vibrantes à mesma nota, percutirmos um deles fazendo-o vibrar, também o outro se porá em vibração emitindo o mesmo som. Este princípio de ressonância é universal e verdadeiro, tanto no campo acústico ou elétrico, quanto no psíquico e superpsíquico. O contato da consciência com o mundo exterior pelos caminhos dos sentidos é devido justamente a um fenômeno de ressonância. Nisso se baseiam a radiofonia e a telepatia. Muitas vezes quando uma pessoa está para dizer-nos uma coisa, nós já a sentimos no próprio pensamento. “O fenômeno de ressonância consiste no fato de que dois órgãos suscetíveis de oscilações, tendo a mesma característica ou frequência (no caso de um diapasão, o número de vibrações por segundo) podem influenciar-se reciprocamente, se um deles, mediante as próprias oscilações, produz ondas num meio que abranja ambos”. (Eng. E. Montù, Rádio). Também o pensamento pode transmitir-se por ressonâncias quando os centros cerebrais, nos movimentos atômicos de sua estrutura celular, sejam suscetíveis de oscilações que possuam idênticas características. Então, os dois centros psíquicos podem influenciar-se mutuamente, através de um meio comum que receba e transmita suas vibrações. É indubitável que o pensamento seja uma vibração, porém, reduzida a sutilíssima e evolvidíssima forma dinâmica, em vias de superar a dimensão espaço-tempo. Na verdade, a psique humana é um órgão capaz de vibrar e de entrar em ressonância, de transmitir e registrar normalmente correntes psíquicas, porquanto é assim que se forma, se projeta, se comunica e se recebe o pensamento, que, como a luz, circula por toda parte na atmosfera humana e além dela. Assim se transmitem estados de ânimo, sentimentos, além de conceitos. O segredo dos oradores, dos caudilhos que arrastam as massas, está em saber despertar essas ressonâncias. O pensamento vibra no universo, repercute, reage, volve à fonte, une em sintonia os centros distantes, anula-se, acumula-se, soma-se, desintegra-se; nós irradiamos e recebemos irradiações do ambiente humano, dos planos inferiores, do Alto, num mar de noúres, de vibrações infinitas. Cada um entra em correspondência como sabe e como pode, conforme sua capacidade; mas, a consciência do sensitivo é uma caixa harmônica fremente de todas as irradiações do universo.

A telepatia outra coisa não é que um fenômeno de ressonância. Ressonância significa sintonização no mesmo estado vibratório, base da percepção sincrônica. Significa simpatia, afinidade. E por ressonância não só se transmite, mas também funciona o pensamento, que é levado a mover- se por conexão de ideias, que é sua forma de menor resistência. As ideias se atraem espontaneamente por afinidade. Sua reaparição na consciência se deve à excitação de um estado vibratório que se propaga às formas semelhantes, capazes de ressonância. Os caminhos da mnemônica são os caminhos dessa ressonância por conexão. As estradas reais da consciência coletiva são as da ressonância. A compreensão é um fenômeno de ressonância. O pensamento, finalmente, tende, como todas as formas menores do mundo dinâmico, à difusão e, uma vez projetado, é indestrutível.

Tudo isso nos conduz às mesmas conclusões do início. Para que se efetue a comunicação entre os dois centros é indispensável a mesma capacidade de ressonância, isto é, que eles sejam suscetíveis de deslocamentos cinéticos, dotados das mesmas características. Ora, para obter isso é necessário partir do mesmo equilíbrio, cinético, isto é, importa achar-se no mesmo grau de evolução e de sensibilização que abranja o mesmo campo de capacidade perceptiva ou conceptual. Só então pode realizar-se a sintonização. A base desta, portanto, é a afinidade. Para que se possa estabelecer a comunicação é necessária uma sintonização entre a consciência do médium e o centro de emanação, um estado de simpatia que permita a atração, um estado complementar e de semelhança que estabeleça a fusão. As leis de afinidade se encontram na base de todos os fenômenos, inclusive daqueles comumente controláveis, de atração psíquica. Eis porque tanto tenho insistido sobre o paralelismo entre sofrimento e mediunidade inspirativa, justamente porque o primeiro é instrumento de evolução, que é sensibilização conducente à afinidade com os mais altos centros transmissores. A recepção noúrica, que é comunicação com centros superevolvidos exige a ascensão espiritual até àquele nível. Para que se possa estabelecer o contato com a fonte, é necessário que a consciência se sensibilize por evolução, até o ponto de atingir uma amplitude de capacidade perceptiva que se sobreponha à da fonte: esta é a condição da compreensão; importa adquirir por ascensão de espírito a capacidade que lhe permita responder às sutis emanações noúricas. “Para comunicar-se, o espírito desencarnado se identifica com o espírito do médium e esta identificação não se verifica senão quando existe entre eles simpatia, pode dizer-se mesmo, afinidade”, diz Allan Kardec no seu O Livro dos Médiuns (Cap. 22): “A alma exerce sobre o espírito livre uma espécie de atração ou de repulsão, conforme o grau de semelhança ou diferença entre eles; ora, os bons sentem afinidade pelos bons e os maus pelos maus, donde se segue que as qualidades morais do médium têm uma influência essencial sobre a natureza dos espíritos que se comunicam por seu intermédio. Se ele é vicioso, em torno dele se agrupam espíritos inferiores, sempre prontos a tomar o lugar dos bons espíritos que foram chamados. As qualidades que atraem, de preferência os bons espíritos, são: a bondade, a benevolência, a simplicidade de coração, o amor ao próximo, o desprendimento das coisas materiais; os defeitos que os afastam são: o orgulho, o egoísmo, a inveja, o ciúme, o ódio, a cupidez, a sensualidade e todas as paixões por meio das quais o homem se prende à matéria. Todas as imperfeições morais são outras tantas portas abertas que dão acesso aos maus espíritos.”

Temos, portanto, dois centros, transmissor e receptor, situados em planos diversos de evolução. Comunicam-se pelo princípio de ressonância, que se dá somente quando exista capacidade de vibração em uníssono, o que sucede, por sua vez, apenas quando os dois centros se encontram no mesmo nível evolutivo, isto é, de sensibilização, perfeição moral e potência perceptiva conceptual.

Kardec considera particularmente o lado moral da afinidade, mas evolução é ascensão de todo o ser e implica também uma sensibilização às ressonâncias mais sutis, uma expansão perceptiva e uma potencialidade conceptual. O fenômeno da mediunidade intelectual inspirativa é, pois, um fenômeno de sintonização, cuja condição é a afinidade. O problema da comunicação reside, portanto, na afinidade. Há uma distância qualitativa de capacidade e de correspondência, entre os dois centros e é preciso preenchê-la. Para sua união, em sintonia, se impõe, então, uma transformação e são dois os casos: ou a transformação se processa por obra do transmissor, que faz descer suas emanações (os dois centros são ativos e conscientes) até o nível perceptivo sensório do receptor, e este é o caso das condições acústicas, visões óticas e outras percepções sensórias de vários místicos, cuja fonte, embora de efeitos físicos, se distingue sempre das produções barônticas pela elevação da proveniência demonstrada pelo tipo de aparição e pelo seu elevado conteúdo moral. O encontro, pode, assim, dar-se também no plano sensório humano, se esta via é a de menor resistência, dadas as características do médium. Este pode ser um santo do sentimento e da bondade e não da intelectualidade, não especializado, portanto, no lado psíquico, até a superconsciência. Ou então, segundo caso, a transformação se efetua por obra do receptor que, pelo seu grau de evolução, sabe elevar-se por si mesmo até o plano conceptual do transmissor. Este é o meu caso de mediunidade intelectual inspirativa e consciente. Agora se começa a compreender sua estrutura e seu complexo funcionamento.

Neste caso, sabendo a distância que o separa da fonte inspirativa, ascendendo ele próprio à escala evolutiva e alcançando a afinidade, que é base do fenômeno da ressonância, e isso no campo particular (moral, intelectual, artístico, heroico) que diz respeito à comunicação32. O inspirado deve saber emergir ativa e conscientemente na dimensão conceptual própria do centro transmissor e, para atingi-lo, deve haver atravessado todo o tormento de sua purificação, porque só esta pode sensibilizá-lo até à captação das noúres mais elevadas. Se, atingida a imersão numa atmosfera rarefeita, a recepção é espontânea, agradável, dinamizante, o esforço - não só da longa maturação evolutiva, mas também o imediato, de colocação em fase de alta sintonização e de atingir a necessária tensão nervosa em alto potencial - é todo do médium. E ele tem de manter-se, demorada e normalmente, em casos de registações volumosas, naquele estado de tensão; tem de suportar sozinho, sem conforto e sem compensações humanas, a exaustão orgânica subsequente e a tristeza na solidão que sucede ao esforço supranormal. Atingida a noúre, ele deve manter o contato em perfeita consciência, tudo relacionado e conservando completamente a própria lucidez e potência de análise. Finalmente, embora imergindo numa diversa localização em fase de consciência, o inspirado não deve fechar as pontes atrás de si e sim deixar unidas sua superconsciência e sua consciência normal, a fim de que seja possível, após haver subido evolutivamente, descer involutivamente para transmitir à sua consciência comum e com esta aos seus semelhantes, o conteúdo de sua visão.

Indispensável é, pois, saber manter desperta a consciência nos diferentes planos, não só no Alto, mas também nos planos inferiores e saber sustentar as já referidas união e comunicação para poder sempre surgir à superfície da consciência humana normal. Continuamente se faz preciso o dinamismo dessas deslocações, que permitem a tradução das sensações e concepções de um a outro plano. O inspirado tem, pois, não só de dominar uma amplitude perceptiva amplíssima, em que sua sensibilidade é posta a dura prova; seu ouvido psíquico não deve captar somente uma gama musical imensamente mais ampla que a do concebível humano; tem ele que possuir rapidez de mutação interior, agilidade de deslocação ao longo da linha da evolução, presteza de adaptação às sucessivas focalizações dos vários visuais de perspectiva. Sem essas qualidades, seu trabalho seria impossível. E essas deslocações ele tem de efetuar sem descontinuidade, sem zonas de inconsciência, sempre cientemente. Deve movimentar-se comodamente de um a outro extremo, seja na pequena consciência sensória e racional, apropriada aos conceitos analíticos e ligados à vida humana, seja na consciência intuitiva, adequada aos grandes conceitos longínquos, abstratos e sintéticos do absoluto. Somente neste caso se pode falar de mediunidade inspirativa consciente, a que domina o fenômeno, sente, joeira e escolhe as correntes, controla seu pensamento, julga-o e aceita-o. Quando o grau evolutivo do ultrafano é inferior ao da noúre captada, então a redução dimensional não pode efetuar-se em sua consciência e tem-se a mediunidade mais comum, passiva e inconsciente, em que o sujeito é um mero instrumento que regista sem compreender. O verdadeiro ultrafano consciente tem de realizar, nas profundezas de seu eu, um laborioso esforço, pois, funciona como transformador de emanações noúricas em vibrações-pensamento, como instrumento de redução do superconsciente inconcebível ao consciente concebível. Se não executasse essa descida psicológica não saberia exprimir-se e se conseguisse expressar-se seria julgado um louco. Além de tudo isso, deve ele possuir também a memória precisa de seus complexos estados, para poder oferecê-los como elementos de observação; deve ter igualmente qualidades de auto-análise e introspecção, que lhe permitam analisar e interpretar o fenômeno e apresentar e usar o método intuitivo na pesquisa sistemática do inexplorado científico.

No meu caso, a registação dos conceitos não é recepção passiva, mas captação ativa, de sinal não negativo, mas positivo. Minha inspiração pode ser definida, então, como mediunidade intelectual (registação de conceitos), inspirativa (isto é, proveniente dos mais elevados planos de evolução), ativa (isto é, por captação) e consciente (nos vários planos e dimensões). Tudo isso se torna para mim um método normal de pesquisa por intuição, uma verdadeira técnica de pensamento, um sistema intelectual e cultural que domino perfeitamente.

Já descrevi os meios com que o consigo e conservo. Se particulares condições são requeridas, isso não tira o valor dos resultados práticos que com ele obtenho e que constituem um fato.

Nos descritos estados de adormecimento da consciência normal, eu realizo, por iniciativa e esforço próprios, a transformação acima descrita, que faz ascender meu eu consciente a uma dimensão superior. E quando a visão superespacial, instantânea e abstrata, atravessa minha sensibilidade, devo saber descer novamente ao nível psicológico normal, realizando a transformação em direção inversa, pois que sem isso não me seria possível comunicar-me nem me fazer compreendido. Devo, assim, saber oscilar ao longo da escala da evolução e da involução, com diferentes focalizações de consciência, que me permitam exprimir, em termos racionais e de análise, a intuição sintética que em sua forma originária é inexprimível.

O que descrevi é, sobretudo, a técnica funcional do meu fenômeno, que melhor que ninguém eu conheço. Assim, confiando-me, nos pontos mais salientes, à intuição, defini o problema, para mim também até agora incerto, de minha inspiração.

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Estabelecida, assim, a estrutura central do fenômeno, completemos-lhe a interpretação em outros aspectos seus.

O pensamento é, portanto, totalmente uma noúre e se comunica e ecoa de centro a centro; o universo está saturado de emanações conceptuais que são percebidas todas as vezes que o ser, por evolução haja alcançado o grau de sensibilização suficiente para entrar em ressonância. No plano dinâmico e psíquico, o universo aparece ao sensitivo como um oceano ilimitado de irradiações de todo gênero. Essas emanações, cada uma em seu nível, em formas diversíssimas, obedecem ao mesmo princípio universal de expansão, coligam o universo em todas as suas partes e representam o órgão de sua sensibilidade física e psíquica. Quanto mais se ascende evolutivamente mais sutilmente se sente o universo, mais claramente se percebe e concebe a si mesmo. A consciência altíssima que conhece todo o funcionamento do grande organismo é a ideia diretriz de Deus. É este o Centro a cuja direção ascendem os vários planos da evolução, a meta longínqua a que tendem esses sobrepujamentos de consciência e de dimensões. Eis porque o conteúdo da mediunidade inspirativa é a revelação, eis porque ela conduz à unidade e à verdade.

Isso nos faz compreender como somente em nosso mundo involvido em que o pensamento é continuamente estorvado em sua circulação pelas resistências da matéria, ele se possa conceber aprisionado, separado, na forma da individualidade humana. Somente nesses planos mais baixos o pensamento pode permanecer diferenciado, entre barreiras pessoais; mais no alto, ele circula livremente, fundindo com facilidade na mesma ressonância os centros hipersensíveis, que assim se unificam no mesmo modo de ser e cujo timbre é definido pela corrente de seu plano. Nesse nível, a forma do ser é psíquica, não mais física; não é mais um corpo, mas um estado de consciência e é definido pela irradiação naturalmente dominante naquele plano, em que os seres automaticamente se equilibram, pelo seu peso específico, na escala da evolução. Como estamos vendo, é possível defrontar e resolver problemas de alta teologia com os conceitos mais exatos da psicologia científica.

Pode-se, agora, melhor compreender o que já foi dito sobre o problema da individualidade do centro transmissor, o que já foi por outrem percebido, isto é, que essa voz inspirativa “não deve ser entendida como um ser invisível individual, mas como uma emanação de energias espirituais fundidas num feixe”. (Ferder, O Ciclo Progressivo das Existências).

Quando a inspiração toca um certo nível, não mais se pode falar de uma entidade como centro psíquico, num sentido pessoal humano; não se pode definir nem limitar a fonte a um nome; pode-se apenas indicar a direção de proveniência e falar de planos de evolução e de correntes noúricas que as percorrem e definem.

Foi nesse sentido que falei de Cristo como centro de emanação, fonte de revelação, corrente de pensamento sempre presente que governa o mundo. Somente esta concepção cósmica do Cristo, muito superior à histórica e humana, pode dar-nos o sentido de Sua divindade e de Sua presença, atividade e função histórico-social. A imprensa sul-americana, com muita precipitação e simplicidade atribuiu, sem mais, a Cristo as Grandes Mensagens e A Grande Síntese, pelo seu sabor evangélico. É preciso, porém, compreender quanto é perigoso e anticientífico definir, de forma tão categórica, uma proveniência que reduz o Cristo à comum concepção histórica humana; é preciso entender que o Cristo real não pode ter, em Sua essência, nenhuma forma em nosso concebível, que não o alcança e encerra senão reduzidamente. No meu caso, pois, só se pode falar de direção da descida das noúres; pode-se dizer que, desde a direção, ninguém sabe quão longínqua e de qual vertiginosa altura, que tem seu início em Cristo e na Divindade, procede uma noúre, através não se sabe de quantos planos e sofrendo desconhecidas reduções de adaptação, até o plano em que minha mais alta consciência inspirativa, ascendendo fatigosamente, pode captá-la, para realizar o último e certamente o mais rápido caminho que devia levá-la à forma da psicologia humana.

“A vós venho do Alto e de muito longe” – diz Sua Voz na “Mensagem do Perdão”. “Não podeis perceber quão longo é o caminho que nós, puro pensamento, devemos percorrer a fim de superar a imensa distância espiritual que nos separa de vós, imersos na terra lodosa. Vossas distâncias psicológicas são maiores e mais difíceis de serem vencidas que as distâncias de espaço e de tempo”.

Isso significa distância conceptual da fonte e longo caminho percorrido, isto é, redução dimensional operada para superar aquela distância e descer daquela altitude ao nosso plano de evolução: distâncias psicológicas, evolutivas, de dimensão conceptual. Só agora, que delineamos este estudo técnico sobre as noúres, podemos compreender qual processo de redução implique essa descida de correntes espirituais, qual série de filtragens seja necessária, através de vários planos, para que a luz seja perceptível e a irradiação acessível; quantos intermediários, de gradual transparência espiritual, devam colaborar para que a cegueira espiritual do intermediário possa alcançar o alto e a potência conceptual possa chegar, límpida, sem ofuscar-se, ao plano terreno. Nesse complexo processo, muitos auxílios são necessários ao lado de meu esforço e, não obstante minha forma de mediunidade inspirativa consciente, grande parte da transformação tem de se realizar fora de minha consciência, em planos superiores aos que me são acessíveis; um trabalho de preparação, que ignoro, tem de realizar-se acima de mim, para trazer a noúre até o plano de minha captação. O fenômeno é vasto, feito de diversas colaborações, através de gradações de pureza e elevação de que sou apenas o último termo, o mais baixo e involvido. No alto, como realidade objetiva e científica que eu sinto, se acha um coro de hierarquias que gravitam, de esfera em esfera, na grande luz de Deus; até os planos inferiores se prolonga a hierarquia e a Terra recebe as irradiações do Alto e é guiada.

Após tudo isso, compreende-se melhor que o problema para mim fundamental, como primeira condição para minha captação noúrica, é o da ascensão espiritual; compreende-se como, para mim, a questão da mediunidade e a do aperfeiçoamento espiritual devem coincidir.

Se a fonte da inspiração está no Alto, eu devo viver sempre estirado para o Alto, para poder atingi-la. Sou uma antena, sensibilizada pela dor, que deve elevar-se o mais possível aos planos superiores, a fim de trazer deles ao nosso suas concepções. Quanto mais me purificar a mais alto poderei subir e mais se ampliará meu raio de sintonização e captação. Em ultrafania, vigora a lei de afinidade. É princípio geral que cada médium não pode entrar em sintonia consciente senão com a noúre do próprio nível evolutivo. Isso porque a recepção inspirativa não se deve a uma transmissão individual, mas é uma imersão minha numa corrente de pensamento ou atmosfera conceptual, em sintonia com a qual se determina a forma de minha consciência. Por isso, se eu descer moralmente me dessensibilizo também e perco a consciência daquele plano de noúres, densifico meu peso específico e perco a capacidade de mover-me naquelas alturas. Devo afinar diariamente o delicado instrumento da minha ressonância no sofrimento e no desapego, a fim de poder facilmente superar, sem correspondência, o mar das noúres envolvidas e barônticas que me circunda. Devo sensibilizar, cada dia, o ambiente para que, por diferença de sua natureza, permaneça surdo às vibrações mais baixas e se lance, pelo contrário, para o Alto, somente vibrando se percutido por emanações elevadas. Do mesmo modo que a onda elétrica, por ser mais evolvida é também mais potente e mais livre que a onda acústica, isto é, domina um raio de ação mais vasto, chega mais depressa e mais longe porque mais supera a dimensão espaço-tempo, também a emanação ultrafânica, captada pela minha recepção, quanto mais estiver situada evolutivamente no Alto, quanto mais é poderosa e livre e mais amplamente supera os limites das dimensões inferiores, tanto mais vasto é o campo conceptual que domina. De qualquer modo, quanto mais elevada for, mais poderosa será. Quanto mais eu subir evolutivamente mais potente será a fonte que poderei atingir, mais se dilatará, pois, o raio de minha captação conceptual, mais profunda será minha visão das verdades absolutas. O progresso e o fortalecimento de minha inspiração provém inteiramente de meu progresso espiritual, porquanto basta subir para saber. Eu não estudo em livros, mas leio na vida. “Há mais coisas no livro de Deus que nos vossos” – dizia Joana d’Arc – “e eu sei ler num livro que vós não sabeis ler”. A sabedoria mais profunda é dada pela evolução e não pela cultura. Isso poderá parecer absurdo em face da psicologia prática, mas os fenômenos têm uma lógica e é preciso segui-la até às profundezas.

Compreende-se, deste modo, como eu situo o problema de minha mediunidade inspirativa e porque acredito que assim se deve orientar o estudo dos casos de ultrafania elevada. Ao passo que a grande distinção da mediunidade comum é entre vida terrena e além, a minha diferenciação fundamental é entre involvido e evolvido; meu problema mediúnico é problema ético, é o problema da ascensão do universo e, enquanto imerge suas raízes na mais baixa animalidade, expande suas ramificações no céu das dimensões superconceptuais. No meu caso, por isso, não tem sentido, deixando-me indiferente, a comunicação com os espíritos desencarnados que, situados mais ou menos em nosso nível, nada sabem, nada têm para dizer-nos, repetindo as velhas e pobres coisas humanas.

A mim urge, ao contrário, superar este plano humano em que vivos e mortos se agitam e em que se permanece sempre aqui em baixo, na sombra. Hamlet dizia: “ser ou não ser”. Eu digo: subir para saber, eis o problema. Estabelecida a premissa, demonstrada em A Grande Síntese, da evolução das dimensões e da ascensão dos seres através de planos de sensibilidade, de perfeição moral e de potência conceptual; estabelecido o monismo, também em A Grande Síntese demonstrado, isto é, um universo gerado por um princípio único – Deus – e admitida, finalmente, esta teoria, já agora evidente, por mim realizada, da percepção noúrica por sintonização, compreende-se como minha mediunidade não pode ser senão a forma da evolução psíquica e espiritual do homem, o repetir da aspiração de todo o universo, a encaminhar-se para seu centro, Deus.

Minha mediunidade, por isso, é religião, ora e adora, assim se coloca em face da ciência, porque possui e demonstra a verdade. O fenômeno da minha captação noúrica está aberto diante da eternidade. Sinto que, através dele, de corrente em corrente, de esfera em esfera, eu me remonto àquele divino centro de poder e de conceito. Sinto que Ele me chama das profundezas do meu eu e das profundezas dos seres. Imergindo por meio de minha mediunidade, nos estratos mais íntimos de minha consciência, sinto que, através deles, subo aos vários planos evolutivos e que meu espírito encontra a unidade, o princípio, a substância, o absoluto. Nas entranhas do relativo e além dele, sinto a verdade imóvel em torno da qual ele vai girando no vórtice da evolução. Porque a direção das noúres está nas profundezas do nosso eu e das coisas, onde se encontra Deus.

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Dirijamos agora o olhar para o outro extremo, mais baixo e mais acessível, do fenômeno. É evidente que, em suas zonas superiores, o fenômeno não pode ser atingido pela observação e que, além destas declarações que só eu posso fazer, o fenômeno permanece em sua fase de origem, cientificamente incontrolável. Pensemos na relatividade de nossa posição na escala da evolução intelectual dos seres e como nosso maior gênio representa uma redução de dimensão, um meio denso e material em relação a fases mais evolvidas e espirituais. Já nos espantam a instantaneidade do pensamento e a profecia, que domina o futuro, e estas são apenas as primeiras vitórias sobre a dimensão temporal. A ciência, produto da psique humana, não pode possuir os meios de observação que supera a capacidade da própria psique.

Em sua origem, a noúre elevada da revelação não é pensamento que se transmite esfericamente, por ondas, embora através dum meio sutilíssimo, aos últimos limites da dimensão espacial; é, porém, emanação de um superior estado cinético da substância que, transportado ao nosso concebível, constitui uma realidade inimaginável, porque estendida numa gama de estados cinéticos com os quais a psique humana normal não sabe entrar em ressonância (compreensão).

A noúre penetra na zona do perceptível normal somente em sua fase de chegada, assumindo a forma vibratória de pensamento só depois de concluído o processo de transformação involutiva na consciência do médium. A ciência não possui, por isso, outro meio de pesquisa, não pode atingir o fenômeno senão através desse instrumento. Não existe nenhum veículo mecânico que possibilite a alguém percorrer a dimensão “evolução”, senão o próprio eu que evolve. Não existem meios para captar o supersensório a não ser esse órgão ultrafânico que funciona como transformador noúrico ou redutor de dimensões. Não resta, pois, à ciência senão uma observação indireta do fenômeno, tal como aparece refletido na psique do médium inspirado. Por isso, quis analisar o meu caso porque só eu o tenho, completo e à mão, para as observações. Só reunindo na mesma pessoa a função da ciência que observa e a do ultrafano que sente e regista, se pode estudar intimamente o problema. Outra pessoa, embora mais sábia, não possui o contato direto com os fatos do meu mundo interior. Somente eu assisto ao processo de minha captação noúrica e não me é permitido fazer com que outros a ele assistam senão através destas minhas descrições. Para estes, não existe senão a possibilidade de estudo das minhas declarações e da estrutura psicológica das registações conceptuais por mim realizadas. Permanecerão de fora, contudo, porquanto as mesmas leis do pensamento, que também agora permanecem reais, não me permitem comunicar minhas sensações senão a quem é capaz de entrar em ressonância com tal ordem de vibrações; e quem não puder, não compreenderá. É natural, pois, que muitos neguem, porque não acham nenhuma correspondência na própria sensibilidade. Nada por eles posso fazer. Não se pode fazer ouvir o som a um surdo nem fazer ver a luz a um cego. Os fatos, porém, permanecem, representando um enigma, e com a acusação de desequilíbrio neurótico me será atribuída a paternidade absoluta de A Grande Síntese, o que esta o desmente com toda a evidência. Para todos permanece indestrutível o produto do processo inspirativo, a verificação de que é difícil consegui-lo com os recursos culturais normais; permanece a lógica desta minha interpretação, uma construção conceptual que se estende através de todo este volume só para sustentar uma inexplicável humildade que renuncia a fazer próprio um produto intelectual que eu tinha a meu alcance.

Desçamos, agora, da altura da emanação noúrica ao nível humano, onde se detém a transmissão e se fixa a recepção. O último termo da transformação noúrica, o mais baixo processo fenomênico, a zona de máxima involução está no organismo nervoso-cerebral do médium. Já mostrei que importa elevar o potencial nervoso para atingir a percepção noúrica. É-me necessário, por isso, um aumento de tensão elétrica, que me permita entrar em ressonância com a corrente noúrica, assumindo uma frequência maior (intuição) do que a racional normal. O período de adormecimento da consciência normal, que inicia a recepção, é o trabalho de colocação em fase, com uma frequência de percepção superior à normal, saindo da ordem de vibrações comuns para sintonizar com outra mais poderosa. A vontade é uma irradiação mais involvida, proveniente de uma frequência vibratória inferior e cuja presença tem um poder destrutivo desses mais evolvidos e delicados estados vibratórios que permitem a sintonização com a noúre. Por isso, o inspirado é um sensitivo e raramente um volitivo, dominador e apto para dirigir, tipo que, diante de tais problemas, por sua vez, é impotente.

Tudo isso explica o trabalho de sintonização ambiental que auxilia minha registação, a necessidade que tenho de encaminhá-la a uma harmonização vibratória de meu próprio eu, e esta quanto mais se eleva mais tem de ser profunda. Daí o fato de um afrouxamento de tensão de minha parte, por cansaço ou por distúrbios no ambiente, poder produzir verdadeiros fenômenos de evanescência, analogamente ao fenômeno de evanescência (fading) das radiotrans-missões. Em sua zona mais baixa, o fenômeno tem características elétricas e é constituído na verdade, no plasma cerebral por disposições de cinética atômica. E o átomo é um organismo elétrico.

Essa oscilação, pois, que meu ser psíquico tem de realizar ao longo da escala de evolução e involução para ascender a uma dimensão superior e depois reduzi-la à normal, se reflete em sua zona mais baixa, em mudanças de potencial, de tensão e de frequência vibratória no meu sistema nervoso e cerebral. A transformação de dimensão, iniciada pela emanação originária por processos imateriais supersensórios, incontroláveis pela observação à medida que desce involutivamente, vai-se tornando acessível aos métodos da ciência, porque se manifesta, finalmente, em forma de onda-pensamento no meu cérebro e termina através de movimentos musculares da mão sobre a ponta da pena. Esta é a fase final, a mais densa, da materialização da noúre. O pensamento, que antes era móvel e fluido, solidifica-se agora na palavra, cristaliza-se numa forma imutável. O pensamento, que antes eu sentia completo, instantâneo e contemporâneo, justamente porque numa dimensão supertemporal, devo transformá-lo, na redução, em consecutivo e filiforme como sua palavra: redução de dimensão volumétrica a linear.

O momento em que o fenômeno se torna tangível é o da coagulação da substância mobilíssima e evanescente, rapidíssima para escapar, e que eu trago segura, num estado de extrema delicadeza perceptiva, que é também vulnerabilidade nervosa, que me faz estremecer a cada perturbação ou interrupção. Isso se mostra lógico desde que se pense no processo que se tem de realizar em minha psique e no meu cérebro. Acompanho a corrente noúrica como arrebatado em êxtase; devo enfrentar e dominar sua contemporaneidade na gênese filiforme do pensamento; devo fazer transparecer na modulação racional e linguística a modulação da emanação superconceptual originária; devo manter a percepção supersensória anímica e abstrata através da minha tensão como uma ligação delicadíssima que ao mínimo choque se rompe. Medite-se em quanto está distante a emanação de origem da registação final e, no entanto, elas devem estar unidas em ressonância e a modulação de chegada, embora reduzida, deve coincidir, sem distorções, com a modulação de partida. A mínima vibração desarmônica (quanto mais alto se sobe mais o estado harmônico é necessário, porque é um avizinhar-se da unificação), qualquer choque heterogêneo, acústico ou psíquico, que penetre o ambiente pode produzir distorções por interferência. Nesse caso, eu sofro e me canso (e aí não deve haver cansaço), pois que tenho de reconstituir a tensão.

Um conceito é um estado vibratório individuado e delicadíssimo que, uma vez perdido, não mais se acha nem com a lógica e muito menos com a vontade, não retornando senão quando excitado por conexão de ideias, isto é, por uma nova passagem próxima num estado vibratório afim. Por isso, eu escrevo rapidamente, deixando a forma aos automatismos; minha cultura me é necessária, por esse motivo, porque certos conhecimentos inferiores para alcançarem mais depressa o objetivo devem ser instintivos. Neste caso, as capacidades culturais representam a exercitação e o crisol do instrumento e são necessárias pela lei do meio mínimo33.

Se a tensão é igual, a sintonização aderente, sem perturbações e interferências, a registação se processa segura, perfeita no conceito e na forma. Por isso, tomo as minhas precauções e escrevo à noite, quer pela ausência de ruídos, quer pela segurança de não ser interrompido, mas sobretudo pela tranquilidade da noite, que sobrevém ao estado psíquico geral, enquanto durante o dia, pelas emanações violentas, me é verdadeiramente atordoante, finalmente, porque sinto que os próprios raios solares têm um poder destruidor.

Sei que muitos escritores e artistas trabalhavam à noite (por exemplo, Debussy). Sinto até os distúrbios elétricos da atmosfera. Tudo que perturba o rádio também me prejudica, embora relativamente. Porque as descargas elétricas, se bem que poderosas, provenientes de planos de evolução diferentes, dinâmicos e não psíquicos, sendo de natureza diversa, estão qualitativamente mais distantes de mim, ao passo que um estado de ânimo barôntico (igual a involuído) dos meus semelhantes, por maior afinidade com minha natureza humana, se introduz mais facilmente em meu estado vibratório. Ferem-me, por isso, um impulso de ira que se dê nas vizinhanças, as emanações dos alcoolizados e de qualquer ambiente moralmente pouco evolvido. Tudo isso, especialmente se inesperado, pode constituir para meu sistema nervoso, um choque que é agudo sofrimento. Certas músicas, ao contrário, especialmente se de profunda orquestração, têm para mim um poder sintonizante acentuado, como Bach, Wagner, o piano de Chopin e Liszt, Rimsky, Korsakov, Mussorgsky, Glazunow, Albeniz, Palestrina, Debussy e muitos outros; ao passo que Stravinsky, por exemplo, irrita-me; a potência de Beethoven como a de Miguel Ângelo me esmaga; Mozart não sofre e não clama como eu desejaria. Tenho necessidade de compositores cuja noúre se afine com a minha, para que sua música me ajude, fundindo-se em minha sintonização.

figura 1 - noúres

 

Resumindo, pois: quanto mais é abstrato o pensamento tanto mais é desmaterializada pela forma dinâmica a onda de sua vibração. O conceito, em sua origem, nem sequer de palavra se reveste, não tem linguagem, involvendo-se, em descida cada vez maior, até à percepção sensória e à imobilização no escrito.

Quanto mais desce o fenômeno, evolutivamente, mais é apreciável na forma ondulatória das ondas hertzianas e do som, da luz etc., localizando-se também especialmente numa sede física: o cérebro. Pode-se buscar aqui o órgão específico da inspiração ultrafânica: a epífise. A epífise pode definir-se: “o órgão do cérebro, não ainda suficientemente conhecido e que é indicado, ultrafanicamente, como o meio mecânico através do qual as noúres são recebidas pelos hipersensitivos”. (Trespiolli, Biosofia). O órgão da sintonização noúrica se encontra no cérebro e é particularmente a glândula pineal. Disse – “particularmente”. Devemos entender-nos logo a respeito dos princípios de fisiologia. A ciência materialista teve a mania da localização das funções cerebrais, dando-se à caça da sede fisiológica das funções psíquicas através de experiências de extrações localizadas. Tudo isso é resultado de sua orientação materialista e não poderia revelar-lhe senão relações e associações superficiais, nunca o princípio funcional do cérebro. Este é somente o órgão das funções psíquicas e sua estrutura é efeito e não causa de funções. O pensamento não é uma secreção do cérebro, mas, sim, o cérebro é, se se pudesse dizer, uma secreção do pensamento.

O órgão cerebral é o produto mais elevado da evolução biológica; é o órgão através do qual a química inorgânica do mundo pré-vital, internando-se, posteriormente, no complexo metabolismo da química orgânica, atinge um estado de superquímica em que os íntimos movimentos planetários atômicos se deslocam até à desmaterialização da matéria.

A ciência não admite nem possui os recursos de observação para conhecer as formas de vida invisíveis, mas reais, que a evolução biológica produziu após o cérebro, isto é, a consciência. Encontra-se, pois, estudando o cérebro, nas mesmas condições de um selvagem que observasse um aparelho de rádio sem conhecer-lhe o princípio. É inútil olhar exteriormente os fios, lâminas e válvulas, se não se conhece o princípio das ondas hertzianas. É inútil pesar o cérebro, medir-lhe o volume, se é a qualidade e não a quantidade que importa; inútil estudar-lhe a anatomia, contar-lhe as circunvoluções, localizar centros corticais, perseguir os circuitos elétricos centrífugos e centrípetos através do sistema nervoso. A ciência se achará sempre e unicamente em face dos fundamentos do edifício, não lhe enxergando a superelevação evolutiva no mundo do imponderável, um outro organismo vivo, em funcionamento, palpitante de vibrações, mas imaterial, cujo conhecimento anatômico é atingido por outros caminhos e com outros instrumentos, porque situado em dimensões hiperespaciais. O cérebro é o substrato material destas forças superbiológicas, seu ponto de contato com o organismo animal; é o órgão por meio do qual o organismo psíquico entra em contato com o mundo sensório da matéria. O cérebro, pois, que foi meio construtivo do psiquismo é igualmente seu invólucro exterior, seu apoio material e funcional e está para a consciência como o esqueleto está para o organismo humano que sustenta, mas de que não poderá jamais revelar nem o princípio nem o complexo funcionamento. Para compreender o órgão cerebral não basta, portanto, olhar seu exterior com simplismo pueril, mas importa penetrar na orientação cinética dos movimentos planetários dos átomos de suas células, observar as deslocações que as vibrações ondulatórias do pensamento operam nessas disposições e as mudanças que aí operam as emanações noúricas, quando chegam, por redução involutiva, a esse plano de oscilação dinâmica. A anatomia tem de descer à análise da natureza magnética dessas correntes imponderáveis que de todas as coisas emanam e que impressionam esses centros, nos quais a sensibilização é máxima, porque se encontram no ápice da evolução biológica.

Compreender-se-á, então, como o cérebro, órgão normal da consciência, em certos momentos e casos não a possa conter completamente e ela dele rompa, superando as limitações do meio com uma percepção anímica direta, supersensória. E tanto a consciência supera o meio que sobrevive à sua destruição, com o grau de sensibilidade que é dado, como vimos, pelo plano de evolução espiritual alcançado em vida, isto é, proporcional ao grau de desmaterialização realizado.

Leio num tratado que a consciência pode persistir muito embora com a destruição de um hemisfério cerebral completo. Isso demonstra a loucura da teoria das localizações e como é absurdo pretender estabelecer o glóbulo central da consciência. O cérebro não pode ser reduzido à função mecânica de um órgão muscular. Pense-se que ele funciona não somente movido por correntes elétricas nervosas internas, mas é percutido por correntes ondulatórias que percorrem, sem suporte material, o espaço, ao influxo das quais ele também vibra.

Tudo isso expus para demonstrar que a localização da recepção noúrica na glândula pineal é relativa e aproximativa, melhor direi, é preponderante, pois todo o cérebro vibra de ressonância, todo o sistema nervoso, todo o organismo. A glândula pineal é o órgão central, o condensador variável da sintonização e, também podemos dizer, o órgão de amplificação da registação noúrica. Mas, todo o organismo colabora mais ou menos diretamente, em conexão, funcionando como caixa ressonante em que as radiações se repercutem e se harmonizam.

Na epífise, a percepção noúrica se realiza por uma diversa orientação impressa pelas vibrações da corrente noúrica, degradada na forma de onda, nos movimentos planetários internos dos átomos das moléculas, lançadas no metabolismo celular da substância glandular pineal. O último termo dos fenômenos está sempre na cinética atômica. Todo o cérebro, porém, é sempre percutido e percorrido por correntes psíquicas que o mantêm em contínua oscilação e ele funciona constantemente como transmissor de vibrações-pensamento. Assim como o olho sempre vibra à luz e o ouvido ao som, do mesmo modo vibra o cérebro ao pensamento. Este princípio geral se aplica no caso da recepção noúrica, em que se destaca, evidente, a ressonância. Na percepção sensória, a ressonância se dá dirigida por um meio condutor; na noúrica, processa-se livre, mas sempre se trata de vibração por sintonização. Isso é compreensível hoje, quando também a telegrafia se tornou sem fios.

No meu caso, a epífise deve haver atingido um grau evolutivo de potencialidade (não volume, mas orientação cinética atômica) e de sensibilização, a fim de poder funcionar como antena na dimensão evolução e como transformador, isto é, como redutor involutivo.

O outro problema afim é o de saber como estes órgãos atingem esse grau evolutivo.

O funcionamento e o desenvolvimento evolutivo de um órgão é dado pela corrente nervosa que o mantém e lhe excita as trocas, fornecendo-lhe a alimentação dinâmica. Quando do centro não descem mais essas correntes nervosas, o órgão se atrofia, desenvolvendo-se, ao contrário, quando as correntes se intensificam.

Essas correntes não são mais que impulsos elétricos que modificam a orientação dos íntimos movimentos do átomo, que é um organismo elétrico, alterando, dessa maneira, toda a química da troca, que assim pode encaminhar-se para a atrofia ou para superiores formas de evolução.

O centro irradiante dessas correntes está além do sistema nervoso e do cérebro, que são dos intermediários mais baixos; é a própria consciência que está à frente da marcha evolutiva e que, à medida que se vai elevando, retira as correntes do funcionamento nos níveis inferiores, centralizando-as num funcionamento evolutivamente mais alto. Desse modo, no inspirado, o organismo tende ao emagrecimento muscular, as funções digestivas não mais admitem labores pesados, tudo tende à atrofia do que é físico para alimentar o que é psíquico. É absurdo procurar no intelectual e no gênio um cérebro mais volumoso, quando ele se acha justamente no caminho da desmaterialização. Estamos nos antípodas da ciência. No caso do órgão cerebral, a desmaterialização progressiva de funções por evolução é, como já disse, problema de cinética atômica e é neste sentido que aqui falei de funções espirituais.

A glândula pineal é, pois, o órgão central da ressonância psíquica e da sintonização noúrica. No meu caso, essa glândula é o órgão principal da ressonância superconceptual e, simultaneamente, de transformação de dimensão, isto é, o órgão em que se forma, por deslocações cinéticas na íntima estrutura dos átomos, a redução da emanação noúrica em forma de pensamento.

As ressonâncias, porém, não são todas iguais nos diversos ultrafanos. Alguns deles têm uma extensa gama de possibilidades de sintonização, embora mantendo-se num nível mais baixo; e entre todas, existe muitas vezes a sintonização preferida, que é aquela de maior afinidade. O meu caso, pelo contrário, poder-se-ia chamar de sintonização fixa, de ressonância única porque, por instinto de simpatia, eu me ligo ao máximo contato que minha evolução me permite e rejeito todos os outros. Pelo fenômeno da ressonância, que é unificação de vibrações, estabelece-se uma fusão do meu eu mais elevado com o centro emissor, uma reabsorção de minha personalidade na noúre, pela qual, naquele nível, não mais existe distinção entre o eu e o não-eu e tudo se torna a mesma força, o mesmo pensamento, a mesma corrente.

A matéria separa, mas, quando nos elevamos e nos aproximamos da unificação, a evolução nos conduz ao Centro divino.

Naquele plano, não mais faço distinção entre a entidade inspiradora, a noúre captada e o meu eu mais profundo. É natural que o mais absorva o menos, que a pobre chamazinha de meu espírito se confunda no incêndio e eu não mais saiba dizer: eu. A distinção renasce, rápida, apenas quando, na redução de dimensão, torno a descer, involutivamente, até minha personalidade humana. O meu caso é, pois, de ultrafania especializada na captação conceptual, e esta é verdadeiramente a marca das minhas registações.

Tendo à ligação máxima porque esta me dá o conceito máximo. Isso não impede que a ressonância possa formar-se, e indiretamente ferir-me, também com seres e coisas de planos inferiores. Eu, porém, não os aceito senão como elementos secundários ambientais de harmonização; poderiam eles ser úteis para a inspiração artística e musical, mas não para a conceptual. Existe também nas profundezas de minha psique o poder seletivo, sem o qual se daria, como em alguns velhos rádios, uma confusão de harmonias. Há em minha glândula pineal um órgão de seleção, de que me utilizo, não para captar, mas para afastar, após havê-las reconhecido, as ressonâncias que se apartam de minha registação conceptual e que me soam como dissonâncias barônticas, como distúrbios de que procuro isolar-me.

Se a glândula pineal ou epífise, órgão da sintonização noúrica, não pode sobressair radioscopicamente, pela transparência aos raios dos tecidos, todavia zonas de maior sombra na fotografia positiva e maior luz na negativa, zona craniana central (nas fotos I e II um pouco acima do centro, entre os olhos; nas fotos III e IV, no centro da caixa craniana), indicam a sede da função noúrica, no ponto central da esfera cerebral e craniana, que funciona como invólucro exterior, protetivo e ressonante. Se, ao centro dessas zonas de maior densidade, se localizam o condensador variável da sintonização e também o órgão de amplificação da registação Noúrica, a quase-esfera de matéria cerebral, delineada pela quase-esférica caixa craniana, como tecido especializado, exerce sua função de caixa harmônica de ressonância e segundo órgão de amplificação. A estrutura geométrica desse primeiro ambiente fechado é apropriada à potencialização da onda transmissora e da onda captada, o que se verifica na emanação e na recepção noúricas. Sobretudo neste último caso, da registação de emanações provenientes de dimensões super-conceptuais, quando a corrente atinge por redução dimensional a fase dinâmica, assumindo a forma de onda, que se transmite por pulsações esféricas, então, a caixa craniana, fechada em si, multiplica e amplifica, por refração interna (no ambiente cerebral particularmente apto a entrar em vibração, se excitado pela ação de tais ondas psíquicas), aquelas ondas que, justamente na zona cerebral, realizam a última fase de sua redução dimensional, já iniciada antes, fora do espaço e depois no espaço de emanação psíquica do sujeito. Assim transformadas e potencializadas no cérebro, em que se revestem, por absorção, de energia nervosa, ribombando, fechadas finalmente, na caixa craniana, isolante e internamente quase esférica, as ondas podem impressionar muito mais energicamente a epífise noúrica.

Na radioscopia lateral é visível, como em secção, à margem, a caixa óssea, que funciona como invólucro isolante do ambiente amplificador cerebral. Esta massa se abre para uma zona de maior transparência e menor densidade, que na positiva é uma zona de maior luminosidade e isso na direção do alto, que é a direção das correntes noúricas, penetrando, assim, num espaço mais longínquo, situado além da matéria. Na negativa frontal, a luminosidade está no alto, distinta, limitada pela massa craniana. Observa-se aí, junto da zona frontal, a dois centímetros, uma pequena zona curva e bastante visível, em direção vertical e com menos resistência do que o tecido cerebral, por onde flui a razão, zona de sensibilidade e de muitos capilares sanguíneos. E esta seria, por razões de direção e de menor resistência como também de equilíbrio vibratório, a zona normal de penetração noúrica, a porta aberta através da qual a epífise pode comunicar-se externamente com as ondas que, na fase dimensional mais próxima, são espaciais. E esta não seria apenas a zona de penetração, mas, também, a janela aberta da projeção noúrica, o ponto em que aflora e se projeta exteriormente a irradiação espiritual. Quando, através dessa investigação e dessa técnica, a emanação atinge o sujeito e penetra em sua caixa craniana, a corrente noúrica, degradada em forma de onda, está apta a imprimir, e imprime, uma diferente orientação aos movimentos planetários dos átomos das moléculas das células cerebrais. Então, a pura excitação noúrica se materializa ainda mais, revestindo-se de energia psíquica e nervosa e tornando-se praticamente perceptível, inclusive com instrumentos e como sensação, e então, atingida sua última fase de transformação, é suficientemente densa, podendo por isso impressionar a epífise, que, arrastando consigo, em sua sintonização, o cérebro e o sistema nervoso, dirige a função mecânica muscular da escrita.

figura 2.2 as noúres

 

figura 3.3 as noúres

figura 4 noúres

 

Realizei o exame de meu caso em seus mais salientes particulares. É chegado o momento de sair deste caso individual para remontar a uma visão mais vasta do fenômeno, observando os casos de mediunidade inspirativa que a História nos oferece. Semelhanças e pontos de contato permitir-me-ão estabelecer a lei do fenômeno melhor que a observação de um só caso.

No precedente estudo de anatomia psíquica, realizei a vivissecção de minha alma. Era isso necessário para a compreensão de meus escritos mediúnicos, dos quais o presente é o complemento e a continuação lógica. O meu caso mediúnico, porém, se desenvolve sobre a perspectiva grandiosa de muitos casos maiores. Embora distanciados grandemente por importância histórica e potência e não obstante as naturais diferenças dadas pelo temperamento do médium, pela natureza particular das circunstâncias e pelo ambiente imposto ao seu trabalho, todos esses casos têm um fundo único, possuem notas características comuns, que renasceram também no meu caso menor. Isso corrobora minhas afirmações e interpretações do fenômeno com a presente teoria das noúres.

Muitas palavras têm sido usadas para defini-las: inspiração, visão, êxtase, rapto dos sentidos, intuição, mediunidade, o demônio, as musas, o espírito, a subconsciência, a superconsciência etc.

O misticismo, as religiões, o espiritismo, a filosofia, a arte, a psicologia, cada atitude do pensamento humano criou sua expressão e observou de um ponto de vista particular o mesmo fenômeno. O místico, o santo, o profeta, o poeta, o artista, o herói, o cientista, o inventor, numa palavra, o gênio, em todas as suas formas, tem vivido igualmente aquele fenômeno.

É um fenômeno próprio dos grandes avançados na evolução, da qual o gênio não é senão o antecipador que agita o archote do espírito no seio de uma triste normalidade. O fenômeno é tão universal e antigo quanto o homem; mais ainda, foi justamente na antiguidade que ele foi mais reverenciado, quando o conhecimento se atingia diretamente por revelação e o método intuitivo e dedutivo, que a racionalidade moderna não mais sabe usar, era muitas vezes o único método de pesquisa para a solução dos problemas e a conquista do saber. A alma humana, então mais virgem, parecia mais próxima das origens, podendo atingi-las diretamente. Hoje o pensamento se encontra decaído, havendo se precipitado profundamente na racionalidade e não sabe reencontrar os princípios. Desses grandes contatos espirituais nasceram as revelações.

Entramos, agora, num mundo maravilhoso. O fenômeno da registação inspirativa não se pode encerrar nos limites de um fenômeno científico; este caso está para a simples captação noúrica como um raio para uma centelha elétrica, pois que o homem é levantado num turbilhão à face de Deus, centro conceptual do universo, que aparece e se revela para assinalar os destinos do mundo.

Se no meu pobre caso, tive de falar em ascensão espiritual e purificação, quais condições de uma sintonização que não pode realizar-se senão por afinidade, a que vórtice de potência se terá realizado a transumanização desses grandes inspirados que chegaram a ler o pensamento de Deus! E aqui se toca o caso limite da humana possibilidade de ascensão. Se a recepção noúrica é fenômeno de elevação humana às altas esferas do superconcebível, a que tensão do ser, a que vertigem de altura, a que vértice de potência terá chegado a alma humana, nesses casos! E como se torna pequenina e inadequada a ciência, com sua análise, em face desses fenômenos que governam a História do mundo!

Diante dos grandes inspirados, desses gigantes que se moveram numa atmosfera de pensamento titânico, em face da potência dessas forças vivas do espírito que descem à Terra para fundir-se na História, para dar o sopro da vida às civilizações e orientar o progresso do mundo, diante das revelações que atingiram, por contato espiritual direto, a verdade das fontes primeiras do pensamento de Deus, em que se transforma a ciência, com seus métodos exteriores, com seus preconceitos inibitórios, com a incerteza de suas dúvidas e de suas hipóteses? Em que se converte, em face desses fenômenos que superam completamente o homem, a pobre ciência humana, perdida nos tortuosos caminhos da análise e que, no entanto, tudo quer julgar e aprisionar na pequenina técnica de sua experimentação? A ciência, com seu método, encerrou-se em limites que ela própria traçou, constringindo-se na incompetência, nestes casos em que no fenômeno atuam fatores transcendentais.

Nesses casos, as noúres conduziram o homem a uma tão grande altura, ao longo das Hierarquias que se elevam e convergem para a Divindade, que o fenômeno já não se pode reduzir a um conceito científico, porque se realiza fora do mundo e de sua ciência.

As religiões, que significam uma orientação dada pelo Alto ao espírito humano para guiá-lo no caminho de suas ascensões, são uma descida do espírito divino através das revelações. No fundo delas, existe uma única religião que caminha e na qual, adaptando-se à psicologia dos povos nas formas do tempo, a idéia de Deus avança. Avança da Atlântida à Índia, ao Egito, à Grécia, ao monoteísmo da intuição de Moisés, imposto ao povo de Israel, a fim de que conservasse a idéia até Cristo, que deveria continuá-la e fecundá-la no Seu Evangelho de amor.

Todos os grandes criadores do pensamento humano atingiram, por inspiração, a mesma fonte única, expressando-a progressivamente sempre mais perfeita: Krisna, Zoroastro, Hermes, Moisés, Buda, Orfeu, Pitágoras, até Cristo, que supera todos. A verdade é uma só. As aproximações humanas é que são diversas, sucessivas, proporcionadas ao progressivo desenvolvimento da evolução psíquica do homem.

Eis porque a idéia de Deus, em sua essência, é um superconcebível. O homem deve limitá-la para redu-zi-la ao seu concebível, que lhe é a única medida que pode, em seu relativo, assinalar-lhe os limites. Esse relativo, porém, se dilata por evolução do sujeito humano e logo, paralelamente, aquela idéia se amplia. Desse modo, a evolução da idéia de Deus é paralela à evolução humana. O Deus do poder e da vingança, de Moisés, torna-se o Deus cristão do amor e do perdão, tornar-se-á o Deus científico da sabedoria; o Deus terrível que aparece entre raios no Sinai, inexorável e tremendo em sua justa vingança, completa-se e agiganta no gesto mais humano da bondade, aproxima-se da Terra e nela lança, com o Evangelho, a semente da paz de espírito e da convivência social. E, hoje, a rude potência da revelação mosaica e a profunda bondade da revelação evangélica se continuam e se fundem na luz da racionalidade científica moderna, que também nos tem ensinado a pensar e que hoje atinge a hora de sua compreensão. Há, desse modo, uma contínua proporção entre a descida das noúres que revelam a Divindade e a capacidade intelectiva humana. Há uma paralela ascensão do Homem e de sua representação conceptual do Centro e uma descida progressiva de verdade, por revelação, uma contínua purificação dos atributos humanos daquele conceito, à medida que o próprio homem purifica os seus.

Em pobres palavras: Deus, verdadeiro Centro dinâmico e conceptual do universo, conta de Si, através da revelação confiada a poucos escolhidos, aquele quantum que a criança humana pode compreender, à proporção que vai crescendo; dizer-lhe mais, sobre um conceito sem limites, seria inútil e perigoso.

Devo falar a respeito de Deus, porque é justamente desse Centro que desce a mais elevada noúre. Assim, a Divindade se avizinha sempre mais do homem, sempre mais viva e sensivelmente se torna real em seu coração, despojando-se pouco a pouco, de todas as reduções impostas pela representação humana e fazendo-se sempre mais verdadeira, sempre mais transparente, em sua essência, ao espírito humano. Tudo isso é, também, um engrandecimento seu, porque a visão se torna vertiginosa; mas, justamente por isso, ela não é concedida senão gradativamente. A idéia de Deus é necessária ao homem, deve estar-lhe próxima para sua vida; deve, para ser útil, proporcionar-se à sua compreensão e necessidade de ação; deve, como representação, manter-se a uma justa distância que ilumine sem cegar, que se revele e se esconda, ao mesmo tempo.

Assim, o grande conceito desce ao mundo por sucessivas aproximações. Inspirados e revelações se encontram unidos em cadeia, na expressão progressiva de um pensamento único e contínuo que governa o mundo. Existe uma grande noúre, que desce, contínua, através de diversos instrumentos e é essa divina unidade de princípio que mantém a continuidade de pensamento através dos ciclos das várias civilizações, ciclos que se rompem e se reatam. É essa unidade originária, que se ramifica no pensamento humano, que mantém uma linha verificável e evidente de desenvolvimento lógico, através das vicissitudes históricas do mundo. Isso prova que é idêntico o centro irradiante e animador dos vários instrumentos registadores, grandes e pequenos, todos coordenados no tempo, sob o mesmo impulso, para a execução da mesma obra da revelação progressiva do pensamento divino. Cada um diz, frequentemente sem saber tudo, uma como que frase sua e da união de todas essas frases sairá composto, depois, um discurso cheio de sabedoria.

Assim se fundiram, num só corpo, as vozes dos profetas do povo de Israel na idéia do Messias. Assim, em expressões mais vastas, se reúne novamente a visão mosaica (que reduziu ao monoteísmo a fragmentação da unidade divina do politeísmo), através de todo o cristianismo, ao atual monismo, que nos apresenta a Divindade não só como única, justa e boa, mas realmente palpitante, qual sensível psiquismo animador, presente em todas as coisas.

Moisés teve que imprimir com um ferrete de fogo, na alma de seu povo, a idéia de um Deus terrível, que para nós é absurda e repugnante, pois fomos acariciados pela piedade de Cristo.

Hoje, o terror é desaparecido, tão mitigada foi aquela vingança que não conhecia piedade, mas subsiste o mistério. Sempre menos se pode impor uma fé aterrorizando a mente e mutilando o conhecimento, e a revelação da bondade é continuada na revelação dos mistérios. Hoje, não se eleva mais apenas o gesto do profeta que diz: Penitência, para aplacar a ira de Deus; nem apenas o gesto de piedade que fala: Bem-aventurados os que sofrem; dá-se porém, a explicação da inflexibilidade da justiça divina e da redenção cristã através da dor, em termos precisos de razão e de ciência. Nada foi modificado do pensamento precedente, pensamento perfeito. Mas, ele foi continuado. O mesmo pensamento, após milênios, é novamente trazido à luz da consciência humana, saída atualmente da minoridade, não mais apenas como ato de fé e estado de graça, mas como uma imprescindível necessidade racional, que aquela mesma doutrina “impõe” para os caminhos novos, únicos que em tempos de perda de fé permanecem ativos, isto é, os caminhos da racionalidade, que é justamente a forma mental de nosso momento. A noúre, em sua profundidade a mesma, traz de novo à luz o Evangelho, substancialmente esquecido, mas agora em forma de ciência.

Esta a necessidade dos tempos, a fim de que o Evangelho seja de novo sentido; para que a moderna concepção do saber não se extravie, ela é chamada às origens, fundida com as antiquíssimas intuições dos iniciados, utilizada no momento da maturidade espiritual atingida como meio de divulgação dos mistérios, entre os quais já não é permitido hoje esconder a verdade.

Unidade – diz hoje a grande noúre, unidade de religiões e de ciência, descoberta de uma consciência unitária de humanidade em torno de um Deus único, idéia central, que deverá salvar e dirigir o mundo na nova civilização do terceiro milênio. Assim, a ciência é recuperada totalmente com a Síntese no ciclo evolutivo das revelações, para preparar no seio da humanidade a maturação de uma nova consciência cósmica. O momento histórico é grave, solene, rico de valores em decomposição e de germes em frenético desenvolvimento, como nos tempos messiânicos. Em meu estado de contínua percepção noúrica, sinto as correntes espirituais do mundo e tenho a sensação viva de iminentes e novas orientações do pensamento humano, que abaterão as resistências de todos os misoneísmos. E me entreguei completamente às forças do Alto, a fim de lançar, entre muitos, uma semente que germinará.

*

Observando os ciclos das revelações do passado que mais proximamente se encontram da civilização européia, vemos de início um período heróico, que é sublimação de potência da vontade, explosão da corrente positiva e masculina da vida, o ciclo mosaico e do profetismo hebreu; depois, o período da bondade, que é sublimação do amor, explosão do princípio oposto da vida, da libertação pelo sacrifício, da redenção pela dor. Na primeira revelação, a voz de Deus virilmente diz: “Eu sou”. Na segunda, a mesma voz redime a mulher e eleva a missão criadora do amor. Hoje, a revelação reaparece, equilibrando-se numa pulsação de retorno, para alimentar e impelir para o alto o princípio masculino que afirma e de novo diz: “Eu Sou”, mas não com o terror da força e do mistério e, sim, na potência luminosa da sabedoria.

Jamais na história do mundo a inspiração se apresentou em proporções tão gigantescas como em Moisés, no momento da promulgação da lei no Sinai. A voz emerge de um fragor de batalha, em meio a um terrível desencadear de forças naturais, como condutora de povos e dominadora de paixões; emerge do caos das vicissitudes humanas num ímpeto esmagante de potência. A luta entre as forças do bem e do mal assume um aspecto concreto, desce até a alma dos fenômenos físicos: a terra treme, abrem-se as águas dos mares. Deus é força ante a qual vacilam céu e terra. Indubitavelmente, Moisés transferiu à religião hebraica a sabedoria da iniciação egípcia, que consigo levava como esteio. Mas, foi a grande voz interior da inspiração que o sustentou e guiou nos grandes momentos. O pensamento era, então, densamente revestido de ação e se expressava, súbito, em ato nos acontecimentos; deveria, pois, possuir, em suas origens, a violenta potência energética que lhe permitisse penetrar as densas camadas da matéria e do espírito humano. A verdade devia ser simples, precisa, mas lançada como um projétil e cortante como uma espada para poder penetrar no duro coração do homem. O profeta tinha de ser um condutor de povos e seu pensamento deveria estar armado de potência humana e sobre-humana. A lei de um Deus único devia impor-se por seu poder no seio da idolatria dos cultos vários, devia imprimir-se na consciência de um povo, em meio à anarquia das nações. A solitária e dolorida sublimação mística dos santos do cristianismo ainda não nascera, antes da sutilização na pureza importava trovejasse a força para desbastar o espírito humano.

A cosmogonia mosaica é uma rude e imensa construção ciclópica, reduzida a linhas essenciais para que fosse compreendida; permanece verdadeira até hoje, embora lhe faltem pormenores de desenho arquitetônico. O gesto criador de Deus é material como o gesto do homem, que projetava no céu a multiplicação infinita dos próprios atributos, não sabendo dizer de Deus senão o que a própria evolução psíquica lhe permitia compreender. Aquele gesto se espiritualiza hoje na voz que desce para iluminar e animar a ciência e o pensamento da Gênese retorna, num mais elevado plano de conhecimento.

A Gênese é o primeiro livro do Pentateuco, a que se seguem: o Êxodo, o Levítico, os Números e o Deuteronômio, e foi escrito sob a inspiração de Moisés, enquanto vagueava no deserto com o povo de Israel. Começa com a criação, descreve depois o dilúvio (submersão da Atlântida), a torre de Babel, a história dos patriarcas até José.

O Êxodo é a saída do povo de Israel do Egito e a promulgação da lei no Sinai. O Espírito de Deus é presente a cada momento. No cap. 19 do Êxodo des-creve-se um contínuo colóquio entre Moisés e Deus:

1. Ao terceiro mês da saída de Israel da terra do Egito, nesse mesmo dia chegaram à solidão do Sinai.

2. Por isso, partidos de Rafidim e chegados ao deserto do Sinai, estabeleceram nesse lugar os alojamentos e aí Israel esperou, diante do monte.

3. E subiu Moisés a Deus e o Senhor o chamou do alto do mon-te, dizendo-lhe: Estas coisas dirás à casa de Jacó e anunciarás aos filhos de Israel. (...)

9. O Senhor lhe disse : Virei logo a ti na obscuridade de uma nuvem, a fim de que o povo me ouça a falar contigo e creia em ti perpetuamente. Pois Moisés havia anunciado ao Senhor a palavra do povo.

10. E ele lhe disse: Vai ao encontro do povo e faze com que todos se purifiquem hoje e amanhã e lavem suas vestes.

11. E estejam preparados para o terceiro dia; porque no terceiro dia descerá o Senhor, aos olhos de todo o povo, sobre o monte Sinai. (...)

16. E ao despontar o terceiro dia, à claridade da manhã, principiaram a ouvir trovões e resplandeceram relâmpagos; e uma densíssima névoa cobriu o monte e o vibrante sonido da trompa retumbava fortemente; e o povo, que se encontrava nas tendas, se atemorizou.

17. E havendo-os Moisés conduzido para fora dos alojamentos, ao encontro de Deus pararam ao pé do monte.

18. E todo o Monte Sinai fumegava, porque o Senhor aí descera em meio ao fogo; e o fumo dele saía como de uma fornalha e todo o monte infundia terror.

19. E o sonido da trompa pouco a pouco se fazia mais forte e mais penetrante. Moisés falava e o Senhor lhe respondia.

20. E desceu o Senhor sobre o Monte Sinai, sobre o próprio cume do monte, e chamou Moisés àquele cume. (...)

25. E Moisés desceu e contou todas as coisas ao povo.

E assim nasceu o Decálogo, da palavra pronunciada por Deus: Cap. 20

1. E o Senhor pronunciou todas estas palavras: (...)

2. Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da escravidão.

3. Não terás outros deuses diante de mim. (...)

18. E todo o povo percebia as vozes, e os raios, e o sonido da trompa, e o monte que fumegava; e o povo, assustado e tomado de medo, pôs-se de longe.

Eis a narrativa do momento culminante da mais poderosa recepção noúrica que o homem conhece.

E o espetáculo é verdadeiramente de uma grandiosidade terrível. A mole imensa, severa e selvagem do Sinai, a recordar o Brocken16, goethiano, a grande montanha de granito, nua e escura, cujo cimo é o trono de Eloim, circundada de legendas pavorosas, ecoando estrondos de trovões; os cumes escondidos nas tempestades de nuvens a mugir, coruscantes de raios; as faldas do monte enegrecidas de massas humanas, efervescente de paixões, lançadas à conquista do próprio destino. Eis o quadro grandioso, o ambiente de sintonização em que se realizou o diálogo entre o profeta e a voz de Deus e entre o profeta e seu povo. A vibração se mantinha na desnuda potência das coisas primordiais. Era o primeiro grande choque cósmico das forças espirituais e se converteu numa atmosfera de revolta e de sangue, sob um céu negro de tempestade, com a matança dos rebeldes idólatras, desobedientes à lei, diante dos quais a ira do profeta quebra as tábuas de pedra, convicto do direito absoluto da verdade, da comunhão com o Alto, da proteção das forças supremas. Sem essa presteza e prepotência de ação, jamais Moisés teria imposto sua autoridade e a nova lei de Deus. A ferocidade humana impunha os caminhos do terror.

O contato com a divina fonte se estendeu continuamente, no seio do povo hebreu, através do profetismo.

Este meu pobre estudo sobre o fenômeno inspirativo manifesta-se, sem que eu o quisesse, com força interpretativa e demonstrativa deste grande fenômeno histórico e teológico, que foi considerado pelos apologistas, ao lado dos milagres, como a coluna probatória da verdade do Cristianismo. E aqui a ciência, finalmente não mais inimiga, dá sua contribuição.

Se a arte divinatória é comum a todos os povos da Antiguidade, o profetismo, entre os hebreus, poten-cializando-se na concepção monoteísta, se eleva a meio de comunicação direta com a Divindade, prossegue e traduz o pensamento da Eternidade na maturação do destino de um povo e, na espera do Messias, do destino do mundo.

Após o Pentateuco, a Bíblia continua e no livro de Josué, escrito pelo mesmo Josué, sempre por divina inspiração, prossegue a história do povo de Deus. Moisés morreu, mas o divino colóquio não cessa.

Nos quatro livros dos Reis falam Samuel e os profetas Gade e Natã. Precisamente no terceiro desses livros, cap. 19, há uma referência ao profeta Elias que, internando-se no deserto, (...) desejava a morte, e disse:

Basta, ó Senhor, toma minha alma. E se lançou por terra e adormeceu; mas, eis que o anjo do Senhor o tocou e lhe disse: levanta-te e come. Voltou-se ele e viu, perto de sua cabeça, um pão cozido sob as cinzas e um vaso d’água. Então, comeu e bebeu. Fortificado com esse alimento, caminhou quarenta dias e quarenta noites, até o monte de Deus chamado Horebe. Lá chegado, abrigou -se numa caverna. E logo o Senhor falou dizendo-lhe: Que fazes tu aqui, Elias? (...)

E se desenvolve o colóquio. Mais adiante, ainda de Elias fala o livro 4 dos Reis17, cap. 2:

11. E enquanto caminhavam e conversavam, juntos, subitamente um carro de fogo, com cavalos de fogo, separou um do outro; e Elias subiu ao céu num turbilhão.

O primeiro livro de Esdras foi por este mesmo, que era de linhagem sacerdotal e doutor na lei de Deus, escrito sob inspiração.

Também o livro de Judite, que lhe segue, é considerado divinamente inspirado.

No livro de Jó, este frequentemente profetiza a respeito de Cristo.

No livro dos Salmos, o rei Davi, instrumento do Espírito, profetiza de Cristo e escreve hinos maravilhosos que são poesia, profecia, sapiência, oração. Em Davi o pressentimento do novo pensamento de Cristo é vivo. Ninguém, antes dele, havia ousado falar de Deus, com tanto amor e confiança, no seio do povo hebreu, que entendia a proteção divina como um domínio severo, cheio de terríveis punições. Davi cantava com sua harpa não mais um Deus que subjugava pelo pavor de suas cóleras e vinganças, mas um Deus doce e bom que se aproxima do homem no esplendor de suas obras:

Os céus narram a glória de Deus

e o firmamento anuncia Suas obras.

Um dia dirige a palavra a outro dia

e a noite a outra noite a relata.

Sem palavras, sem discursos

Entende-se a sua voz,

que se expande por toda a terra

e ressoa até os confins do mundo.

Inspirado é o livro dos Provérbios, ditado pela sabedoria de Salomão, livro cheio de sentenças sublimes.

Inspirado foi o livro da Sabedoria, ao mesmo Salomão atribuído.

Inspirado também é o chamado Eclesiastes.

E eis que surge, na Bíblia, Isaías, o primeiro dos grandes profetas, majestoso nas suas predições referentes ao Messias. Fala após Jeremias, profeta desde os 15 anos, até depois da destruição do Templo e da cidade de Jerusalém, quando, prostrado sobre as ruínas na Cidade Santa, deixou rebentar sua dor nas Lamentações. Vem, a seguir, seu discípulo Baruque, também profeta. Ezequiel começou a profetizar no quarto ano de seu cativeiro em Babilônia; foi o inspirador misterioso, taciturno e terrível, que viu a destruição de Jerusalém, a dispersão dos hebreus e, após, sua volta, a reconstrução da cidade e do Templo e o Reino do Messias.

Profecias relativas ao Messias contém o livro de Daniel, por ele mesmo escrito na corte dos reis caldeus. Seguem os profetas menores: Oséias, Joel, Amós (talvez também mártir); Obadias, Jonas, o náufrago vomitado pela baleia; Miquéias, a quem se deve a célebre profecia sobre Belém-Efrata, onde deveria nascer o Messias; Naum, que predisse a destruição de Nínive e viu sobre os montes “os pés Daquele que anuncia a boa nova”; Habacuque, que, conforme se crê, foi transportado por um anjo até Babilônia para dar alimento a Daniel, prisioneiro na cova dos leões; Sofonias, Ageu, também profeta do Messias; Zacarias, em quem a profecia da vinda do Cristo se faz sempre mais clara, precisando seu ingresso em Jerusalém, sua morte, os trinta dinheiros como preço da traição, a destruição de Jerusalém e a perseguição; finalmente, Malaquias, que anuncia claramente a vinda do supremo Mestre.

Por oito séculos, a idéia viva de Deus assim resplandece na alma de um povo e a mesma luz desce sempre ao mundo, colorindo-se diversamente através de personalidades diversas, mas nunca deixa de ser a voz com que Deus clama, chamando os homens extraviados.

A inspiração se faz auditiva ou visual conforme as disposições do ambiente, mas a corrente é uma só, embora assuma diferentes formas de vibração. Existe um pensamento constante, desenvolvido através de recursos diversos e fragmentado no tempo, mas, apesar disso, coerente e contínuo, testemunhando sua origem de uma fonte única. Essa unidade de idéia manteve coeso um povo trabalhado pelas mais aventurosas vicissitudes até o surgimento de sua flor magnífica – Cristo, depois do Qual se dispersa.

A Bíblia é o mais vasto documento de recepção noúrica mundial, atingindo as mais elevadas fontes. O povo hebreu nos dá o exemplo de um fenômeno inspirativo gigantesco, prolongando-se por séculos e séculos, funcionando como preparação do evento que daria origem à civilização destinada a governar o mundo. Não é possível a dúvida nem a negação em face dos fatos históricos de tal importância. E o Cristianismo foi esperado e preparado por essa elevadíssima mediunidade inspirativa, que agora estudamos, e desses contatos superiores continuamente se tem alimentado e fortalecido no seu exaustivo caminhar.

Em face da narrativa bíblica das visões dos profetas, como a de Isaías, que vê Babilônia destruída, recordando as de S. João; em face das visões terrificantes de Ezequiel, bem como outras, feitas de luz e de bondade, todas grandiosas; em face dessas figuras pensativas de profetas prostrados diante do Infinito, invocando luz e paz para a alma humana em tempestade, eu, que escrevi a demonstração científica da realidade dessas forças tremendas e que as sinto agitarem-se em mim e no mundo, ouço estranhas ressonâncias nas profundezas de minha consciência e me sacode um calafrio de temor. A sabedoria moderna, que matou essa sensibilidade, poderá sorrir ceticamente. Mas, nas lágrimas de Jeremias, no gesto solene de Ezequiel que profetiza, nessa voz concorde que desde Isaías até Malaquias fala de Cristo, e que prossegue até a Voz de Joana D’Arc, que cria uma mártir e salva a França, sinto tão terrivelmente poderoso que não encontro outra postura de espírito além da oração. Tudo mais é inconsciência. Inconsciência num momento em que a Europa inteira se arma, embora trema diante do espectro de uma guerra que sente seria o fim de sua civilização18. Cada gesto profético é dirigido pela mão de Deus. E a Europa será dividida, ao longo de uma frente mediana, em duas partes, a da ordem e a da desordem, em que lutarão objetivamente as forças cósmicas do bem e do mal. Se as forças desagregantes do mal chegarem a vencer as forças construtivas do bem, então as portas da Europa desorganizada se abrirão de par em par diante da ameaça imensa da Ásia, do dragão gigantesco e terrível que já levanta a cabeça, mirando a presa suculenta. Enceguece-o, porém, uma luz, que se irradia de Roma, centro espiritual do mundo. Na Terra e no Céu irrompe uma vastíssima tempestade de pensamento que, em grandes correntes, luta e se lança à conquista da unidade espiritual do planeta.

*

A principal idéia desenvolvida pelo profetismo hebreu, num ascensional movimento de evidência e poder, foi a idéia da centralidade espiritual de Jerusalém e da vinda do Salvador do mundo. Sempre mais nítida se faz essa visão, descendo a pormenores, e nela, na contemplação da doce figura do Cristo, se acalmam as tempestades angustiosas do espírito. Alimentada pela vibrante palavra dos profetas, a imagem messiânica se grava e se agiganta na consciência, até aos últimos tempos, em que se sentia, por toda parte, vaga, mas seguramente próxima, a realização tão esperada e predita.

A História, na plenitude da hora romana, continha os germes do desfazimento e da ressurreição, como hoje. Os deuses pagãos vacilavam e o equilíbrio do mundo se deslocava para um novo eixo. Algo abala a civilização até os fundamentos e também o mundo pagão desperta ao primeiro choque, que é sempre de almas, e o manso Virgílio vê:

Ultima Cumaei venit jam carminis aetas;

Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo.

Jam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna;

Jam nova progenies caelo demittitur alto.

Tu modo nascenti puero, quo ferrea primum

Desinet, ac toto surget gens aurea mundo,

Casta, fave. Lucina: tuus jam regnat Apollo.

(...)

Adspice, convexo nutantem pondere mundum,

Terrasque tractusque maris, caelumque profundum;

Adspice venturo laetantur ut omnia saeclo19.

(Virgílio, Écloga, IV)

Eis que se aproximam os últimos tempos da profecia de Cumas;

Nasce de novo o grande ciclo dos séculos.

Já retornam a Virgem e os reinos de Saturno;

Uma nova prole desce do alto céu.

Este menino cujo nascimento vai encerrar

A idade do ferro e iniciar para todo o mundo

A idade do ouro, tu, ó casta Lucina,

Protege. Já reina o teu Apolo.

(...)

Contempla o mundo ondulante em sua massa convexa,

E as terras, e os espaços do mar, e o céu profundo;

Vê como todas as coisas se alegram com a vinda do século futuro!

(Virgílio, Écloga IV)

Com Cristo surge, em sua plenitude, um conceito que parece preparado, de há muito, no passado de toda a evolução espiritual da humanidade. Esta já está amadurecida para subir mais um degrau em sua ascensão espiritual e a revelação inicia um novo ciclo. O conceito de bem e de virtude adquire um novo valor e a dor se sublima na cruz como meio de redenção. É anunciada a boa nova de um novo reino dos céus, que está, antes de tudo, no coração dos homens. Atinge-se um novo poder que Moisés não possuía, o poder do amor. “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim revogá-los, mas cumprir”, disse Cristo. (Mateus, V, 17). A revelação continuava.

Seria absurdo querer reduzir a idéia de Cristo a um fenômeno inspirativo, tanto o transcende, tão inadequados são os recursos da observação e da compreensão humanas, porque profunda e completa foi Sua unificação com o Centro conceptual do universo. Para nossa compreensão, temos necessidade de fenômenos mais acessíveis, mais mitigados de potência por motivo de fraqueza humana, menos transparentes de Divindade, a fim de que não pareçam cegar.

Tenho sentido, em meus profundos estados inspirativos, a proximidade de Cristo, não o Cristo reduzido à imagem humana, mas um Cristo real, cósmico, um espiríto radiante, centro de atração espiritual em torno do qual gravitam os mundos, Cristo que me inflamou e me tem dado força para viver e trabalhar e a Quem tudo devo. Ele me atrai da vertigem dos céus para os quais me arrasta, de esfera em esfera, fustigando minha carne para que eu possa aligeirar-me e subir, numa visão de sabedoria e de bondade em que minha mente se perde. Outra coisa não sei dizer de Cristo, outra coisa não sou digno de dizer e calo-me.

Sinto que se aproximam para o mundo acontecimentos enormes e terríveis, sinto um distante fragor de tempestade, um vagalhão que ameaça a grande civilização. E são pouquíssimos os que vêem e sabem. Tenho implorado para que se veja e saiba. Neste ambiente pesado de ameaças em que louqueja o mundo, meu espírito oprimido não repousa senão na doce visão do Cristo, que acalma as águas enfurecidas e salva o barco que ameaça naufragar. Cristo é verdadeiramente uma força real, sempre presente, a guiar os centros espirituais do mundo, irradiando Sua luz. Conforto- me com Suas palavras, citadas pelo Apóstolo João: “Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas, por enquanto, estão acima de vossa compreensão”. (João, 16, 12). “Tenho-vos dito estas coisas por comparações. Mas, vem a hora em que não vos falarei mais por parábolas, mas, abertamente, vos falarei acerca do Pai” (João, 16, 25). Eram as palavras de adeus. Mas, antes havia dito: “Eu rogarei ao Pai e ele vos dará um outro Consolador, a fim de que permaneça para sempre convosco, o Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; vós, porém, o conheceis, porque ele habitará convosco e estará em vós. Eu não vos deixarei órfãos; voltarei a vós”. (João, 14, 16, 17, 18).

Qual será o sinal dos tempos? O descobrimento completo dos mistérios, que a revelação dá à mente humana, já amadurecida pela ciência. Porque, como já dissemos,a revelação é progressiva e proporcionada ao desenvolvimento da inteligência humana e o Cristo está com ela sempre presente. É chegada a hora em que a mudança da civilização impõe um passo à frente na lenta e progressiva realização do Reino de Deus na Terra, de que o Evangelho não foi senão o anúncio; impõe sua atuação individual e a organização social na coletividade humana, o advento de Cristo à sociedade, a descida do espírito de verdade, de amor, de justiça às instituições, à vida dos povos. O Pentecostes, outrora limitado aos escolhidos, se estende agora a todos os dignos pela bondade e maduros pelas forças intelectivas.

O primeiro gigante da revelação cristã é o próprio S. João. João, alma profunda, intuitiva e ardente, enamorada e triste, impetuosa e sonhadora, João, que inclinava a cabeça no seio do Senhor, perdido nos silêncios da contemplação, penetrava o pensamento profundo de Cristo por um estado de graça que lhe dava o amor. E até muito depois, até S. Francisco, nenhuma força aproximou tanto de Cristo o homem, abrindo de par em par as portas de seu coração, quanto o amor.

O Apocalipse do apóstolo João foi por ele escrito depois de seu Evangelho, pelo ano 96 de nossa era no seu exílio da ilha de Patmos. O nome, em grego, “Apocalipse” significa “revelação”. Esta, que havia tomado o homem pela mão, desde o princípio, para acompanhá-lo até o nascimento de Cristo, agora continuava predizendo os destinos da Igreja, desde seus primeiros combates na terra até seu último triunfo no Céu. É uma visão grandiosa, cheia de mistério:

CAP. 1

1. Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe concedeu a fim de fazer conhecer aos seus servos as coisas que cedo devem acontecer e que Ele, enviando-as por intermédio do Seu Anjo, significou ao seu servo João.

2. O qual testificou a palavra de Deus e tudo quanto viu de Jesus Cristo.(...)

9. Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação, no reino e na paciência de Jesus Cristo, estive na ilha que se chama Patmos, por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus.

10. Fui arrebatado em espírito num dia de domingo e ouvi por detrás de mim uma forte voz, como de trombeta.

11. Que dizia: escreve o que vês num livro (...).

12. E voltei-me para ver quem falava comigo, e voltado vi se-te candelabros de ouro. (...)

19. Escreve, pois, as coisas que viste, as que são e as que de-vem acontecer depois destas.

A percepção, a princípio auditiva, transforma-se em visual. De quando em quando diz “Eu vi”. A fonte da grande corrente noúrica, porém, é a mesma, não importando em que forma de vibrações sensoriais se materialize para ferir os sentidos. Há um comando explícito da Voz: “Escreve”. Há um aturdimento de sentidos que faz João cair como morto, mas a voz lhe diz: “Não temas, sou eu, o primeiro e o último”.

*

Passam-se os séculos. A Voz que havia detido São Paulo na estrada de Damasco repercute numa multidão de mártires. Os primeiros séculos do cristianismo ecoam de vozes, mas, depois, a tenebrosa Idade Média trabalha duramente para reencontrar as fontes do espírito e a tradição se quebra.

Como Sócrates tinha o seu gênio, a voz superior que ele ouvia falar-lhe interiormente, dando nobilíssimos conselhos; também o filósofo Fílon tinha seu gênio. Porfírio e Plotino declaram possuir num espírito familiar sua fonte de inspiração. Como Maomé ouve a voz do seu arcanjo, igualmente Alarico, rei dos Visigodos, se dizia inspirado pela voz de um espírito que o excitava a marchar contra Roma. “Um gênio”, dizia, “sempre me guia: Avante! Avante! Destrói Roma!” Esta última voz talvez fosse barôntica, pois não se elevava pela nobreza de objetivos morais e sociais, nem pureza de inspiração; não merece, pois, atenção.

As vozes elevadas só se encontram no seio de uma grande fé, quando a inspiração é também missão, apostolado, muitas vezes martírio. Só estas são dignas e me interessam.

Se o fio da revelação se rompera, talvez por razões profundas, ou talvez só aparentemente, a fé em Cristo não fora destruída. A ascensão espiritual, culminando nas figuras dos Santos que iluminam, em multidão, a Idade Média, era contínua e laboriosa. As correntes desciam sempre do Alto para os desposórios com a Terra, fecundando-a. E germinavam exemplos de holocaustos no esforço por abraçá-las. A grande emanação do Cristo jorrava ora aqui, ora acolá, como revelação; não mais heróica e guerreira, apocalíptica e tonante, mas apaixonada e gentil, amansando a ferocidade dos tempos com a doçura do amor evangélico. E surgem almas novas, ardendo em paixões mais elevadas. A Força se desmaterializa num perfume de sentimento. A Voz não mais troveja o fragor das batalhas nem o terrível destino dos povos, mas canta as harmonias da criação.

E desponta Francisco de Assis, qual diferente cantor de Deus, que já não é como o rude Moisés, nem o tempestuoso Isaías ou o terrificante Ezequiel, nem mesmo o apocalíptico João! Verdadeiramente, com o Cristo, o mundo do espírito se transformara. A fé se dulcifica com o cântico de um poeta ou uma visão de artista, como se transmuda em beleza a própria verdade que se eleva a um plano mais alto. A fé canta e sorri entre os doces pintores das escolas úmbrica e toscana, gorgeante de crianças graciosas e perfumosas dos suaves semblantes das Madonas. E atinja poetas, artistas ou santos, é sempre a mesma fonte inspirativa que desce do alto e faz do Trecento o século das mais puras criações espirituais. Que importa a forma com que essa inspiração se imprime na matéria? Grande inspirado foi Dante, como foi Giotto e depois Rafael. Sempre, onde se manifesta um pensamento novo, profundo e nobre, o Alto vibra e se dá. O Trecento parece uma descida de anjos à Terra, para rasgar as trevas de um milênio. Foi a primeira dulcificação de costumes, na fé cristã, a primeira grande onda de preparação do reino dos céus. Falo a respeito de forças reais, presentes e decisivas na evolução da civilização. Falo da minha mística Úmbria, onde com tanta suavidade floresceu aquele sonho de fé!

A voz falou pela primeira vez a Francisco (1182–1226) em São Damião, em Assis. Assim relata o acontecimento - Padre V. Vacchinetti em sua Vida de São Francisco:

Existia então, como ainda hoje, no declive da montanha (o Subásio, próximo de Assis) uma capela dedicada a S. Damião. São Francisco gostava de recolher-se na penumbra daquela igrejinha abandonada, a orar diante de um Crucifixo. Um dia estava ajoelhado diante daquela imagem do Redentor (...), e suplicava poder conhecer, finalmente, qual fosse a vontade divina a seu respeito. Eis que, então, ainda banhado em lágrimas e com o coração agitado pelo ardor da oração, tendo os olhos fitos no Crucifixo, o vê avizinhar-se de si, e de seus lábios divinos percebe sair uma voz que lhe diz: “Não vês que minha Igreja está a desabar? Vai, pois, e restaura-a para mim!” E por três vezes se repete o amargurado apelo, a divina oração: Vade igitur et repara illam mihi!20 (vai, pois, e restaura-a para mim!). (Aquela imagem conserva-se ainda hoje na Basílica de Santa Clara, em Assis). A essa voz, Francisco, tremendo de espanto e comoção, respondeu com entusiasmo: Fa-lo-ei de boa vontade, Senhor! (Libenter faciam, Domine!). E logo se levantou, para iniciar o trabalho.

Esta é a narrativa.

A voz do Alto a descer para salvar os destinos da igreja. O impulso de Cristo volta a manifestar-se presente. Esses fenômenos de exceção não sucedem ao acaso, mas em momentos particulares com objetivos excepcionais. As correntes puras não descem ao nosso plano para curiosidade científica, mas obedecem a equilíbrios profundos, que as guiam para alimentar os valores espirituais do mundo, quando estes vacilam.

De há muito, Francisco procurava, mas ainda não se havia encontrado a si mesmo. Esquecera-se na quadra alegre da juventude, mas era momentâneo o esquecimento: ao primeiro choque sua alma desperta e do íntimo se elevam as realidades do espírito para as quais estava amadurecida. E na prisão dos perusinos e depois na enfermidade em Spoleto, as primeiras visões revelam a Francisco o seu verdadeiro ser. Creio que esses primeiros contrastes interiores sejam o momento psicológico mais decisivo para a compreensão daquele tipo de personalidade e de toda a fenomenologia supranormal que se lhe formou em torno. Esses deslocamentos de equilíbrio interior, que conduzem uma alma do mundo a Deus, projetando-a na vertigem da inspiração mística, têm raízes profundas em que se encontra a chave do mistério. Essas súbitas crises psicológicas não são senão o precipitar do equilíbrio biológico normal, em consequência de impulsos amadurecidos no eterno. E, como sempre, é necessário estudar e compreender o sujeito para entender o fenômeno. Francisco se isolava no silêncio dos bosques e dos montes para orar e para ouvir; essa necessidade de solidão, própria dos inspirados, foi para ele fundamental, especialmente nos mais importantes momentos de sua missão.

“Vade igitur et repara illam mihi!” Nas vizinhanças de S. Damião, o céu e a terra, tudo sorri numa nova luz, como que impregnado da grande emanação espiritual do Santo. A beleza natural parece brilhar em mais profunda beleza de alma. Toda a criação em torno se vivifica no espírito e também ora num impulso de fé, dobran-do-se em sintonia para alimentar o fenômeno de Francisco e de sua vibração de amor a Deus. Nos momentos de sua grande inspiração, a natureza também é chamada a colaborar, em harmonia de fé e amor, como uma realidade viva, ardente, também enamorada de Deus, pois a grande recepção noúrica é um concerto imenso em que toda a criação canta em Deus. A inspiração dulcíssima do amor de Cristo se verifica, aqui, não mais entre as tempestades do Sinai, porque a nota de sintonização é completamente diversa, mas na musicalidade doce da paisagem úmbrica, que ainda hoje canta e sobe, simples e mansa, como por humildade, perdendo-se nos esplendores azuis do misticismo. Verdadeiramente, jamais encontrei mais apropriado ambiente de sintonização espiritual que esta paisagem úmbrica.

Francisco, entretanto, não havia compreendido bem. O despertar de uma alma imersa na carne, embora seja ela forte, não pode ser instantâneo. Seu olhar, a princípio, exterior também nos conceitos, está materializado pelas sensações e só mais tarde atinge os profundos significados de espírito. Também com Joana d’Arc aconteceu o mesmo. Mas, depois, o ambiente se purifica, o contato se faz mais vivo, a percepção mais transparente. Aqui, também, embora preso num turbilhão, o fenômeno é progressivo. Não era, pois, a restauração material da igreja de S. Damião, obtida com o transporte de pedras, mas a restauração espiritual de Sua Igreja o que Cristo indicava. “Eu não vos deixarei, voltarei a vós”, Ele já havia dito. Voz universal, ativa e presente, filtra-se no mundo através dos caminhos de quem sente, responde e fala, segundo o poder de cada um para ouvi-la. Que evidência deveria, pois, atingir através de uma alma como a de Francisco!

Tudo está em relação à capacidade individual, à sensibilização espiritual e esta se relaciona com o grau de purificação atingido. Aqui, ressalta em primeiro plano a relação, já notada, entre elevação moral e potência perceptiva da alma, pois, importa um estado de afinidade vibratória para poder obter-se a sintonização. Com-preendem-se, assim, os três votos franciscanos – pobreza, castidade, obediência – que azorragam no corpo e nas paixões toda a animalidade humana.

Para sentir a palavra de Cristo, Francisco devia tornar-se semelhante a Ele na dor e no amor, e tão intensamente os teve unidos a Ele que se imprimiram em seu corpo com os estigmas, no incêndio espiritual do Alverne.

No espírito franciscano existe um conhecimento profundo dos caminhos desse laborioso esforço da ascensão espiritual. Basta recordar o episódio da perfeita alegria, em que, diante dos ataques mais cruéis e dos decepamentos mais radicais impostos à natureza humana, Francisco conclui sempre, com um crescendo impressionante de exemplos: “Ó Irmão Leão, escreve que nisso está a perfeita alegria” (I Fioretti, 7). Mas, uma verdadeira técnica de ascensão espiritual, uma descrição dos métodos usados pelo destino para impô-la ao homem, é descrita no cap. 25 de I Fioretti. Encontra-se aí narrada, na forma simbólica da época, o esforço do pro-cesso evolutivo do psiquismo humano, que em A Grande Síntese é explicado cientificamente, concordâncias que reciprocamente se iluminam. Um frade sonha que:

(...)ele foi arrebatado e conduzido em espírito a um altíssimo monte, junto ao qual se via um precipício muito profundo; aqui e ali, penhascos fendidos e lascados, rochas desiguais que se elevavam da massa de pedra; era pavoroso o aspecto do precipício. E o Anjo, que conduzia esse frade, empurrou-o, lançando-o precipício abaixo. E o frade, bamboleando e ferindo-se de pedra em pedra, de calhau em calhau, finalmente caiu no fundo do precipício, completamente desmembrado e despedaçado, conforme lhe parecera. E jazendo, assim desacomodado, em terra, disse-lhe aquele que o conduzia:

– Levanta-te, que te é necessário fazer ainda uma viagem maior.

Respondeu o frade:

– Pareces-me um homem imprudente e cruel; vês-me quase morto pela queda, que me despedaçou, e ainda dizes que me levante!

O Anjo, porém, aproximou-se dele e, tocando-o, ligou com perfeição seus membros, curando-o completamente. E depois lhe mostrou uma grande planície, coberta de pedras pontiagudas e cortantes, de espinhos e sarças; e disse-lhe que seria necessária atravessá-las, descalço, até o fim, onde existia uma fornalha ardente, em que ele deveria entrar. Tendo o frade transposto toda a planície, com grande angústia e pena, ouviu do Anjo:

– Entra nesta fornalha, porque assim te é necessário!

Respondeu o frade:

– Pobre de mim! Que guia cruel me tens sido! Vês-me quase morto, por atravessar esta planície e agora por repouso me dizes para entrar na fornalha ardente!...

E, olhando, o frade viu, em torno da fornalha, inúmeros demônios que seguravam forquilhas de ferro e com estas, porque ele demorava a entrar, o arrastaram subitamente para as chamas (...).

(...) E o Anjo que o conduzia, impeliu-o para fora da fornalha, dizendo-lhe:

– Prepara-te, para uma horrível viagem, que ainda tens de fazer!

Recomendando-se, disse o frade:

– Ó duríssimo condutor, que nenhuma piedade tens de mim! Vês como me queimei na fornalha e ainda me queres levar a uma viagem perigosa e horrível!

O Anjo, porém, tocou-o e ele se tornou são e forte. Conduziu-o, depois, a uma ponte, onde não se podia passar sem grande perigo, porque era muito frágil e estreita, muito escorregadia e sem parapeitos; por baixo passava um rio terrível, cheio de serpentes, dragões e escorpiões, que exalavam muito mau cheiro. E disse-lhe o Anjo:

– Passa esta ponte. De qualquer modo deverás atravessá-la.

– Como poderei transpô-la sem cair neste perigoso rio?

– Respondeu-lhe o Anjo:

– Vem após mim, e põe o pé onde eu puser o meu assim passarás bem.

E o frade acompanha o Anjo, como este lhe havia ensinado e chega até o meio da ponte, quando, então, o Anjo ausentou-se num vôo e se postou no cume de um monte elevadíssimo, muito longe da ponte. Examinou bem o frade o lugar para onde voara o Anjo; viu-se, assim, sem guia e olhando para baixo viu os terríveis animais que levantavam, do seio das águas, suas cabeças e abriam as bocas, como se preparando para devorá-lo, se ali ele caísse. Estava tão amedrontado que não sabia o que fazer ou dizer, porque não podia recuar nem avançar. Vendo-se em tão grande tribulação e que não teria outro refúgio senão somente Deus, inclinou-se e, abraçado à ponte, e de todo o coração e com lágrimas, suplicou a Deus que, por Sua santíssima misericórdia, o socorresse. Feita a oração pareceu-lhe que lhe nasciam asas; e esperou com imensa alegria que elas crescessem a fim de poder voar até onde se encontrava o Anjo. Depois de algum tempo, pelo grande desejo que tinha de abandonar a ponte, pôs-se a voar. Como as asas, porém, não eram suficientemente grandes para o vôo, ele caiu sobre a ponte como também as penas. Novamente abraçou a ponte e, como já havia feito, recomendou-se a Deus. Terminada a oração, de novo percebeu que lhe nasciam asas; mas, como antes, não esperou que elas crescessem perfeitamente: pondo-se a voar, uma vez mais antes do tempo, caiu outra vez sobre a ponte, e igualmente as penas. Percebendo que era a pressa de voar, sem que houvesse chegado o tempo próprio, a causa das quedas, começou a dizer a si mesmo: – Quando me nascerem asas pela terceira vez, esperarei até que sejam tão grandes que eu possa voar sem de novo cair.

E estando assim a pensar, notou que lhe nasciam asas pela terceira vez, mas, esperou que elas crescessem suficientemente. Pareceu-lhe que desde o primeiro surgimento das asas até o terceiro haviam decorrido bem cento e cinquenta anos. Finalmente, levantou vôo, dessa terceira vez, com todas as suas forças e chegou até onde estava o Anjo; e batendo à porta do palácio, que atingira com seu vôo (...), começou a olhar as paredes maravilhosas do palácio; e eram estas tão transparentes que ele claramente podia ver os coros dos Santos e tudo que lá dentro se fazia (...). E logo que entrou, sentiu tanta doçura que esqueceu todos os sofrimentos por que havia passado, como se jamais os tivesse sofrido (...).

Eis o caminho da sutilização espiritual, eis o gabinete de experimentação em que se prepararam os estados de ânimo para a recepção das mais elevadas correntes noúricas. Atrás da narrativa cheia de imagens, sente-se o esforço, a luta, o caso vivido, a percepção direta das forças espirituais da vida, ouve-se o eco das assustadoras provas da iniciação egípcia, realizadas nos grandes templos de Tebas ou de Mênfis pelos sacerdotes de Osíris; há nela um senso difuso da ciência do bem e do mal que a alma dolorosamente aprende, como já narravam os mistérios de Elêusis a queda da virgem Perséfone, por obra de Eros, no tenebroso reino de Plutão. E, verdadeiramente, a divina Perséfone, caída no sofrimento do inferno, era o símbolo da alma humana, que expia na vida e na luta pela sua redenção, que cai e se purifica das baixas paixões e reencontra a visão da verdade. Como já disse e repito, o fenômeno noúrico que estamos estudando não é senão o fenômeno da evolução, o fenômeno da ascensão da alma humana. Que a ciência não o isole, mas compreenda que é fenômeno de imensa vastidão em que se precipita o equilíbrio biológico de todo um passado, estabilizando-se num mais elevado equilíbrio de forças espirituais; compreenda que a alma não atinge a percepção inspirativa senão através da dolorosa elaboração dos milênios. Esse lampejo de intuição que lhe permite sentar-se no Alto, diante do trono de Deus, finalmente digna de conhecer a verdade, está no ápice da escala da evolução humana. Concluo com I Fioretti de São Francisco:

A águia voa muito alto; mas, se ela tivesse ligado algum peso às suas asas, não poderia voar muito alto.

A apoteose de Francisco é no Alverne. A corrente divina desce na nova forma de amor desejada por Cristo e a alma de Francisco não a alcança completa senão na plenitude de sua maturidade, no fim de seu caminho terrestre:

Na dura pedra, entre o Tibre e o Arno,

Recebeu de Cristo o último sinal

Que seus membros por dois anos levaram21.

Eis, brevemente, a viva narrativa de I Fïoretti:

(...) e São Francisco, de manhã bem cedo, antes do despontar do dia, se põe a orar diante da porta de sua cela, volvendo o rosto para o levante (...). E estando assim, e inflamando-se nessa contemplação, nessa mesma manhã, viu ele vir do céu um serafim com seis asas resplandecentes e flamejantes; e o serafim, num vôo veloz, aproximou-se de São Francisco, tanto que este o pôde discernir, percebendo claramente que tinha diante de si a imagem de um homem crucificado (...). E estando assim admirado, foi-lhe revelado por aquele que lhe aparecia que, pela divina providência, aquela visão lhe surgia de tal forma a fim de que ele compreendesse que, não por martírio corporal, mas por incêndio mental, teria ele de ser completamente transformado na positiva semelhança de Cristo crucificado.

Nessa aparição admirável, todo o monte Alverne parecia arder em brilhantíssimas chamas, que iluminavam todos os montes e vales em derredor, como se o Sol houvesse descido à Terra; e os pastores, que velavam nessas redondezas, vendo o monte incendiado e muita luz em torno dele, tiveram grande medo, conforme depois contaram aos frades, afirmando que aquelas chamas duraram sobre o monte Alverne por espaço de mais de uma hora. Igualmente, ao esplendor dessa luz, que atravessava as janelas das hospedarias da região, alguns tropeiros que iam para Romagna se levantaram, crendo que já fosse dia e carregaram seus animais; e, após iniciarem a viagem, no caminho, viram cessar aquela luz e levantar-se o sol.

(...). Nessa aparição seráfica, Cristo, que se tornou visível, falou a São Francisco certas coisas elevadas e secretas, que jamais em vida o santo quis revelar a ninguém (...). Desaparecendo a admirável visão, após falar durante muito tempo e em segredo, deixou no coração de São Francisco um ilimitado ardor de amor divino; e na sua carne deixou um maravilhoso sinal e imagem da paixão de Cristo (...).

O fenômeno foi tão forte que assumiu forma visual e auditiva e atingiu efeitos físicos permanentes. O espírito do Cristianismo alcançou no Alverne um dos mais elevados vértices de sua realização.

Atingido seu ápice espiritual, a vida de Francisco não mais tinha motivo de continuar sobre a Terra e cede ao cansaço do corpo, esgotado pelo grande incêndio, e se extingue cantando as harmonias da criação.

No “Cântico das Criaturas” a unificação é atingida, a alma se harmonizou com a sinfonia do universo, tu-do revive no espírito e à grande corrente espiritual do amor de Cristo que desce ao coração humano, responde, em sintonia, o cântico de toda criação:

(...) Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o senhor irmão Sol que nos dá o dia e nos ilumina (...).

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua e pelas estrelas, que no céu formaste claras, preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Vento e pelo Ar, nublado ou sereno e por todo tempo, pelo qual a todas as criaturas sustentas.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Fogo, com que iluminas a noite. E ele é belo, alegre, robusto e forte.

Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã e mãe Terra (...).

Louvado, sejas, meu Senhor, por nossa irmã a Morte corporal, da qual nenhum homem pode escapar (...).

Os Laudes do Senhor por Suas criaturas são o último canto do grande inspirado, com que a voz interior se cala. A emanação radiante do Divino Centro do Universo, as vibrações espirituais cheias de reflexos do princípio animador de todas as criaturas e de todas as coisas, fundiram-se, numa harmonia única, no espírito daquele que foi, a um só tempo, grande sensitivo, artista, poeta e santo. E o encanto dessa harmonia na qual toda a criação canta em Deus, terá tido seu paraíso no Céu como o fora na Terra.

Falei sobre Francisco com a alma trêmula de veneração e amor, como quem olha um gigante que se encontra na vanguarda do caminho da vida, que se move nos cimos vertiginosos da perfeição que desejaríamos atingir, mas em face dos quais as pobres forças humanas caem, prostradas.

*

Falar sobre todos os inspirados desde a Idade Média até nossos dias, seria um enorme trabalho que não poderia caber nas breves páginas deste volume, seria um inútil alarde de erudição, fácil de adquirir, de resto, nas páginas de uma enciclopédia, além de ser ainda um tratado demasiadamente denso para o leitor. Prefiro vaguear, de braços dados às atrações de minha simpatia, que garante a minha compreensão e me permitindo uma visão mais cálida e mais íntima.

Apareceu, pouco depois de Francisco, em Foligno, uma mulher admirável pela sua inspiração, tanto que foi chamada magistra theologorum22 . Embora desfavorecida de estudos – a bem-aven-turada Ângela de Foligno (1249-1309). Diante de certas verdades elevadíssimas, muitas vezes é melhor sonhar, porque as descobre mais facilmente o poeta que o cientista, ou então, o cientista deve fazer-se poeta para saber olhar o mundo com a ingenuidade de uma criança.

Há também na vida de Ângela um período preparatório de maturação, feito de dúvidas e contrastes, da vida mundana que, numa curva do destino, se modifica em uma vida de perfeição moral. Nesse momento, também uma Voz fala, produz um choque e o ser se transforma. Existe sempre um momento crítico na evolução das almas em que os equilíbrios precedentes se precipitam para se restabelecerem novamente num plano mais alto. O despontar do estado inspirativo parece ser a nota fundamental do fenômeno da gênese mística; sempre o encontramos ligado à aparição de estados morais de elevada perfeição. Reaparecem aquelas relações que já, de início, observamos. Ângela ouviu a voz da inspiração na igreja de São Francisco, em Foligno, a poucos passos de distância de seu palácio, enquanto orava. Aquela voz a inflamou de divino amor e assinalou a mudança de sua existência para uma vida de pobreza e contemplação. A recordação de Francisco, falecido há pouco, era próxima, próxima estava, também, sua Assis. A vida mundana se transforma em vida de penitente e paralelamente explode a inspiração. Diz-se que se dirigia à famosa basílica de Frei Elias e Giotto, realizando a pé um trajeto de cerca de quinze quilômetros, sempre absorta em meditação. Retornando certa vez a Assis, pouco além de Spello, onde a estrada começa a subir, ouve o Espírito dizer-lhe: “Acompanhar-te-ei até São Francisco, falando contigo, fazendo-te provar divinas alegrias (...). Eu sou Aquele mesmo que falava aos apóstolos (...), sou Eu, o Espírito (...), não temas (...)”. Despertando de seu êxtase ao ingressar no templo, pôs-se a clamar em presença de todos sua sobrevinda desilusão. Depois concluía, como São Paulo, que, arrebatado ao terceiro céu, confessava: “o olho não viu nem o ouvido jamais ouviu as misteriosas palavras (...)”23. O conceito expresso na tradicional terminologia religiosa permaneceria verdadeiro, embora traduzido para a moderna nomenclatura científica, demonstrativa e exata.

Sempre mais purificada pelo sofrimento e pela renúncia, Ângela se torna mulher famosa, como Rosa de Viterbo e Catarina Benincasa, filha de Jacó, tintureiro de Fontebranda (S. Catarina de Siena). São inúmeros os casos de pessoas que, sem a mínima preparação cultural, muitas vezes analfabetas, sabem argumentar acerca de altos problemas de teologia.

Novamente penso em S. Félix de Cantalice, em S. João da Cruz, em Santa Brígida que afirma haver recebido da voz do Cristo as regras da ordem por ela fundada, em S. Agostinho, que nas suas Confissões assevera também a presença de uma Voz que o guia. Penso em tantos que é impossível enumerá-los.

Certos caminhos, que se abrem aos humildes, parecem dever estar fechados aos sábios. “Há verdades que se recusam a quem as investiga para serem concedidas a quem as sente”, disse Carlos Delcroix. A verdade não se conquista por violência de vontade, mas por estados de sutil penetração de alma. Acrescenta Schuré, em sua obra Grands Initiés, em uma nota à pág. 649:

Les annales mystiques de tous les temps démontret que des vérités morales ou spirituelles d’un ordre supérieur ont été perçues par certaines âmes d’élite, sans raisonnement, par la contemplation interne et sous forme de vision . Phénomène psychique encore mal connu de la science moderne, mais fait incontestable. Catherine de Sienne, f ille d’un pauvre teinturier, eut, dès l’âge de quatre ans, des vision extrêmement remarquables24.

(Os anais místicos de todos os tempos demonstram que verdades morais ou espirituais de uma ordem superior têm sido percebidas por certas almas de elite, independentemente de raciocínio, pela contemplação interna e sob a forma de visão. É fenômeno psíquico ainda mal conhecido da ciência moderna, mas constitui fato incontestável. Catarina de Siena, filha de um pobre tintureiro, desde os quatro anos de idade, teve visões extremamente notáveis. (Schuré, Os Grandes Iniciados).

Esses seres excepcionais se elevam na graça divina, absorvem-lhe a essência e depois descem até junto dos homens para dar-lhes a sabedoria e a felicidade de que se inundou seu ser. Tudo isso foi chamado histerismo. Sabe, porém, a ciência o que é histerismo? Se o soubesse, curá-lo-ia. Isso chamo de simplismo. E se desse suposto mal patológico provêm produtos tão elevados que se impõem à atenção e veneração do mundo e ofuscam a sabedoria humana, se tudo isso é desequilíbrio, bendita seja então essa doença, bendito seja esse desequilíbrio, pois são os caminhos daquela luz que não é atingida pelos sentidos dos sãos e dos normais. Vêem- se, pelo contrário, aqui, os sinais de verdadeira maturidade de espírito, que significa a conquista realizada dos mais elevados valores morais, individuais e sociais, aqueles por cuja conquista a humanidade ainda envolvida, vive, sofre e trabalha; tudo isso significa a evolução realizada nos mais altos níveis biológicos, que são os do espírito, de que o homem comum, ainda muitíssimo próximo da animalidade, está imensamente distanciado.

A alma de Ângela maturou-se não no estudo, mas na dor. Analfabeta, por isto, não deixou, diretamente, nenhum escrito. O evangelista do verbo de sua alta intelectualidade foi o irmão Arnaldo, franciscano de Foligno. Em estado de êxtase, ela lhe falava das coisas elevadas que ouvia e a palavra não lhe era suficiente para traduzir. Arnaldo escrevia, buscando atingir-lhe o pensamento sem consegui-lo e quando apresentava a Ângela o escrito, esta se surpreendia, quase não o reconhecendo, e dizia: “Disse eu isso? Não te disse isso. Não reconheço haver pensado como escreves”. Frequentemente, ficava absorta, durante dias, em suas visões. Também neste caso, Cristo é o centro de irradiação; Cristo, que foi precedido por uma corrente que no profetismo hebraico o esperou, agora, no Cristianismo, é seguido por uma corrente que o recorda e em que revive. Assim, essa insigne mulher da Itália alcançou, por elevação de conceito, os mais árduos campos especulativos; raciocinava, com engenho sutil e com tranquila sublimidade, sobre a essência da Divindade e sobre Seus mistérios; alcançava, no campo teológico, uma orientação que os sábios não possuíam; navegava, segura, num mar de abstrações conceptuais que estavam absolutamente acima de seus normais poderes psíquicos. Voava, assim, por intuição, constituindo-se modelo vivo, ela que era mulher inculta, de teologia mística, de coisas transcendentais do espírito, tanto que foi chamada magistra theologorum, isto é, considerada como grande exemplo de sabedoria mística. Em vida, muitos vinham de longe para conferenciar com ela a respeito de difíceis problemas do espírito e da fé; e depois de sua morte, recebeu a homenagem da ciência e das letras da Itália e da Europa.

Uma outra grande mulher apareceu logo após, no cenário da vida, para influir e impor-se à atenção do mundo: Catarina de Siena (1347-1380). Muitíssimo conhecida, não havendo necessidade de se repetir sua história, faz pensar na coroa de delicadas flores que a Idade Média soube produzir. Ávida de solidão desde criança, nela se refugiava para deliciar-se em suas visões. O beata solitudo! O sola beatitudo!, dela também se poderia dizer. Mas esse isolamento não é vazio, é apenas a busca de um ambiente apropriado à percepção interior. Aos 16 anos, tomava ela o hábito de S. Domingos; iniciada uma vida de sacrifício, a potência visual se apura, intensifi-cando-se as místicas visões. Alimentada por estas, desce depois ao mundo para fazer o bem. Começou-se, então, a compreender sua personalidade, formando-se em torno dela uma coroa de compreensão e de admiração e ela se dá totalmente à obra de conforto material e espiritual: ensina, defende, encoraja. Dilata-se, assim, sua vida pública e daí nasce um vasto epistolário, endereçado a papas, cardeais, reis, príncipes, capitães mercenários, homens de Estado, nobres, homens do povo, grandes damas e humildes religiosas. Não escreve, embora o houvesse aprendido miraculosamente, mas dita, como era uso em seu tempo. Nasce, desse modo uma volumosa correspondência que, juntamente com o “Diálogo”, todo escrito em êxtase, forma um monumento, admirável pela pureza de linguagem, beleza de imaginação, profundeza de conceito, altitude de perfeição moral. Propaga, em torno de si, o incêndio de sua elevada paixão e induz, finalmente, o pontífice, exilado na França, a retornar a Roma, realizando assim uma missão política que se assemelha à de Joana d’Arc, que a biosofia venera como sua Patrona.

Pronuncia Catarina, mais tarde, um discurso no Consistório, em presença do colégio dos cardeais, para salvar a Igreja do cisma. Viveu uma vida de lutas e esforços imensos, em que era sustentada pelos seus íntimos contatos com o Alto. Cristo é sempre, como para Francisco, o grande animador dessas vidas que se movimentam como uma emanação de sua força e de seu pensamento. Desta vez, a corrente de pensamento e de paixão desce para salvar a Igreja em perigo. O fenômeno obedece sempre a uma lei lógica de finalidade a que se proporciona. Histerismos, pois, também estes, que tiveram uma missão social, que inspiraram a arte, que forneceram uma produção literária, que interessaram o mundo, que são venerados pelas multidões nos altares entre as coisas santas?

Há um fato que ressalta evidente em todos estes casos, mas especialmente neste: as correntes noúricas não se manifestam jamais através daqueles que parecem os mais preparados, isto é, os poderosos e os sábios, mas preferem os simples e os humildes, escolhendo para instrumento os que parecem ser os últimos dos mortais. Característica do fenômeno que tem seu significado, porque a cultura é um preconceito e o poder uma vontade rebelde, que obstam ao livre fluir das correntes e de sua aceitação.

Há uma necessidade de solidão para a busca da sintonização receptiva: é a solidão dos anacoretas no deserto, dos eremitas nos montes, dos monges nos claustros, necessidade de silêncios do mundo para que neles se possa ouvir a voz da alma. Vêm depois a dor, a renúncia, que distanciam o espírito da Terra e, frequentemente, uma progressão de potência receptiva e de clareza perceptiva, proporcionais à purificação atingida através da dor e da renúncia. Existe na alma um senso de missão que justifica a dor, o esforço, a vida, que anima e sustém o árduo trabalho do apostolado, que tudo guia ao plano da ação.

Aparece, então, frequente e evidentemente, o momento crítico da crise espiritual em que a voz se faz ouvir, distinta, inflamando a vida e jamais se calando. Verifica-se, simultaneamente, uma ascensão moral contínua e, no fundo de tudo,a grande força animadora que fala, vibra e inflama: é Cristo. De Moisés aos nossos dias, temos visto, sempre idêntica, essa potência de divino pensamento descendo e governando o mundo. É uma realidade histórica que não se pode destruir. E frequentemente há, em face dessa grande força, uma imolação de todo o ser, um martírio breve ou demorado de uma vida inteira. Sempre a mesma dor e a ciência de vencê-la num mundo mais elevado, que a mediania não vê. Só isso parece dar o direito e a coragem suprema de falar em nome de Deus. Saberá, pois, a evolução, sozinha, resolver o grande problema e obter a vitória sobre a eterna inimiga do homem - a dor?

É grande o número dos místicos e quando dizemos místico, dizemos inspirados: de Santa Clara a Santa Gertrudes; a Santa Teresa, carmelita de Ávila, reformadora de ordens, célebre por suas visões místicas (1515- 1582); à extática de Paray-le-Monial – comparada ao extático de Patmos, o apóstolo da doçura, João, que havia repousado ao peito do Cristo –, à mística esposa Margarida Maria Alacoque (1647-1690). Nela o colóquio com Cristo é contínuo, intenso, dorido e inefável de alegrias espirituais. Como os profetas e apóstolos, Margarida Maria fala com Deus e recebe uma revelação que transmite à humanidade; mas, tudo isso faz humildemente, silenciosamente, em afetuoso tom menor. Sua ascensão se gradua por colóquios sucessivos em que se revela o plano de sua missão. Por inspiração, recebe mensagens e as transmite entre as quais uma para o Rei Sol, Luis XIV, que não a escuta. É uma característica desses séculos, especialmente na terra latina, essa florescência de mulheres místicas, às quais parece confiada a divulgação do novo sentido de amor trazido por Cristo; a mulher, que não havia aparecido no seio do severo e tempestuoso profetismo pré-cristão, pode agora fazer brotar sua flor de delicadíssima fragrância. O poema gentil de Francisco continua e através dos séculos se estende uma sinfonia de almas harmonizadas em torno de um pensamento único e de uma missão constante: fazer reviver o Cristo na Terra, mantê-Lo presente, a fim de que se realize sua palavra: “Eu não vos deixarei órfãos; voltarei a vós” (João, 14, 18). É o novo cântico que continua o profetismo hebreu, o cântico da realização, na Terra, do Reino dos Céus.

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Assim chegamos aos tempos modernos, em que o fenômeno assume novos aspectos. Poderia referir-me a muitos outros, como Catarina Emmerick, a grande vidente alemã do século XIX. E que dizer de Teresa Neumann, de Konnersreuth, a famosa vidente bávara, a estigmatizada que nas suas visões segue a Paixão de Cristo, revive-a no seu corpo, ouve e repete palavras em grego, hebraico e aramaico, línguas que ela não conhece? Também neste caso, há paixão, amor e dor, sublimação no espírito, o elemento moral elevado ao primeiro plano, a virtude heróica do sacrifício para o bem dos outros. Existe um contato espiritual com Cristo, tão profundo que constitui para Teresa sua principal nutrição e substitui o alimento de que, por lei orgânica, todos têm absoluta necessidade de ingerir para viver.

O fato, que é tendência geral dos místicos, de descuidar-se do alimento material, preferindo o espiritual, faz pensar que nos mais elevados graus de evolução o ser possa conseguir seu reabastecimento dinâmico diretamente de fontes imateriais, sem ter de percorrer o longo caminho dos órgãos digestivos . O estudo, porém, destes problemas colaterais nos levaria a grande distância.

Omiti, para sobre ela falar agora particularmente, pois que se eleva como cimo solitário entre a multidão dos inspirados, quer pela potência da percepção, quer pela vastidão da missão e tragédia do martírio, a grande inspirada, a heroína da França, Joana D’Arc (1412-1431). Seu caso, que é inspirativo por excelência, se distingue sobre o mesmo fundo místico pelo caráter heróico que lhe confere a particular missão imposta pelos tempos. Esta distinção nos é necessária para traçar, com exemplos, as notas fundamentais do fenômeno, as mesmas que nos darão a expressão de sua lei.

Observemos neste caso como as forças superiores organizaram a missão e dispuseram os elementos decisivos na estratégia do destino de Joana. São estes, queiramos ou não, os elementos que individuam o fenômeno e lhe acompanham o desenvolvimento. É a uma consciência das causas, que são essas correntes que iluminam, guiam e querem, que devemos juntar a lógica e inegável concatenação dos efeitos. É a essa história interior que eu vejo, a esse drama que se agita nas profundezas da trama histórica externa que todos conhecem, que dou a maior importância. Lendo novamente, desse modo, a vida de Joana, nos planos mais elevados do espírito, podemos compreendê-la. Para entender esses fenômenos importa haver penetrado a personalidade e toda a vida espiritual do sujeito; é preciso, quando se afrontam essas vidas de missão e de martírio, possuir uma alma sensível a esse mundo de sutis vibrações. De outro modo, seremos incompetentes como um matemático que quisesse resolver problemas sem possuir o senso da matemática. Tal foi Anatole France na sua Vie de Jeanne D’Arc. Nesses casos, o pensamento permanece negativo e não atinge senão a destruição. Reservamo-nos, porém, para o trabalho mais difícil, que é o de afirmar e criar.

Encontramos novamente aqui, como já vimos em muitos outros casos, os elementos do fenômeno inspirativo, que o preparam e o acompanham. Para compre-endê-lo, eu o reduzo à sua estrutura essencial, que é um cálculo de forças, imponderáveis e reais, provenientes de centros superiores de emanação noúrica e que descem para unir-se e combinar-se com as correntes espirituais da História e do destino individual.

A elevada origem dessas forças, sua proveniência dos mais altos planos espirituais não padece dúvida no caso de Joana D’Arc. Ela havia feito pintar em sua bandeira, de um lado, as palavras: De la part de Dieu, e do outro o moto Jhesus-Maria25. Este moto ela escrevia em suas cartas, como fazia Santa Catarina de Siena. Isso demonstra que também aqui o pensamento de Cristo era dominante no espírito de Joana. Ela amava imensamente sua bandeira e a quis a seu lado na catedral de Reims, na plenitude do cumprimento de sua missão política e guerreira, quando da coroação de Carlos VII. Do seu estandarte dizia: II avait été à la peine, c’était bien raison qu’il fut à l’honneur26 (Estivera presente nas horas de sofrimento, assim, com mais forte razão deveria estar presente no instante da glorificação) (Proc. I, 187). A última palavra que Joana pronunciou, na fogueira, em face da morte, quando já não se pode mentir, foi Jesus. Além disso, aquele Venho da parte de Deus é a invocação suprema que traz Deus como testemunha, é o juramento que empenha toda uma vida até o martírio. Um instintivo terror impede de mentir, de falar em nome de Deus quando disso não se é digno. Joana, que era uma inspirada e deu sua vida para testemunhar a verdade de suas vozes, não poderia deixar de sentir quão tremenda é esta expressão: Falo em nome de Deus.

A Igreja, que jamais mutilou as capacidades intelectivas humanas, recorrendo, na interpretação do fenômeno de Joana, à tese da sugestão do histerismo e da neurose, nem sequer no momento da maior cegueira, quando Joana foi condenada à fogueira (grande responsabilidade moral para a Universidade de Paris), a Igreja só teve uma preocupação, que foi a de saber se as correntes provinham do Alto ou do inferior, de Deus ou de Satanás, se eram, pois, de verdade e de bem ou de erro e de mal. Essa é a questão fundamental. E se, num primeiro momento, no processo de condenação de 1431, o sereno julgamento é ofuscado por ódios de facção, por interesses, por invejas, por erros do clero local, que se impõem, enquanto o papado (Eugênio IV) está longe e não informado, talvez na própria impossibilidade de salvar Joana, a Igreja se dispôs à mais completa e explícita reparação no processo de reabilitação, empreendido quase imediatamente, em 1456. Esse processo de revisão, iniciado quatro anos antes por vontade do Pontífice Calixto III, do rei Carlos VII e da mãe de Joana, é encerrado com uma sentença de reabilitação, em que a inspirada já aparece em sua linha de santidade, que a coloca nos elevados níveis da inspiração cristã. Finalmente, a própria Igreja, após a beatificação (1909), proclamou a canonização em 1920 e Pio XI, em 1922, declarou-a santa.

No fenômeno inspirativo de Joana d’Arc refulge logo, e sempre mais intensa, esta característica, que considerei fundamental para a pureza da revelação – a altitude espiritual da fonte. Não nos admiremos da diferente compreensão daquele tempo. Uma idéia não poderá ser compreendida no seu século se este é surdo às ressonâncias que ela excita. Quando as almas são surdas a esse gênero de vibrações, então a maioria nega, o fenômeno se refreia numa aparência de falsidade, desaparecendo no silêncio para levantar de novo sua voz mais tarde, quando as almas souberem responder. Nem todos os tempos são capazes de compreender. Assim, Joana dormiu mais de quatrocentos anos e depois despertou; foi esquecida pela frivolidade do século XVIII, negada pelo materialismo, mas despertou na religião e desperta na ciência, que já não pode negar. Quando os tempos são surdos à compreensão, o fenômeno sabe esperar a época de sua ressonância, em que, finalmente, a vagarosa alma coletiva haja sabido atingir sua altitude, condição necessária para o contato da compreensão.

Esse lado moral de que a ciência prescinde é para mim fundamental nesses fenômenos, porquanto, é ele que define o timbre das vozes e estabelece o seu valor. A elevação moral da fonte encontra-se espelhada toda no sujeito, no gênero de vida que lhe é imposto pela inspiração; projeta-se, desse modo, também em nosso mundo, em atos que são garantia de pureza noúrica, o sinal que nos garante estarmos longe daquelas horríveis comunicações barônticas, de que tenho horror como de um íncubo. E a grandeza moral de Joana é triunfante, em todos os momentos. Sozinha contra todos, ela impõe à França sua salvação. É humilde e obediente às suas vozes. Jamais coisa alguma solicita para si, mas dá-se em abnegação completa à sua missão e, para não renegar sua verdade, afronta o martírio. As mesmas forças do Alto a mantêm nesse caminho de pureza, mas, apenas realizado o esforço da vitória e dominada a ameaça de um repouso entre glórias humanas, elas se ausentam de Joana, fazendo-a cair numa prisão. A ascensão moral lampeja mais intensamente na última fase da missão de Joana que, logo após a apoteose do triunfo heróico na Terra é subitamente lançada à conquista da vitória espiritual no céu. É lei das elevadas correntes o dar sempre ao espírito, tudo negando ao corpo. No nível humano, Joana, combatendo os ingleses, que eram a injustiça e a opressão, combatia pela legalidade, que era, então, a base do poder e a forma que naquele tempo assumia a justiça, e por isso faz consagrar Carlos VII em Reims. Só um rei assim coroado poderia, conforme o conceito da época, governar legitimamente diante de Deus e dos homens. Joana usa e suporta a guerra como um recurso indispensável e um mal inevitável, em face da justiça de seus objetivos. Guerra pela salvação da pátria, pela glória de Cristo, pelo triunfo de um princípio de bem coletivo. Joana não é uma partidária da guerra até o extermínio; embora hábil estrategista, inovadora, rápida, inteligente comandante, não amava a guerra, mas a paz. Guerra justa e oferecimentos de paz – é o seu sistema. Em suma, embora no inferno guerreiro a que teve de descer para o bem de sua pátria, sua posição moral encerra sempre o máximo de altitude que as condições do trabalho imposto permitiam. Elevação que foi de todos os instantes, jamais desmentida, coerente e imutável, elevação que avança até a paixão e o martírio. Há também uma progressão ascensional no caminho espiritual de Joana, assinalada pela intensificação de sua dor. Sofrimento e desapego, também neste caso, paralelizam com o avanço da perfeição espiritual. Sempre o mesmo processo de purificação, que é sublimação de espírito. É sempre a dor que põe em relevo a intervenção do Alto, proporcionada, em sua intensidade, à altitude da fonte. Superando as quedas da fragilidade humana, a dor é a garantia indiscutível do valor da inspiração, pois o espírito só se aformoseia se é flagelado. A ascensão é o esforço de sua reação, a dor é a força que o desnuda, purifica-o e lhe dá brilho como a um diamante.

Demonstrado este ponto da elevação inspirativa de Joana d’Arc e da progressão de sua ascensão moral, fenômeno paralelo a uma intensificação de sua dor, depois de haver recordado, também no presente caso, a relação já descrita anteriormente entre sofrimento e progresso espiritual, observemos agora como se comportam as suas vozes, como agem quais forças conscientes. Qual seja a técnica científica de sua descida é outro problema, de que cuidaremos posteriormente.

No caso que estamos examinando, as correntes noúricas revelam uma consciência do momento histórico; sua intervenção supranormal é justificada por uma necessidade excepcional e impelente; sua ação direta, que guia uma camponesinha, uma criança quase analfabeta, é proporcionada aos eventos, oportuna, vitoriosa. A causa, portanto, é supremamente inteligente, de uma potência volitiva e compreensiva superior aos homens, inclusive o escol da época, que formam o fundo cinzento e baixo de vileza sobre que se move o destino radioso de Joana.

O momento histórico não poderia ser mais trágico para a França. Existem uma proporção e uma tempestividade entre ele e a obra de Joana, embora o quadro histórico completo de seu tempo ela não o pudesse ver, não só porque ignorado, mas também porque continha ele germes de longínquos desenvolvimentos, para cuja compreensão seria necessário distanciar-se no momento contemporâneo e obter aquela visão de conjunto que somente à distância de séculos se pode possuir. De fato, a missão histórica de Joana não foi compreendida senão muito mais tarde; os contemporâneos, atentos às coisas próximas, em geral vêem pouco ou nada desses destinos de vanguarda.

Naquela época, a civilização européia, que é civilização cristã, ameaçava ruína. Da Itália, da Alemanha, da Espanha, nada se podia esperar. A Europa está confundida pelo cisma, por contínuas guerras e os infiéis ameaçam do Oriente. A França, esgotada pela Guerra dos Cem Anos, entre heresias e pilhagens está material e espiritualmente prostrada. Importava restituir a paz à Europa, fazer cessar a invasão inglesa que, submergindo a França, ameaçava seu destino e sua missão de desenvolvimento da civilização européia. Essas coisas, os contemporâneos não poderiam enxergar. As almas, prostradas por longuíssimas e extenuantes lutas, encontravam-se abatidas e a anarquia triunfava. Faltava a centelha que reacendesse a esperança e a coragem. Joana responde à necessidade impelente de arrastar para o Alto a alma coletiva. A História não é feita pelo homem, mas pelas forças imponderáveis que o guiam. E elas intervêm de maneira evidente quando existe um grande motivo e, no caso que examinamos, urgia salvar uma civilização que, criada pelo Alto, pelo Alto foi sempre guiada e protegida.

Olhemos mais de perto o momento histórico.

Desposada com Carlos VI, Isabel de Baviera, ávida, viciosa e traidora, tanto quanto louco era o rei, lhe impõe o tratado de Troyes que, em 1420, abre as portas da França aos ingleses. O rei é abandonado e Carlos VII, seu filho, vem a ser o Delfim da França em 1416. Basta olhar-lhe o retrato. Por amor à vida tranquila, faz-se rebocar, como um peso morto, pesadamente, por Joana, pondo a perder o fruto das conquistas da heroína.

Em 1415, Henrique V da Inglaterra pretende o trono da França e se prepara para conquistá-lo, a fim de fazer dele um só reino com a Inglaterra. A alma da França está dividida por rivalidades e discórdias de partidos. Os ingleses avançam. Em 1420, Carlos VI firma o tratado de Troyes, pelo qual a coroa da França passa ao Rei da Inglaterra. Em 1422 Carlos VI morre e Carlos VII tor-na-se rei, mas não ainda legitimado pela coroação em Reims, que será obra de Joana. Os pequenos senhores estão divididos, inconscientes do momento, ambiciosos, passivos diante do perigo. Quem salvará a França, governada por um rei irresoluto, empobrecido, abandonado? Urgia uma ação guerreira e política, um impulso que mudasse o curso da História. Esse impulso não poderia provir de nenhum recanto da terra.

Joana nascera em 1412. Aos 13 anos, em 1425, ouve as primeiras vozes. Por quase quatro anos, de 1425 a 1429, escuta-as, amadurecendo a própria preparação espiritual. E ao despontar de 1429 a heroína de dezessete anos entra em ação. São quatro rápidas e progressivas etapas: encontro em Vaucouleurs com o capitão Roberto de Baudricourt, encontro em Chinon com o Delfim, libertação da cidade de Orleãs dos ingleses, coroação de Carlos VII Rei em Reims. Foi em julho que se deu essa consagração. Três anos e meio de incubação do fenômeno, cinco meses e meio para traduzir o pensamento em realidade. O impulso, que não poderia origi-nar-se da Terra, desce do Céu. A centelha que faltava à consciência nacional, Joana a encontra no espírito, grande força também nos eventos políticos. Políticas e guerreiras eram as necessidades do momento e essa é a forma que assume a inspiração. A fonte das correntes inspirativas não é apenas moralmente elevada, senão também supremamente inteligente.

A obra de Joana é, assim, aqui sentida como força ativa que intervém e atua na História. As noúres, que eram bondade e justiça, pensamento e consciência, eram também vontade e energia de ação. E o caso de Joana não é único. A História, como todos os fenômenos, tem sua meta e se desenrola segundo um princípio lógico de desenvolvimento. Vejo nesse desenvolver-se de todos os fenômenos, inclusive no histórico, um último termo substancial, que é a força que os movimenta. Existe uma lei de equilíbrio entre os impulsos de todos os fenômenos e todos são imateriais, conexos, obedientes a uma única lei central, que é Deus. Nos momentos de depressão nas forças diretivas dos acontecimentos humanos, o vazio do inferior, na Terra, atrai, por equilíbrio, uma corrente espiritual do Céu e esta desce por vias inspirativas. Os impulsos do mal têm de ser equilibrados com os do bem. Esta é a lei que faz nascerem os heróis, os gênios, os santos, quando urge uma missão redentora. No momento decisivo da crise que ameaça os sagrados valores do espírito, que sintetizam uma civilização, alguma coisa “tem” que nascer. Por isso, nasceu Joana.

Cristo, a grande força que havia fundado a civilização cristã, velava, sempre presente, pela sua conservação. Desperta, então, o Destino e sacode as almas adormecidas. Carlos VII, embora rei, substancialmente era um nada; Joana, não obstante ser uma pastorinha, substancialmente era a força que explodia a seu lado.

Na História, entra em ação, nos momentos decisivos, a realidade do valor e não a aparência da posição social. E que diferença de armas e de métodos! Joana caminha rápida, reta e seguramente porque maneja as forças do bem, da justiça e da verdade; o rei e seus cortesãos vão pelas estradas tortuosas da dúvida e da traição, incertos, vazios, desunidos. O espírito e o bem tudo governam e Joana os possuía ambos. Ela era uma chama viva, os outros um archote apagado. Eis o segredo de seu triunfo.

A inteligência do centro inspirativo, neste caso de Joana, não é somente provada pela tempestividade da intervenção, pelo seu proporcionar-se aos acontecimentos da época, mas também pelo desenvolvimento lógico inegável que aquele centro imprime ao destino de Joana.A inspiração tinha uma exata meta, constante, um plano de ação complexo que muda de natureza ao longo de seu desenvolvimento, tem um período de preparação para a formação gradual do instrumento.

Observemos de perto como nasce e se desenvolve a inspiração de Joana, qual motor espiritual de toda a sua missão ativa. Reencontraremos muitos dos conceitos já observados. A forma imposta pelas circunstâncias ao desenvolvimento dessa missão, que é confiada a uma adolescente, não poderia permitir os longos períodos de maturação através da dor, que achamos em outros casos. A distribuição das fases é invertida e o fator dor é todo condensado no final. E isso porque o primeiro escopo, em ordem de tempo, é a salvação da França; o segundo é a purificação espiritual da heroína. A dor atinge, pois, somente a segunda fase do desenvolvimento individual da missão, quando o remate da obra política se deu.

Aos treze anos, no verão de 1425, Joana ouve as vozes no jardim da casa de seu pai. Essas vozes são o “leit-motiv” da vida de Joana, sempre presentes, sobretudo nos momentos mais decisivos. Elas se encontram à retaguarda dos fatos, são o centro motor de toda a sua missão. Dos treze aos dezessete anos, do verão de 1425 ao fim de 1428, isto é, três anos e meio dura o período de preparação do instrumento, três anos e meio para que a inspiração se apoderasse inteiramente daquela alma. O fenômeno é progressivo. Antes de a luta exteriorizar-se na terra, através de fatos concretos, deve ela completar-se no espírito, tem de ser antes solidamente estabilizado o equilíbrio interior das forças motrizes do fenômeno. Eis como Joana descreve sua primeira percepção das vozes:

“Losque j’avais 13 ans, j’ai eu une Voix de Dieu pour m'aider à me gouverner; et la première fois, j'eus grand peur. Cette Voix, vint vers midi, en été, dans le jardin de mon père; je

n'avais pas jeuné la veille. J'ai entendu cette Voix sur la droite, du côté de l'église, et je l'entends rarement sans voir une clarté. Cette clarté est du côté oú la Voix se fajt entendre et elle est habituellement très vive” 27 (Proc. 1,52).

(Quando eu tinha treze anos, ouvi uma Voz de Deus, que buscava dirigir-me; da primeira vez, senti grande temor. Essa voz manifestou-se por volta do meio-dia, no verão, no jardim da casa de meu pai. Eu não havia jejuado na véspera. Percebi essa Voz à minha direita, do lado da igreja, e raramente a ouço sem que perceba também uma claridade. Essa luz é vista sempre do meu lado de onde a Voz se faz ouvir e é habitualmente muito brilhante. Processo, 1, 52).

O primeiro sentimento é de medo e também aqui a primeira advertência da Voz é: “Nada temas”: ne crains rien. Mais tarde, quando o costume já houver tranquilizado Joana, a Voz se fará mais forte e segura, iniciando seus apelos de comando: Va, va, fille de Dieu, va28 (...). (Caminha, caminha, filha de Deus, caminha (...) e acrescenta: a missão vem de Deus: De la part de Dieu 29(Da parte de Deus).

As vozes são diversas. A primeira é a de São Miguel, o anjo guerreiro, o santo das batalhas, que guia os exércitos. Chegam-lhe, depois, em auxílio, como que para proporcionar-se melhor, ameigando-se à feminilidade de Joana, outras duas vozes: S. Catarina e S. Margarida. Existem também aí razões de simpatia, de atração e de afinidade de missão.

Esta última santa era representada na capela de Domremy, terra natal de Joana, por uma estátua que ela venerava. A Voz guerreira de S. Miguel desaparece depois, nos fossos de Melun, ao término da missão guerreira da heroína, quando seu destino se eleva pelas vias místicas do martírio. Então, somente falam as duas santas do sacrifício e da virgindade.

Joana vê também um resplendor na direção da Voz. Ouve, vê, tem até sensações táteis e olfativas: as correntes assumem as mais diversificadas formas de vibrações sensórias, mas, acima de tudo, ela ouve. O ambiente de sintonização está inundado de uma paz idílica, de singela musicalidade campestre, cheia de poesia. Nesse ambiente, as correntes espirituais saturam de suas energias a alma de Joana, o veículo que devia, depois, comunicar a transfusão espiritual à alma da França.

Os bosques deviam ser seu ambiente de sintonização preferido, porquanto durante o processo, imersa em vibrações mais baixas e opacas, Joana despendeu maior esforço para ouvir e numa sessão chegou a dizer: “Se fosse num bosque ouviria minhas Vozes”. Joana, naqueles três anos e meio de sua preparação espiritual, como camponesinha que era, vivera no ambiente rural, entre bosques e igrejinhas das aldeias tranquilas, na mais harmoniosa atmosfera vibratória. Nesse ambiente, ela assimilava as correntes, intensificando suas qualidades de ressonância, aperfeiçoando sua afinidade com as mesmas correntes até fundir-se e tornar-se, ela própria, o impulso que lhe foi transmitido.

A primeira voz se manifesta no jardim da casa paterna, continuando-se o contato, prosseguindo a iniciação, não mais com interrupções, mas constantemente, várias vezes por semana, um pouco em toda parte, pelas colinas do Mosa, aonde Joana conduzia a pastar seu rebanho, sob a árvore chamada “das fadas”, pelos bosques que cobriam a região, junto das fontes, entre o canto dos pássaros e o perfume das flores, ao som dos sinos que Joana muito amava e que na verdade, especialmente se grandes, são dotados de uma extraordinária potência de harmonização vibratória. Eram estas as doces vibrações que as correntes espirituais seguiam como vias de descida, como fundo de ressonância, constituindo o harmonioso motivo de matéria sobre que se apoiava a sinfonia divina. O concerto devia ser perfeito, sem dissonâncias, até seus ecos longínquos no mundo físico.

Assim descia a noúre ao espírito de Joana, através da voz interior das coisas boas e doces que se lhe inclinavam em torno em coroa, oferecendo-se como canais de sintonia. Assim se escondem na humildade as grandes coisas.

O ambiente das Vozes é, pois, quase sempre nos campos e em lugares distantes e solitários, onde Joana gostava de refugiar-se. E a campina de Domremy, onde vivia Joana, é ainda hoje verdadeiramente sugestiva pela sua tranquilidade e silêncio.

As Vozes, entretanto, falam também na igreja, outro ambiente místico excelente, isto é, na igrejinha de Domremy e no vizinho santuário de Nossa Senhora de Bermont. Na primeira havia a estátua de S. Margarida e diante dela Joana orava. O santuário de Bermont, isolado em silêncios, entre árvores, era o ambiente afastado, ideal de suas inspirações. A solidão daqueles silêncios era necessária a Joana, a fim de ouvir melhor e ela a buscava para sua preparação. Ocupada em seu profundo trabalho interior, sua alma tinha necessidade de paz no exterior. Nesse ambiente, a camponesinha de Lorena teria feito sua promessa solene, aceitando sua Missão e comprometendo-se com o Céu a segui-la até o fim. A História não assiste a essa íntima cena, em que a alma de Joana deveria haver falado e talvez também lutado longamente com suas Vozes. Certamente Elas estavam presentes como estiveram no Sinai, em Patmos, em S. Damião. Existe na capela de Bermont um Cristo dorido e amargurado a cujos pés a jovenzinha deve ter pronunciado o seu sim, um voto solene recolhido pelo Cristo moribundo e do qual não mais poderia afastar-se. Aquele voto era também de dor e de paixão.

A Lei de Deus desce e se humilha perante o consentimento da alma, porque, respeitando a liberdade desta, respeita a si própria. Somente agora Joana, desenvolvida antes de tudo interiormente, poderia lançar-se pelos caminhos do mundo. O doce período das efusões espirituais está terminado. Iniciar-se-á agora a grande batalha da conquista do martírio.

Disse: lutado. Sim, porque Joana não aceita passivamente, mas discute e frequentemente resiste às suas Vozes. Ela lhes opõe os raciocínios do seu bom senso, que calcula as dificuldades tanto quanto as próprias forças. As vozes eram sempre distintas do seu eu, com o qual às vezes colide, sem se confundirem jamais. Dá-se um encontro entre sua vontade humana e a vontade superior, uma como progressiva tomada desta sobre aquela; mas, não existe qualquer violência que anule vontade e liberdade. Se Joana obedece, é porque anteriormente discutiu, compreendeu, convenceu-se. Forma-se um pacto entre dois seres livres, conscientes e consencientes. As forças do Céu e da Terra são distintas, encontram-se e lentamente se fundem numa força única. Para isso, foi necessário um longo período de incubação, muito mais longo que o da conquista guerreira e do martírio; um período de preparação invisível, antes que o fenômeno pudesse explodir em sua maturidade; um processo de progressivo desenvolvimento antes de atingir sua plenitude.

Se as duas vontades se põem de acordo, permanecem, todavia, distintas, como distintos são os trabalhos a realizar. A vontade mais alta e mais sábia permanece na direção e guia; a outra a segue. No caso de Joana, as Vozes não revelam todo o plano, mas, embora de monstrando conhecê-lo completamente, só lhe comunicam, nos momentos oportunos, a parte dele que interessa à sua execução. O inspirado é, pois, sempre guiado pela mão, como uma criança. A missão é revelada aos poucos e a comunicação se limita ao mínimo necessário. Parece quase que as Vozes amam esconder no silêncio o que a alma não teria força para aceitar, guiando-a, docemente, com o menor dispêndio possível de energias.

Observemos como as Vozes se comportam na vida de Joana. Concluída a tarefa de preparação, Joana é lançada pelas Vozes em sua missão e parte no momento justo. Ela não sabe outra coisa senão isso: Va, va, fille de Dieu, va (...). As vozes, porém, sabem e precisam, imediatamente, quatro objetivos: Vaucouleurs, Chinon, Orleãs e Reims, conexos entre si por uma proporção e lógica de desenvolvimento que ascende a uma única meta. Quando as Vozes não têm de ser precisas não o são. Há um acordo entre a sabedoria do Céu e as exigências dos acontecimentos.

Elas sabem que Orleãs é a chave de toda a posição e que, perdida esta, desabaria a missão, salvar a França do domínio inglês. Orleãs está sitiada desde outubro de 1428. Ao iniciar-se 1429, Joana já se acha em movimento. Reims é o objetivo político que não se pode atingir senão numa segunda fase. Primeiro, a vitória que permita a legitimação e depois a legitimação que confirme a vitória.

A marcha heróica se desenvolve com uma segurança de guia que os grandes chefes daquela época não possuíam. Tudo é predito. Joana, no caos, segue reta como uma flecha. “Malgrado os inimigos, o Delfim se tornará Rei e sou eu quem o conduzirá à consagração”. (Proc. II, 450). Assim afirmou a pequena pastora. Como podia uma tão humilde criatura afirmar isso sem ser louca e se era louca como acertar com tamanha precisão?

Em março, Joana está em Chinon e reconhece o Delfim entre a multidão dos cortesãos:

Par le conseil de ma voix, qui me le révelait. (Proc. 1,56). Quand j’ai vu le Roi pour la première fois il y avait là plus de 300 chevaliers et de 50 torches sans compter la lumière celeste. Et j’ ai rarement des révélations sans qu’il y ait de lumière. (Proc. 1,75). “Je l’entends rarement sans voir une clarté”30 (...). (Pelo aviso da minha Voz, que mo revelou. (Proc. I,50). Quando eu vi o Rei pela primeira vez, lá estavam mais de trezentos cavaleiros, sob a luz de cinquenta archotes, sem contar a luz celeste. Raramente recebo revelações sem que haja manifestação de alguma luz. (Proc. I,75). Também raramente ouço sem que perceba também uma claridade(...),já havia dito Joana a respeito de sua primeira aparição. Ao falar com o Delfim, ela lê no íntimo de seu es-pírito, atingindo suas secretas dúvidas, isto é, se ele era filho legítimo de Carlos VI e Isabel. E Joana lhe diz que justamente por sê-lo ela o fará consagrar em Reims.

Um outro sinal se acrescenta: o miraculoso encontro da espada enterrada de S. Catarina, coisa que Joana não podia saber e que lhe foi indicada pelas vozes31. Em Orleãs, a inspiração sustenta a estratégia e a técnica militar com uma capacidade que Joana não podia possuir e que superava a dos chefes de seu tempo. Em poucos dias uma camponesa de 17 anos consegue o que não o puderam fazer, em vários meses, os homens aguerridos da época. Orleãs é libertada. As Vozes são recebidas com exatidão. Joana, porém, sabia que era preciso tudo realizar rapidamente e tem pressa de concluir sua missão guerreira. Importava consagrar no rei a vitória conseguida, completá-la num plano de direito. E avança contra Reims. Na tarde de 16 de julho, Carlos VII entra na cidade, como as Vozes haviam predito. Imediatamente, no dia seguinte, um domingo, é realizada a coroação.

“Gentil Rei” – diz-lhe Joana – “acaba de realizar-se a vontade de Deus, que queria se levantasse o sítio de Orleãs e vos conduzisse a esta sagrada cidade de Reims para receber a Santa Consagração, mostrando, desse modo, que sois o verdadeiro Rei a quem o reino da França deve pertencer”. (Proc. IV, 186).

A França estava salva. As Vozes, que haviam atingido seu primeiro objetivo, já não têm por algum tempo, a precisão e a potência de Domremy. De fato, com que proveito, se seu objetivo é outro? A Pucela havia despertado a alma nacional. O desforço francês por ela preparado avançará e libertará sua pátria. Todas as suas profecias se cumprirão. O ânimo de Carlos VII ressurgirá e quatro lustros mais tarde a França será livre. Era suficiente aquela centelha. As forças haviam limitado sua intervenção ao mínimo indispensável.

Depois de Reims, é outro o objetivo das Vozes e para essa nova meta se dirigem e com ele se harmonizam. As Vozes permanecem em seu método de dizer, guiar, encorajar e promover acontecimentos parceladamente. Aí começa um novo destino de Joana, mas Elas não lho revelam; só falarão claramente na Páscoa de 1430 em Melun; O seu destino sobe, lenta e inadvertidamente, dos triunfos humanos aos triunfos divinos; já não se trata da salvação da França, mas da sublimação da alma de Joana através da dor. E sua paixão começa. É uma vitória maior, que deve consolidar a primeira e fazer de Joana uma santa.

Progressão ascencional do fenômeno, que o conduz a um limite imensamente mais elevado, em que o sofrimento, como já vimos, é o fator fundamental. Para Joana era necessário consolidar e consagrar sua idéia no martírio, que continha algo de maior que a salvação da França e que, no testemunho da morte, devia estender-se ao mundo inteiro. Para que Joana, entretanto, pudesse realizar sua ascensão era indispensável, para ela, a falência de seu triunfo humano, importava que sua grandeza terrena naufragasse na traição e no abandono, por parte dos ingratos em favor de quem ela havia lutado. Não devia ser ela quem colhesse, para si, glórias terrestres. Sua glória devia ser seu puríssimo sacrifício pela França. Recompensas e gozos humanos teriam dissipado completamente essa sutil fragrância do espírito.

Uma vez mais, vemos, no fundo de todas as missões, Cristo a resplandecer, Cristo que atrai a si, na renúncia e no martírio, as almas eleitas. Há, pois, um desenvolvimento lógico no íntimo progredir do fenômeno:o primeiro cuidado das forças superiores foi, assim, despojar a Pucela de todos os triunfos humanos, que naturalmente estavam para envolvê-la, ameaçando seu triunfo maior. Importava avançar ainda mais. As Vozes, porém, guiam com delicadeza, sem esmagar o espírito com uma perspectiva imediata, demasiadamente vasta, que o desoriente, que excite revolta ou temor. Elas o encaminham para a inevitável estrada, conservando-se sempre presentes, embora às vezes pareçam ausentes, mas apenas usam a inteligente estratégia do silêncio.

Na vida eterna de Joana, era chegada a hora da grande vitória e importava afrontá-la com uma grande prova, porque é esta a lei das almas maduras. Até o fim, as Vozes usam a piedade do mistério, fazem-na entrever a libertação, entendida, porém, num sentido espiritual, não lhe revelando que horrível morte a esperava, justamente a que ela mais temia. Falam-lhe, mas suavizam os caminhos da dor. O Alto, diferentemente dos planos inferiores, conhece essa piedade e se não pode evitar o sofrimento é porque este é parte essencial e integrante da ascensão que o mesmo Alto deseja, por ser o caminho da felicidade. Quantas coisas sutis e profundas nos ensina esse ponderado avançar das Vozes pelos caminhos do Senhor!

Somente quando a alma adquiriu a força de olhar, face a face, o martírio, é que as Vozes falam mais claramente. Somente quando Joana foi capaz de compreender o verdadeiro sentido da sua libertação, só então as Vozes lhe disseram: “Encara tudo isso com bom ânimo. Não te preocupes com teu martírio. Entrarás, finalmente, no reino do Paraíso”. E isso porque o significado profundo do fenômeno que estamos estudando se acha na evolução do espírito, no trabalho de sua potencialização, que lhe permita, como vimos em I Fioretti de Irmão Francisco, levantar vôo para superiores planos de vida.

Vejamos, porém, mais de perto os acontecimentos. Depois de Reims, a estratégia de Joana é deixada aos seus recursos humanos. Ela havia trabalhado no baixo mundo humano e é lei que esse mundo devesse reagir: ela havia triunfado demais e não poderia deixar de excitar ciúme e inveja de muita gente. A grandeza a isolava. Os níveis de consciência humana comuns são baixos e os homens não sabem aliar-se senão por interesse, raramente por um ideal. É natural que o conhecimento limitado de Joana, não mais sustentado pelas forças superiores, tivesse logo de despedaçar-se de encontro às astúcias de gente dada a todas as insídias e ela cai vítima da traição. Os homens eram cegos: só enxergavam o interesse mesquinho, por ser próximo e individual. Somente as potências do Alto haviam demonstrado uma superior consciência do momento histórico, dominando no espaço e no tempo. Os homens inferiores são, porém, os mais tenazes e armados de vontade, de astúcia, de mentiras. O plano lógico de Joana era de avançar logo sobre Paris e aí concluir a paz, como vencedora. Carlos VII, por quem lutava, pessoalmente lhe frustra os planos, preferindo um armistício com Paris e uma paz acomodatícia. Todo o impulso moral dado à França por Joana é quebrado: ela é traída pelo seu próprio rei. No momento da ação decisiva, que deveria recolher todos os esforços anteriores, o rei vadia e espera. Em setembro, Joana ataca Paris. Aí se dá a primeira traição. Vários comandantes, não desejando a vitória da empresa, retiram-se da luta. No dia seguinte, anuncia-se que é expressa vontade do rei se abandone a ofensiva.

E a traição continua. A primeira derrota ofusca a auréola da heroína. O povo quer o triunfo, a esmagante persuasão do fato concreto, que tudo justifica, o delito ou o milagre. Em face da derrota, a santa é transformada em feiticeira. Joana permanece cada vez mais sozinha, contra todos. O rei não quer senão mandriar, não cuida de Joana que sonha com a paz. Naqueles tempos, ninguém desconfiava das demolidoras hipóteses do materialismo. Hoje, Joana estaria entre os loucos. Mas, naquela época, só poderia ser ou feiticeira ou santa. Para os franceses, enquanto lhe foi útil com suas vitórias, era naturalmente uma santa. Para os ingleses, por ser inimiga de seus interesses, era uma bruxa, tese que lhes foi querida e que farão triunfar. As nações, como os homens, acreditam que Deus esteja sempre de seu lado, que imaginam ser sempre o lado do direito e da justiça. O pior foi que, por inveja, os franceses, desde a primeira derrota, começaram a considerá-la feiticeira, apertando em torno dela um círculo total e fatal que finalmente a estrangulará. Entretanto, se os séculos se recordam daquele tempo e de todas aquelas personagens insignificantes, é somente em virtude da heroína perseguida que eles quiseram esmagar. Somente a dor, nunca a astúcia ou a força, cria as coisas eternas.

A hora, porém, da maior traição se precipita. O destino tomou resolutamente um novo caminho e as Vozes voltam a falar. Até então se haviam calado. Em face da derrota de Paris, silêncio. “Quando caminhava para Paris, não tive revelações de minhas Vozes” (Proc. I, 146), diz Joana: “não foi nem a favor nem contra a ordem de minhas Vozes”. (Proc.I, 169). As Vozes deixaram, pois, que seu destino de mártir se cumprisse, que a traição, que o condicionava, prosseguisse. Assim também Cristo deixou Judas por ocasião da Ceia. Existe, desse modo, um senso de fatalidade no destino, que, uma vez fixado em suas causas, não mais se pode interromper.

As Vozes encontram de novo a potência de Domremy, numa nova curva decisiva. “Na semana da Páscoa, quando me encontrava nos fossos de Melun, foi-me anunciado pelas Vozes, isto é, por Santa Catarina e Santa Margarida, que eu cairia prisioneira antes da festa de São João e que assim deveria suceder; que eu não me surpreendesse, mas recebesse tudo de bom ânimo, porque Deus me ajudaria”. (Proc. I, 115-116). Estávamos em abril de 1430. São um fato verificado esses períodos de silêncio: parece que a Voz se ausenta e se extingue, todavia, no momento oportuno, ela ressurge, vibrante; compreende-se, então, que ela esteve sempre presente, guiando tudo sem que se revelasse. Silêncios necessários, que fazem parte do plano diretivo, da estratégia dos repousos e dos retornos em que amadurecem os impulsos mais elevados. Joana, pois, deveria cair prisioneira: esta, a vontade de Deus. Requere-se uma nova aceitação, mas, ao mesmo tempo, se encoraja e se promete um divino auxílio que, depois de Orleãs, vai operar o segundo milagre da inabalável firmeza de Joana até à fogueira.

De fato, Joana foi feita prisioneira em Compiègne, por uma nova traição. Entra na cidade sitiada, sem de nada suspeitar, mas, ao fazer uma incursão pelas suas proximidades (o inimigo talvez estivesse mancomunado com os próprios chefes da cidade), os ingleses lhe cortam a retirada. Nesse ínterim, Compiègne levanta as pontes e fecha as portas. Joana teve de render-se e foi aprisionada, em virtude da traição dos próprios franceses. Diz-se que a traição foi regiamente compensada.

Prisioneira! Assim, de mãos a mãos, ela passa aos ingleses, aos quais é vendida, e que pagam alto preço pela rica presa. Os acontecimentos se aceleram. Joana arrasta sua paixão, de cárcere em cárcere, até que se inicia seu processo. Nas mãos dos ingleses, Joana deveria ser considerada uma feiticeira – esta a conclusão preposta a todo processo, porque deveria este servir ao interesse de anular a consagração em Reims, reduzida, desse modo, a um sacrilégio, destruindo com isso a autoridade conferida a Carlos VII por esse novo juízo de Deus. Na incerteza das vicissitudes humanas o povo havia percebido essa milagrosa intervenção divina, que era garantia da legitimidade real. Entretanto, os trezentos homens do processo, tão aguerridos em sabedoria, não compreendiam esta verdade elementar – que todas as suas astúcias e violências, se podiam aniquilar Joana, o rei e a França, não tinham poder de violentar Deus, tampouco aqueles que por Ele eram protegidos, isto é, ligados ao círculo das forças superiores da Divindade. Os juízes, ao buscarem o ponto de contato entre Joana e Satanás assinalaram, ao contrário, o ponto de contato entre a Santa e Deus. Contra ela foram utilizadas as palavras de São Paulo. Sua perseverança foi considerada pecado de orgulho. Melhor não se poderia mentir. Não obstante tanta dialética, tanta pompa de encenação judiciária, tanta fúria de força e astúcia, não puderam cancelar uma sílaba da simples e sublime verdade de Joana. Para destruir o que representava a salvação da França, os juízes procuraram aniquilar a heroína e a santa, pondo em seu lugar a figura de uma feiticeira. Importava inverter a situação e substituir Deus por Satanás. Pobre míopes que não viam que essa inversão de valores era justamente o pedestal da grandeza da santa, porque era a condição de seu martírio! Eles eram a força ignara que o Alto utilizava para a vitória de Joana!

Na Idade Média, era fácil a acusação de feitiçaria. A atmosfera parecia estar saturada da idéia do demônio e, verdadeiramente, com todas aquelas mortes violentas e cruéis, com tantos ódios e vinganças, ela devia estar espiritualmente irrespirável, profundamente impregnada de emanações barônticas.

Joana está sozinha, oprimida, privada até do conforto da religião; sozinha, diante dos insultos dos carcereiros e dos ataques à sua pureza; sozinha, diante de uma terrível assembléia de juízes inteligentes e de má-fé, que tentavam, por todos os meios, arrancar-lhe a renegação de suas Vozes, para terem, assim, o meio legal de condená-la e a forma da justiça fosse salva. Eles criam que aquela ilusão da forma pudesse bastar para sustentar um fato que era mentira e hipocrisia. As forças reais da vida, porém, depois se levantam e impõem a reabilitação. Quando se compreenderão essas leis?

No caso presente, estamos vendo, no entanto, a que extremo de injustiça pode chegar a justiça humana.

As Vozes, porém, falavam com Joana e ela respondia a todos, simples e sublime. Esta é a grande força sem armas, a força do justo e do verdadeiro. Quando são iniciados certos caminhos, não mais se pode retroceder. Dois dramas se desenrolam nesta última fase: o drama exterior – que é o do processo em que a autoridade cega, cheia de idéias preconcebidas, de má-fé, se precipita de erro em erro, até bater a cabeça na fogueira, diante da qual um dos juízes ingleses gritará: “Nós nos enganamos! Queimamos uma santa!” O bispo Cauchon, juiz no processo e a quem Joana havia admoestado mais de uma vez, chorará. Ao lado de tudo isso, desenrola-se o drama interior de Joana, que resplandece sobre o fundo cinzento de tantas baixezas. Neste drama, agiganta-se a grandeza do céu e Joana, destruída, fulgura, replena da potência do infinito. Está sozinha, mas suas Vozes estão com ela. Isso lhe basta. A unificação se completou em Vermont e não mais poderá romper-se, nem sequer na hora do Getsêmani e do Gólgota. São liames que não se desatam no tempo e permanecem além da morte.

As Vozes são piedosas: amparam, não amedrontam. Prometeram a libertação e não mentiram, porquanto se referiam à libertação maior. Não tiravam de Joana a esperança de uma libertação humana, para não a afligirem antes do tempo, para oferecer-lhe uma oportunidade de compreender seu novo esforço e amadurecer, gradativamente, para a grande idéia do martírio. Busca a fuga, espera a salvação material e essa interpretação lhe é deixada como uma doce piedade que mitigue sua paixão. Muitas vezes é benéfica a ignorância das disposições do destino; certas ilusões da alma são frequentemente necessárias para que ela afronte situações que a amedrontariam. As Vozes a encorajam a resistir até à libertação. Só mais tarde haveria de compreender. Ne crains rien – Elas haviam dito desde o princípio.

Era necessária a prova suprema para dar ao mundo o testemunho da origem divina das Vozes. O destino de Joana não tinha de atingir somente o alvo de salvar a França, de santificar sua alma, mas, também, de afirmar ao mundo a verdade do espírito. Joana deu a vida por essa afirmação. Jamais renegou suas Vozes e sempre repetiu seu moto: De la part de Dieu – venho da parte de Deus. E repete no final: Se eu dissesse que Deus não me enviou, eu me condenaria. Verdadeiramente, Deus me mandou. Somente na jornada do cemitério de Saint-Ouen tem um momento de fraqueza humana. Seu cansaço cedeu em face a tantas pressões e astúcias de textos ou tal-vez se houvesse enganado pensando que aquela fosse a esperada libertação. Vacilou um momento, vencida pela vontade tenaz de seus juízes, que, no entanto, não passava de uma força que desejava sua retratação para condená-la de qualquer modo. São bem humanos esses desânimos que obscurecem o senso de responsabilidade. Joana, porém, apenas readquire alguma força, temeu, em face de suas Vozes, por havê-las desmentido, embora por um momento; e imediatamente recobrou ânimo. E seu último grito, o maior lançado ao mundo, entre as chamas da fogueira de Ruão, foi: Minhas Vozes vinham de Deus.

Testemunho solene, feito em face da morte, quando não se pode mentir; relâmpago de verdade eterna, descida como sempre de uma cruz, verdade provada com o martírio.

Que diz a ciência, dessa espécie de provas? Na apoteose do sacrifício, Joana reafirma, dando por isso a própria vida, as supremas verdades do espírito, testemunhando que elas existem e se atingem através da dor.

No momento supremo, a Pucela de Orleãs encontra o ponto de contato que a une a Cristo; novamente penetra e se fixa, como força palpitante de vida, no plano divino da Sua redenção. E Cristo é seu derradeiro grito, que é de vitória.

Jamais na História, como neste caso, as forças do espírito desceram tão perto da Terra e numa luta corpo a corpo tão resolutamente se impuseram aos acontecimentos humanos; jamais o contraste foi tão vivo, a intervenção tão evidente, nem os acontecimentos foram tão intensamente violentados pelos impulsos do imponderável. Os dois mundos se defrontaram e olharam face a face, desafiando-se. E o espírito venceu.

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16 Brocken (ou Brock) – elevada e granítica montanha na Alemanha, onde, conforme as superstições medievais, imperava o chefe das forças do mal, o “Senhor Uriano” (Herr Urian) na versão do Fausto de Goethe. Era o local da noite de Valburga (ou Walpurgis) – a “Wal purgisnacht” (N. do T.).

17 O 4 o Livro dos Reis corresponde à divisão da Bíblia Hebraica, de que se serviu o autor. Nas edições grega e latina (a dos Setenta e a Vulgata) o antigo livro de Samuel é dividido em dois e igualmente o seguinte, o dos Reis. Assim, o texto citado encontra-se em nossas Bíblias atuais, no II livro dos Reis, Cap. II – vers. 11 (N. do T.)

18 Este livro – As Noúres – foi escrito no verão de 1936 e publicado, em 1 a edição, por U. Hoepli, de Milão, em 1937 (N. do T.).

19 “A última idade da predição de Cumas já chegou; a grande ordem dos séculos nasce de novo. Já volta a Virgem e os reinos de Satumo. Uma nova progênie desce já do mais alto Céu.

Casta Lucina, ampara; teu Apolo já reina.

... Vê como estão de acordo o mundo de pesada abóbada E as terras todas, e a extensão do mar, e o céu profundo. Vê como tudo se alegra com os séculos por vir”.

(Vírgilio, Écloga IV)

Tradução de Ruth Maria Chaves Martins.

20 “Vai, pois, e restaura-a para mim! – como já está escrito, duas linhas atrás, para o vernáculo (N. do T.).

21 Divina Comédia, canto XI do Paraíso (N. do T.).

22 Mestra de teólogos (N. do T.)

23 I Epístola de São Paulo aos Coríntios, 2:9 (N. do T.).

24 Os anais místicos de todos os tempos demonstram que verdades morais ou espirituais de uma ordem superior têm sido percebidas por certas almas de elite, independentemente de raciocínio, pela contemplação interna e sob a forma de visão. É fenômeno psíquico ainda mal conhecido da ciência moderna, mas constitui fato incontestável. Catarina de Siena, filha de um pobre tintureiro, desde os quatro anos de idade, teve visões extremamente notáveis”. (Schuré,

Os Grandes Iniciados) (N. do T.).

25 Assim mesmo, na ortografia da época (Jhesus) (N. do T.).

26 “Estivera presente (como ela, Joana) nas horas de sofrimento, assim, com mais forte razão, deveria estar presente no instante da glorificação” (N. do T.).

27 “Quando eu tinha treze anos, ouvi uma voz de Deus, que buscava dirigir-me; da primeira vez, senti grande temor. Essa voz manifestou-se por volta do meio-dia, no verão, no jardim da casa de meu pai. Eu não havia jejuado na véspera. Percebi essa voz à minha direita, do lado da

igreja, e raramente a ouço sem que perceba também uma claridade. Essa luz é vista sempre do meu lado, de onde a voz se faz ouvir, e é habitualmente muito brilhante”. (Processo, I, 52) (N. do T.)

28 “Caminha, caminha filha de Deus, caminha...”. (N. do T.)

29 “Da parte de Deus”. (N. do T.)

30 “Pelo aviso da minha voz, que mo revelou (Processo, I, 50). Quando eu vi o Rei pela primeira vez, lá estavam mais de trezentos cavaleiros, sob a luz de cinquenta archotes, sem contar a luz celeste. Raramente recebo revelações sem que haja manifestação de alguma luz”

(Processo, I, 75). Também raramente ouço sem que perceba também uma claridade... “. (N. do A.)

31 É uma referência a um fato realmente notável. As vozes disseram a Joana que ela deveria usar, na luta contra os ingleses, a mesma espada de Carlos Martel, que em 732 (sete séculos antes!) expulsara os muçulmanos invasores da França na batalha de Poitiers, entre Poitlers e

Tours. E as mesmas vozes lhe indicaram onde a encontraria, enterrada e esquecida, sob o altar de uma igrejinha campestre. (N. do T.)

 

Realizei o exame de meu caso em seus mais salientes particulares. É chegado o momento de sair deste caso individual para remontar a uma visão mais vasta do fenômeno, observando os casos de mediunidade inspirativa que a História nos oferece. Semelhanças e pontos de contato permitir-me-ão estabelecer a lei do fenômeno melhor que a observação de um só caso.

No precedente estudo de anatomia psíquica, realizei a vivissecção de minha alma. Era isso necessário para a compreensão de meus escritos mediúnicos, dos quais o presente é o complemento e a continuação lógica. O meu caso mediúnico, porém, se desenvolve sobre a perspectiva grandiosa de muitos casos maiores. Embora distanciados grandemente por importância histórica e potência e não obstante as naturais diferenças dadas pelo temperamento do médium, pela natureza particular das circunstâncias e pelo ambiente imposto ao seu trabalho, todos esses casos têm um fundo único, possuem notas características comuns, que renasceram também no meu caso menor. Isso corrobora minhas afirmações e interpretações do fenômeno com a presente teoria das noúres.

Muitas palavras têm sido usadas para defini-las: inspiração, visão, êxtase, rapto dos sentidos, intuição, mediunidade, o demônio, as musas, o espírito, a subconsciência, a superconsciência etc.
O misticismo, as religiões, o espiritismo, a filosofia, a arte, a psicologia, cada atitude do pensamento humano criou sua expressão e observou de um ponto de vista particular o mesmo fenômeno. O místico, o santo, o profeta, o poeta, o artista, o herói, o cientista, o inventor, numa palavra, o gênio, em todas as suas formas, tem vivido igualmente aquele fenômeno.

É um fenômeno próprio dos grandes avançados na evolução, da qual o gênio não é senão o antecipador que agita o archote do espírito no seio de uma triste normalidade. O fenômeno é tão universal e antigo quanto o homem; mais ainda, foi justamente na antiguidade que ele foi mais reverenciado, quando o conhecimento se atingia diretamente por revelação e o método intuitivo e dedutivo, que a racionalidade moderna não mais sabe usar, era muitas vezes o único método de pesquisa para a solução dos problemas e a conquista do saber. A alma humana, então mais virgem, parecia mais próxima das origens, podendo atingi-las diretamente. Hoje o pensamento se encontra decaído, havendo se precipitado profundamente na racionalidade e não sabe reencontrar os princípios. Desses grandes contatos espirituais nasceram as revelações.

Entramos, agora, num mundo maravilhoso. O fenômeno da registação inspirativa não se pode encerrar nos limites de um fenômeno científico; este caso está para a simples captação noúrica como um raio para uma centelha elétrica, pois que o homem é levantado num turbilhão à face de Deus, centro conceptual do universo, que aparece e se revela para assinalar os destinos do mundo.

Se no meu pobre caso, tive de falar em ascensão espiritual e purificação, quais condições de uma sintonização que não pode realizar-se senão por afinidade, a que vórtice de potência se terá realizado a transumanização desses grandes inspirados que chegaram a ler o pensamento de Deus! E aqui se toca o caso limite da humana possibilidade de ascensão. Se a recepção noúrica é fenômeno de elevação humana às altas esferas do superconcebível, a que tensão do ser, a que vertigem de altura, a que vértice de potência terá chegado a alma humana, nesses casos! E como se torna pequenina e inadequada a ciência, com sua análise, em face desses fenômenos que governam a História do mundo!

Diante dos grandes inspirados, desses gigantes que se moveram numa atmosfera de pensamento titânico, em face da potência dessas forças vivas do espírito que descem à Terra para fundir-se na História, para dar o sopro da vida às civilizações e orientar o progresso do mundo, diante das revelações que atingiram, por contato espiritual direto, a verdade das fontes primeiras do pensamento de Deus, em que se transforma a ciência, com seus métodos exteriores, com seus preconceitos inibitórios, com a incerteza de suas dúvidas e de suas hipóteses? Em que se converte, em face desses fenômenos que superam completamente o homem, a pobre ciência humana, perdida nos tortuosos caminhos da análise e que, no entanto, tudo quer julgar e aprisionar na pequenina técnica de sua experimentação? A ciência, com seu método, encerrou-se em limites que ela própria traçou, constringindo-se na incompetência, nestes casos em que no fenômeno atuam fatores transcendentais.

Nesses casos, as noúres conduziram o homem a uma tão grande altura, ao longo das Hierarquias que se elevam e convergem para a Divindade, que o fenômeno já não se pode reduzir a um conceito científico, porque se realiza fora do mundo e de sua ciência.

As religiões, que significam uma orientação dada pelo Alto ao espírito humano para guiá-lo no caminho de suas ascensões, são uma descida do espírito divino através das revelações. No fundo delas, existe uma única religião que caminha e na qual, adaptando-se à psicologia dos povos nas formas do tempo, a idéia de Deus avança. Avança da Atlântida à Índia, ao Egito, à Grécia, ao monoteísmo da intuição de Moisés, imposto ao povo de Israel, a fim de que conservasse a idéia até Cristo, que deveria continuá-la e fecundá-la no Seu Evangelho de amor.

Todos os grandes criadores do pensamento humano atingiram, por inspiração, a mesma fonte única, expressando-a progressivamente sempre mais perfeita: Krisna, Zoroastro, Hermes, Moisés, Buda, Orfeu, Pitágoras, até Cristo, que supera todos. A verdade é uma só. As aproximações humanas é que são diversas, sucessivas, proporcionadas ao progressivo desenvolvimento da evolução psíquica do homem.

Eis porque a idéia de Deus, em sua essência, é um superconcebível. O homem deve limitá-la para redu-zi-la ao seu concebível, que lhe é a única medida que pode, em seu relativo, assinalar-lhe os limites. Esse relativo, porém, se dilata por evolução do sujeito humano e logo, paralelamente, aquela idéia se amplia. Desse modo, a evolução da idéia de Deus é paralela à evolução humana. O Deus do poder e da vingança, de Moisés, torna-se o Deus cristão do amor e do perdão, tornar-se-á o Deus científico da sabedoria; o Deus terrível que aparece entre raios no Sinai, inexorável e tremendo em sua justa vingança, completa-se e agiganta no gesto mais humano da bondade, aproxima-se da Terra e nela lança, com o Evangelho, a semente da paz de espírito e da convivência social. E, hoje, a rude potência da revelação mosaica e a profunda bondade da revelação evangélica se continuam e se fundem na luz da racionalidade científica moderna, que também nos tem ensinado a pensar e que hoje atinge a hora de sua compreensão. Há, desse modo, uma contínua proporção entre a descida das noúres que revelam a Divindade e a capacidade intelectiva humana. Há uma paralela ascensão do Homem e de sua representação conceptual do Centro e uma descida progressiva de verdade, por revelação, uma contínua purificação dos atributos humanos daquele conceito, à medida que o próprio homem purifica os seus.

Em pobres palavras: Deus, verdadeiro Centro dinâmico e conceptual do universo, conta de Si, através da revelação confiada a poucos escolhidos, aquele quantum que a criança humana pode compreender, à proporção que vai crescendo; dizer-lhe mais, sobre um conceito sem limites, seria inútil e perigoso.

Devo falar a respeito de Deus, porque é justamente desse Centro que desce a mais elevada noúre. Assim, a Divindade se avizinha sempre mais do homem, sempre mais viva e sensivelmente se torna real em seu coração, despojando-se pouco a pouco, de todas as reduções impostas pela representação humana e fazendo-se sempre mais verdadeira, sempre mais transparente, em sua essência, ao espírito humano. Tudo isso é, também, um engrandecimento seu, porque a visão se torna vertiginosa; mas, justamente por isso, ela não é concedida senão gradativamente. A idéia de Deus é necessária ao homem, deve estar-lhe próxima para sua vida; deve, para ser útil, proporcionar-se à sua compreensão e necessidade de ação; deve, como representação, manter-se a uma justa distância que ilumine sem cegar, que se revele e se esconda, ao mesmo tempo.

Assim, o grande conceito desce ao mundo por sucessivas aproximações. Inspirados e revelações se encontram unidos em cadeia, na expressão progressiva de um pensamento único e contínuo que governa o mundo. Existe uma grande noúre, que desce, contínua, através de diversos instrumentos e é essa divina unidade de princípio que mantém a continuidade de pensamento através dos ciclos das várias civilizações, ciclos que se rompem e se reatam. É essa unidade originária, que se ramifica no pensamento humano, que mantém uma linha verificável e evidente de desenvolvimento lógico, através das vicissitudes históricas do mundo. Isso prova que é idêntico o centro irradiante e animador dos vários instrumentos registadores, grandes e pequenos, todos coordenados no tempo, sob o mesmo impulso, para a execução da mesma obra da revelação progressiva do pensamento divino. Cada um diz, frequentemente sem saber tudo, uma como que frase sua e da união de todas essas frases sairá composto, depois, um discurso cheio de sabedoria.

Assim se fundiram, num só corpo, as vozes dos profetas do povo de Israel na idéia do Messias. Assim, em expressões mais vastas, se reúne novamente a visão mosaica (que reduziu ao monoteísmo a fragmentação da unidade divina do politeísmo), através de todo o cristianismo, ao atual monismo, que nos apresenta a Divindade não só como única, justa e boa, mas realmente palpitante, qual sensível psiquismo animador, presente em todas as coisas.

Moisés teve que imprimir com um ferrete de fogo, na alma de seu povo, a idéia de um Deus terrível, que para nós é absurda e repugnante, pois fomos acariciados pela piedade de Cristo.

Hoje, o terror é desaparecido, tão mitigada foi aquela vingança que não conhecia piedade, mas subsiste o mistério. Sempre menos se pode impor uma fé aterrorizando a mente e mutilando o conhecimento, e a revelação da bondade é continuada na revelação dos mistérios. Hoje, não se eleva mais apenas o gesto do profeta que diz: Penitência, para aplacar a ira de Deus; nem apenas o gesto de piedade que fala: Bem-aventurados os que sofrem; dá-se porém, a explicação da inflexibilidade da justiça divina e da redenção cristã através da dor, em termos precisos de razão e de ciência. Nada foi modificado do pensamento precedente, pensamento perfeito. Mas, ele foi continuado. O mesmo pensamento, após milênios, é novamente trazido à luz da consciência humana, saída atualmente da minoridade, não mais apenas como ato de fé e estado de graça, mas como uma imprescindível necessidade racional, que aquela mesma doutrina “impõe” para os caminhos novos, únicos que em tempos de perda de fé permanecem ativos, isto é, os caminhos da racionalidade, que é justamente a forma mental de nosso momento. A noúre, em sua profundidade a mesma, traz de novo à luz o Evangelho, substancialmente esquecido, mas agora em forma de ciência.

Esta a necessidade dos tempos, a fim de que o Evangelho seja de novo sentido; para que a moderna concepção do saber não se extravie, ela é chamada às origens, fundida com as antiquíssimas intuições dos iniciados, utilizada no momento da maturidade espiritual atingida como meio de divulgação dos mistérios, entre os quais já não é permitido hoje esconder a verdade.

Unidade – diz hoje a grande noúre, unidade de religiões e de ciência, descoberta de uma consciência unitária de humanidade em torno de um Deus único, idéia central, que deverá salvar e dirigir o mundo na nova civilização do terceiro milênio. Assim, a ciência é recuperada totalmente com a Síntese no ciclo evolutivo das revelações, para preparar no seio da humanidade a maturação de uma nova consciência cósmica. O momento histórico é grave, solene, rico de valores em decomposição e de germes em frenético desenvolvimento, como nos tempos messiânicos. Em meu estado de contínua percepção noúrica, sinto as correntes espirituais do mundo e tenho a sensação viva de iminentes e novas orientações do pensamento humano, que abaterão as resistências de todos os misoneísmos. E me entreguei completamente às forças do Alto, a fim de lançar, entre muitos, uma semente que germinará.

*

Observando os ciclos das revelações do passado que mais proximamente se encontram da civilização européia, vemos de início um período heróico, que é sublimação de potência da vontade, explosão da corrente positiva e masculina da vida, o ciclo mosaico e do profetismo hebreu; depois, o período da bondade, que é sublimação do amor, explosão do princípio oposto da vida, da libertação pelo sacrifício, da redenção pela dor. Na primeira revelação, a voz de Deus virilmente diz: “Eu sou”. Na segunda, a mesma voz redime a mulher e eleva a missão criadora do amor. Hoje, a revelação reaparece, equilibrando-se numa pulsação de retorno, para alimentar e impelir para o alto o princípio masculino que afirma e de novo diz: “Eu Sou”, mas não com o terror da força e do mistério e, sim, na potência luminosa da sabedoria.

Jamais na história do mundo a inspiração se apresentou em proporções tão gigantescas como em Moisés, no momento da promulgação da lei no Sinai. A voz emerge de um fragor de batalha, em meio a um terrível desencadear de forças naturais, como condutora de povos e dominadora de paixões; emerge do caos das vicissitudes humanas num ímpeto esmagante de potência. A luta entre as forças do bem e do mal assume um aspecto concreto, desce até a alma dos fenômenos físicos: a terra treme, abrem-se as águas dos mares. Deus é força ante a qual vacilam céu e terra. Indubitavelmente, Moisés transferiu à religião hebraica a sabedoria da iniciação egípcia, que consigo levava como esteio. Mas, foi a grande voz interior da inspiração que o sustentou e guiou nos grandes momentos. O pensamento era, então, densamente revestido de ação e se expressava, súbito, em ato nos acontecimentos; deveria, pois, possuir, em suas origens, a violenta potência energética que lhe permitisse penetrar as densas camadas da matéria e do espírito humano. A verdade devia ser simples, precisa, mas lançada como um projétil e cortante como uma espada para poder penetrar no duro coração do homem. O profeta tinha de ser um condutor de povos e seu pensamento deveria estar armado de potência humana e sobre-humana. A lei de um Deus único devia impor-se por seu poder no seio da idolatria dos cultos vários, devia imprimir-se na consciência de um povo, em meio à anarquia das nações. A solitária e dolorida sublimação mística dos santos do cristianismo ainda não nascera, antes da sutilização na pureza importava trovejasse a força para desbastar o espírito humano.

A cosmogonia mosaica é uma rude e imensa construção ciclópica, reduzida a linhas essenciais para que fosse compreendida; permanece verdadeira até hoje, embora lhe faltem pormenores de desenho arquitetônico. O gesto criador de Deus é material como o gesto do homem, que projetava no céu a multiplicação infinita dos próprios atributos, não sabendo dizer de Deus senão o que a própria evolução psíquica lhe permitia compreender. Aquele gesto se espiritualiza hoje na voz que desce para iluminar e animar a ciência e o pensamento da Gênese retorna, num mais elevado plano de conhecimento.

A Gênese é o primeiro livro do Pentateuco, a que se seguem: o Êxodo, o Levítico, os Números e o Deuteronômio, e foi escrito sob a inspiração de Moisés, enquanto vagueava no deserto com o povo de Israel. Começa com a criação, descreve depois o dilúvio (submersão da Atlântida), a torre de Babel, a história dos patriarcas até José.

O Êxodo é a saída do povo de Israel do Egito e a promulgação da lei no Sinai. O Espírito de Deus é presente a cada momento. No cap. 19 do Êxodo des-creve-se um contínuo colóquio entre Moisés e Deus:

1. Ao terceiro mês da saída de Israel da terra do Egito, nesse mesmo dia chegaram à solidão do Sinai.

2. Por isso, partidos de Rafidim e chegados ao deserto do Sinai, estabeleceram nesse lugar os alojamentos e aí Israel esperou, diante do monte.

3. E subiu Moisés a Deus e o Senhor o chamou do alto do mon-te, dizendo-lhe: Estas coisas dirás à casa de Jacó e anunciarás aos filhos de Israel. (...)

9. O Senhor lhe disse : Virei logo a ti na obscuridade de uma nuvem, a fim de que o povo me ouça a falar contigo e creia em ti perpetuamente. Pois Moisés havia anunciado ao Senhor a palavra do povo.

10. E ele lhe disse: Vai ao encontro do povo e faze com que todos se purifiquem hoje e amanhã e lavem suas vestes.

11. E estejam preparados para o terceiro dia; porque no terceiro dia descerá o Senhor, aos olhos de todo o povo, sobre o monte Sinai. (...)

16. E ao despontar o terceiro dia, à claridade da manhã, principiaram a ouvir trovões e resplandeceram relâmpagos; e uma densíssima névoa cobriu o monte e o vibrante sonido da trompa retumbava fortemente; e o povo, que se encontrava nas tendas, se atemorizou.

17. E havendo-os Moisés conduzido para fora dos alojamentos, ao encontro de Deus pararam ao pé do monte.

18. E todo o Monte Sinai fumegava, porque o Senhor aí descera em meio ao fogo; e o fumo dele saía como de uma fornalha e todo o monte infundia terror.

19. E o sonido da trompa pouco a pouco se fazia mais forte e mais penetrante. Moisés falava e o Senhor lhe respondia.

20. E desceu o Senhor sobre o Monte Sinai, sobre o próprio cume do monte, e chamou Moisés àquele cume. (...)

25. E Moisés desceu e contou todas as coisas ao povo.

E assim nasceu o Decálogo, da palavra pronunciada por Deus: Cap. 20

1. E o Senhor pronunciou todas estas palavras: (...)

2. Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da escravidão.

3. Não terás outros deuses diante de mim. (...)

18. E todo o povo percebia as vozes, e os raios, e o sonido da trompa, e o monte que fumegava; e o povo, assustado e tomado de medo, pôs-se de longe.

Eis a narrativa do momento culminante da mais poderosa recepção noúrica que o homem conhece.

E o espetáculo é verdadeiramente de uma grandiosidade terrível. A mole imensa, severa e selvagem do Sinai, a recordar o Brocken4, goethiano, a grande montanha de granito, nua e escura, cujo cimo é o trono de Eloim, circundada de legendas pavorosas, ecoando estrondos de trovões; os cumes escondidos nas tempestades de nuvens a mugir, coruscantes de raios; as faldas do monte enegrecidas de massas humanas, efervescente de paixões, lançadas à conquista do próprio destino. Eis o quadro grandioso, o ambiente de sintonização em que se realizou o diálogo entre o profeta e a voz de Deus e entre o profeta e seu povo. A vibração se mantinha na desnuda potência das coisas primordiais. Era o primeiro grande choque cósmico das forças espirituais e se converteu numa atmosfera de revolta e de sangue, sob um céu negro de tempestade, com a matança dos rebeldes idólatras, desobedientes à lei, diante dos quais a ira do profeta quebra as tábuas de pedra, convicto do direito absoluto da verdade, da comunhão com o Alto, da proteção das forças supremas. Sem essa presteza e prepotência de ação, jamais Moisés teria imposto sua autoridade e a nova lei de Deus. A ferocidade humana impunha os caminhos do terror.

O contato com a divina fonte se estendeu continuamente, no seio do povo hebreu, através do profetismo.

Este meu pobre estudo sobre o fenômeno inspirativo manifesta-se, sem que eu o quisesse, com força interpretativa e demonstrativa deste grande fenômeno histórico e teológico, que foi considerado pelos apologistas, ao lado dos milagres, como a coluna probatória da verdade do Cristianismo. E aqui a ciência, finalmente não mais inimiga, dá sua contribuição.

Se a arte divinatória é comum a todos os povos da Antiguidade, o profetismo, entre os hebreus, poten-cializando-se na concepção monoteísta, se eleva a meio de comunicação direta com a Divindade, prossegue e traduz o pensamento da Eternidade na maturação do destino de um povo e, na espera do Messias, do destino do mundo.

Após o Pentateuco, a Bíblia continua e no livro de Josué, escrito pelo mesmo Josué, sempre por divina inspiração, prossegue a história do povo de Deus. Moisés morreu, mas o divino colóquio não cessa.

Nos quatro livros dos Reis falam Samuel e os profetas Gade e Natã. Precisamente no terceiro desses livros, cap. 19, há uma referência ao profeta Elias que, internando-se no deserto, (...) desejava a morte, e disse:

Basta, ó Senhor, toma minha alma. E se lançou por terra e adormeceu; mas, eis que o anjo do Senhor o tocou e lhe disse: levanta-te e come. Voltou-se ele e viu, perto de sua cabeça, um pão cozido sob as cinzas e um vaso d’água. Então, comeu e bebeu. Fortificado com esse alimento, caminhou quarenta dias e quarenta noites, até o monte de Deus chamado Horebe. Lá chegado, abrigou -se numa caverna. E logo o Senhor falou dizendo-lhe: Que fazes tu aqui, Elias? (...)

E se desenvolve o colóquio. Mais adiante, ainda de Elias fala o livro 4 dos Reis5, cap. 2:

11. E enquanto caminhavam e conversavam, juntos, subitamente um carro de fogo, com cavalos de fogo, separou um do outro; e Elias subiu ao céu num turbilhão.

O primeiro livro de Esdras foi por este mesmo, que era de linhagem sacerdotal e doutor na lei de Deus, escrito sob inspiração.

Também o livro de Judite, que lhe segue, é considerado divinamente inspirado.

No livro de Jó, este frequentemente profetiza a respeito de Cristo.

No livro dos Salmos, o rei Davi, instrumento do Espírito, profetiza de Cristo e escreve hinos maravilhosos que são poesia, profecia, sapiência, oração. Em Davi o pressentimento do novo pensamento de Cristo é vivo. Ninguém, antes dele, havia ousado falar de Deus, com tanto amor e confiança, no seio do povo hebreu, que entendia a proteção divina como um domínio severo, cheio de terríveis punições. Davi cantava com sua harpa não mais um Deus que subjugava pelo pavor de suas cóleras e vinganças, mas um Deus doce e bom que se aproxima do homem no esplendor de suas obras:

Os céus narram a glória de Deus
e o firmamento anuncia Suas obras.
Um dia dirige a palavra a outro dia
e a noite a outra noite a relata.
Sem palavras, sem discursos
Entende-se a sua voz,
que se expande por toda a terra
e ressoa até os confins do mundo.

Inspirado é o livro dos Provérbios, ditado pela sabedoria de Salomão, livro cheio de sentenças sublimes.

Inspirado foi o livro da Sabedoria, ao mesmo Salomão atribuído.

Inspirado também é o chamado Eclesiastes.

E eis que surge, na Bíblia, Isaías, o primeiro dos grandes profetas, majestoso nas suas predições referentes ao Messias. Fala após Jeremias, profeta desde os 15 anos, até depois da destruição do Templo e da cidade de Jerusalém, quando, prostrado sobre as ruínas na Cidade Santa, deixou rebentar sua dor nas Lamentações. Vem, a seguir, seu discípulo Baruque, também profeta. Ezequiel começou a profetizar no quarto ano de seu cativeiro em Babilônia; foi o inspirador misterioso, taciturno e terrível, que viu a destruição de Jerusalém, a dispersão dos hebreus e, após, sua volta, a reconstrução da cidade e do Templo e o Reino do Messias.

Profecias relativas ao Messias contém o livro de Daniel, por ele mesmo escrito na corte dos reis caldeus. Seguem os profetas menores: Oséias, Joel, Amós (talvez também mártir); Obadias, Jonas, o náufrago vomitado pela baleia; Miquéias, a quem se deve a célebre profecia sobre Belém-Efrata, onde deveria nascer o Messias; Naum, que predisse a destruição de Nínive e viu sobre os montes “os pés Daquele que anuncia a boa nova”; Habacuque, que, conforme se crê, foi transportado por um anjo até Babilônia para dar alimento a Daniel, prisioneiro na cova dos leões; Sofonias, Ageu, também profeta do Messias; Zacarias, em quem a profecia da vinda do Cristo se faz sempre mais clara, precisando seu ingresso em Jerusalém, sua morte, os trinta dinheiros como preço da traição, a destruição de Jerusalém e a perseguição; finalmente, Malaquias, que anuncia claramente a vinda do supremo Mestre.

Por oito séculos, a idéia viva de Deus assim resplandece na alma de um povo e a mesma luz desce sempre ao mundo, colorindo-se diversamente através de personalidades diversas, mas nunca deixa de ser a voz com que Deus clama, chamando os homens extraviados.

A inspiração se faz auditiva ou visual conforme as disposições do ambiente, mas a corrente é uma só, embora assuma diferentes formas de vibração. Existe um pensamento constante, desenvolvido através de recursos diversos e fragmentado no tempo, mas, apesar disso, coerente e contínuo, testemunhando sua origem de uma fonte única. Essa unidade de idéia manteve coeso um povo trabalhado pelas mais aventurosas vicissitudes até o surgimento de sua flor magnífica – Cristo, depois do Qual se dispersa.

A Bíblia é o mais vasto documento de recepção noúrica mundial, atingindo as mais elevadas fontes. O povo hebreu nos dá o exemplo de um fenômeno inspirativo gigantesco, prolongando-se por séculos e séculos, funcionando como preparação do evento que daria origem à civilização destinada a governar o mundo. Não é possível a dúvida nem a negação em face dos fatos históricos de tal importância. E o Cristianismo foi esperado e preparado por essa elevadíssima mediunidade inspirativa, que agora estudamos, e desses contatos superiores continuamente se tem alimentado e fortalecido no seu exaustivo caminhar.

Em face da narrativa bíblica das visões dos profetas, como a de Isaías, que vê Babilônia destruída, recordando as de S. João; em face das visões terrificantes de Ezequiel, bem como outras, feitas de luz e de bondade, todas grandiosas; em face dessas figuras pensativas de profetas prostrados diante do Infinito, invocando luz e paz para a alma humana em tempestade, eu, que escrevi a demonstração científica da realidade dessas forças tremendas e que as sinto agitarem-se em mim e no mundo, ouço estranhas ressonâncias nas profundezas de minha consciência e me sacode um calafrio de temor. A sabedoria moderna, que matou essa sensibilidade, poderá sorrir ceticamente. Mas, nas lágrimas de Jeremias, no gesto solene de Ezequiel que profetiza, nessa voz concorde que desde Isaías até Malaquias fala de Cristo, e que prossegue até a Voz de Joana d’Arc, que cria uma mártir e salva a França, sinto tão terrivelmente poderoso que não encontro outra postura de espírito além da oração. Tudo mais é inconsciência. Inconsciência num momento em que a Europa inteira se arma, embora trema diante do espectro de uma guerra que sente seria o fim de sua civilização. Cada gesto profético é dirigido pela mão de Deus. E a Europa será dividida, ao longo de uma frente mediana, em duas partes, a da ordem e a da desordem, em que lutarão objetivamente as forças cósmicas do bem e do mal. Se as forças desagregantes do mal chegarem a vencer as forças construtivas do bem, então as portas da Europa desorganizada se abrirão de par em par diante da ameaça imensa da Ásia, do dragão gigantesco e terrível que já levanta a cabeça, mirando a presa suculenta. Enceguece-o, porém, uma luz, que se irradia de Roma, centro espiritual do mundo. Na Terra e no Céu irrompe uma vastíssima tempestade de pensamento que, em grandes correntes, luta e se lança à conquista da unidade espiritual do planeta.

*

A principal idéia desenvolvida pelo profetismo hebreu, num ascensional movimento de evidência e poder, foi a idéia da centralidade espiritual de Jerusalém e da vinda do Salvador do mundo. Sempre mais nítida se faz essa visão, descendo a pormenores, e nela, na contemplação da doce figura do Cristo, se acalmam as tempestades angustiosas do espírito. Alimentada pela vibrante palavra dos profetas, a imagem messiânica se grava e se agiganta na consciência, até aos últimos tempos, em que se sentia, por toda parte, vaga, mas seguramente próxima, a realização tão esperada e predita.

A História, na plenitude da hora romana, continha os germes do desfazimento e da ressurreição, como hoje. Os deuses pagãos vacilavam e o equilíbrio do mundo se deslocava para um novo eixo. Algo abala a civilização até os fundamentos e também o mundo pagão desperta ao primeiro choque, que é sempre de almas, e o manso Virgílio vê:

Ultima Cumaei venit jam carminis aetas;
Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo.
Jam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna;
Jam nova progenies caelo demittitur alto.
Tu modo nascenti puero, quo ferrea primum
Desinet, ac toto surget gens aurea mundo,
Casta, fave. Lucina: tuus jam regnat Apollo.
(...)
Adspice, convexo nutantem pondere mundum,
Terrasque tractusque maris, caelumque profundum;
Adspice venturo laetantur ut omnia saeclo.
(Virgílio, Écloga, IV)

Eis que se aproximam os últimos tempos da profecia de Cumas;
Nasce de novo o grande ciclo dos séculos.
Já retornam a Virgem e os reinos de Saturno;
Uma nova prole desce do alto céu.
Este menino cujo nascimento vai encerrar
A idade do ferro e iniciar para todo o mundo
A idade do ouro, tu, ó casta Lucina,
Protege. Já reina o teu Apolo.
(...)
Contempla o mundo ondulante em sua massa convexa,
E as terras, e os espaços do mar, e o céu profundo;
Vê como todas as coisas se alegram com a vinda do século futuro!

(Virgílio, Écloga IV)

Com Cristo surge, em sua plenitude, um conceito que parece preparado, de há muito, no passado de toda a evolução espiritual da humanidade. Esta já está amadurecida para subir mais um degrau em sua ascensão espiritual e a revelação inicia um novo ciclo. O conceito de bem e de virtude adquire um novo valor e a dor se sublima na cruz como meio de redenção. É anunciada a boa nova de um novo reino dos céus, que está, antes de tudo, no coração dos homens. Atinge-se um novo poder que Moisés não possuía, o poder do amor. “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim revogá-los, mas cumprir”, disse Cristo. (Mateus, V, 17). A revelação continuava.

Seria absurdo querer reduzir a idéia de Cristo a um fenômeno inspirativo, tanto o transcende, tão inadequados são os recursos da observação e da compreensão humanas, porque profunda e completa foi Sua unificação com o Centro conceptual do universo. Para nossa compreensão, temos necessidade de fenômenos mais acessíveis, mais mitigados de potência por motivo de fraqueza humana, menos transparentes de Divindade, a fim de que não pareçam cegar.

Tenho sentido, em meus profundos estados inspirativos, a proximidade de Cristo, não o Cristo reduzido à imagem humana, mas um Cristo real, cósmico, um espiríto radiante, centro de atração espiritual em torno do qual gravitam os mundos, Cristo que me inflamou e me tem dado força para viver e trabalhar e a Quem tudo devo. Ele me atrai da vertigem dos céus para os quais me arrasta, de esfera em esfera, fustigando minha carne para que eu possa aligeirar-me e subir, numa visão de sabedoria e de bondade em que minha mente se perde. Outra coisa não sei dizer de Cristo, outra coisa não sou digno de dizer e calo-me.

Sinto que se aproximam para o mundo acontecimentos enormes e terríveis, sinto um distante fragor de tempestade, um vagalhão que ameaça a grande civilização. E são pouquíssimos os que vêem e sabem. Tenho implorado para que se veja e saiba. Neste ambiente pesado de ameaças em que louqueja o mundo, meu espírito oprimido não repousa senão na doce visão do Cristo, que acalma as águas enfurecidas e salva o barco que ameaça naufragar. Cristo é verdadeiramente uma força real, sempre presente, a guiar os centros espirituais do mundo, irradiando Sua luz. Conforto- me com Suas palavras, citadas pelo Apóstolo João: “Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas, por enquanto, estão acima de vossa compreensão”. (João, 16, 12). “Tenho-vos dito estas coisas por comparações. Mas, vem a hora em que não vos falarei mais por parábolas, mas, abertamente, vos falarei acerca do Pai” (João, 16, 25). Eram as palavras de adeus. Mas, antes havia dito: “Eu rogarei ao Pai e ele vos dará um outro Consolador, a fim de que permaneça para sempre convosco, o Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; vós, porém, o conheceis, porque ele habitará convosco e estará em vós. Eu não vos deixarei órfãos; voltarei a vós”. (João, 14, 16, 17, 18).

Qual será o sinal dos tempos? O descobrimento completo dos mistérios, que a revelação dá à mente humana, já amadurecida pela ciência. Porque, como já dissemos,a revelação é progressiva e proporcionada ao desenvolvimento da inteligência humana e o Cristo está com ela sempre presente. É chegada a hora em que a mudança da civilização impõe um passo à frente na lenta e progressiva realização do Reino de Deus na Terra, de que o Evangelho não foi senão o anúncio; impõe sua atuação individual e a organização social na coletividade humana, o advento de Cristo à sociedade, a descida do espírito de verdade, de amor, de justiça às instituições, à vida dos povos. O Pentecostes, outrora limitado aos escolhidos, se estende agora a todos os dignos pela bondade e maduros pelas forças intelectivas.

O primeiro gigante da revelação cristã é o próprio S. João. João, alma profunda, intuitiva e ardente, enamorada e triste, impetuosa e sonhadora, João, que inclinava a cabeça no seio do Senhor, perdido nos silêncios da contemplação, penetrava o pensamento profundo de Cristo por um estado de graça que lhe dava o amor. E até muito depois, até S. Francisco, nenhuma força aproximou tanto de Cristo o homem, abrindo de par em par as portas de seu coração, quanto o amor.

O Apocalipse do apóstolo João foi por ele escrito depois de seu Evangelho, pelo ano 96 de nossa era no seu exílio da ilha de Patmos. O nome, em grego, “Apocalipse” significa “revelação”. Esta, que havia tomado o homem pela mão, desde o princípio, para acompanhá-lo até o nascimento de Cristo, agora continuava predizendo os destinos da Igreja, desde seus primeiros combates na terra até seu último triunfo no Céu. É uma visão grandiosa, cheia de mistério:

CAP. 1

1. Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe concedeu a fim de fazer conhecer aos seus servos as coisas que cedo devem acontecer e que Ele, enviando-as por intermédio do Seu Anjo, significou ao seu servo João.

2. O qual testificou a palavra de Deus e tudo quanto viu de Jesus Cristo.(...)

9. Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação, no reino e na paciência de Jesus Cristo, estive na ilha que se chama Patmos, por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus.

10. Fui arrebatado em espírito num dia de domingo e ouvi por detrás de mim uma forte voz, como de trombeta.

11. Que dizia: escreve o que vês num livro (...).

12. E voltei-me para ver quem falava comigo, e voltado vi se-te candelabros de ouro. (...)

19. Escreve, pois, as coisas que viste, as que são e as que de-vem acontecer depois destas.

A percepção, a princípio auditiva, transforma-se em visual. De quando em quando diz “Eu vi”. A fonte da grande corrente noúrica, porém, é a mesma, não importando em que forma de vibrações sensoriais se materialize para ferir os sentidos. Há um comando explícito da Voz: “Escreve”. Há um aturdimento de sentidos que faz João cair como morto, mas a voz lhe diz: “Não temas, sou eu, o primeiro e o último”.

*


Passam-se os séculos. A Voz que havia detido São Paulo na estrada de Damasco repercute numa multidão de mártires. Os primeiros séculos do cristianismo ecoam de vozes, mas, depois, a tenebrosa Idade Média trabalha duramente para reencontrar as fontes do espírito e a tradição se quebra.

Como Sócrates tinha o seu gênio, a voz superior que ele ouvia falar-lhe interiormente, dando nobilíssimos conselhos; também o filósofo Fílon tinha seu gênio. Porfírio e Plotino declaram possuir num espírito familiar sua fonte de inspiração. Como Maomé ouve a voz do seu arcanjo, igualmente Alarico, rei dos Visigodos, se dizia inspirado pela voz de um espírito que o excitava a marchar contra Roma. “Um gênio”, dizia, “sempre me guia: Avante! Avante! Destrói Roma!” Esta última voz talvez fosse barôntica, pois não se elevava pela nobreza de objetivos morais e sociais, nem pureza de inspiração; não merece, pois, atenção.

As vozes elevadas só se encontram no seio de uma grande fé, quando a inspiração é também missão, apostolado, muitas vezes martírio. Só estas são dignas e me interessam.

Se o fio da revelação se rompera, talvez por razões profundas, ou talvez só aparentemente, a fé em Cristo não fora destruída. A ascensão espiritual, culminando nas figuras dos Santos que iluminam, em multidão, a Idade Média, era contínua e laboriosa. As correntes desciam sempre do Alto para os desposórios com a Terra, fecundando-a. E germinavam exemplos de holocaustos no esforço por abraçá-las. A grande emanação do Cristo jorrava ora aqui, ora acolá, como revelação; não mais heróica e guerreira, apocalíptica e tonante, mas apaixonada e gentil, amansando a ferocidade dos tempos com a doçura do amor evangélico. E surgem almas novas, ardendo em paixões mais elevadas. A Força se desmaterializa num perfume de sentimento. A Voz não mais troveja o fragor das batalhas nem o terrível destino dos povos, mas canta as harmonias da criação.

E desponta Francisco de Assis, qual diferente cantor de Deus, que já não é como o rude Moisés, nem o tempestuoso Isaías ou o terrificante Ezequiel, nem mesmo o apocalíptico João! Verdadeiramente, com o Cristo, o mundo do espírito se transformara. A fé se dulcifica com o cântico de um poeta ou uma visão de artista, como se transmuda em beleza a própria verdade que se eleva a um plano mais alto. A fé canta e sorri entre os doces pintores das escolas úmbrica e toscana, gorgeante de crianças graciosas e perfumosas dos suaves semblantes das Madonas. E atinja poetas, artistas ou santos, é sempre a mesma fonte inspirativa que desce do alto e faz do Trecento o século das mais puras criações espirituais. Que importa a forma com que essa inspiração se imprime na matéria? Grande inspirado foi Dante, como foi Giotto e depois Rafael. Sempre, onde se manifesta um pensamento novo, profundo e nobre, o Alto vibra e se dá. O Trecento parece uma descida de anjos à Terra, para rasgar as trevas de um milênio. Foi a primeira dulcificação de costumes, na fé cristã, a primeira grande onda de preparação do reino dos céus. Falo a respeito de forças reais, presentes e decisivas na evolução da civilização. Falo da minha mística Úmbria, onde com tanta suavidade floresceu aquele sonho de fé!

A voz falou pela primeira vez a Francisco (1182–1226) em São Damião, em Assis. Assim relata o acontecimento - Padre V. Vacchinetti em sua Vida de São Francisco:

Existia então, como ainda hoje, no declive da montanha (o Subásio, próximo de Assis) uma capela dedicada a S. Damião. São Francisco gostava de recolher-se na penumbra daquela igrejinha abandonada, a orar diante de um Crucifixo. Um dia estava ajoelhado diante daquela imagem do Redentor (...), e suplicava poder conhecer, finalmente, qual fosse a vontade divina a seu respeito. Eis que, então, ainda banhado em lágrimas e com o coração agitado pelo ardor da oração, tendo os olhos fitos no Crucifixo, o vê avizinhar-se de si, e de seus lábios divinos percebe sair uma voz que lhe diz: “Não vês que minha Igreja está a desabar? Vai, pois, e restaura-a para mim!” E por três vezes se repete o amargurado apelo, a divina oração: Vade igitur et repara illam mihi! (vai, pois, e restaura-a para mim!). (Aquela imagem conserva-se ainda hoje na Basílica de Santa Clara, em Assis). A essa voz, Francisco, tremendo de espanto e comoção, respondeu com entusiasmo: Fa-lo-ei de boa vontade, Senhor! (Libenter faciam, Domine!). E logo se levantou, para iniciar o trabalho.

Esta é a narrativa.

A voz do Alto a descer para salvar os destinos da igreja. O impulso de Cristo volta a manifestar-se presente. Esses fenômenos de exceção não sucedem ao acaso, mas em momentos particulares com objetivos excepcionais. As correntes puras não descem ao nosso plano para curiosidade científica, mas obedecem a equilíbrios profundos, que as guiam para alimentar os valores espirituais do mundo, quando estes vacilam.

De há muito, Francisco procurava, mas ainda não se havia encontrado a si mesmo. Esquecera-se na quadra alegre da juventude, mas era momentâneo o esquecimento: ao primeiro choque sua alma desperta e do íntimo se elevam as realidades do espírito para as quais estava amadurecida. E na prisão dos perusinos e depois na enfermidade em Spoleto, as primeiras visões revelam a Francisco o seu verdadeiro ser. Creio que esses primeiros contrastes interiores sejam o momento psicológico mais decisivo para a compreensão daquele tipo de personalidade e de toda a fenomenologia supranormal que se lhe formou em torno. Esses deslocamentos de equilíbrio interior, que conduzem uma alma do mundo a Deus, projetando-a na vertigem da inspiração mística, têm raízes profundas em que se encontra a chave do mistério. Essas súbitas crises psicológicas não são senão o precipitar do equilíbrio biológico normal, em consequência de impulsos amadurecidos no eterno. E, como sempre, é necessário estudar e compreender o sujeito para entender o fenômeno. Francisco se isolava no silêncio dos bosques e dos montes para orar e para ouvir; essa necessidade de solidão, própria dos inspirados, foi para ele fundamental, especialmente nos mais importantes momentos de sua missão.

“Vade igitur et repara illam mihi!” Nas vizinhanças de S. Damião, o céu e a terra, tudo sorri numa nova luz, como que impregnado da grande emanação espiritual do Santo. A beleza natural parece brilhar em mais profunda beleza de alma. Toda a criação em torno se vivifica no espírito e também ora num impulso de fé, dobran-do-se em sintonia para alimentar o fenômeno de Francisco e de sua vibração de amor a Deus. Nos momentos de sua grande inspiração, a natureza também é chamada a colaborar, em harmonia de fé e amor, como uma realidade viva, ardente, também enamorada de Deus, pois a grande recepção noúrica é um concerto imenso em que toda a criação canta em Deus. A inspiração dulcíssima do amor de Cristo se verifica, aqui, não mais entre as tempestades do Sinai, porque a nota de sintonização é completamente diversa, mas na musicalidade doce da paisagem úmbrica, que ainda hoje canta e sobe, simples e mansa, como por humildade, perdendo-se nos esplendores azuis do misticismo. Verdadeiramente, jamais encontrei mais apropriado ambiente de sintonização espiritual que esta paisagem úmbrica.

Francisco, entretanto, não havia compreendido bem. O despertar de uma alma imersa na carne, embora seja ela forte, não pode ser instantâneo. Seu olhar, a princípio, exterior também nos conceitos, está materializado pelas sensações e só mais tarde atinge os profundos significados de espírito. Também com Joana d’Arc aconteceu o mesmo. Mas, depois, o ambiente se purifica, o contato se faz mais vivo, a percepção mais transparente. Aqui, também, embora preso num turbilhão, o fenômeno é progressivo. Não era, pois, a restauração material da igreja de S. Damião, obtida com o transporte de pedras, mas a restauração espiritual de Sua Igreja o que Cristo indicava. “Eu não vos deixarei, voltarei a vós”, Ele já havia dito. Voz universal, ativa e presente, filtra-se no mundo através dos caminhos de quem sente, responde e fala, segundo o poder de cada um para ouvi-la. Que evidência deveria, pois, atingir através de uma alma como a de Francisco!

Tudo está em relação à capacidade individual, à sensibilização espiritual e esta se relaciona com o grau de purificação atingido. Aqui, ressalta em primeiro plano a relação, já notada, entre elevação moral e potência perceptiva da alma, pois, importa um estado de afinidade vibratória para poder obter-se a sintonização. Com-preendem-se, assim, os três votos franciscanos – pobreza, castidade, obediência – que azorragam no corpo e nas paixões toda a animalidade humana.

Para sentir a palavra de Cristo, Francisco devia tornar-se semelhante a Ele na dor e no amor, e tão intensamente os teve unidos a Ele que se imprimiram em seu corpo com os estigmas, no incêndio espiritual do Alverne.

No espírito franciscano existe um conhecimento profundo dos caminhos desse laborioso esforço da ascensão espiritual. Basta recordar o episódio da perfeita alegria, em que, diante dos ataques mais cruéis e dos decepamentos mais radicais impostos à natureza humana, Francisco conclui sempre, com um crescendo impressionante de exemplos: “Ó Irmão Leão, escreve que nisso está a perfeita alegria” (I Fioretti, 7). Mas, uma verdadeira técnica de ascensão espiritual, uma descrição dos métodos usados pelo destino para impô-la ao homem, é descrita no cap. 25 de I Fioretti. Encontra-se aí narrada, na forma simbólica da época, o esforço do pro-cesso evolutivo do psiquismo humano, que em A Grande Síntese é explicado cientificamente, concordâncias que reciprocamente se iluminam. Um frade sonha que:

(...)ele foi arrebatado e conduzido em espírito a um altíssimo monte, junto ao qual se via um precipício muito profundo; aqui e ali, penhascos fendidos e lascados, rochas desiguais que se elevavam da massa de pedra; era pavoroso o aspecto do precipício. E o Anjo, que conduzia esse frade, empurrou-o, lançando-o precipício abaixo. E o frade, bamboleando e ferindo-se de pedra em pedra, de calhau em calhau, finalmente caiu no fundo do precipício, completamente desmembrado e despedaçado, conforme lhe parecera. E jazendo, assim desacomodado, em terra, disse-lhe aquele que o conduzia:

– Levanta-te, que te é necessário fazer ainda uma viagem maior.

Respondeu o frade:

– Pareces-me um homem imprudente e cruel; vês-me quase morto pela queda, que me despedaçou, e ainda dizes que me levante!

O Anjo, porém, aproximou-se dele e, tocando-o, ligou com perfeição seus membros, curando-o completamente. E depois lhe mostrou uma grande planície, coberta de pedras pontiagudas e cortantes, de espinhos e sarças; e disse-lhe que seria necessária atravessá-las, descalço, até o fim, onde existia uma fornalha ardente, em que ele deveria entrar. Tendo o frade transposto toda a planície, com grande angústia e pena, ouviu do Anjo:

– Entra nesta fornalha, porque assim te é necessário!

Respondeu o frade:

– Pobre de mim! Que guia cruel me tens sido! Vês-me quase morto, por atravessar esta planície e agora por repouso me dizes para entrar na fornalha ardente!...

E, olhando, o frade viu, em torno da fornalha, inúmeros demônios que seguravam forquilhas de ferro e com estas, porque ele demorava a entrar, o arrastaram subitamente para as chamas (...).

(...) E o Anjo que o conduzia, impeliu-o para fora da fornalha, dizendo-lhe:

– Prepara-te, para uma horrível viagem, que ainda tens de fazer!

Recomendando-se, disse o frade:

– Ó duríssimo condutor, que nenhuma piedade tens de mim! Vês como me queimei na fornalha e ainda me queres levar a uma viagem perigosa e horrível!

O Anjo, porém, tocou-o e ele se tornou são e forte. Conduziu-o, depois, a uma ponte, onde não se podia passar sem grande perigo, porque era muito frágil e estreita, muito escorregadia e sem parapeitos; por baixo passava um rio terrível, cheio de serpentes, dragões e escorpiões, que exalavam muito mau cheiro. E disse-lhe o Anjo:

– Passa esta ponte. De qualquer modo deverás atravessá-la.

– Como poderei transpô-la sem cair neste perigoso rio?

– Respondeu-lhe o Anjo:

– Vem após mim, e põe o pé onde eu puser o meu assim passarás bem.

E o frade acompanha o Anjo, como este lhe havia ensinado e chega até o meio da ponte, quando, então, o Anjo ausentou-se num vôo e se postou no cume de um monte elevadíssimo, muito longe da ponte. Examinou bem o frade o lugar para onde voara o Anjo; viu-se, assim, sem guia e olhando para baixo viu os terríveis animais que levantavam, do seio das águas, suas cabeças e abriam as bocas, como se preparando para devorá-lo, se ali ele caísse. Estava tão amedrontado que não sabia o que fazer ou dizer, porque não podia recuar nem avançar. Vendo-se em tão grande tribulação e que não teria outro refúgio senão somente Deus, inclinou-se e, abraçado à ponte, e de todo o coração e com lágrimas, suplicou a Deus que, por Sua santíssima misericórdia, o socorresse. Feita a oração pareceu-lhe que lhe nasciam asas; e esperou com imensa alegria que elas crescessem a fim de poder voar até onde se encontrava o Anjo. Depois de algum tempo, pelo grande desejo que tinha de abandonar a ponte, pôs-se a voar. Como as asas, porém, não eram suficientemente grandes para o vôo, ele caiu sobre a ponte como também as penas. Novamente abraçou a ponte e, como já havia feito, recomendou-se a Deus. Terminada a oração, de novo percebeu que lhe nasciam asas; mas, como antes, não esperou que elas crescessem perfeitamente: pondo-se a voar, uma vez mais antes do tempo, caiu outra vez sobre a ponte, e igualmente as penas. Percebendo que era a pressa de voar, sem que houvesse chegado o tempo próprio, a causa das quedas, começou a dizer a si mesmo: – Quando me nascerem asas pela terceira vez, esperarei até que sejam tão grandes que eu possa voar sem de novo cair.

E estando assim a pensar, notou que lhe nasciam asas pela terceira vez, mas, esperou que elas crescessem suficientemente. Pareceu-lhe que desde o primeiro surgimento das asas até o terceiro haviam decorrido bem cento e cinquenta anos. Finalmente, levantou vôo, dessa terceira vez, com todas as suas forças e chegou até onde estava o Anjo; e batendo à porta do palácio, que atingira com seu vôo (...), começou a olhar as paredes maravilhosas do palácio; e eram estas tão transparentes que ele claramente podia ver os coros dos Santos e tudo que lá dentro se fazia (...). E logo que entrou, sentiu tanta doçura que esqueceu todos os sofrimentos por que havia passado, como se jamais os tivesse sofrido (...).

Eis o caminho da sutilização espiritual, eis o gabinete de experimentação em que se prepararam os estados de ânimo para a recepção das mais elevadas correntes noúricas. Atrás da narrativa cheia de imagens, sente-se o esforço, a luta, o caso vivido, a percepção direta das forças espirituais da vida, ouve-se o eco das assustadoras provas da iniciação egípcia, realizadas nos grandes templos de Tebas ou de Mênfis pelos sacerdotes de Osíris; há nela um senso difuso da ciência do bem e do mal que a alma dolorosamente aprende, como já narravam os mistérios de Elêusis a queda da virgem Perséfone, por obra de Eros, no tenebroso reino de Plutão. E, verdadeiramente, a divina Perséfone, caída no sofrimento do inferno, era o símbolo da alma humana, que expia na vida e na luta pela sua redenção, que cai e se purifica das baixas paixões e reencontra a visão da verdade. Como já disse e repito, o fenômeno noúrico que estamos estudando não é senão o fenômeno da evolução, o fenômeno da ascensão da alma humana. Que a ciência não o isole, mas compreenda que é fenômeno de imensa vastidão em que se precipita o equilíbrio biológico de todo um passado, estabilizando-se num mais elevado equilíbrio de forças espirituais; compreenda que a alma não atinge a percepção inspirativa senão através da dolorosa elaboração dos milênios. Esse lampejo de intuição que lhe permite sentar-se no Alto, diante do trono de Deus, finalmente digna de conhecer a verdade, está no ápice da escala da evolução humana. Concluo com I Fioretti de São Francisco:

A águia voa muito alto; mas, se ela tivesse ligado algum peso às suas asas, não poderia voar muito alto.

A apoteose de Francisco é no Alverne. A corrente divina desce na nova forma de amor desejada por Cristo e a alma de Francisco não a alcança completa senão na plenitude de sua maturidade, no fim de seu caminho terrestre:

Na dura pedra, entre o Tibre e o Arno,
Recebeu de Cristo o último sinal
Que seus membros por dois anos levaram6.

Eis, brevemente, a viva narrativa de I Fïoretti:

(...) e São Francisco, de manhã bem cedo, antes do despontar do dia, se põe a orar diante da porta de sua cela, volvendo o rosto para o levante (...). E estando assim, e inflamando-se nessa contemplação, nessa mesma manhã, viu ele vir do céu um serafim com seis asas resplandecentes e flamejantes; e o serafim, num vôo veloz, aproximou-se de São Francisco, tanto que este o pôde discernir, percebendo claramente que tinha diante de si a imagem de um homem crucificado (...). E estando assim admirado, foi-lhe revelado por aquele que lhe aparecia que, pela divina providência, aquela visão lhe surgia de tal forma a fim de que ele compreendesse que, não por martírio corporal, mas por incêndio mental, teria ele de ser completamente transformado na positiva semelhança de Cristo crucificado.

Nessa aparição admirável, todo o monte Alverne parecia arder em brilhantíssimas chamas, que iluminavam todos os montes e vales em derredor, como se o Sol houvesse descido à Terra; e os pastores, que velavam nessas redondezas, vendo o monte incendiado e muita luz em torno dele, tiveram grande medo, conforme depois contaram aos frades, afirmando que aquelas chamas duraram sobre o monte Alverne por espaço de mais de uma hora. Igualmente, ao esplendor dessa luz, que atravessava as janelas das hospedarias da região, alguns tropeiros que iam para Romagna se levantaram, crendo que já fosse dia e carregaram seus animais; e, após iniciarem a viagem, no caminho, viram cessar aquela luz e levantar-se o sol.

(...). Nessa aparição seráfica, Cristo, que se tornou visível, falou a São Francisco certas coisas elevadas e secretas, que jamais em vida o santo quis revelar a ninguém (...). Desaparecendo a admirável visão, após falar durante muito tempo e em segredo, deixou no coração de São Francisco um ilimitado ardor de amor divino; e na sua carne deixou um maravilhoso sinal e imagem da paixão de Cristo (...).

O fenômeno foi tão forte que assumiu forma visual e auditiva e atingiu efeitos físicos permanentes. O espírito do Cristianismo alcançou no Alverne um dos mais elevados vértices de sua realização.

Atingido seu ápice espiritual, a vida de Francisco não mais tinha motivo de continuar sobre a Terra e cede ao cansaço do corpo, esgotado pelo grande incêndio, e se extingue cantando as harmonias da criação.

No “Cântico das Criaturas” a unificação é atingida, a alma se harmonizou com a sinfonia do universo, tu-do revive no espírito e à grande corrente espiritual do amor de Cristo que desce ao coração humano, responde, em sintonia, o cântico de toda criação:


(...) Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o senhor irmão Sol que nos dá o dia e nos ilumina (...).

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua e pelas estrelas, que no céu formaste claras, preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Vento e pelo Ar, nublado ou sereno e por todo tempo, pelo qual a todas as criaturas sustentas.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Fogo, com que iluminas a noite. E ele é belo, alegre, robusto e forte.

Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã e mãe Terra (...).

Louvado, sejas, meu Senhor, por nossa irmã a Morte corporal, da qual nenhum homem pode escapar (...).

Os Laudes do Senhor por Suas criaturas são o último canto do grande inspirado, com que a voz interior se cala. A emanação radiante do Divino Centro do Universo, as vibrações espirituais cheias de reflexos do princípio animador de todas as criaturas e de todas as coisas, fundiram-se, numa harmonia única, no espírito daquele que foi, a um só tempo, grande sensitivo, artista, poeta e santo. E o encanto dessa harmonia na qual toda a criação canta em Deus, terá tido seu paraíso no Céu como o fora na Terra.

Falei sobre Francisco com a alma trêmula de veneração e amor, como quem olha um gigante que se encontra na vanguarda do caminho da vida, que se move nos cimos vertiginosos da perfeição que desejaríamos atingir, mas em face dos quais as pobres forças humanas caem, prostradas.

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Falar sobre todos os inspirados desde a Idade Média até nossos dias, seria um enorme trabalho que não poderia caber nas breves páginas deste volume, seria um inútil alarde de erudição, fácil de adquirir, de resto, nas páginas de uma enciclopédia, além de ser ainda um tratado demasiadamente denso para o leitor. Prefiro vaguear, de braços dados às atrações de minha simpatia, que garante a minha compreensão e me permitindo uma visão mais cálida e mais íntima.

Apareceu, pouco depois de Francisco, em Foligno, uma mulher admirável pela sua inspiração, tanto que foi chamada magistra theologorum (Mestra de teologia). Embora desfavorecida de estudos – a bem-aven-turada Ângela de Foligno (1249-1309). Diante de certas verdades elevadíssimas, muitas vezes é melhor sonhar, porque as descobre mais facilmente o poeta que o cientista, ou então, o cientista deve fazer-se poeta para saber olhar o mundo com a ingenuidade de uma criança.

Há também na vida de Ângela um período preparatório de maturação, feito de dúvidas e contrastes, da vida mundana que, numa curva do destino, se modifica em uma vida de perfeição moral. Nesse momento, também uma Voz fala, produz um choque e o ser se transforma. Existe sempre um momento crítico na evolução das almas em que os equilíbrios precedentes se precipitam para se restabelecerem novamente num plano mais alto. O despontar do estado inspirativo parece ser a nota fundamental do fenômeno da gênese mística; sempre o encontramos ligado à aparição de estados morais de elevada perfeição. Reaparecem aquelas relações que já, de início, observamos. Ângela ouviu a voz da inspiração na igreja de São Francisco, em Foligno, a poucos passos de distância de seu palácio, enquanto orava. Aquela voz a inflamou de divino amor e assinalou a mudança de sua existência para uma vida de pobreza e contemplação. A recordação de Francisco, falecido há pouco, era próxima, próxima estava, também, sua Assis. A vida mundana se transforma em vida de penitente e paralelamente explode a inspiração. Diz-se que se dirigia à famosa basílica de Frei Elias e Giotto, realizando a pé um trajeto de cerca de quinze quilômetros, sempre absorta em meditação. Retornando certa vez a Assis, pouco além de Spello, onde a estrada começa a subir, ouve o Espírito dizer-lhe: “Acompanhar-te-ei até São Francisco, falando contigo, fazendo-te provar divinas alegrias (...). Eu sou Aquele mesmo que falava aos apóstolos (...), sou Eu, o Espírito (...), não temas (...)”. Despertando de seu êxtase ao ingressar no templo, pôs-se a clamar em presença de todos sua sobrevinda desilusão. Depois concluía, como São Paulo, que, arrebatado ao terceiro céu, confessava: “o olho não viu nem o ouvido jamais ouviu as misteriosas palavras (...)”7. O conceito expresso na tradicional terminologia religiosa permaneceria verdadeiro, embora traduzido para a moderna nomenclatura científica, demonstrativa e exata.

Sempre mais purificada pelo sofrimento e pela renúncia, Ângela se torna mulher famosa, como Rosa de Viterbo e Catarina Benincasa, filha de Jacó, tintureiro de Fontebranda (S. Catarina de Siena). São inúmeros os casos de pessoas que, sem a mínima preparação cultural, muitas vezes analfabetas, sabem argumentar acerca de altos problemas de teologia.

Novamente penso em S. Félix de Cantalice, em S. João da Cruz, em Santa Brígida que afirma haver recebido da voz do Cristo as regras da ordem por ela fundada, em S. Agostinho, que nas suas Confissões assevera também a presença de uma Voz que o guia. Penso em tantos que é impossível enumerá-los.

Certos caminhos, que se abrem aos humildes, parecem dever estar fechados aos sábios. “Há verdades que se recusam a quem as investiga para serem concedidas a quem as sente”, disse Carlos Delcroix. A verdade não se conquista por violência de vontade, mas por estados de sutil penetração de alma. Acrescenta Schuré, em sua obra Grands Initiés, em uma nota à pág. 649:

Les annales mystiques de tous les temps démontret que des vérités morales ou spirituelles d’un ordre supérieur ont été perçues par certaines âmes d’élite, sans raisonnement, par la contemplation interne et sous forme de vision . Phénomène psychique encore mal connu de la science moderne, mais fait incontestable. Catherine de Sienne, f ille d’un pauvre teinturier, eut, dès l’âge de quatre ans, des vision extrêmement remarquables.

(Os anais místicos de todos os tempos demonstram que verdades morais ou espirituais de uma ordem superior têm sido percebidas por certas almas de elite, independentemente de raciocínio, pela contemplação interna e sob a forma de visão. É fenômeno psíquico ainda mal conhecido da ciência moderna, mas constitui fato incontestável. Catarina de Siena, filha de um pobre tintureiro, desde os quatro anos de idade, teve visões extremamente notáveis. (Schuré, Os Grandes Iniciados).

Esses seres excepcionais se elevam na graça divina, absorvem-lhe a essência e depois descem até junto dos homens para dar-lhes a sabedoria e a felicidade de que se inundou seu ser. Tudo isso foi chamado histerismo. Sabe, porém, a ciência o que é histerismo? Se o soubesse, curá-lo-ia. Isso chamo de simplismo. E se desse suposto mal patológico provêm produtos tão elevados que se impõem à atenção e veneração do mundo e ofuscam a sabedoria humana, se tudo isso é desequilíbrio, bendita seja então essa doença, bendito seja esse desequilíbrio, pois são os caminhos daquela luz que não é atingida pelos sentidos dos sãos e dos normais. Vêem- se, pelo contrário, aqui, os sinais de verdadeira maturidade de espírito, que significa a conquista realizada dos mais elevados valores morais, individuais e sociais, aqueles por cuja conquista a humanidade ainda envolvida, vive, sofre e trabalha; tudo isso significa a evolução realizada nos mais altos níveis biológicos, que são os do espírito, de que o homem comum, ainda muitíssimo próximo da animalidade, está imensamente distanciado.

A alma de Ângela maturou-se não no estudo, mas na dor. Analfabeta, por isto, não deixou, diretamente, nenhum escrito. O evangelista do verbo de sua alta intelectualidade foi o irmão Arnaldo, franciscano de Foligno. Em estado de êxtase, ela lhe falava das coisas elevadas que ouvia e a palavra não lhe era suficiente para traduzir. Arnaldo escrevia, buscando atingir-lhe o pensamento sem consegui-lo e quando apresentava a Ângela o escrito, esta se surpreendia, quase não o reconhecendo, e dizia: “Disse eu isso? Não te disse isso. Não reconheço haver pensado como escreves”. Frequentemente, ficava absorta, durante dias, em suas visões. Também neste caso, Cristo é o centro de irradiação; Cristo, que foi precedido por uma corrente que no profetismo hebraico o esperou, agora, no Cristianismo, é seguido por uma corrente que o recorda e em que revive. Assim, essa insigne mulher da Itália alcançou, por elevação de conceito, os mais árduos campos especulativos; raciocinava, com engenho sutil e com tranquila sublimidade, sobre a essência da Divindade e sobre Seus mistérios; alcançava, no campo teológico, uma orientação que os sábios não possuíam; navegava, segura, num mar de abstrações conceptuais que estavam absolutamente acima de seus normais poderes psíquicos. Voava, assim, por intuição, constituindo-se modelo vivo, ela que era mulher inculta, de teologia mística, de coisas transcendentais do espírito, tanto que foi chamada magistra theologorum, isto é, considerada como grande exemplo de sabedoria mística. Em vida, muitos vinham de longe para conferenciar com ela a respeito de difíceis problemas do espírito e da fé; e depois de sua morte, recebeu a homenagem da ciência e das letras da Itália e da Europa.

Uma outra grande mulher apareceu logo após, no cenário da vida, para influir e impor-se à atenção do mundo: Catarina de Siena (1347-1380). Muitíssimo conhecida, não havendo necessidade de se repetir sua história, faz pensar na coroa de delicadas flores que a Idade Média soube produzir. Ávida de solidão desde criança, nela se refugiava para deliciar-se em suas visões. O beata solitudo! O sola beatitudo!, dela também se poderia dizer. Mas esse isolamento não é vazio, é apenas a busca de um ambiente apropriado à percepção interior. Aos 16 anos, tomava ela o hábito de S. Domingos; iniciada uma vida de sacrifício, a potência visual se apura, intensifi-cando-se as místicas visões. Alimentada por estas, desce depois ao mundo para fazer o bem. Começou-se, então, a compreender sua personalidade, formando-se em torno dela uma coroa de compreensão e de admiração e ela se dá totalmente à obra de conforto material e espiritual: ensina, defende, encoraja. Dilata-se, assim, sua vida pública e daí nasce um vasto epistolário, endereçado a papas, cardeais, reis, príncipes, capitães mercenários, homens de Estado, nobres, homens do povo, grandes damas e humildes religiosas. Não escreve, embora o houvesse aprendido miraculosamente, mas dita, como era uso em seu tempo. Nasce, desse modo uma volumosa correspondência que, juntamente com o “Diálogo”, todo escrito em êxtase, forma um monumento, admirável pela pureza de linguagem, beleza de imaginação, profundeza de conceito, altitude de perfeição moral. Propaga, em torno de si, o incêndio de sua elevada paixão e induz, finalmente, o pontífice, exilado na França, a retornar a Roma, realizando assim uma missão política que se assemelha à de Joana d’Arc, que a biosofia venera como sua Patrona.

Pronuncia Catarina, mais tarde, um discurso no Consistório, em presença do colégio dos cardeais, para salvar a Igreja do cisma. Viveu uma vida de lutas e esforços imensos, em que era sustentada pelos seus íntimos contatos com o Alto. Cristo é sempre, como para Francisco, o grande animador dessas vidas que se movimentam como uma emanação de sua força e de seu pensamento. Desta vez, a corrente de pensamento e de paixão desce para salvar a Igreja em perigo. O fenômeno obedece sempre a uma lei lógica de finalidade a que se proporciona. Histerismos, pois, também estes, que tiveram uma missão social, que inspiraram a arte, que forneceram uma produção literária, que interessaram o mundo, que são venerados pelas multidões nos altares entre as coisas santas?

Há um fato que ressalta evidente em todos estes casos, mas especialmente neste: as correntes noúricas não se manifestam jamais através daqueles que parecem os mais preparados, isto é, os poderosos e os sábios, mas preferem os simples e os humildes, escolhendo para instrumento os que parecem ser os últimos dos mortais. Característica do fenômeno que tem seu significado, porque a cultura é um preconceito e o poder uma vontade rebelde, que obstam ao livre fluir das correntes e de sua aceitação.

Há uma necessidade de solidão para a busca da sintonização receptiva: é a solidão dos anacoretas no deserto, dos eremitas nos montes, dos monges nos claustros, necessidade de silêncios do mundo para que neles se possa ouvir a voz da alma. Vêm depois a dor, a renúncia, que distanciam o espírito da Terra e, frequentemente, uma progressão de potência receptiva e de clareza perceptiva, proporcionais à purificação atingida através da dor e da renúncia. Existe na alma um senso de missão que justifica a dor, o esforço, a vida, que anima e sustém o árduo trabalho do apostolado, que tudo guia ao plano da ação.

Aparece, então, frequente e evidentemente, o momento crítico da crise espiritual em que a voz se faz ouvir, distinta, inflamando a vida e jamais se calando. Verifica-se, simultaneamente, uma ascensão moral contínua e, no fundo de tudo,a grande força animadora que fala, vibra e inflama: é Cristo. De Moisés aos nossos dias, temos visto, sempre idêntica, essa potência de divino pensamento descendo e governando o mundo. É uma realidade histórica que não se pode destruir. E frequentemente há, em face dessa grande força, uma imolação de todo o ser, um martírio breve ou demorado de uma vida inteira. Sempre a mesma dor e a ciência de vencê-la num mundo mais elevado, que a mediania não vê. Só isso parece dar o direito e a coragem suprema de falar em nome de Deus. Saberá, pois, a evolução, sozinha, resolver o grande problema e obter a vitória sobre a eterna inimiga do homem - a dor?

É grande o número dos místicos e quando dizemos místico, dizemos inspirados: de Santa Clara a Santa Gertrudes; a Santa Teresa, carmelita de Ávila, reformadora de ordens, célebre por suas visões místicas (1515- 1582); à extática de Paray-le-Monial – comparada ao extático de Patmos, o apóstolo da doçura, João, que havia repousado ao peito do Cristo –, à mística esposa Margarida Maria Alacoque (1647-1690). Nela o colóquio com Cristo é contínuo, intenso, dorido e inefável de alegrias espirituais. Como os profetas e apóstolos, Margarida Maria fala com Deus e recebe uma revelação que transmite à humanidade; mas, tudo isso faz humildemente, silenciosamente, em afetuoso tom menor. Sua ascensão se gradua por colóquios sucessivos em que se revela o plano de sua missão. Por inspiração, recebe mensagens e as transmite entre as quais uma para o Rei Sol, Luis XIV, que não a escuta. É uma característica desses séculos, especialmente na terra latina, essa florescência de mulheres místicas, às quais parece confiada a divulgação do novo sentido de amor trazido por Cristo; a mulher, que não havia aparecido no seio do severo e tempestuoso profetismo pré-cristão, pode agora fazer brotar sua flor de delicadíssima fragrância. O poema gentil de Francisco continua e através dos séculos se estende uma sinfonia de almas harmonizadas em torno de um pensamento único e de uma missão constante: fazer reviver o Cristo na Terra, mantê-Lo presente, a fim de que se realize sua palavra: “Eu não vos deixarei órfãos; voltarei a vós” (João, 14, 18). É o novo cântico que continua o profetismo hebreu, o cântico da realização, na Terra, do Reino dos Céus.

*

Assim chegamos aos tempos modernos, em que o fenômeno assume novos aspectos. Poderia referir-me a muitos outros, como Catarina Emmerick, a grande vidente alemã do século XIX. E que dizer de Teresa Neumann, de Konnersreuth, a famosa vidente bávara, a estigmatizada que nas suas visões segue a Paixão de Cristo, revive-a no seu corpo, ouve e repete palavras em grego, hebraico e aramaico, línguas que ela não conhece? Também neste caso, há paixão, amor e dor, sublimação no espírito, o elemento moral elevado ao primeiro plano, a virtude heróica do sacrifício para o bem dos outros. Existe um contato espiritual com Cristo, tão profundo que constitui para Teresa sua principal nutrição e substitui o alimento de que, por lei orgânica, todos têm absoluta necessidade de ingerir para viver.

O fato, que é tendência geral dos místicos, de descuidar-se do alimento material, preferindo o espiritual, faz pensar que nos mais elevados graus de evolução o ser possa conseguir seu reabastecimento dinâmico diretamente de fontes imateriais, sem ter de percorrer o longo caminho dos órgãos digestivos . O estudo, porém, destes problemas colaterais nos levaria a grande distância.

Omiti, para sobre ela falar agora particularmente, pois que se eleva como cimo solitário entre a multidão dos inspirados, quer pela potência da percepção, quer pela vastidão da missão e tragédia do martírio, a grande inspirada, a heroína da França, Joana d’Arc (1412-1431). Seu caso, que é inspirativo por excelência, se distingue sobre o mesmo fundo místico pelo caráter heróico que lhe confere a particular missão imposta pelos tempos. Esta distinção nos é necessária para traçar, com exemplos, as notas fundamentais do fenômeno, as mesmas que nos darão a expressão de sua lei.

Observemos neste caso como as forças superiores organizaram a missão e dispuseram os elementos decisivos na estratégia do destino de Joana. São estes, queiramos ou não, os elementos que individuam o fenômeno e lhe acompanham o desenvolvimento. É a uma consciência das causas, que são essas correntes que iluminam, guiam e querem, que devemos juntar a lógica e inegável concatenação dos efeitos. É a essa história interior que eu vejo, a esse drama que se agita nas profundezas da trama histórica externa que todos conhecem, que dou a maior importância. Lendo novamente, desse modo, a vida de Joana, nos planos mais elevados do espírito, podemos compreendê-la. Para entender esses fenômenos importa haver penetrado a personalidade e toda a vida espiritual do sujeito; é preciso, quando se afrontam essas vidas de missão e de martírio, possuir uma alma sensível a esse mundo de sutis vibrações. De outro modo, seremos incompetentes como um matemático que quisesse resolver problemas sem possuir o senso da matemática. Tal foi Anatole France na sua Vie de Jeanne d’Arc. Nesses casos, o pensamento permanece negativo e não atinge senão a destruição. Reservamo-nos, porém, para o trabalho mais difícil, que é o de afirmar e criar.

Encontramos novamente aqui, como já vimos em muitos outros casos, os elementos do fenômeno inspirativo, que o preparam e o acompanham. Para compre-endê-lo, eu o reduzo à sua estrutura essencial, que é um cálculo de forças, imponderáveis e reais, provenientes de centros superiores de emanação noúrica e que descem para unir-se e combinar-se com as correntes espirituais da História e do destino individual.

A elevada origem dessas forças, sua proveniência dos mais altos planos espirituais não padece dúvida no caso de Joana d’Arc. Ela havia feito pintar em sua bandeira, de um lado, as palavras: De la part de Dieu, e do outro o moto Jhesus-Maria8. Este moto ela escrevia em suas cartas, como fazia Santa Catarina de Siena. Isso demonstra que também aqui o pensamento de Cristo era dominante no espírito de Joana. Ela amava imensamente sua bandeira e a quis a seu lado na catedral de Reims, na plenitude do cumprimento de sua missão política e guerreira, quando da coroação de Carlos VII. Do seu estandarte dizia: II avait été à la peine, c’était bien raison qu’il fut à 1’honneur (Estivera presente nas horas de sofrimento, assim, com mais forte razão deveria estar presente no instante da glorificação) (Proc. I, 187). A última palavra que Joana pronunciou, na fogueira, em face da morte, quando já não se pode mentir, foi Jesus. Além disso, aquele Venho da parte de Deus é a invocação suprema que traz Deus como testemunha, é o juramento que empenha toda uma vida até o martírio. Um instintivo terror impede de mentir, de falar em nome de Deus quando disso não se é digno. Joana, que era uma inspirada e deu sua vida para testemunhar a verdade de suas vozes, não poderia deixar de sentir quão tremenda é esta expressão: Falo em nome de Deus.

A Igreja, que jamais mutilou as capacidades intelectivas humanas, recorrendo, na interpretação do fenômeno de Joana, à tese da sugestão do histerismo e da neurose, nem sequer no momento da maior cegueira, quando Joana foi condenada à fogueira (grande responsabilidade moral para a Universidade de Paris), a Igreja só teve uma preocupação, que foi a de saber se as correntes provinham do Alto ou do inferior, de Deus ou de Satanás, se eram, pois, de verdade e de bem ou de erro e de mal. Essa é a questão fundamental. E se, num primeiro momento, no processo de condenação de 1431, o sereno julgamento é ofuscado por ódios de facção, por interesses, por invejas, por erros do clero local, que se impõem, enquanto o papado (Eugênio IV) está longe e não informado, talvez na própria impossibilidade de salvar Joana, a Igreja se dispôs à mais completa e explícita reparação no processo de reabilitação, empreendido quase imediatamente, em 1456. Esse processo de revisão, iniciado quatro anos antes por vontade do Pontífice Calixto III, do rei Carlos VII e da mãe de Joana, é encerrado com uma sentença de reabilitação, em que a inspirada já aparece em sua linha de santidade, que a coloca nos elevados níveis da inspiração cristã. Finalmente, a própria Igreja, após a beatificação (1909), proclamou a canonização em 1920 e Pio XI, em 1922, declarou-a santa.

No fenômeno inspirativo de Joana d’Arc refulge logo, e sempre mais intensa, esta característica, que considerei fundamental para a pureza da revelação – a altitude espiritual da fonte. Não nos admiremos da diferente compreensão daquele tempo. Uma idéia não poderá ser compreendida no seu século se este é surdo às ressonâncias que ela excita. Quando as almas são surdas a esse gênero de vibrações, então a maioria nega, o fenômeno se refreia numa aparência de falsidade, desaparecendo no silêncio para levantar de novo sua voz mais tarde, quando as almas souberem responder. Nem todos os tempos são capazes de compreender. Assim, Joana dormiu mais de quatrocentos anos e depois despertou; foi esquecida pela frivolidade do século XVIII, negada pelo materialismo, mas despertou na religião e desperta na ciência, que já não pode negar. Quando os tempos são surdos à compreensão, o fenômeno sabe esperar a época de sua ressonância, em que, finalmente, a vagarosa alma coletiva haja sabido atingir sua altitude, condição necessária para o contato da compreensão.

Esse lado moral de que a ciência prescinde é para mim fundamental nesses fenômenos, porquanto, é ele que define o timbre das vozes e estabelece o seu valor. A elevação moral da fonte encontra-se espelhada toda no sujeito, no gênero de vida que lhe é imposto pela inspiração; projeta-se, desse modo, também em nosso mundo, em atos que são garantia de pureza noúrica, o sinal que nos garante estarmos longe daquelas horríveis comunicações barônticas, de que tenho horror como de um íncubo. E a grandeza moral de Joana é triunfante, em todos os momentos. Sozinha contra todos, ela impõe à França sua salvação. É humilde e obediente às suas vozes. Jamais coisa alguma solicita para si, mas dá-se em abnegação completa à sua missão e, para não renegar sua verdade, afronta o martírio. As mesmas forças do Alto a mantêm nesse caminho de pureza, mas, apenas realizado o esforço da vitória e dominada a ameaça de um repouso entre glórias humanas, elas se ausentam de Joana, fazendo-a cair numa prisão. A ascensão moral lampeja mais intensamente na última fase da missão de Joana que, logo após a apoteose do triunfo heróico na Terra é subitamente lançada à conquista da vitória espiritual no céu. É lei das elevadas correntes o dar sempre ao espírito, tudo negando ao corpo. No nível humano, Joana, combatendo os ingleses, que eram a injustiça e a opressão, combatia pela legalidade, que era, então, a base do poder e a forma que naquele tempo assumia a justiça, e por isso faz consagrar Carlos VII em Reims. Só um rei assim coroado poderia, conforme o conceito da época, governar legitimamente diante de Deus e dos homens. Joana usa e suporta a guerra como um recurso indispensável e um mal inevitável, em face da justiça de seus objetivos. Guerra pela salvação da pátria, pela glória de Cristo, pelo triunfo de um princípio de bem coletivo. Joana não é uma partidária da guerra até o extermínio; embora hábil estrategista, inovadora, rápida, inteligente comandante, não amava a guerra, mas a paz. Guerra justa e oferecimentos de paz – é o seu sistema. Em suma, embora no inferno guerreiro a que teve de descer para o bem de sua pátria, sua posição moral encerra sempre o máximo de altitude que as condições do trabalho imposto permitiam. Elevação que foi de todos os instantes, jamais desmentida, coerente e imutável, elevação que avança até a paixão e o martírio. Há também uma progressão ascensional no caminho espiritual de Joana, assinalada pela intensificação de sua dor. Sofrimento e desapego, também neste caso, paralelizam com o avanço da perfeição espiritual. Sempre o mesmo processo de purificação, que é sublimação de espírito. É sempre a dor que põe em relevo a intervenção do Alto, proporcionada, em sua intensidade, à altitude da fonte. Superando as quedas da fragilidade humana, a dor é a garantia indiscutível do valor da inspiração, pois o espírito só se aformoseia se é flagelado. A ascensão é o esforço de sua reação, a dor é a força que o desnuda, purifica-o e lhe dá brilho como a um diamante.

Demonstrado este ponto da elevação inspirativa de Joana d’Arc e da progressão de sua ascensão moral, fenômeno paralelo a uma intensificação de sua dor, depois de haver recordado, também no presente caso, a relação já descrita anteriormente entre sofrimento e progresso espiritual, observemos agora como se comportam as suas vozes, como agem quais forças conscientes. Qual seja a técnica científica de sua descida é outro problema, de que cuidaremos posteriormente.

No caso que estamos examinando, as correntes noúricas revelam uma consciência do momento histórico; sua intervenção supranormal é justificada por uma necessidade excepcional e impelente; sua ação direta, que guia uma camponesinha, uma criança quase analfabeta, é proporcionada aos eventos, oportuna, vitoriosa. A causa, portanto, é supremamente inteligente, de uma potência volitiva e compreensiva superior aos homens, inclusive o escol da época, que formam o fundo cinzento e baixo de vileza sobre que se move o destino radioso de Joana.

O momento histórico não poderia ser mais trágico para a França. Existem uma proporção e uma tempestividade entre ele e a obra de Joana, embora o quadro histórico completo de seu tempo ela não o pudesse ver, não só porque ignorado, mas também porque continha ele germes de longínquos desenvolvimentos, para cuja compreensão seria necessário distanciar-se no momento contemporâneo e obter aquela visão de conjunto que somente à distância de séculos se pode possuir. De fato, a missão histórica de Joana não foi compreendida senão muito mais tarde; os contemporâneos, atentos às coisas próximas, em geral vêem pouco ou nada desses destinos de vanguarda.

Naquela época, a civilização européia, que é civilização cristã, ameaçava ruína. Da Itália, da Alemanha, da Espanha, nada se podia esperar. A Europa está confundida pelo cisma, por contínuas guerras e os infiéis ameaçam do Oriente. A França, esgotada pela Guerra dos Cem Anos, entre heresias e pilhagens está material e espiritualmente prostrada. Importava restituir a paz à Europa, fazer cessar a invasão inglesa que, submergindo a França, ameaçava seu destino e sua missão de desenvolvimento da civilização européia. Essas coisas, os contemporâneos não poderiam enxergar. As almas, prostradas por longuíssimas e extenuantes lutas, encontravam-se abatidas e a anarquia triunfava. Faltava a centelha que reacendesse a esperança e a coragem. Joana responde à necessidade impelente de arrastar para o Alto a alma coletiva. A História não é feita pelo homem, mas pelas forças imponderáveis que o guiam. E elas intervêm de maneira evidente quando existe um grande motivo e, no caso que examinamos, urgia salvar uma civilização que, criada pelo Alto, pelo Alto foi sempre guiada e protegida.

Olhemos mais de perto o momento histórico.

Desposada com Carlos VI, Isabel de Baviera, ávida, viciosa e traidora, tanto quanto louco era o rei, lhe impõe o tratado de Troyes que, em 1420, abre as portas da França aos ingleses. O rei é abandonado e Carlos VII, seu filho, vem a ser o Delfim da França em 1416. Basta olhar-lhe o retrato. Por amor à vida tranquila, faz-se rebocar, como um peso morto, pesadamente, por Joana, pondo a perder o fruto das conquistas da heroína.

Em 1415, Henrique V da Inglaterra pretende o trono da França e se prepara para conquistá-lo, a fim de fazer dele um só reino com a Inglaterra. A alma da França está dividida por rivalidades e discórdias de partidos. Os ingleses avançam. Em 1420, Carlos VI firma o tratado de Troyes, pelo qual a coroa da França passa ao Rei da Inglaterra. Em 1422 Carlos VI morre e Carlos VII tor-na-se rei, mas não ainda legitimado pela coroação em Reims, que será obra de Joana. Os pequenos senhores estão divididos, inconscientes do momento, ambiciosos, passivos diante do perigo. Quem salvará a França, governada por um rei irresoluto, empobrecido, abandonado? Urgia uma ação guerreira e política, um impulso que mudasse o curso da História. Esse impulso não poderia provir de nenhum recanto da terra.

Joana nascera em 1412. Aos 13 anos, em 1425, ouve as primeiras vozes. Por quase quatro anos, de 1425 a 1429, escuta-as, amadurecendo a própria preparação espiritual. E ao despontar de 1429 a heroína de dezessete anos entra em ação. São quatro rápidas e progressivas etapas: encontro em Vaucouleurs com o capitão Roberto de Baudricourt, encontro em Chinon com o Delfim, libertação da cidade de Orleãs dos ingleses, coroação de Carlos VII Rei em Reims. Foi em julho que se deu essa consagração. Três anos e meio de incubação do fenômeno, cinco meses e meio para traduzir o pensamento em realidade. O impulso, que não poderia origi-nar-se da Terra, desce do Céu. A centelha que faltava à consciência nacional, Joana a encontra no espírito, grande força também nos eventos políticos. Políticas e guerreiras eram as necessidades do momento e essa é a forma que assume a inspiração. A fonte das correntes inspirativas não é apenas moralmente elevada, senão também supremamente inteligente.

A obra de Joana é, assim, aqui sentida como força ativa que intervém e atua na História. As noúres, que eram bondade e justiça, pensamento e consciência, eram também vontade e energia de ação. E o caso de Joana não é único. A História, como todos os fenômenos, tem sua meta e se desenrola segundo um princípio lógico de desenvolvimento. Vejo nesse desenvolver-se de todos os fenômenos, inclusive no histórico, um último termo substancial, que é a força que os movimenta. Existe uma lei de equilíbrio entre os impulsos de todos os fenômenos e todos são imateriais, conexos, obedientes a uma única lei central, que é Deus. Nos momentos de depressão nas forças diretivas dos acontecimentos humanos, o vazio do inferior, na Terra, atrai, por equilíbrio, uma corrente espiritual do Céu e esta desce por vias inspirativas. Os impulsos do mal têm de ser equilibrados com os do bem. Esta é a lei que faz nascerem os heróis, os gênios, os santos, quando urge uma missão redentora. No momento decisivo da crise que ameaça os sagrados valores do espírito, que sintetizam uma civilização, alguma coisa “tem” que nascer. Por isso, nasceu Joana.

Cristo, a grande força que havia fundado a civilização cristã, velava, sempre presente, pela sua conservação. Desperta, então, o Destino e sacode as almas adormecidas. Carlos VII, embora rei, substancialmente era um nada; Joana, não obstante ser uma pastorinha, substancialmente era a força que explodia a seu lado.

Na História, entra em ação, nos momentos decisivos, a realidade do valor e não a aparência da posição social. E que diferença de armas e de métodos! Joana caminha rápida, reta e seguramente porque maneja as forças do bem, da justiça e da verdade; o rei e seus cortesãos vão pelas estradas tortuosas da dúvida e da traição, incertos, vazios, desunidos. O espírito e o bem tudo governam e Joana os possuía ambos. Ela era uma chama viva, os outros um archote apagado. Eis o segredo de seu triunfo.

A inteligência do centro inspirativo, neste caso de Joana, não é somente provada pela tempestividade da intervenção, pelo seu proporcionar-se aos acontecimentos da época, mas também pelo desenvolvimento lógico inegável que aquele centro imprime ao destino de Joana.A inspiração tinha uma exata meta, constante, um plano de ação complexo que muda de natureza ao longo de seu desenvolvimento, tem um período de preparação para a formação gradual do instrumento.

Observemos de perto como nasce e se desenvolve a inspiração de Joana, qual motor espiritual de toda a sua missão ativa. Reencontraremos muitos dos conceitos já observados. A forma imposta pelas circunstâncias ao desenvolvimento dessa missão, que é confiada a uma adolescente, não poderia permitir os longos períodos de maturação através da dor, que achamos em outros casos. A distribuição das fases é invertida e o fator dor é todo condensado no final. E isso porque o primeiro escopo, em ordem de tempo, é a salvação da França; o segundo é a purificação espiritual da heroína. A dor atinge, pois, somente a segunda fase do desenvolvimento individual da missão, quando o remate da obra política se deu.

Aos treze anos, no verão de 1425, Joana ouve as vozes no jardim da casa de seu pai. Essas vozes são o “leit-motiv” da vida de Joana, sempre presentes, sobretudo nos momentos mais decisivos. Elas se encontram à retaguarda dos fatos, são o centro motor de toda a sua missão. Dos treze aos dezessete anos, do verão de 1425 ao fim de 1428, isto é, três anos e meio dura o período de preparação do instrumento, três anos e meio para que a inspiração se apoderasse inteiramente daquela alma. O fenômeno é progressivo. Antes de a luta exteriorizar-se na terra, através de fatos concretos, deve ela completar-se no espírito, tem de ser antes solidamente estabilizado o equilíbrio interior das forças motrizes do fenômeno. Eis como Joana descreve sua primeira percepção das vozes:

(Quando eu tinha treze anos, ouvi uma Voz de Deus, que buscava dirigir-me; da primeira vez, senti grande temor. Essa voz manifestou-se por volta do meio-dia, no verão, no jardim da casa de meu pai. Eu não havia jejuado na véspera. Percebi essa Voz à minha direita, do lado da igreja, e raramente a ouço sem que perceba também uma claridade. Essa luz é vista sempre do meu lado de onde a Voz se faz ouvir e é habitualmente muito brilhante. Processo, 1, 52).

O primeiro sentimento é de medo e também aqui a primeira advertência da Voz é: “Nada temas”: ne crains rien. Mais tarde, quando o costume já houver tranquilizado Joana, a Voz se fará mais forte e segura, iniciando seus apelos de comando: Va, va, fille de Dieu, va (...). (Caminha, caminha, filha de Deus, caminha (...) e acrescenta: a missão vem de Deus: De la part de Dieu (Da parte de Deus).

As vozes são diversas. A primeira é a de São Miguel, o anjo guerreiro, o santo das batalhas, que guia os exércitos. Chegam-lhe, depois, em auxílio, como que para proporcionar-se melhor, ameigando-se à feminilidade de Joana, outras duas vozes: S. Catarina e S. Margarida. Existem também aí razões de simpatia, de atração e de afinidade de missão.

Esta última santa era representada na capela de Domremy, terra natal de Joana, por uma estátua que ela venerava. A Voz guerreira de S. Miguel desaparece depois, nos fossos de Melun, ao término da missão guerreira da heroína, quando seu destino se eleva pelas vias místicas do martírio. Então, somente falam as duas santas do sacrifício e da virgindade.

Joana vê também um resplendor na direção da Voz. Ouve, vê, tem até sensações táteis e olfativas: as correntes assumem as mais diversificadas formas de vibrações sensórias, mas, acima de tudo, ela ouve. O ambiente de sintonização está inundado de uma paz idílica, de singela musicalidade campestre, cheia de poesia. Nesse ambiente, as correntes espirituais saturam de suas energias a alma de Joana, o veículo que devia, depois, comunicar a transfusão espiritual à alma da França.

Os bosques deviam ser seu ambiente de sintonização preferido, porquanto durante o processo, imersa em vibrações mais baixas e opacas, Joana despendeu maior esforço para ouvir e numa sessão chegou a dizer: “Se fosse num bosque ouviria minhas Vozes”. Joana, naqueles três anos e meio de sua preparação espiritual, como camponesinha que era, vivera no ambiente rural, entre bosques e igrejinhas das aldeias tranquilas, na mais harmoniosa atmosfera vibratória. Nesse ambiente, ela assimilava as correntes, intensificando suas qualidades de ressonância, aperfeiçoando sua afinidade com as mesmas correntes até fundir-se e tornar-se, ela própria, o impulso que lhe foi transmitido.

A primeira voz se manifesta no jardim da casa paterna, continuando-se o contato, prosseguindo a iniciação, não mais com interrupções, mas constantemente, várias vezes por semana, um pouco em toda parte, pelas colinas do Mosa, aonde Joana conduzia a pastar seu rebanho, sob a árvore chamada “das fadas”, pelos bosques que cobriam a região, junto das fontes, entre o canto dos pássaros e o perfume das flores, ao som dos sinos que Joana muito amava e que na verdade, especialmente se grandes, são dotados de uma extraordinária potência de harmonização vibratória. Eram estas as doces vibrações que as correntes espirituais seguiam como vias de descida, como fundo de ressonância, constituindo o harmonioso motivo de matéria sobre que se apoiava a sinfonia divina. O concerto devia ser perfeito, sem dissonâncias, até seus ecos longínquos no mundo físico.

Assim descia a noúre ao espírito de Joana, através da voz interior das coisas boas e doces que se lhe inclinavam em torno em coroa, oferecendo-se como canais de sintonia. Assim se escondem na humildade as grandes coisas.

O ambiente das Vozes é, pois, quase sempre nos campos e em lugares distantes e solitários, onde Joana gostava de refugiar-se. E a campina de Domremy, onde vivia Joana, é ainda hoje verdadeiramente sugestiva pela sua tranquilidade e silêncio.

As Vozes, entretanto, falam também na igreja, outro ambiente místico excelente, isto é, na igrejinha de Domremy e no vizinho santuário de Nossa Senhora de Bermont. Na primeira havia a estátua de S. Margarida e diante dela Joana orava. O santuário de Bermont, isolado em silêncios, entre árvores, era o ambiente afastado, ideal de suas inspirações. A solidão daqueles silêncios era necessária a Joana, a fim de ouvir melhor e ela a buscava para sua preparação. Ocupada em seu profundo trabalho interior, sua alma tinha necessidade de paz no exterior. Nesse ambiente, a camponesinha de Lorena teria feito sua promessa solene, aceitando sua Missão e comprometendo-se com o Céu a segui-la até o fim. A História não assiste a essa íntima cena, em que a alma de Joana deveria haver falado e talvez também lutado longamente com suas Vozes. Certamente Elas estavam presentes como estiveram no Sinai, em Patmos, em S. Damião. Existe na capela de Bermont um Cristo dorido e amargurado a cujos pés a jovenzinha deve ter pronunciado o seu sim, um voto solene recolhido pelo Cristo moribundo e do qual não mais poderia afastar-se. Aquele voto era também de dor e de paixão.

A Lei de Deus desce e se humilha perante o consentimento da alma, porque, respeitando a liberdade desta, respeita a si própria. Somente agora Joana, desenvolvida antes de tudo interiormente, poderia lançar-se pelos caminhos do mundo. O doce período das efusões espirituais está terminado. Iniciar-se-á agora a grande batalha da conquista do martírio.

Disse: lutado. Sim, porque Joana não aceita passivamente, mas discute e frequentemente resiste às suas Vozes. Ela lhes opõe os raciocínios do seu bom senso, que calcula as dificuldades tanto quanto as próprias forças. As vozes eram sempre distintas do seu eu, com o qual às vezes colide, sem se confundirem jamais. Dá-se um encontro entre sua vontade humana e a vontade superior, uma como progressiva tomada desta sobre aquela; mas, não existe qualquer violência que anule vontade e liberdade. Se Joana obedece, é porque anteriormente discutiu, compreendeu, convenceu-se. Forma-se um pacto entre dois seres livres, conscientes e consencientes. As forças do Céu e da Terra são distintas, encontram-se e lentamente se fundem numa força única. Para isso, foi necessário um longo período de incubação, muito mais longo que o da conquista guerreira e do martírio; um período de preparação invisível, antes que o fenômeno pudesse explodir em sua maturidade; um processo de progressivo desenvolvimento antes de atingir sua plenitude.

Se as duas vontades se põem de acordo, permanecem, todavia, distintas, como distintos são os trabalhos a realizar. A vontade mais alta e mais sábia permanece na direção e guia; a outra a segue. No caso de Joana, as Vozes não revelam todo o plano, mas, embora de monstrando conhecê-lo completamente, só lhe comunicam, nos momentos oportunos, a parte dele que interessa à sua execução. O inspirado é, pois, sempre guiado pela mão, como uma criança. A missão é revelada aos poucos e a comunicação se limita ao mínimo necessário. Parece quase que as Vozes amam esconder no silêncio o que a alma não teria força para aceitar, guiando-a, docemente, com o menor dispêndio possível de energias.

Observemos como as Vozes se comportam na vida de Joana. Concluída a tarefa de preparação, Joana é lançada pelas Vozes em sua missão e parte no momento justo. Ela não sabe outra coisa senão isso: Va, va, fille de Dieu, va (...). As vozes, porém, sabem e precisam, imediatamente, quatro objetivos: Vaucouleurs, Chinon, Orleãs e Reims, conexos entre si por uma proporção e lógica de desenvolvimento que ascende a uma única meta. Quando as Vozes não têm de ser precisas não o são. Há um acordo entre a sabedoria do Céu e as exigências dos acontecimentos.

Elas sabem que Orleãs é a chave de toda a posição e que, perdida esta, desabaria a missão, salvar a França do domínio inglês. Orleãs está sitiada desde outubro de 1428. Ao iniciar-se 1429, Joana já se acha em movimento. Reims é o objetivo político que não se pode atingir senão numa segunda fase. Primeiro, a vitória que permita a legitimação e depois a legitimação que confirme a vitória.

A marcha heróica se desenvolve com uma segurança de guia que os grandes chefes daquela época não possuíam. Tudo é predito. Joana, no caos, segue reta como uma flecha. “Malgrado os inimigos, o Delfim se tornará Rei e sou eu quem o conduzirá à consagração”. (Proc. II, 450). Assim afirmou a pequena pastora. Como podia uma tão humilde criatura afirmar isso sem ser louca e se era louca como acertar com tamanha precisão?

Em março, Joana está em Chinon e reconhece o Delfim entre a multidão dos cortesãos:

Par le conseil de ma voix, qui me le révelait. (Proc. 1,56). Quand j’ai vu le Roi pour la première fois il y avait là plus de 300 chevaliers et de 50 torches sans compter la lumière celeste. Et j’ ai rarement des révélations sans qu’il y ait de lumière. (Proc. 1,75). “Je 1’entends rarement sans voir une clarté” (...). (Pelo aviso da minha Voz, que mo revelou. (Proc. I,50). Quando eu vi o Rei pela primeira vez, lá estavam mais de trezentos cavaleiros, sob a luz de cinquenta archotes, sem contar a luz celeste. Raramente recebo revelações sem que haja manifestação de alguma luz. (Proc. I,75). Também raramente ouço sem que perceba também uma claridade(...).

á havia dito Joana a respeito de sua primeira aparição. Ao falar com o Delfim, ela lê no íntimo de seu es-pírito, atingindo suas secretas dúvidas, isto é, se ele era filho legítimo de Carlos VI e Isabel. E Joana lhe diz que justamente por sê-lo ela o fará consagrar em Reims.

Um outro sinal se acrescenta: o miraculoso encontro da espada enterrada de S. Catarina, coisa que Joana não podia saber e que lhe foi indicada pelas vozes9. Em Orleãs, a inspiração sustenta a estratégia e a técnica militar com uma capacidade que Joana não podia possuir e que superava a dos chefes de seu tempo. Em poucos dias uma camponesa de 17 anos consegue o que não o puderam fazer, em vários meses, os homens aguerridos da época. Orleãs é libertada. As Vozes são recebidas com exatidão. Joana, porém, sabia que era preciso tudo realizar rapidamente e tem pressa de concluir sua missão guerreira. Importava consagrar no rei a vitória conseguida, completá-la num plano de direito. E avança contra Reims. Na tarde de 16 de julho, Carlos VII entra na cidade, como as Vozes haviam predito. Imediatamente, no dia seguinte, um domingo, é realizada a coroação.

“Gentil Rei” – diz-lhe Joana – “acaba de realizar-se a vontade de Deus, que queria se levantasse o sítio de Orleãs e vos conduzisse a esta sagrada cidade de Reims para receber a Santa Consagração, mostrando, desse modo, que sois o verdadeiro Rei a quem o reino da França deve pertencer”. (Proc. IV, 186).

A França estava salva. As Vozes, que haviam atingido seu primeiro objetivo, já não têm por algum tempo, a precisão e a potência de Domremy. De fato, com que proveito, se seu objetivo é outro? A Pucela havia despertado a alma nacional. O desforço francês por ela preparado avançará e libertará sua pátria. Todas as suas profecias se cumprirão. O ânimo de Carlos VII ressurgirá e quatro lustros mais tarde a França será livre. Era suficiente aquela centelha. As forças haviam limitado sua intervenção ao mínimo indispensável.

Depois de Reims, é outro o objetivo das Vozes e para essa nova meta se dirigem e com ele se harmonizam. As Vozes permanecem em seu método de dizer, guiar, encorajar e promover acontecimentos parceladamente. Aí começa um novo destino de Joana, mas Elas não lho revelam; só falarão claramente na Páscoa de 1430 em Melun; O seu destino sobe, lenta e inadvertidamente, dos triunfos humanos aos triunfos divinos; já não se trata da salvação da França, mas da sublimação da alma de Joana através da dor. E sua paixão começa. É uma vitória maior, que deve consolidar a primeira e fazer de Joana uma santa.
Progressão ascencional do fenômeno, que o conduz a um limite imensamente mais elevado, em que o sofrimento, como já vimos, é o fator fundamental. Para Joana era necessário consolidar e consagrar sua idéia no martírio, que continha algo de maior que a salvação da França e que, no testemunho da morte, devia estender-se ao mundo inteiro. Para que Joana, entretanto, pudesse realizar sua ascensão era indispensável, para ela, a falência de seu triunfo humano, importava que sua grandeza terrena naufragasse na traição e no abandono, por parte dos ingratos em favor de quem ela havia lutado. Não devia ser ela quem colhesse, para si, glórias terrestres. Sua glória devia ser seu puríssimo sacrifício pela França. Recompensas e gozos humanos teriam dissipado completamente essa sutil fragrância do espírito.

Uma vez mais, vemos, no fundo de todas as missões, Cristo a resplandecer, Cristo que atrai a si, na renúncia e no martírio, as almas eleitas. Há, pois, um desenvolvimento lógico no íntimo progredir do fenômeno:o primeiro cuidado das forças superiores foi, assim, despojar a Pucela de todos os triunfos humanos, que naturalmente estavam para envolvê-la, ameaçando seu triunfo maior. Importava avançar ainda mais. As Vozes, porém, guiam com delicadeza, sem esmagar o espírito com uma perspectiva imediata, demasiadamente vasta, que o desoriente, que excite revolta ou temor. Elas o encaminham para a inevitável estrada, conservando-se sempre presentes, embora às vezes pareçam ausentes, mas apenas usam a inteligente estratégia do silêncio.

Na vida eterna de Joana, era chegada a hora da grande vitória e importava afrontá-la com uma grande prova, porque é esta a lei das almas maduras. Até o fim, as Vozes usam a piedade do mistério, fazem-na entrever a libertação, entendida, porém, num sentido espiritual, não lhe revelando que horrível morte a esperava, justamente a que ela mais temia. Falam-lhe, mas suavizam os caminhos da dor. O Alto, diferentemente dos planos inferiores, conhece essa piedade e se não pode evitar o sofrimento é porque este é parte essencial e integrante da ascensão que o mesmo Alto deseja, por ser o caminho da felicidade. Quantas coisas sutis e profundas nos ensina esse ponderado avançar das Vozes pelos caminhos do Senhor!

Somente quando a alma adquiriu a força de olhar, face a face, o martírio, é que as Vozes falam mais claramente. Somente quando Joana foi capaz de compreender o verdadeiro sentido da sua libertação, só então as Vozes lhe disseram: “Encara tudo isso com bom ânimo. Não te preocupes com teu martírio. Entrarás, finalmente, no reino do Paraíso”. E isso porque o significado profundo do fenômeno que estamos estudando se acha na evolução do espírito, no trabalho de sua potencialização, que lhe permita, como vimos em I Fioretti de Irmão Francisco, levantar vôo para superiores planos de vida.

Vejamos, porém, mais de perto os acontecimentos. Depois de Reims, a estratégia de Joana é deixada aos seus recursos humanos. Ela havia trabalhado no baixo mundo humano e é lei que esse mundo devesse reagir: ela havia triunfado demais e não poderia deixar de excitar ciúme e inveja de muita gente. A grandeza a isolava. Os níveis de consciência humana comuns são baixos e os homens não sabem aliar-se senão por interesse, raramente por um ideal. É natural que o conhecimento limitado de Joana, não mais sustentado pelas forças superiores, tivesse logo de despedaçar-se de encontro às astúcias de gente dada a todas as insídias e ela cai vítima da traição. Os homens eram cegos: só enxergavam o interesse mesquinho, por ser próximo e individual. Somente as potências do Alto haviam demonstrado uma superior consciência do momento histórico, dominando no espaço e no tempo. Os homens inferiores são, porém, os mais tenazes e armados de vontade, de astúcia, de mentiras. O plano lógico de Joana era de avançar logo sobre Paris e aí concluir a paz, como vencedora. Carlos VII, por quem lutava, pessoalmente lhe frustra os planos, preferindo um armistício com Paris e uma paz acomodatícia. Todo o impulso moral dado à França por Joana é quebrado: ela é traída pelo seu próprio rei. No momento da ação decisiva, que deveria recolher todos os esforços anteriores, o rei vadia e espera. Em setembro, Joana ataca Paris. Aí se dá a primeira traição. Vários comandantes, não desejando a vitória da empresa, retiram-se da luta. No dia seguinte, anuncia-se que é expressa vontade do rei se abandone a ofensiva.

E a traição continua. A primeira derrota ofusca a auréola da heroína. O povo quer o triunfo, a esmagante persuasão do fato concreto, que tudo justifica, o delito ou o milagre. Em face da derrota, a santa é transformada em feiticeira. Joana permanece cada vez mais sozinha, contra todos. O rei não quer senão mandriar, não cuida de Joana que sonha com a paz. Naqueles tempos, ninguém desconfiava das demolidoras hipóteses do materialismo. Hoje, Joana estaria entre os loucos. Mas, naquela época, só poderia ser ou feiticeira ou santa. Para os franceses, enquanto lhe foi útil com suas vitórias, era naturalmente uma santa. Para os ingleses, por ser inimiga de seus interesses, era uma bruxa, tese que lhes foi querida e que farão triunfar. As nações, como os homens, acreditam que Deus esteja sempre de seu lado, que imaginam ser sempre o lado do direito e da justiça. O pior foi que, por inveja, os franceses, desde a primeira derrota, começaram a considerá-la feiticeira, apertando em torno dela um círculo total e fatal que finalmente a estrangulará. Entretanto, se os séculos se recordam daquele tempo e de todas aquelas personagens insignificantes, é somente em virtude da heroína perseguida que eles quiseram esmagar. Somente a dor, nunca a astúcia ou a força, cria as coisas eternas.

A hora, porém, da maior traição se precipita. O destino tomou resolutamente um novo caminho e as Vozes voltam a falar. Até então se haviam calado. Em face da derrota de Paris, silêncio. “Quando caminhava para Paris, não tive revelações de minhas Vozes” (Proc. I, 146), diz Joana: “não foi nem a favor nem contra a ordem de minhas Vozes”. (Proc.I, 169). As Vozes deixaram, pois, que seu destino de mártir se cumprisse, que a traição, que o condicionava, prosseguisse. Assim também Cristo deixou Judas por ocasião da Ceia. Existe, desse modo, um senso de fatalidade no destino, que, uma vez fixado em suas causas, não mais se pode interromper.

As Vozes encontram de novo a potência de Domremy, numa nova curva decisiva. “Na semana da Páscoa, quando me encontrava nos fossos de Melun, foi-me anunciado pelas Vozes, isto é, por Santa Catarina e Santa Margarida, que eu cairia prisioneira antes da festa de São João e que assim deveria suceder; que eu não me surpreendesse, mas recebesse tudo de bom ânimo, porque Deus me ajudaria”. (Proc. I, 115-116). Estávamos em abril de 1430. São um fato verificado esses períodos de silêncio: parece que a Voz se ausenta e se extingue, todavia, no momento oportuno, ela ressurge, vibrante; compreende-se, então, que ela esteve sempre presente, guiando tudo sem que se revelasse. Silêncios necessários, que fazem parte do plano diretivo, da estratégia dos repousos e dos retornos em que amadurecem os impulsos mais elevados. Joana, pois, deveria cair prisioneira: esta, a vontade de Deus. Requere-se uma nova aceitação, mas, ao mesmo tempo, se encoraja e se promete um divino auxílio que, depois de Orleãs, vai operar o segundo milagre da inabalável firmeza de Joana até à fogueira.

De fato, Joana foi feita prisioneira em Compiègne, por uma nova traição. Entra na cidade sitiada, sem de nada suspeitar, mas, ao fazer uma incursão pelas suas proximidades (o inimigo talvez estivesse mancomunado com os próprios chefes da cidade), os ingleses lhe cortam a retirada. Nesse ínterim, Compiègne levanta as pontes e fecha as portas. Joana teve de render-se e foi aprisionada, em virtude da traição dos próprios franceses. Diz-se que a traição foi regiamente compensada.

Prisioneira! Assim, de mãos a mãos, ela passa aos ingleses, aos quais é vendida, e que pagam alto preço pela rica presa. Os acontecimentos se aceleram. Joana arrasta sua paixão, de cárcere em cárcere, até que se inicia seu processo. Nas mãos dos ingleses, Joana deveria ser considerada uma feiticeira – esta a conclusão preposta a todo processo, porque deveria este servir ao interesse de anular a consagração em Reims, reduzida, desse modo, a um sacrilégio, destruindo com isso a autoridade conferida a Carlos VII por esse novo juízo de Deus. Na incerteza das vicissitudes humanas o povo havia percebido essa milagrosa intervenção divina, que era garantia da legitimidade real. Entretanto, os trezentos homens do processo, tão aguerridos em sabedoria, não compreendiam esta verdade elementar – que todas as suas astúcias e violências, se podiam aniquilar Joana, o rei e a França, não tinham poder de violentar Deus, tampouco aqueles que por Ele eram protegidos, isto é, ligados ao círculo das forças superiores da Divindade. Os juízes, ao buscarem o ponto de contato entre Joana e Satanás assinalaram, ao contrário, o ponto de contato entre a Santa e Deus. Contra ela foram utilizadas as palavras de São Paulo. Sua perseverança foi considerada pecado de orgulho. Melhor não se poderia mentir. Não obstante tanta dialética, tanta pompa de encenação judiciária, tanta fúria de força e astúcia, não puderam cancelar uma sílaba da simples e sublime verdade de Joana. Para destruir o que representava a salvação da França, os juízes procuraram aniquilar a heroína e a santa, pondo em seu lugar a figura de uma feiticeira. Importava inverter a situação e substituir Deus por Satanás. Pobre míopes que não viam que essa inversão de valores era justamente o pedestal da grandeza da santa, porque era a condição de seu martírio! Eles eram a força ignara que o Alto utilizava para a vitória de Joana!

Na Idade Média, era fácil a acusação de feitiçaria. A atmosfera parecia estar saturada da idéia do demônio e, verdadeiramente, com todas aquelas mortes violentas e cruéis, com tantos ódios e vinganças, ela devia estar espiritualmente irrespirável, profundamente impregnada de emanações barônticas.

Joana está sozinha, oprimida, privada até do conforto da religião; sozinha, diante dos insultos dos carcereiros e dos ataques à sua pureza; sozinha, diante de uma terrível assembléia de juízes inteligentes e de má-fé, que tentavam, por todos os meios, arrancar-lhe a renegação de suas Vozes, para terem, assim, o meio legal de condená-la e a forma da justiça fosse salva. Eles criam que aquela ilusão da forma pudesse bastar para sustentar um fato que era mentira e hipocrisia. As forças reais da vida, porém, depois se levantam e impõem a reabilitação. Quando se compreenderão essas leis?

No caso presente, estamos vendo, no entanto, a que extremo de injustiça pode chegar a justiça humana.

As Vozes, porém, falavam com Joana e ela respondia a todos, simples e sublime. Esta é a grande força sem armas, a força do justo e do verdadeiro. Quando são iniciados certos caminhos, não mais se pode retroceder. Dois dramas se desenrolam nesta última fase: o drama exterior – que é o do processo em que a autoridade cega, cheia de idéias preconcebidas, de má-fé, se precipita de erro em erro, até bater a cabeça na fogueira, diante da qual um dos juízes ingleses gritará: “Nós nos enganamos! Queimamos uma santa!” O bispo Cauchon, juiz no processo e a quem Joana havia admoestado mais de uma vez, chorará. Ao lado de tudo isso, desenrola-se o drama interior de Joana, que resplandece sobre o fundo cinzento de tantas baixezas. Neste drama, agiganta-se a grandeza do céu e Joana, destruída, fulgura, replena da potência do infinito. Está sozinha, mas suas Vozes estão com ela. Isso lhe basta. A unificação se completou em Vermont e não mais poderá romper-se, nem sequer na hora do Getsêmani e do Gólgota. São liames que não se desatam no tempo e permanecem além da morte.

As Vozes são piedosas: amparam, não amedrontam. Prometeram a libertação e não mentiram, porquanto se referiam à libertação maior. Não tiravam de Joana a esperança de uma libertação humana, para não a afligirem antes do tempo, para oferecer-lhe uma oportunidade de compreender seu novo esforço e amadurecer, gradativamente, para a grande idéia do martírio. Busca a fuga, espera a salvação material e essa interpretação lhe é deixada como uma doce piedade que mitigue sua paixão. Muitas vezes é benéfica a ignorância das disposições do destino; certas ilusões da alma são frequentemente necessárias para que ela afronte situações que a amedrontariam. As Vozes a encorajam a resistir até à libertação. Só mais tarde haveria de compreender. Ne crains rien – Elas haviam dito desde o princípio.

Era necessária a prova suprema para dar ao mundo o testemunho da origem divina das Vozes. O destino de Joana não tinha de atingir somente o alvo de salvar a França, de santificar sua alma, mas, também, de afirmar ao mundo a verdade do espírito. Joana deu a vida por essa afirmação. Jamais renegou suas Vozes e sempre repetiu seu moto: De la part de Dieu – venho da parte de Deus. E repete no final: Se eu dissesse que Deus não me enviou, eu me condenaria. Verdadeiramente, Deus me mandou. Somente na jornada do cemitério de Saint-Ouen tem um momento de fraqueza humana. Seu cansaço cedeu em face a tantas pressões e astúcias de textos ou tal-vez se houvesse enganado pensando que aquela fosse a esperada libertação. Vacilou um momento, vencida pela vontade tenaz de seus juízes, que, no entanto, não passava de uma força que desejava sua retratação para condená-la de qualquer modo. São bem humanos esses desânimos que obscurecem o senso de responsabilidade. Joana, porém, apenas readquire alguma força, temeu, em face de suas Vozes, por havê-las desmentido, embora por um momento; e imediatamente recobrou ânimo. E seu último grito, o maior lançado ao mundo, entre as chamas da fogueira de Ruão, foi: Minhas Vozes vinham de Deus.

Testemunho solene, feito em face da morte, quando não se pode mentir; relâmpago de verdade eterna, descida como sempre de uma cruz, verdade provada com o martírio.

Que diz a ciência, dessa espécie de provas? Na apoteose do sacrifício, Joana reafirma, dando por isso a própria vida, as supremas verdades do espírito, testemunhando que elas existem e se atingem através da dor.

No momento supremo, a Pucela de Orleãs encontra o ponto de contato que a une a Cristo; novamente penetra e se fixa, como força palpitante de vida, no plano divino da Sua redenção. E Cristo é seu derradeiro grito, que é de vitória.

Jamais na História, como neste caso, as forças do espírito desceram tão perto da Terra e numa luta corpo a corpo tão resolutamente se impuseram aos acontecimentos humanos; jamais o contraste foi tão vivo, a intervenção tão evidente, nem os acontecimentos foram tão intensamente violentados pelos impulsos do imponderável. Os dois mundos se defrontaram e olharam face a face, desafiando-se. E o espírito venceu.

Realizei o exame de meu caso em seus mais salientes particulares. É chegado o momento de sair deste caso individual para remontar a uma visão mais vasta do fenômeno, observando os casos de mediunidade inspirativa que a História nos oferece. Semelhanças e pontos de contato permitir-me-ão estabelecer a lei do fenômeno melhor que a observação de um só caso.

No precedente estudo de anatomia psíquica, realizei a vivissecção de minha alma. Era isso necessário para a compreensão de meus escritos mediúnicos, dos quais o presente é o complemento e a continuação lógica. O meu caso mediúnico, porém, se desenvolve sobre a perspectiva grandiosa de muitos casos maiores. Embora distanciados grandemente por importância histórica e potência e não obstante as naturais diferenças dadas pelo temperamento do médium, pela natureza particular das circunstâncias e pelo ambiente imposto ao seu trabalho, todos esses casos têm um fundo único, possuem notas características comuns, que renasceram também no meu caso menor. Isso corrobora minhas afirmações e interpretações do fenômeno com a presente teoria das noúres.

Muitas palavras têm sido usadas para defini-las: inspiração, visão, êxtase, rapto dos sentidos, intuição, mediunidade, o demônio, as musas, o espírito, a subconsciência, a superconsciência etc.

O misticismo, as religiões, o espiritismo, a filosofia, a arte, a psicologia, cada atitude do pensamento humano criou sua expressão e observou de um ponto de vista particular o mesmo fenômeno. O místico, o santo, o profeta, o poeta, o artista, o herói, o cientista, o inventor, numa palavra, o gênio, em todas as suas formas, tem vivido igualmente aquele fenômeno.

É um fenômeno próprio dos grandes avançados na evolução, da qual o gênio não é senão o antecipador que agita o archote do espírito no seio de uma triste normalidade. O fenômeno é tão universal e antigo quanto o homem; mais ainda, foi justamente na antiguidade que ele foi mais reverenciado, quando o conhecimento se atingia diretamente por revelação e o método intuitivo e dedutivo, que a racionalidade moderna não mais sabe usar, era muitas vezes o único método de pesquisa para a solução dos problemas e a conquista do saber. A alma humana, então mais virgem, parecia mais próxima das origens, podendo atingi-las diretamente. Hoje o pensamento se encontra decaído, havendo se precipitado profundamente na racionalidade e não sabe reencontrar os princípios. Desses grandes contatos espirituais nasceram as revelações.

Entramos, agora, num mundo maravilhoso. O fenômeno da registação inspirativa não se pode encerrar nos limites de um fenômeno científico; este caso está para a simples captação noúrica como um raio para uma centelha elétrica, pois que o homem é levantado num turbilhão à face de Deus, centro conceptual do universo, que aparece e se revela para assinalar os destinos do mundo.

Se no meu pobre caso, tive de falar em ascensão espiritual e purificação, quais condições de uma sintonização que não pode realizar-se senão por afinidade, a que vórtice de potência se terá realizado a transumanização desses grandes inspirados que chegaram a ler o pensamento de Deus! E aqui se toca o caso limite da humana possibilidade de ascensão. Se a recepção noúrica é fenômeno de elevação humana às altas esferas do superconcebível, a que tensão do ser, a que vertigem de altura, a que vértice de potência terá chegado a alma humana, nesses casos! E como se torna pequenina e inadequada a ciência, com sua análise, em face desses fenômenos que governam a História do mundo!

Diante dos grandes inspirados, desses gigantes que se moveram numa atmosfera de pensamento titânico, em face da potência dessas forças vivas do espírito que descem à Terra para fundir-se na História, para dar o sopro da vida às civilizações e orientar o progresso do mundo, diante das revelações que atingiram, por contato espiritual direto, a verdade das fontes primeiras do pensamento de Deus, em que se transforma a ciência, com seus métodos exteriores, com seus preconceitos inibitórios, com a incerteza de suas dúvidas e de suas hipóteses? Em que se converte, em face desses fenômenos que superam completamente o homem, a pobre ciência humana, perdida nos tortuosos caminhos da análise e que, no entanto, tudo quer julgar e aprisionar na pequenina técnica de sua experimentação? A ciência, com seu método, encerrou-se em limites que ela própria traçou, constringindo-se na incompetência, nestes casos em que no fenômeno atuam fatores transcendentais.

Nesses casos, as noúres conduziram o homem a uma tão grande altura, ao longo das Hierarquias que se elevam e convergem para a Divindade, que o fenômeno já não se pode reduzir a um conceito científico, porque se realiza fora do mundo e de sua ciência.

As religiões, que significam uma orientação dada pelo Alto ao espírito humano para guiá-lo no caminho de suas ascensões, são uma descida do espírito divino através das revelações. No fundo delas, existe uma única religião que caminha e na qual, adaptando-se à psicologia dos povos nas formas do tempo, a idéia de Deus avança. Avança da Atlântida à Índia, ao Egito, à Grécia, ao monoteísmo da intuição de Moisés, imposto ao povo de Israel, a fim de que conservasse a ideia até Cristo, que deveria continuá-la e fecundá-la no Seu Evangelho de amor.

Todos os grandes criadores do pensamento humano atingiram, por inspiração, a mesma fonte única, expressando-a progressivamente sempre mais perfeita: Krisna, Zoroastro, Hermes, Moisés, Buda, Orfeu, Pitágoras, até Cristo, que supera todos. A verdade é uma só. As aproximações humanas é que são diversas, sucessivas, proporcionadas ao progressivo desenvolvimento da evolução psíquica do homem.

Eis porque a ideia de Deus, em sua essência, é um superconcebível. O homem deve limitá-la para reduzi-la ao seu concebível, que lhe é a única medida que pode, em seu relativo, assinalar-lhe os limites. Esse relativo, porém, se dilata por evolução do sujeito humano e logo, paralelamente, aquela ideia se amplia. Desse modo, a evolução da ideia de Deus é paralela à evolução humana. O Deus do poder e da vingança, de Moisés, torna-se o Deus cristão do amor e do perdão, tornar-se-á o Deus científico da sabedoria; o Deus terrível que aparece entre raios no Sinai, inexorável e tremendo em sua justa vingança, completa-se e agiganta no gesto mais humano da bondade, aproxima-se da Terra e nela lança, com o Evangelho, a semente da paz de espírito e da convivência social. E, hoje, a rude potência da revelação mosaica e a profunda bondade da revelação evangélica se continuam e se fundem na luz da racionalidade científica moderna, que também nos tem ensinado a pensar e que hoje atinge a hora de sua compreensão. Há, desse modo, uma contínua proporção entre a descida das noúres que revelam a Divindade e a capacidade intelectiva humana. Há uma paralela ascensão do Homem e de sua representação conceptual do Centro e uma descida progressiva de verdade, por revelação, uma contínua purificação dos atributos humanos daquele conceito, à medida que o próprio homem purifica os seus.

Em pobres palavras: Deus, verdadeiro Centro dinâmico e conceptual do universo, conta de Si, através da revelação confiada a poucos escolhidos, aquele quantum que a criança humana pode compreender, à proporção que vai crescendo; dizer-lhe mais, sobre um conceito sem limites, seria inútil e perigoso.

Devo falar a respeito de Deus, porque é justamente desse Centro que desce a mais elevada noúre. Assim, a Divindade se avizinha sempre mais do homem, sempre mais viva e sensivelmente se torna real em seu coração, despojando-se pouco a pouco, de todas as reduções impostas pela representação humana e fazendo-se sempre mais verdadeira, sempre mais transparente, em sua essência, ao espírito humano. Tudo isso é, também, um engrandecimento seu, porque a visão se torna vertiginosa; mas, justamente por isso, ela não é concedida senão gradativamente. A idéia de Deus é necessária ao homem, deve estar-lhe próxima para sua vida; deve, para ser útil, proporcionar-se à sua compreensão e necessidade de ação; deve, como representação, manter-se a uma justa distância que ilumine sem cegar, que se revele e se esconda, ao mesmo tempo.

Assim, o grande conceito desce ao mundo por sucessivas aproximações. Inspirados e revelações se encontram unidos em cadeia, na expressão progressiva de um pensamento único e contínuo que governa o mundo. Existe uma grande noúre, que desce, contínua, através de diversos instrumentos e é essa divina unidade de princípio que mantém a continuidade de pensamento através dos ciclos das várias civilizações, ciclos que se rompem e se reatam. É essa unidade originária, que se ramifica no pensamento humano, que mantém uma linha verificável e evidente de desenvolvimento lógico, através das vicissitudes históricas do mundo. Isso prova que é idêntico o centro irradiante e animador dos vários instrumentos registadores, grandes e pequenos, todos coordenados no tempo, sob o mesmo impulso, para a execução da mesma obra da revelação progressiva do pensamento divino. Cada um diz, frequentemente sem saber tudo, uma como que frase sua e da união de todas essas frases sairá composto, depois, um discurso cheio de sabedoria.

Assim se fundiram, num só corpo, as vozes dos profetas do povo de Israel na ideia do Messias. Assim, em expressões mais vastas, se reúne novamente a visão mosaica (que reduziu ao monoteísmo a fragmentação da unidade divina do politeísmo), através de todo o cristianismo, ao atual monismo, que nos apresenta a Divindade não só como única, justa e boa, mas realmente palpitante, qual sensível psiquismo animador, presente em todas as coisas.

Moisés teve que imprimir com um ferrete de fogo, na alma de seu povo, a idéia de um Deus terrível, que para nós é absurda e repugnante, pois fomos acariciados pela piedade de Cristo.

Hoje, o terror é desaparecido, tão mitigada foi aquela vingança que não conhecia piedade, mas subsiste o mistério. Sempre menos se pode impor uma fé aterrorizando a mente e mutilando o conhecimento, e a revelação da bondade é continuada na revelação dos mistérios. Hoje, não se eleva mais apenas o gesto do profeta que diz: Penitência, para aplacar a ira de Deus; nem apenas o gesto de piedade que fala: Bem-aventurados os que sofrem; dá-se porém, a explicação da inflexibilidade da justiça divina e da redenção cristã através da dor, em termos precisos de razão e de ciência. Nada foi modificado do pensamento precedente, pensamento perfeito. Mas, ele foi continuado. O mesmo pensamento, após milênios, é novamente trazido à luz da consciência humana, saída atualmente da minoridade, não mais apenas como ato de fé e estado de graça, mas como uma imprescindível necessidade racional, que aquela mesma doutrina “impõe” para os caminhos novos, únicos que em tempos de perda de fé permanecem ativos, isto é, os caminhos da racionalidade, que é justamente a forma mental de nosso momento. A noúre, em sua profundidade a mesma, traz de novo à luz o Evangelho, substancialmente esquecido, mas agora em forma de ciência.

Esta a necessidade dos tempos, a fim de que o Evangelho seja de novo sentido; para que a moderna concepção do saber não se extravie, ela é chamada às origens, fundida com as antiquíssimas intuições dos iniciados, utilizada no momento da maturidade espiritual atingida como meio de divulgação dos mistérios, entre os quais já não é permitido hoje esconder a verdade.

Unidade – diz hoje a grande noúre, unidade de religiões e de ciência, descoberta de uma consciência unitária de humanidade em torno de um Deus único, ideia central, que deverá salvar e dirigir o mundo na nova civilização do terceiro milênio. Assim, a ciência é recuperada totalmente com a Síntese no ciclo evolutivo das revelações, para preparar no seio da humanidade a maturação de uma nova consciência cósmica. O momento histórico é grave, solene, rico de valores em decomposição e de germes em frenético desenvolvimento, como nos tempos messiânicos. Em meu estado de contínua percepção noúrica, sinto as correntes espirituais do mundo e tenho a sensação viva de iminentes e novas orientações do pensamento humano, que abaterão as resistências de todos os misoneísmos. E me entreguei completamente às forças do Alto, a fim de lançar, entre muitos, uma semente que germinará.

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Observando os ciclos das revelações do passado que mais proximamente se encontram da civilização européia, vemos de início um período heróico, que é sublimação de potência da vontade, explosão da corrente positiva e masculina da vida, o ciclo mosaico e do profetismo hebreu; depois, o período da bondade, que é sublimação do amor, explosão do princípio oposto da vida, da libertação pelo sacrifício, da redenção pela dor. Na primeira revelação, a voz de Deus virilmente diz: “Eu sou”. Na segunda, a mesma voz redime a mulher e eleva a missão criadora do amor. Hoje, a revelação reaparece, equilibrando-se numa pulsação de retorno, para alimentar e impelir para o alto o princípio masculino que afirma e de novo diz: “Eu Sou”, mas não com o terror da força e do mistério e, sim, na potência luminosa da sabedoria.

Jamais na história do mundo a inspiração se apresentou em proporções tão gigantescas como em Moisés, no momento da promulgação da lei no Sinai. A voz emerge de um fragor de batalha, em meio a um terrível desencadear de forças naturais, como condutora de povos e dominadora de paixões; emerge do caos das vicissitudes humanas num ímpeto esmagante de potência. A luta entre as forças do bem e do mal assume um aspecto concreto, desce até a alma dos fenômenos físicos: a terra treme, abrem-se as águas dos mares. Deus é força ante a qual vacilam céu e terra. Indubitavelmente, Moisés transferiu à religião hebraica a sabedoria da iniciação egípcia, que consigo levava como esteio. Mas, foi a grande voz interior da inspiração que o sustentou e guiou nos grandes momentos. O pensamento era, então, densamente revestido de ação e se expressava, súbito, em ato nos acontecimentos; deveria, pois, possuir, em suas origens, a violenta potência energética que lhe permitisse penetrar as densas camadas da matéria e do espírito humano. A verdade devia ser simples, precisa, mas lançada como um projétil e cortante como uma espada para poder penetrar no duro coração do homem. O profeta tinha de ser um condutor de povos e seu pensamento deveria estar armado de potência humana e sobre-humana. A lei de um Deus único devia impor-se por seu poder no seio da idolatria dos cultos vários, devia imprimir-se na consciência de um povo, em meio à anarquia das nações. A solitária e dolorida sublimação mística dos santos do cristianismo ainda não nascera, antes da sutilização na pureza importava trovejasse a força para desbastar o espírito humano.

A cosmogonia mosaica é uma rude e imensa construção ciclópica, reduzida a linhas essenciais para que fosse compreendida; permanece verdadeira até hoje, embora lhe faltem pormenores de desenho arquitetônico. O gesto criador de Deus é material como o gesto do homem, que projetava no céu a multiplicação infinita dos próprios atributos, não sabendo dizer de Deus senão o que a própria evolução psíquica lhe permitia compreender. Aquele gesto se espiritualiza hoje na voz que desce para iluminar e animar a ciência e o pensamento da Gênese retorna, num mais elevado plano de conhecimento.

A Gênese é o primeiro livro do Pentateuco, a que se seguem: o Êxodo, o Levítico, os Números e o Deuteronômio, e foi escrito sob a inspiração de Moisés, enquanto vagueava no deserto com o povo de Israel. Começa com a criação, descreve depois o dilúvio (submersão da Atlântida), a torre de Babel, a história dos patriarcas até José.

O Êxodo é a saída do povo de Israel do Egito e a promulgação da lei no Sinai. O Espírito de Deus é presente a cada momento. No cap. 19 do Êxodo descreve-se um contínuo colóquio entre Moisés e Deus:

1. Ao terceiro mês da saída de Israel da terra do Egito, nesse mesmo dia chegaram à solidão do Sinai.

2. Por isso, partidos de Rafidim e chegados ao deserto do Sinai, estabeleceram nesse lugar os alojamentos e aí Israel esperou, diante do monte.

3. E subiu Moisés a Deus e o Senhor o chamou do alto do monte, dizendo-lhe: Estas coisas dirás à casa de Jacó e anunciarás aos filhos de Israel. (...)

9. O Senhor lhe disse: Virei logo a ti na obscuridade de uma nuvem, a fim de que o povo me ouça a falar contigo e creia em ti perpetuamente. Pois Moisés havia anunciado ao Senhor a palavra do povo.

10. E ele lhe disse: Vai ao encontro do povo e fazer com que todos se purifiquem hoje e amanhã e lavem suas vestes.

11. E estejam preparados para o terceiro dia; porque no terceiro dia descerá o Senhor, aos olhos de todo o povo, sobre o monte Sinai. (...)

16. E ao despontar o terceiro dia, à claridade da manhã, principiaram a ouvir trovões e resplandeceram relâmpagos; e uma densíssima névoa cobriu o monte e o vibrante sonido da trompa retumbava fortemente; e o povo, que se encontrava nas tendas, se atemorizou.

17. E havendo-os Moisés conduzido para fora dos alojamentos, ao encontro de Deus pararam ao pé do monte.

18. E todo o Monte Sinai fumegava, porque o Senhor aí descera em meio ao fogo; e o fumo dele saía como de uma fornalha e todo o monte infundia terror.

19. E o sonido da trompa pouco a pouco se fazia mais forte e mais penetrante. Moisés falava e o Senhor lhe respondia.

20. E desceu o Senhor sobre o Monte Sinai, sobre o próprio cume do monte, e chamou Moisés àquele cume. (...)

25. E Moisés desceu e contou todas as coisas ao povo.

E assim nasceu o Decálogo, da palavra pronunciada por Deus: Cap. 20

1. E o Senhor pronunciou todas estas palavras: (...)

2. Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da escravidão.

3. Não terás outros deuses diante de mim. (...)

18. E todo o povo percebia as vozes, e os raios, e o sonido da trompa, e o monte que fumegava; e o povo, assustado e tomado de medo, pôs-se de longe.

Eis a narrativa do momento culminante da mais poderosa recepção noúrica que o homem conhece.

E o espetáculo é verdadeiramente de uma grandiosidade terrível. A mole imensa, severa e selvagem do Sinai, a recordar o Brocken16, goethiano, a grande montanha de granito, nua e escura, cujo cimo é o trono de Eloim, circundada de legendas pavorosas, ecoando estrondos de trovões; os cumes escondidos nas tempestades de nuvens a mugir, coruscantes de raios; as faldas do monte enegrecidas de massas humanas, efervescente de paixões, lançadas à conquista do próprio destino. Eis o quadro grandioso, o ambiente de sintonização em que se realizou o diálogo entre o profeta e a voz de Deus e entre o profeta e seu povo. A vibração se mantinha na desnuda potência das coisas primordiais. Era o primeiro grande choque cósmico das forças espirituais e se converteu numa atmosfera de revolta e de sangue, sob um céu negro de tempestade, com a matança dos rebeldes idólatras, desobedientes à lei, diante dos quais a ira do profeta quebra as tábuas de pedra, convicto do direito absoluto da verdade, da comunhão com o Alto, da proteção das forças supremas. Sem essa presteza e prepotência de ação, jamais Moisés teria imposto sua autoridade e a nova lei de Deus. A ferocidade humana impunha os caminhos do terror.

O contato com a divina fonte se estendeu continuamente, no seio do povo hebreu, através do profetismo.

Este meu pobre estudo sobre o fenômeno inspirativo manifesta-se, sem que eu o quisesse, com força interpretativa e demonstrativa deste grande fenômeno histórico e teológico, que foi considerado pelos apologistas, ao lado dos milagres, como a coluna probatória da verdade do Cristianismo. E aqui a ciência, finalmente não mais inimiga, dá sua contribuição.

Se a arte divinatória é comum a todos os povos da Antiguidade, o profetismo, entre os hebreus, potencializando-se na concepção monoteísta, se eleva a meio de comunicação direta com a Divindade, prossegue e traduz o pensamento da Eternidade na maturação do destino de um povo e, na espera do Messias, do destino do mundo.

Após o Pentateuco, a Bíblia continua e no livro de Josué, escrito pelo mesmo Josué, sempre por divina inspiração, prossegue a história do povo de Deus. Moisés morreu, mas o divino colóquio não cessa.

Nos quatro livros dos Reis falam Samuel e os profetas Gade e Natã. Precisamente no terceiro desses livros, cap. 19, há uma referência ao profeta Elias que, internando-se no deserto, (...) desejava a morte, e disse:

Basta, ó Senhor, toma minha alma. E se lançou por terra e adormeceu; mas, eis que o anjo do Senhor o tocou e lhe disse: levanta-te e come. Voltou-se ele e viu, perto de sua cabeça, um pão cozido sob as cinzas e um vaso d’água. Então, comeu e bebeu. Fortificado com esse alimento, caminhou quarenta dias e quarenta noites, até o monte de Deus chamado Horebe. Lá chegado, abrigou -se numa caverna. E logo o Senhor falou dizendo-lhe: Que fazes tu aqui, Elias? (...)

E se desenvolve o colóquio. Mais adiante, ainda de Elias fala o livro 4 dos Reis, cap. 2:

11. E enquanto caminhavam e conversavam, juntos, subitamente um carro de fogo, com cavalos de fogo, separou um do outro; e Elias subiu ao céu num turbilhão.

O primeiro livro de Esdras foi por este mesmo, que era de linhagem sacerdotal e doutor na lei de Deus, escrito sob inspiração.

Também o livro de Judite, que lhe segue, é considerado divinamente inspirado.

No livro de Jó, este frequentemente profetiza a respeito de Cristo.

No livro dos Salmos, o rei Davi, instrumento do Espírito, profetiza de Cristo e escreve hinos maravilhosos que são poesia, profecia, sapiência, oração. Em Davi o pressentimento do novo pensamento de Cristo é vivo. Ninguém, antes dele, havia ousado falar de Deus, com tanto amor e confiança, no seio do povo hebreu, que entendia a proteção divina como um domínio severo, cheio de terríveis punições. Davi cantava com sua harpa não mais um Deus que subjugava pelo pavor de suas cóleras e vinganças, mas um Deus doce e bom que se aproxima do homem no esplendor de suas obras:

Os céus narram a glória de Deus

e o firmamento anuncia Suas obras.

Um dia dirige a palavra a outro dia

e a noite a outra noite a relata.

Sem palavras, sem discursos

Entende-se a sua voz,

que se expande por toda a terra

e ressoa até os confins do mundo.

Inspirado é o livro dos Provérbios, ditado pela sabedoria de Salomão, livro cheio de sentenças sublimes.

Inspirado foi o livro da Sabedoria, ao mesmo Salomão atribuído.

Inspirado também é o chamado Eclesiastes.

E eis que surge, na Bíblia, Isaías, o primeiro dos grandes profetas, majestoso nas suas predições referentes ao Messias. Fala após Jeremias, profeta desde os 15 anos, até depois da destruição do Templo e da cidade de Jerusalém, quando, prostrado sobre as ruínas na Cidade Santa, deixou rebentar sua dor nas Lamentações. Vem, a seguir, seu discípulo Baruque, também profeta. Ezequiel começou a profetizar no quarto ano de seu cativeiro em Babilônia; foi o inspirador misterioso, taciturno e terrível, que viu a destruição de Jerusalém, a dispersão dos hebreus e, após, sua volta, a reconstrução da cidade e do Templo e o Reino do Messias.

Profecias relativas ao Messias contém o livro de Daniel, por ele mesmo escrito na corte dos reis caldeus. Seguem os profetas menores: Oséias, Joel, Amós (talvez também mártir); Obadias, Jonas, o náufrago vomitado pela baleia; Miquéias, a quem se deve a célebre profecia sobre Belém-Efrata, onde deveria nascer o Messias; Naum, que predisse a destruição de Nínive e viu sobre os montes “os pés Daquele que anuncia a boa nova”; Habacuque, que, conforme se crê, foi transportado por um anjo até Babilônia para dar alimento a Daniel, prisioneiro na cova dos leões; Sofonias, Ageu, também profeta do Messias; Zacarias, em quem a profecia da vinda do Cristo se faz sempre mais clara, precisando seu ingresso em Jerusalém, sua morte, os trinta dinheiros como preço da traição, a destruição de Jerusalém e a perseguição; finalmente, Malaquias, que anuncia claramente a vinda do supremo Mestre.

Por oito séculos, a ideia viva de Deus assim resplandece na alma de um povo e a mesma luz desce sempre ao mundo, colorindo-se diversamente através de personalidades diversas, mas nunca deixa de ser a voz com que Deus clama, chamando os homens extraviados.

A inspiração se faz auditiva ou visual conforme as disposições do ambiente, mas a corrente é uma só, embora assuma diferentes formas de vibração. Existe um pensamento constante, desenvolvido através de recursos diversos e fragmentado no tempo, mas, apesar disso, coerente e contínuo, testemunhando sua origem de uma fonte única. Essa unidade de ideia manteve coeso um povo trabalhado pelas mais aventurosas vicissitudes até o surgimento de sua flor magnífica – Cristo, depois do Qual se dispersa.

A Bíblia é o mais vasto documento de recepção noúrica mundial, atingindo as mais elevadas fontes. O povo hebreu nos dá o exemplo de um fenômeno inspirativo gigantesco, prolongando-se por séculos e séculos, funcionando como preparação do evento que daria origem à civilização destinada a governar o mundo. Não é possível a dúvida nem a negação em face dos fatos históricos de tal importância. E o Cristianismo foi esperado e preparado por essa elevadíssima mediunidade inspirativa, que agora estudamos, e desses contatos superiores continuamente se tem alimentado e fortalecido no seu exaustivo caminhar.

Em face da narrativa bíblica das visões dos profetas, como a de Isaías, que vê Babilônia destruída, recordando as de S. João; em face das visões terrificantes de Ezequiel, bem como outras, feitas de luz e de bondade, todas grandiosas; em face dessas figuras pensativas de profetas prostrados diante do Infinito, invocando luz e paz para a alma humana em tempestade, eu, que escrevi a demonstração científica da realidade dessas forças tremendas e que as sinto agitarem-se em mim e no mundo, ouço estranhas ressonâncias nas profundezas de minha consciência e me sacode um calafrio de temor. A sabedoria moderna, que matou essa sensibilidade, poderá sorrir ceticamente. Mas, nas lágrimas de Jeremias, no gesto solene de Ezequiel que profetiza, nessa voz concorde que desde Isaías até Malaquias fala de Cristo, e que prossegue até a Voz de Joana d’Arc, que cria uma mártir e salva a França, sinto tão terrivelmente poderoso que não encontro outra postura de espírito além da oração. Tudo mais é inconsciência. Inconsciência num momento em que a Europa inteira se arma, embora trema diante do espectro de uma guerra que sente seria o fim de sua civilização18. Cada gesto profético é dirigido pela mão de Deus. E a Europa será dividida, ao longo de uma frente mediana, em duas partes, a da ordem e a da desordem, em que lutarão objetivamente as forças cósmicas do bem e do mal. Se as forças desagregantes do mal chegarem a vencer as forças construtivas do bem, então as portas da Europa desorganizada se abrirão de par em par diante da ameaça imensa da Ásia, do dragão gigantesco e terrível que já levanta a cabeça, mirando a presa suculenta. Enceguece-o, porém, uma luz, que se irradia de Roma, centro espiritual do mundo. Na Terra e no Céu irrompe uma vastíssima tempestade de pensamento que, em grandes correntes, luta e se lança à conquista da unidade espiritual do planeta.

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A principal ideia desenvolvida pelo profetismo hebreu, num ascensional movimento de evidência e poder, foi a ideia da centralidade espiritual de Jerusalém e da vinda do Salvador do mundo. Sempre mais nítida se faz essa visão, descendo a pormenores, e nela, na contemplação da doce figura do Cristo, se acalmam as tempestades angustiosas do espírito. Alimentada pela vibrante palavra dos profetas, a imagem messiânica se grava e se agiganta na consciência, até aos últimos tempos, em que se sentia, por toda parte, vaga, mas seguramente próxima, a realização tão esperada e predita.

A História, na plenitude da hora romana, continha os germes do desfazimento e da ressurreição, como hoje. Os deuses pagãos vacilavam e o equilíbrio do mundo se deslocava para um novo eixo. Algo abala a civilização até os fundamentos e também o mundo pagão desperta ao primeiro choque, que é sempre de almas, e o manso Virgílio vê:

Ultima Cumaei venit jam carminis aetas;

Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo.

Jam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna;

Jam nova progenies caelo demittitur alto.

Tu modo nascenti puero, quo ferrea primum

Desinet, ac toto surget gens aurea mundo,

Casta, fave. Lucina: tuus jam regnat Apollo.

(...)

Adspice, convexo nutantem pondere mundum,

Terrasque tractusque maris, caelumque profundum;

Adspice venturo laetantur ut omnia saeclo.

(Virgílio, Écloga, IV)

Eis que se aproximam os últimos tempos da profecia de Cumas;

Nasce de novo o grande ciclo dos séculos.

Já retornam a Virgem e os reinos de Saturno;

Uma nova prole desce do alto céu.

Este menino cujo nascimento vai encerrar

A idade do ferro e iniciar para todo o mundo

A idade do ouro, tu, ó casta Lucina,

Protege. Já reina o teu Apolo.

(...)

Contempla o mundo ondulante em sua massa convexa,

E as terras, e os espaços do mar, e o céu profundo;

Vê como todas as coisas se alegram com a vinda do século futuro!

(Virgílio, Écloga IV)

Com Cristo surge, em sua plenitude, um conceito que parece preparado, de há muito, no passado de toda a evolução espiritual da humanidade. Esta já está amadurecida para subir mais um degrau em sua ascensão espiritual e a revelação inicia um novo ciclo. O conceito de bem e de virtude adquire um novo valor e a dor se sublima na cruz como meio de redenção. É anunciada a boa nova de um novo reino dos céus, que está, antes de tudo, no coração dos homens. Atinge-se um novo poder que Moisés não possuía, o poder do amor. “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim revogá-los, mas cumprir”, disse Cristo. (Mateus, V, 17). A revelação continuava.

Seria absurdo querer reduzir a ideia de Cristo a um fenômeno inspirativo, tanto o transcende, tão inadequados são os recursos da observação e da compreensão humanas, porque profunda e completa foi Sua unificação com o Centro conceptual do universo. Para nossa compreensão, temos necessidade de fenômenos mais acessíveis, mais mitigados de potência por motivo de fraqueza humana, menos transparentes de Divindade, a fim de que não pareçam cegar.

Tenho sentido, em meus profundos estados inspirativos, a proximidade de Cristo, não o Cristo reduzido à imagem humana, mas um Cristo real, cósmico, um espirito radiante, centro de atração espiritual em torno do qual gravitam os mundos, Cristo que me inflamou e me tem dado força para viver e trabalhar e a Quem tudo devo. Ele me atrai da vertigem dos céus para os quais me arrasta, de esfera em esfera, fustigando minha carne para que eu possa aligeirar-me e subir, numa visão de sabedoria e de bondade em que minha mente se perde. Outra coisa não sei dizer de Cristo, outra coisa não sou digno de dizer e calo-me.

Sinto que se aproximam para o mundo acontecimentos enormes e terríveis, sinto um distante fragor de tempestade, um vagalhão que ameaça a grande civilização. E são pouquíssimos os que veem e sabem. Tenho implorado para que se veja e saiba. Neste ambiente pesado de ameaças em que louqueja o mundo, meu espírito oprimido não repousa senão na doce visão do Cristo, que acalma as águas enfurecidas e salva o barco que ameaça naufragar. Cristo é verdadeiramente uma força real, sempre presente, a guiar os centros espirituais do mundo, irradiando Sua luz. Conforto- me com Suas palavras, citadas pelo Apóstolo João: “Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas, por enquanto, estão acima de vossa compreensão”. (João, 16, 12). “Tenho-vos dito estas coisas por comparações. Mas, vem a hora em que não vos falarei mais por parábolas, mas, abertamente, vos falarei acerca do Pai” (João, 16, 25). Eram as palavras de adeus. Mas, antes havia dito: “Eu rogarei ao Pai e ele vos dará um outro Consolador, a fim de que permaneça para sempre convosco, o Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; vós, porém, o conheceis, porque ele habitará convosco e estará em vós. Eu não vos deixarei órfãos; voltarei a vós”. (João, 14, 16, 17, 18).

Qual será o sinal dos tempos? O descobrimento completo dos mistérios, que a revelação dá à mente humana, já amadurecida pela ciência. Porque, como já dissemos, a revelação é progressiva e proporcionada ao desenvolvimento da inteligência humana e o Cristo está com ela sempre presente. É chegada a hora em que a mudança da civilização impõe um passo à frente na lenta e progressiva realização do Reino de Deus na Terra, de que o Evangelho não foi senão o anúncio; impõe sua atuação individual e a organização social na coletividade humana, o advento de Cristo à sociedade, a descida do espírito de verdade, de amor, de justiça às instituições, à vida dos povos. O Pentecostes, outrora limitado aos escolhidos, se estende agora a todos os dignos pela bondade e maduros pelas forças intelectivas.

O primeiro gigante da revelação cristã é o próprio S. João. João, alma profunda, intuitiva e ardente, enamorada e triste, impetuosa e sonhadora, João, que inclinava a cabeça no seio do Senhor, perdido nos silêncios da contemplação, penetrava o pensamento profundo de Cristo por um estado de graça que lhe dava o amor. E até muito depois, até S. Francisco, nenhuma força aproximou tanto de Cristo o homem, abrindo de par em par as portas de seu coração, quanto o amor.

O Apocalipse do apóstolo João foi por ele escrito depois de seu Evangelho, pelo ano 96 de nossa era no seu exílio da ilha de Patmos. O nome, em grego, “Apocalipse” significa “revelação”. Esta, que havia tomado o homem pela mão, desde o princípio, para acompanhá-lo até o nascimento de Cristo, agora continuava predizendo os destinos da Igreja, desde seus primeiros combates na terra até seu último triunfo no Céu. É uma visão grandiosa, cheia de mistério:

CAP. 1

1. Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe concedeu a fim de fazer conhecer aos seus servos as coisas que cedo devem acontecer e que Ele, enviando-as por intermédio do Seu Anjo, significou ao seu servo João.

2. O qual testificou a palavra de Deus e tudo quanto viu de Jesus Cristo.(...)

9. Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação, no reino e na paciência de Jesus Cristo, estive na ilha que se chama Patmos, por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus.

10. Fui arrebatado em espírito num dia de domingo e ouvi por detrás de mim uma forte voz, como de trombeta.

11. Que dizia: escreve o que vês num livro (...).

12. E voltei-me para ver quem falava comigo, e voltado vi se-te candelabros de ouro. (...)

19. Escreve, pois, as coisas que viste, as que são e as que devem acontecer depois destas.

A percepção, a princípio auditiva, transforma-se em visual. De quando em quando diz “Eu vi”. A fonte da grande corrente noúrica, porém, é a mesma, não importando em que forma de vibrações sensoriais se materialize para ferir os sentidos. Há um comando explícito da Voz: “Escreve”. Há um aturdimento de sentidos que faz João cair como morto, mas a voz lhe diz: “Não temas, sou eu, o primeiro e o último”.

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Passam-se os séculos. A Voz que havia detido São Paulo na estrada de Damasco repercute numa multidão de mártires. Os primeiros séculos do cristianismo ecoam de vozes, mas, depois, a tenebrosa Idade Média trabalha duramente para reencontrar as fontes do espírito e a tradição se quebra.

Como Sócrates tinha o seu gênio, a voz superior que ele ouvia falar-lhe interiormente, dando nobilíssimos conselhos; também o filósofo Fílon tinha seu gênio. Porfírio e Plotino declaram possuir num espírito familiar sua fonte de inspiração. Como Maomé ouve a voz do seu arcanjo, igualmente Alarico, rei dos Visigodos, se dizia inspirado pela voz de um espírito que o excitava a marchar contra Roma. “Um gênio”, dizia, “sempre me guia: Avante! Avante! Destrói Roma!” Esta última voz talvez fosse barôntica, pois não se elevava pela nobreza de objetivos morais e sociais, nem pureza de inspiração; não merece, pois, atenção.

As vozes elevadas só se encontram no seio de uma grande fé, quando a inspiração é também missão, apostolado, muitas vezes martírio. Só estas são dignas e me interessam.

Se o fio da revelação se rompera, talvez por razões profundas, ou talvez só aparentemente, a fé em Cristo não fora destruída. A ascensão espiritual, culminando nas figuras dos Santos que iluminam, em multidão, a Idade Média, era contínua e laboriosa. As correntes desciam sempre do Alto para os desposórios com a Terra, fecundando-a. E germinavam exemplos de holocaustos no esforço por abraçá-las. A grande emanação do Cristo jorrava ora aqui, ora acolá, como revelação; não mais heróica e guerreira, apocalíptica e tonante, mas apaixonada e gentil, amansando a ferocidade dos tempos com a doçura do amor evangélico. E surgem almas novas, ardendo em paixões mais elevadas. A Força se desmaterializa num perfume de sentimento. A Voz não mais troveja o fragor das batalhas nem o terrível destino dos povos, mas canta as harmonias da criação.

E desponta Francisco de Assis, qual diferente cantor de Deus, que já não é como o rude Moisés, nem o tempestuoso Isaías ou o terrificante Ezequiel, nem mesmo o apocalíptico João! Verdadeiramente, com o Cristo, o mundo do espírito se transformara. A fé se dulcifica com o cântico de um poeta ou uma visão de artista, como se transmuda em beleza a própria verdade que se eleva a um plano mais alto. A fé canta e sorri entre os doces pintores das escolas úmbrica e toscana, gorgeante de crianças graciosas e perfumosas dos suaves semblantes das Madonas. E atinja poetas, artistas ou santos, é sempre a mesma fonte inspirativa que desce do alto e faz do Trecento o século das mais puras criações espirituais. Que importa a forma com que essa inspiração se imprime na matéria? Grande inspirado foi Dante, como foi Giotto e depois Rafael. Sempre, onde se manifesta um pensamento novo, profundo e nobre, o Alto vibra e se dá. O Trecento parece uma descida de anjos à Terra, para rasgar as trevas de um milênio. Foi a primeira dulcificação de costumes, na fé cristã, a primeira grande onda de preparação do reino dos céus. Falo a respeito de forças reais, presentes e decisivas na evolução da civilização. Falo da minha mística Úmbria, onde com tanta suavidade floresceu aquele sonho de fé!

A voz falou pela primeira vez a Francisco (1182–1226) em São Damião, em Assis. Assim relata o acontecimento - Padre V. Vacchinetti em sua Vida de São Francisco:

Existia então, como ainda hoje, no declive da montanha (o Subásio, próximo de Assis) uma capela dedicada a S. Damião. São Francisco gostava de recolher-se na penumbra daquela igrejinha abandonada, a orar diante de um Crucifixo. Um dia estava ajoelhado diante daquela imagem do Redentor (...), e suplicava poder conhecer, finalmente, qual fosse a vontade divina a seu respeito. Eis que, então, ainda banhado em lágrimas e com o coração agitado pelo ardor da oração, tendo os olhos fitos no Crucifixo, o vê avizinhar-se de si, e de seus lábios divinos percebe sair uma voz que lhe diz: “Não vês que minha Igreja está a desabar? Vai, pois, e restaura-a para mim!” E por três vezes se repete o amargurado apelo, a divina oração: Vade igitur et repara illam mihi! (vai, pois, e restaura-a para mim!). (Aquela imagem conserva-se ainda hoje na Basílica de Santa Clara, em Assis). A essa voz, Francisco, tremendo de espanto e comoção, respondeu com entusiasmo: Falo-ei de boa vontade, Senhor! (Libenter faciam, Domine!). E logo se levantou, para iniciar o trabalho.

Esta é a narrativa.

A voz do Alto a descer para salvar os destinos da igreja. O impulso de Cristo volta a manifestar-se presente. Esses fenômenos de exceção não sucedem ao acaso, mas em momentos particulares com objetivos excepcionais. As correntes puras não descem ao nosso plano para curiosidade científica, mas obedecem a equilíbrios profundos, que as guiam para alimentar os valores espirituais do mundo, quando estes vacilam.

De há muito, Francisco procurava, mas ainda não se havia encontrado a si mesmo. Esquecera-se na quadra alegre da juventude, mas era momentâneo o esquecimento: ao primeiro choque sua alma desperta e do íntimo se elevam as realidades do espírito para as quais estava amadurecida. E na prisão dos perusinos e depois na enfermidade em Spoleto, as primeiras visões revelam a Francisco o seu verdadeiro ser. Creio que esses primeiros contrastes interiores sejam o momento psicológico mais decisivo para a compreensão daquele tipo de personalidade e de toda a fenomenologia supranormal que se lhe formou em torno. Esses deslocamentos de equilíbrio interior, que conduzem uma alma do mundo a Deus, projetando-a na vertigem da inspiração mística, têm raízes profundas em que se encontra a chave do mistério. Essas súbitas crises psicológicas não são senão o precipitar do equilíbrio biológico normal, em consequência de impulsos amadurecidos no eterno. E, como sempre, é necessário estudar e compreender o sujeito para entender o fenômeno. Francisco se isolava no silêncio dos bosques e dos montes para orar e para ouvir; essa necessidade de solidão, própria dos inspirados, foi para ele fundamental, especialmente nos mais importantes momentos de sua missão.

“Vade igitur et repara illam mihi!” Nas vizinhanças de S. Damião, o céu e a terra, tudo sorri numa nova luz, como que impregnado da grande emanação espiritual do Santo. A beleza natural parece brilhar em mais profunda beleza de alma. Toda a criação em torno se vivifica no espírito e também ora num impulso de fé, dobrando-se em sintonia para alimentar o fenômeno de Francisco e de sua vibração de amor a Deus. Nos momentos de sua grande inspiração, a natureza também é chamada a colaborar, em harmonia de fé e amor, como uma realidade viva, ardente, também enamorada de Deus, pois a grande recepção noúrica é um concerto imenso em que toda a criação canta em Deus. A inspiração dulcíssima do amor de Cristo se verifica, aqui, não mais entre as tempestades do Sinai, porque a nota de sintonização é completamente diversa, mas na musicalidade doce da paisagem úmbrica, que ainda hoje canta e sobe, simples e mansa, como por humildade, perdendo-se nos esplendores azuis do misticismo. Verdadeiramente, jamais encontrei mais apropriado ambiente de sintonização espiritual que esta paisagem úmbrica.

Francisco, entretanto, não havia compreendido bem. O despertar de uma alma imersa na carne, embora seja ela forte, não pode ser instantâneo. Seu olhar, a princípio, exterior também nos conceitos, está materializado pelas sensações e só mais tarde atinge os profundos significados de espírito. Também com Joana d’Arc aconteceu o mesmo. Mas, depois, o ambiente se purifica, o contato se faz mais vivo, a percepção mais transparente. Aqui, também, embora preso num turbilhão, o fenômeno é progressivo. Não era, pois, a restauração material da igreja de S. Damião, obtida com o transporte de pedras, mas a restauração espiritual de Sua Igreja o que Cristo indicava. “Eu não vos deixarei, voltarei a vós”, Ele já havia dito. Voz universal, ativa e presente, filtra-se no mundo através dos caminhos de quem sente, responde e fala, segundo o poder de cada um para ouvi-la. Que evidência deveria, pois, atingir através de uma alma como a de Francisco!

Tudo está em relação à capacidade individual, à sensibilização espiritual e esta se relaciona com o grau de purificação atingido. Aqui, ressalta em primeiro plano a relação, já notada, entre elevação moral e potência perceptiva da alma, pois, importa um estado de afinidade vibratória para poder obter-se a sintonização. Compreendem-se, assim, os três votos franciscanos – pobreza, castidade, obediência – que azorragam no corpo e nas paixões toda a animalidade humana.

Para sentir a palavra de Cristo, Francisco devia tornar-se semelhante a Ele na dor e no amor, e tão intensamente os teve unidos a Ele que se imprimiram em seu corpo com os estigmas, no incêndio espiritual do Alverne.

No espírito franciscano existe um conhecimento profundo dos caminhos desse laborioso esforço da ascensão espiritual. Basta recordar o episódio da perfeita alegria, em que, diante dos ataques mais cruéis e dos decepamentos mais radicais impostos à natureza humana, Francisco conclui sempre, com um crescendo impressionante de exemplos: “Ó Irmão Leão, escreve que nisso está a perfeita alegria” (I Fioretti, 7). Mas, uma verdadeira técnica de ascensão espiritual, uma descrição dos métodos usados pelo destino para impô-la ao homem, é descrita no cap. 25 de I Fioretti. Encontra-se aí narrada, na forma simbólica da época, o esforço do processo evolutivo do psiquismo humano, que em A Grande Síntese é explicado cientificamente, concordâncias que reciprocamente se iluminam. Um frade sonha que:

(...)ele foi arrebatado e conduzido em espírito a um altíssimo monte, junto ao qual se via um precipício muito profundo; aqui e ali, penhascos fendidos e lascados, rochas desiguais que se elevavam da massa de pedra; era pavoroso o aspecto do precipício. E o Anjo, que conduzia esse frade, empurrou-o, lançando-o precipício abaixo. E o frade, bamboleando e ferindo-se de pedra em pedra, de calhau em calhau, finalmente caiu no fundo do precipício, completamente desmembrado e despedaçado, conforme lhe parecera. E jazendo, assim desacomodado, em terra, disse-lhe aquele que o conduzia:

– Levanta-te, que te é necessário fazer ainda uma viagem maior.

Respondeu o frade:

– Pareces-me um homem imprudente e cruel; vês-me quase morto pela queda, que me despedaçou, e ainda dizes que me levante!

O Anjo, porém, aproximou-se dele e, tocando-o, ligou com perfeição seus membros, curando-o completamente. E depois lhe mostrou uma grande planície, coberta de pedras pontiagudas e cortantes, de espinhos e sarças; e disse-lhe que seria necessária atravessá-las, descalço, até o fim, onde existia uma fornalha ardente, em que ele deveria entrar. Tendo o frade transposto toda a planície, com grande angústia e pena, ouviu do Anjo:

– Entra nesta fornalha, porque assim te é necessário!

Respondeu o frade:

– Pobre de mim! Que guia cruel me tens sido! Vês-me quase morto, por atravessar esta planície e agora por repouso me dizes para entrar na fornalha ardente!...

E, olhando, o frade viu, em torno da fornalha, inúmeros demônios que seguravam forquilhas de ferro e com estas, porque ele demorava a entrar, o arrastaram subitamente para as chamas (...).

(...) E o Anjo que o conduzia, impeliu-o para fora da fornalha, dizendo-lhe:

– Prepara-te, para uma horrível viagem, que ainda tens de fazer!

Recomendando-se, disse o frade:

– Ó duríssimo condutor, que nenhuma piedade tens de mim! Vês como me queimei na fornalha e ainda me queres levar a uma viagem perigosa e horrível!

O Anjo, porém, tocou-o e ele se tornou são e forte. Conduziu-o, depois, a uma ponte, onde não se podia passar sem grande perigo, porque era muito frágil e estreita, muito escorregadia e sem parapeitos; por baixo passava um rio terrível, cheio de serpentes, dragões e escorpiões, que exalavam muito mau cheiro. E disse-lhe o Anjo:

– Passa esta ponte. De qualquer modo deverás atravessá-la.

– Como poderei transpô-la sem cair neste perigoso rio?

– Respondeu-lhe o Anjo:

– Vem após mim, e põe o pé onde eu puser o meu assim passarás bem.

E o frade acompanha o Anjo, como este lhe havia ensinado e chega até o meio da ponte, quando, então, o Anjo ausentou-se num voo e se postou no cume de um monte elevadíssimo, muito longe da ponte. Examinou bem o frade o lugar para onde voara o Anjo; viu-se, assim, sem guia e olhando para baixo viu os terríveis animais que levantavam, do seio das águas, suas cabeças e abriam as bocas, como se preparando para devorá-lo, se ali ele caísse. Estava tão amedrontado que não sabia o que fazer ou dizer, porque não podia recuar nem avançar. Vendo-se em tão grande tribulação e que não teria outro refúgio senão somente Deus, inclinou-se e, abraçado à ponte, e de todo o coração e com lágrimas, suplicou a Deus que, por Sua santíssima misericórdia, o socorresse. Feita a oração pareceu-lhe que lhe nasciam asas; e esperou com imensa alegria que elas crescessem a fim de poder voar até onde se encontrava o Anjo. Depois de algum tempo, pelo grande desejo que tinha de abandonar a ponte, pôs-se a voar. Como as asas, porém, não eram suficientemente grandes para o voo, ele caiu sobre a ponte como também as penas. Novamente abraçou a ponte e, como já havia feito, recomendou-se a Deus. Terminada a oração, de novo percebeu que lhe nasciam asas; mas, como antes, não esperou que elas crescessem perfeitamente: pondo-se a voar, uma vez mais antes do tempo, caiu outra vez sobre a ponte, e igualmente as penas. Percebendo que era a pressa de voar, sem que houvesse chegado o tempo próprio, a causa das quedas, começou a dizer a si mesmo: – Quando me nascerem asas pela terceira vez, esperarei até que sejam tão grandes que eu possa voar sem de novo cair.

E estando assim a pensar, notou que lhe nasciam asas pela terceira vez, mas, esperou que elas crescessem suficientemente. Pareceu-lhe que desde o primeiro surgimento das asas até o terceiro haviam decorrido bem cento e cinquenta anos. Finalmente, levantou voo, dessa terceira vez, com todas as suas forças e chegou até onde estava o Anjo; e batendo à porta do palácio, que atingira com seu vôo (...), começou a olhar as paredes maravilhosas do palácio; e eram estas tão transparentes que ele claramente podia ver os coros dos Santos e tudo que lá dentro se fazia (...). E logo que entrou, sentiu tanta doçura que esqueceu todos os sofrimentos por que havia passado, como se jamais os tivesse sofrido (...).

Eis o caminho da sutilização espiritual, eis o gabinete de experimentação em que se prepararam os estados de ânimo para a recepção das mais elevadas correntes noúricas. Atrás da narrativa cheia de imagens, sente-se o esforço, a luta, o caso vivido, a percepção direta das forças espirituais da vida, ouve-se o eco das assustadoras provas da iniciação egípcia, realizadas nos grandes templos de Tebas ou de Mênfis pelos sacerdotes de Osíris; há nela um senso difuso da ciência do bem e do mal que a alma dolorosamente aprende, como já narravam os mistérios de Elêusis a queda da virgem Perséfone, por obra de Eros, no tenebroso reino de Plutão. E, verdadeiramente, a divina Perséfone, caída no sofrimento do inferno, era o símbolo da alma humana, que expia na vida e na luta pela sua redenção, que cai e se purifica das baixas paixões e reencontra a visão da verdade. Como já disse e repito, o fenômeno noúrico que estamos estudando não é senão o fenômeno da evolução, o fenômeno da ascensão da alma humana. Que a ciência não o isole, mas compreenda que é fenômeno de imensa vastidão em que se precipita o equilíbrio biológico de todo um passado, estabilizando-se num mais elevado equilíbrio de forças espirituais; compreenda que a alma não atinge a percepção inspirativa senão através da dolorosa elaboração dos milênios. Esse lampejo de intuição que lhe permite sentar-se no Alto, diante do trono de Deus, finalmente digna de conhecer a verdade, está no ápice da escala da evolução humana. Concluo com I Fioretti de São Francisco:

A águia voa muito alto; mas, se ela tivesse ligado algum peso às suas asas, não poderia voar muito alto.

A apoteose de Francisco é no Alverne. A corrente divina desce na nova forma de amor desejada por Cristo e a alma de Francisco não a alcança completa senão na plenitude de sua maturidade, no fim de seu caminho terrestre:

Na dura pedra, entre o Tibre e o Arno,

Recebeu de Cristo o último sinal

Que seus membros por dois anos levaram.

Eis, brevemente, a viva narrativa de I Fïoretti:

(...) e São Francisco, de manhã bem cedo, antes do despontar do dia, se põe a orar diante da porta de sua cela, volvendo o rosto para o levante (...). E estando assim, e inflamando-se nessa contemplação, nessa mesma manhã, viu ele vir do céu um serafim com seis asas resplandecentes e flamejantes; e o serafim, num vôo veloz, aproximou-se de São Francisco, tanto que este o pôde discernir, percebendo claramente que tinha diante de si a imagem de um homem crucificado (...). E estando assim admirado, foi-lhe revelado por aquele que lhe aparecia que, pela divina providência, aquela visão lhe surgia de tal forma a fim de que ele compreendesse que, não por martírio corporal, mas por incêndio mental, teria ele de ser completamente transformado na positiva semelhança de Cristo crucificado.

Nessa aparição admirável, todo o monte Alverne parecia arder em brilhantíssimas chamas, que iluminavam todos os montes e vales em derredor, como se o Sol houvesse descido à Terra; e os pastores, que velavam nessas redondezas, vendo o monte incendiado e muita luz em torno dele, tiveram grande medo, conforme depois contaram aos frades, afirmando que aquelas chamas duraram sobre o monte Alverne por espaço de mais de uma hora. Igualmente, ao esplendor dessa luz, que atravessava as janelas das hospedarias da região, alguns tropeiros que iam para Romagna se levantaram, crendo que já fosse dia e carregaram seus animais; e, após iniciarem a viagem, no caminho, viram cessar aquela luz e levantar-se o sol.

(...). Nessa aparição seráfica, Cristo, que se tornou visível, falou a São Francisco certas coisas elevadas e secretas, que jamais em vida o santo quis revelar a ninguém (...). Desaparecendo a admirável visão, após falar durante muito tempo e em segredo, deixou no coração de São Francisco um ilimitado ardor de amor divino; e na sua carne deixou um maravilhoso sinal e imagem da paixão de Cristo (...).

O fenômeno foi tão forte que assumiu forma visual e auditiva e atingiu efeitos físicos permanentes. O espírito do Cristianismo alcançou no Alverne um dos mais elevados vértices de sua realização.

Atingido seu ápice espiritual, a vida de Francisco não mais tinha motivo de continuar sobre a Terra e cede ao cansaço do corpo, esgotado pelo grande incêndio, e se extingue cantando as harmonias da criação.

No “Cântico das Criaturas” a unificação é atingida, a alma se harmonizou com a sinfonia do universo, tudo revive no espírito e à grande corrente espiritual do amor de Cristo que desce ao coração humano, responde, em sintonia, o cântico de toda criação:

(...) Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o senhor irmão Sol que nos dá o dia e nos ilumina (...).

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua e pelas estrelas, que no céu formaste claras, preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Vento e pelo Ar, nublado ou sereno e por todo tempo, pelo qual a todas as criaturas sustentas.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Fogo, com que iluminas a noite. E ele é belo, alegre, robusto e forte.

Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã e mãe Terra (...).

Louvado, sejas, meu Senhor, por nossa irmã a Morte corporal, da qual nenhum homem pode escapar (...).

Os Laudes do Senhor por Suas criaturas são o último canto do grande inspirado, com que a voz interior se cala. A emanação radiante do Divino Centro do Universo, as vibrações espirituais cheias de reflexos do princípio animador de todas as criaturas e de todas as coisas, fundiram-se, numa harmonia única, no espírito daquele que foi, a um só tempo, grande sensitivo, artista, poeta e santo. E o encanto dessa harmonia na qual toda a criação canta em Deus, terá tido seu paraíso no Céu como o fora na Terra.

Falei sobre Francisco com a alma trêmula de veneração e amor, como quem olha um gigante que se encontra na vanguarda do caminho da vida, que se move nos cimos vertiginosos da perfeição que desejaríamos atingir, mas em face dos quais as pobres forças humanas caem, prostradas.

                                                       *********

Falar sobre todos os inspirados desde a Idade Média até nossos dias, seria um enorme trabalho que não poderia caber nas breves páginas deste volume, seria um inútil alarde de erudição, fácil de adquirir, de resto, nas páginas de uma enciclopédia, além de ser ainda um tratado demasiadamente denso para o leitor. Prefiro vaguear, de braços dados às atrações de minha simpatia, que garante a minha compreensão e me permitindo uma visão mais cálida e mais íntima.

Apareceu, pouco depois de Francisco, em Foligno, uma mulher admirável pela sua inspiração, tanto que foi chamada magistra theologorum. Embora desfavorecida de estudos – a bem-aventurada Ângela de Foligno (1249-1309). Diante de certas verdades elevadíssimas, muitas vezes é melhor sonhar, porque as descobre mais facilmente o poeta que o cientista, ou então, o cientista deve fazer-se poeta para saber olhar o mundo com a ingenuidade de uma criança.

Há também na vida de Ângela um período preparatório de maturação, feito de dúvidas e contrastes, da vida mundana que, numa curva do destino, se modifica em uma vida de perfeição moral. Nesse momento, também uma Voz fala, produz um choque e o ser se transforma. Existe sempre um momento crítico na evolução das almas em que os equilíbrios precedentes se precipitam para se restabelecerem novamente num plano mais alto. O despontar do estado inspirativo parece ser a nota fundamental do fenômeno da gênese mística; sempre o encontramos ligado à aparição de estados morais de elevada perfeição. Reaparecem aquelas relações que já, de início, observamos. Ângela ouviu a voz da inspiração na igreja de São Francisco, em Foligno, a poucos passos de distância de seu palácio, enquanto orava. Aquela voz a inflamou de divino amor e assinalou a mudança de sua existência para uma vida de pobreza e contemplação. A recordação de Francisco, falecido há pouco, era próxima, próxima estava, também, sua Assis. A vida mundana se transforma em vida de penitente e paralelamente explode a inspiração. Diz-se que se dirigia à famosa basílica de Frei Elias e Giotto, realizando a pé um trajeto de cerca de quinze quilômetros, sempre absorta em meditação. Retornando certa vez a Assis, pouco além de Spello, onde a estrada começa a subir, ouve o Espírito dizer-lhe: “Acompanhar-te-ei até São Francisco, falando contigo, fazendo-te provar divinas alegrias (...). Eu sou Aquele mesmo que falava aos apóstolos (...), sou Eu, o Espírito (...), não temas (...)”. Despertando de seu êxtase ao ingressar no templo, pôs-se a clamar em presença de todos sua sobrevinda desilusão. Depois concluía, como São Paulo, que, arrebatado ao terceiro céu, confessava: “o olho não viu nem o ouvido jamais ouviu as misteriosas palavras (...)”23. O conceito expresso na tradicional terminologia religiosa permaneceria verdadeiro, embora traduzido para a moderna nomenclatura científica, demonstrativa e exata.

Sempre mais purificada pelo sofrimento e pela renúncia, Ângela se torna mulher famosa, como Rosa de Viterbo e Catarina Benincasa, filha de Jacó, tintureiro de Fontebranda (S. Catarina de Siena). São inúmeros os casos de pessoas que, sem a mínima preparação cultural, muitas vezes analfabetas, sabem argumentar acerca de altos problemas de teologia.

Novamente penso em S. Félix de Cantalice, em S. João da Cruz, em Santa Brígida que afirma haver recebido da voz do Cristo as regras da ordem por ela fundada, em S. Agostinho, que nas suas Confissões assevera também a presença de uma Voz que o guia. Penso em tantos que é impossível enumerá-los.

Certos caminhos, que se abrem aos humildes, parecem dever estar fechados aos sábios. “Há verdades que se recusam a quem as investiga para serem concedidas a quem as sente”, disse Carlos Delcroix. A verdade não se conquista por violência de vontade, mas por estados de sutil penetração de alma. Acrescenta Schuré, em sua obra Grands Initiés, em uma nota à pág. 649:

Les annales mystiques de tous les temps démontret que des vérités morales ou spirituelles d’un ordre supérieur ont été perçues par certaines âmes d’élite, sans raisonnement, par la contemplation interne et sous forme de vision . Phénomène psychique encore mal connu de la science moderne, mais fait incontestable. Catherine de Sienne, f ille d’un pauvre teinturier, eut, dès l’âge de quatre ans, des vision extrêmement remarquables24.

(Os anais místicos de todos os tempos demonstram que verdades morais ou espirituais de uma ordem superior têm sido percebidas por certas almas de elite, independentemente de raciocínio, pela contemplação interna e sob a forma de visão. É fenômeno psíquico ainda mal conhecido da ciência moderna, mas constitui fato incontestável. Catarina de Siena, filha de um pobre tintureiro, desde os quatro anos de idade, teve visões extremamente notáveis. (Schuré, Os Grandes Iniciados).

Esses seres excepcionais se elevam na graça divina, absorvem-lhe a essência e depois descem até junto dos homens para dar-lhes a sabedoria e a felicidade de que se inundou seu ser. Tudo isso foi chamado histerismo. Sabe, porém, a ciência o que é histerismo? Se o soubesse, curá-lo-ia. Isso chamo de simplismo. E se desse suposto mal patológico provêm produtos tão elevados que se impõem à atenção e veneração do mundo e ofuscam a sabedoria humana, se tudo isso é desequilíbrio, bendita seja então essa doença, bendito seja esse desequilíbrio, pois são os caminhos daquela luz que não é atingida pelos sentidos dos sãos e dos normais. Veem- se, pelo contrário, aqui, os sinais de verdadeira maturidade de espírito, que significa a conquista realizada dos mais elevados valores morais, individuais e sociais, aqueles por cuja conquista a humanidade ainda envolvida, vive, sofre e trabalha; tudo isso significa a evolução realizada nos mais altos níveis biológicos, que são os do espírito, de que o homem comum, ainda muitíssimo próximo da animalidade, está imensamente distanciado.

A alma de Ângela maturou-se não no estudo, mas na dor. Analfabeta, por isto, não deixou, diretamente, nenhum escrito. O evangelista do verbo de sua alta intelectualidade foi o irmão Arnaldo, franciscano de Foligno. Em estado de êxtase, ela lhe falava das coisas elevadas que ouvia e a palavra não lhe era suficiente para traduzir. Arnaldo escrevia, buscando atingir-lhe o pensamento sem consegui-lo e quando apresentava a Ângela o escrito, esta se surpreendia, quase não o reconhecendo, e dizia: “Disse eu isso? Não te disse isso. Não reconheço haver pensado como escreves”. Frequentemente, ficava absorta, durante dias, em suas visões. Também neste caso, Cristo é o centro de irradiação; Cristo, que foi precedido por uma corrente que no profetismo hebraico o esperou, agora, no Cristianismo, é seguido por uma corrente que o recorda e em que revive. Assim, essa insigne mulher da Itália alcançou, por elevação de conceito, os mais árduos campos especulativos; raciocinava, com engenho sutil e com tranquila sublimidade, sobre a essência da Divindade e sobre Seus mistérios; alcançava, no campo teológico, uma orientação que os sábios não possuíam; navegava, segura, num mar de abstrações conceptuais que estavam absolutamente acima de seus normais poderes psíquicos. Voava, assim, por intuição, constituindo-se modelo vivo, ela que era mulher inculta, de teologia mística, de coisas transcendentais do espírito, tanto que foi chamada magistra theologorum, isto é, considerada como grande exemplo de sabedoria mística. Em vida, muitos vinham de longe para conferenciar com ela a respeito de difíceis problemas do espírito e da fé; e depois de sua morte, recebeu a homenagem da ciência e das letras da Itália e da Europa.

Uma outra grande mulher apareceu logo após, no cenário da vida, para influir e impor-se à atenção do mundo: Catarina de Siena (1347-1380). Muitíssimo conhecida, não havendo necessidade de se repetir sua história, faz pensar na coroa de delicadas flores que a Idade Média soube produzir. Ávida de solidão desde criança, nela se refugiava para deliciar-se em suas visões. O beata solitudo! O sola beatitudo!, dela também se poderia dizer. Mas esse isolamento não é vazio, é apenas a busca de um ambiente apropriado à percepção interior. Aos 16 anos, tomava ela o hábito de S. Domingos; iniciada uma vida de sacrifício, a potência visual se apura, intensificando-se as místicas visões. Alimentada por estas, desce depois ao mundo para fazer o bem. Começou-se, então, a compreender sua personalidade, formando-se em torno dela uma coroa de compreensão e de admiração e ela se dá totalmente à obra de conforto material e espiritual: ensina, defende, encoraja. Dilata-se, assim, sua vida pública e daí nasce um vasto epistolário, endereçado a papas, cardeais, reis, príncipes, capitães mercenários, homens de Estado, nobres, homens do povo, grandes damas e humildes religiosas. Não escreve, embora o houvesse aprendido miraculosamente, mas dita, como era uso em seu tempo. Nasce, desse modo uma volumosa correspondência que, juntamente com o “Diálogo”, todo escrito em êxtase, forma um monumento, admirável pela pureza de linguagem, beleza de imaginação, profundeza de conceito, altitude de perfeição moral. Propaga, em torno de si, o incêndio de sua elevada paixão e induz, finalmente, o pontífice, exilado na França, a retornar a Roma, realizando assim uma missão política que se assemelha à de Joana d’Arc, que a biosofia venera como sua Patrona.

Pronuncia Catarina, mais tarde, um discurso no Consistório, em presença do colégio dos cardeais, para salvar a Igreja do cisma. Viveu uma vida de lutas e esforços imensos, em que era sustentada pelos seus íntimos contatos com o Alto. Cristo é sempre, como para Francisco, o grande animador dessas vidas que se movimentam como uma emanação de sua força e de seu pensamento. Desta vez, a corrente de pensamento e de paixão desce para salvar a Igreja em perigo. O fenômeno obedece sempre a uma lei lógica de finalidade a que se proporciona. Histerismos, pois, também estes, que tiveram uma missão social, que inspiraram a arte, que forneceram uma produção literária, que interessaram o mundo, que são venerados pelas multidões nos altares entre as coisas santas?

Há um fato que ressalta evidente em todos estes casos, mas especialmente neste: as correntes noúricas não se manifestam jamais através daqueles que parecem os mais preparados, isto é, os poderosos e os sábios, mas preferem os simples e os humildes, escolhendo para instrumento os que parecem ser os últimos dos mortais. Característica do fenômeno que tem seu significado, porque a cultura é um preconceito e o poder uma vontade rebelde, que obstam ao livre fluir das correntes e de sua aceitação.

Há uma necessidade de solidão para a busca da sintonização receptiva: é a solidão dos anacoretas no deserto, dos eremitas nos montes, dos monges nos claustros, necessidade de silêncios do mundo para que neles se possa ouvir a voz da alma. Vêm depois a dor, a renúncia, que distanciam o espírito da Terra e, frequentemente, uma progressão de potência receptiva e de clareza perceptiva, proporcionais à purificação atingida através da dor e da renúncia. Existe na alma um senso de missão que justifica a dor, o esforço, a vida, que anima e sustém o árduo trabalho do apostolado, que tudo guia ao plano da ação.

Aparece, então, frequente e evidentemente, o momento crítico da crise espiritual em que a voz se faz ouvir, distinta, inflamando a vida e jamais se calando. Verifica-se, simultaneamente, uma ascensão moral contínua e, no fundo de tudo,a grande força animadora que fala, vibra e inflama: é Cristo. De Moisés aos nossos dias, temos visto, sempre idêntica, essa potência de divino pensamento descendo e governando o mundo. É uma realidade histórica que não se pode destruir. E frequentemente há, em face dessa grande força, uma imolação de todo o ser, um martírio breve ou demorado de uma vida inteira. Sempre a mesma dor e a ciência de vencê-la num mundo mais elevado, que a mediania não vê. Só isso parece dar o direito e a coragem suprema de falar em nome de Deus. Saberá, pois, a evolução, sozinha, resolver o grande problema e obter a vitória sobre a eterna inimiga do homem - a dor?

É grande o número dos místicos e quando dizemos místico, dizemos inspirados: de Santa Clara a Santa Gertrudes; a Santa Teresa, carmelita de Ávila, reformadora de ordens, célebre por suas visões místicas (1515- 1582); à extática de Paray-le-Monial – comparada ao extático de Patmos, o apóstolo da doçura, João, que havia repousado ao peito do Cristo –, à mística esposa Margarida Maria Alacoque (1647-1690). Nela o colóquio com Cristo é contínuo, intenso, dorido e inefável de alegrias espirituais. Como os profetas e apóstolos, Margarida Maria fala com Deus e recebe uma revelação que transmite à humanidade; mas, tudo isso faz humildemente, silenciosamente, em afetuoso tom menor. Sua ascensão se gradua por colóquios sucessivos em que se revela o plano de sua missão. Por inspiração, recebe mensagens e as transmite entre as quais uma para o Rei Sol, Luis XIV, que não a escuta. É uma característica desses séculos, especialmente na terra latina, essa florescência de mulheres místicas, às quais parece confiada a divulgação do novo sentido de amor trazido por Cristo; a mulher, que não havia aparecido no seio do severo e tempestuoso profetismo pré-cristão, pode agora fazer brotar sua flor de delicadíssima fragrância. O poema gentil de Francisco continua e através dos séculos se estende uma sinfonia de almas harmonizadas em torno de um pensamento único e de uma missão constante: fazer reviver o Cristo na Terra, mantê-Lo presente, a fim de que se realize sua palavra: “Eu não vos deixarei órfãos; voltarei a vós” (João, 14, 18). É o novo cântico que continua o profetismo hebreu, o cântico da realização, na Terra, do Reino dos Céus.

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Assim chegamos aos tempos modernos, em que o fenômeno assume novos aspectos. Poderia referir-me a muitos outros, como Catarina Emmerick, a grande vidente alemã do século XIX. E que dizer de Teresa Neumann, de Konnersreuth, a famosa vidente bávara, a estigmatizada que nas suas visões segue a Paixão de Cristo, revive-a no seu corpo, ouve e repete palavras em grego, hebraico e aramaico, línguas que ela não conhece? Também neste caso, há paixão, amor e dor, sublimação no espírito, o elemento moral elevado ao primeiro plano, a virtude heroica do sacrifício para o bem dos outros. Existe um contato espiritual com Cristo, tão profundo que constitui para Teresa sua principal nutrição e substitui o alimento de que, por lei orgânica, todos têm absoluta necessidade de ingerir para viver.

O fato, que é tendência geral dos místicos, de descuidar-se do alimento material, preferindo o espiritual, faz pensar que nos mais elevados graus de evolução o ser possa conseguir seu reabastecimento dinâmico diretamente de fontes imateriais, sem ter de percorrer o longo caminho dos órgãos digestivos. O estudo, porém, destes problemas colaterais nos levaria a grande distância.

Omiti, para sobre ela falar agora particularmente, pois que se eleva como cimo solitário entre a multidão dos inspirados, quer pela potência da percepção, quer pela vastidão da missão e tragédia do martírio, a grande inspirada, a heroína da França, Joana d’Arc (1412-1431). Seu caso, que é inspirativo por excelência, se distingue sobre o mesmo fundo místico pelo caráter heroico que lhe confere a particular missão imposta pelos tempos. Esta distinção nos é necessária para traçar, com exemplos, as notas fundamentais do fenômeno, as mesmas que nos darão a expressão de sua lei.

Observemos neste caso como as forças superiores organizaram a missão e dispuseram os elementos decisivos na estratégia do destino de Joana. São estes, queiramos ou não, os elementos que individuam o fenômeno e lhe acompanham o desenvolvimento. É a uma consciência das causas, que são essas correntes que iluminam, guiam e querem, que devemos juntar a lógica e inegável concatenação dos efeitos. É a essa história interior que eu vejo, a esse drama que se agita nas profundezas da trama histórica externa que todos conhecem, que dou a maior importância. Lendo novamente, desse modo, a vida de Joana, nos planos mais elevados do espírito, podemos compreendê-la. Para entender esses fenômenos importa haver penetrado a personalidade e toda a vida espiritual do sujeito; é preciso, quando se afrontam essas vidas de missão e de martírio, possuir uma alma sensível a esse mundo de sutis vibrações. De outro modo, seremos incompetentes como um matemático que quisesse resolver problemas sem possuir o senso da matemática. Tal foi Anatole France na sua Vie de Jeanne d’Arc. Nesses casos, o pensamento permanece negativo e não atinge senão a destruição. Reservamo-nos, porém, para o trabalho mais difícil, que é o de afirmar e criar.

Encontramos novamente aqui, como já vimos em muitos outros casos, os elementos do fenômeno inspirativo, que o preparam e o acompanham. Para compreendê-lo, eu o reduzo à sua estrutura essencial, que é um cálculo de forças, imponderáveis e reais, provenientes de centros superiores de emanação noúrica e que descem para unir-se e combinar-se com as correntes espirituais da História e do destino individual.

A elevada origem dessas forças, sua proveniência dos mais altos planos espirituais não padece dúvida no caso de Joana d’Arc. Ela havia feito pintar em sua bandeira, de um lado, as palavras: De la part de Dieu, e do outro o moto Jhesus-Maria25. Este moto ela escrevia em suas cartas, como fazia Santa Catarina de Siena. Isso demonstra que também aqui o pensamento de Cristo era dominante no espírito de Joana. Ela amava imensamente sua bandeira e a quis a seu lado na catedral de Reims, na plenitude do cumprimento de sua missão política e guerreira, quando da coroação de Carlos VII. Do seu estandarte dizia: II avait été à la peine, c’était bien raison qu’il fut à 1’honneur26(Estivera presente nas horas de sofrimento, assim, com mais forte razão deveria estar presente no instante da glorificação) (Proc. I, 187). A última palavra que Joana pronunciou, na fogueira, em face da morte, quando já não se pode mentir, foi Jesus. Além disso, aquele Venho da parte de Deus é a invocação suprema que traz Deus como testemunha, é o juramento que empenha toda uma vida até o martírio. Um instintivo terror impede de mentir, de falar em nome de Deus quando disso não se é digno. Joana, que era uma inspirada e deu sua vida para testemunhar a verdade de suas vozes, não poderia deixar de sentir quão tremenda é esta expressão: Falo em nome de Deus.

A Igreja, que jamais mutilou as capacidades intelectivas humanas, recorrendo, na interpretação do fenômeno de Joana, à tese da sugestão do histerismo e da neurose, nem sequer no momento da maior cegueira, quando Joana foi condenada à fogueira (grande responsabilidade moral para a Universidade de Paris), a Igreja só teve uma preocupação, que foi a de saber se as correntes provinham do Alto ou do inferior, de Deus ou de Satanás, se eram, pois, de verdade e de bem ou de erro e de mal. Essa é a questão fundamental. E se, num primeiro momento, no processo de condenação de 1431, o sereno julgamento é ofuscado por ódios de facção, por interesses, por invejas, por erros do clero local, que se impõem, enquanto o papado (Eugênio IV) está longe e não informado, talvez na própria impossibilidade de salvar Joana, a Igreja se dispôs à mais completa e explícita reparação no processo de reabilitação, empreendido quase imediatamente, em 1456. Esse processo de revisão, iniciado quatro anos antes por vontade do Pontífice Calixto III, do rei Carlos VII e da mãe de Joana, é encerrado com uma sentença de reabilitação, em que a inspirada já aparece em sua linha de santidade, que a coloca nos elevados níveis da inspiração cristã. Finalmente, a própria Igreja, após a beatificação (1909), proclamou a canonização em 1920 e Pio XI, em 1922, declarou-a santa.

No fenômeno inspirativo de Joana D’Arc refulge logo, e sempre mais intensa, esta característica, que considerei fundamental para a pureza da revelação – a altitude espiritual da fonte. Não nos admiremos da diferente compreensão daquele tempo. Uma ideia não poderá ser compreendida no seu século se este é surdo às ressonâncias que ela excita. Quando as almas são surdas a esse gênero de vibrações, então a maioria nega, o fenômeno se refreia numa aparência de falsidade, desaparecendo no silêncio para levantar de novo sua voz mais tarde, quando as almas souberem responder. Nem todos os tempos são capazes de compreender. Assim, Joana dormiu mais de quatrocentos anos e depois despertou; foi esquecida pela frivolidade do século XVIII, negada pelo materialismo, mas despertou na religião e desperta na ciência, que já não pode negar. Quando os tempos são surdos à compreensão, o fenômeno sabe esperar a época de sua ressonância, em que, finalmente, a vagarosa alma coletiva haja sabido atingir sua altitude, condição necessária para o contato da compreensão.

Esse lado moral de que a ciência prescinde é para mim fundamental nesses fenômenos, porquanto, é ele que define o timbre das vozes e estabelece o seu valor. A elevação moral da fonte encontra-se espelhada toda no sujeito, no gênero de vida que lhe é imposto pela inspiração; projeta-se, desse modo, também em nosso mundo, em atos que são garantia de pureza noúrica, o sinal que nos garante estarmos longe daquelas horríveis comunicações barônticas, de que tenho horror como de um íncubo. E a grandeza moral de Joana é triunfante, em todos os momentos. Sozinha contra todos, ela impõe à França sua salvação. É humilde e obediente às suas vozes. Jamais coisa alguma solicita para si, mas dá-se em abnegação completa à sua missão e, para não renegar sua verdade, afronta o martírio. As mesmas forças do Alto a mantêm nesse caminho de pureza, mas, apenas realizado o esforço da vitória e dominada a ameaça de um repouso entre glórias humanas, elas se ausentam de Joana, fazendo-a cair numa prisão. A ascensão moral lampeja mais intensamente na última fase da missão de Joana que, logo após a apoteose do triunfo heroico na Terra é subitamente lançada à conquista da vitória espiritual no céu. É lei das elevadas correntes o dar sempre ao espírito, tudo negando ao corpo. No nível humano, Joana, combatendo os ingleses, que eram a injustiça e a opressão, combatia pela legalidade, que era, então, a base do poder e a forma que naquele tempo assumia a justiça, e por isso faz consagrar Carlos VII em Reims. Só um rei assim coroado poderia, conforme o conceito da época, governar legitimamente diante de Deus e dos homens. Joana usa e suporta a guerra como um recurso indispensável e um mal inevitável, em face da justiça de seus objetivos. Guerra pela salvação da pátria, pela glória de Cristo, pelo triunfo de um princípio de bem coletivo. Joana não é uma partidária da guerra até o extermínio; embora hábil estrategista, inovadora, rápida, inteligente comandante, não amava a guerra, mas a paz. Guerra justa e oferecimentos de paz – é o seu sistema. Em suma, embora no inferno guerreiro a que teve de descer para o bem de sua pátria, sua posição moral encerra sempre o máximo de altitude que as condições do trabalho imposto permitiam. Elevação que foi de todos os instantes, jamais desmentida, coerente e imutável, elevação que avança até a paixão e o martírio. Há também uma progressão ascensional no caminho espiritual de Joana, assinalada pela intensificação de sua dor. Sofrimento e desapego, também neste caso, paralelizam com o avanço da perfeição espiritual. Sempre o mesmo processo de purificação, que é sublimação de espírito. É sempre a dor que põe em relevo a intervenção do Alto, proporcionada, em sua intensidade, à altitude da fonte. Superando as quedas da fragilidade humana, a dor é a garantia indiscutível do valor da inspiração, pois o espírito só se aformoseia se é flagelado. A ascensão é o esforço de sua reação, a dor é a força que o desnuda, purifica-o e lhe dá brilho como a um diamante.

Demonstrado este ponto da elevação inspirativa de Joana D’Arc e da progressão de sua ascensão moral, fenômeno paralelo a uma intensificação de sua dor, depois de haver recordado, também no presente caso, a relação já descrita anteriormente entre sofrimento e progresso espiritual, observemos agora como se comportam as suas vozes, como agem quais forças conscientes. Qual seja a técnica científica de sua descida é outro problema, de que cuidaremos posteriormente.

No caso que estamos examinando, as correntes noúricas revelam uma consciência do momento histórico; sua intervenção supranormal é justificada por uma necessidade excepcional e impelente; sua ação direta, que guia uma camponesinha, uma criança quase analfabeta, é proporcionada aos eventos, oportuna, vitoriosa. A causa, portanto, é supremamente inteligente, de uma potência volitiva e compreensiva superior aos homens, inclusive o escol da época, que formam o fundo cinzento e baixo de vileza sobre que se move o destino radioso de Joana.

O momento histórico não poderia ser mais trágico para a França. Existem uma proporção e uma tempestividade entre ele e a obra de Joana, embora o quadro histórico completo de seu tempo ela não o pudesse ver, não só porque ignorado, mas também porque continha ele germes de longínquos desenvolvimentos, para cuja compreensão seria necessário distanciar-se no momento contemporâneo e obter aquela visão de conjunto que somente à distância de séculos se pode possuir. De fato, a missão histórica de Joana não foi compreendida senão muito mais tarde; os contemporâneos, atentos às coisas próximas, em geral veem pouco ou nada desses destinos de vanguarda.

Naquela época, a civilização europeia, que é civilização cristã, ameaçava ruína. Da Itália, da Alemanha, da Espanha, nada se podia esperar. A Europa está confundida pelo cisma, por contínuas guerras e os infiéis ameaçam do Oriente. A França, esgotada pela Guerra dos Cem Anos, entre heresias e pilhagens está material e espiritualmente prostrada. Importava restituir a paz à Europa, fazer cessar a invasão inglesa que, submergindo a França, ameaçava seu destino e sua missão de desenvolvimento da civilização europeia. Essas coisas, os contemporâneos não poderiam enxergar. As almas, prostradas por longuíssimas e extenuantes lutas, encontravam-se abatidas e a anarquia triunfava. Faltava a centelha que reacendesse a esperança e a coragem. Joana responde à necessidade impelente de arrastar para o Alto a alma coletiva. A História não é feita pelo homem, mas pelas forças imponderáveis que o guiam. E elas intervêm de maneira evidente quando existe um grande motivo e, no caso que examinamos, urgia salvar uma civilização que, criada pelo Alto, pelo Alto foi sempre guiada e protegida.

Olhemos mais de perto o momento histórico.

Desposada com Carlos VI, Isabel de Baviera, ávida, viciosa e traidora, tanto quanto louco era o rei, lhe impõe o tratado de Troyes que, em 1420, abre as portas da França aos ingleses. O rei é abandonado e Carlos VII, seu filho, vem a ser o Delfim da França em 1416. Basta olhar-lhe o retrato. Por amor à vida tranquila, faz-se rebocar, como um peso morto, pesadamente, por Joana, pondo a perder o fruto das conquistas da heroína.

Em 1415, Henrique V da Inglaterra pretende o trono da França e se prepara para conquistá-lo, a fim de fazer dele um só reino com a Inglaterra. A alma da França está dividida por rivalidades e discórdias de partidos. Os ingleses avançam. Em 1420, Carlos VI firma o tratado de Troyes, pelo qual a coroa da França passa ao Rei da Inglaterra. Em 1422 Carlos VI morre e Carlos VII torna-se rei, mas não ainda legitimado pela coroação em Reims, que será obra de Joana. Os pequenos senhores estão divididos, inconscientes do momento, ambiciosos, passivos diante do perigo. Quem salvará a França, governada por um rei irresoluto, empobrecido, abandonado? Urgia uma ação guerreira e política, um impulso que mudasse o curso da História. Esse impulso não poderia provir de nenhum recanto da terra.

Joana nascera em 1412. Aos 13 anos, em 1425, ouve as primeiras vozes. Por quase quatro anos, de 1425 a 1429, escuta-as, amadurecendo a própria preparação espiritual. E ao despontar de 1429 a heroína de dezessete anos entra em ação. São quatro rápidas e progressivas etapas: encontro em Vaucouleurs com o capitão Roberto de Baudricourt, encontro em Chinon com o Delfim, libertação da cidade de Orleãs dos ingleses, coroação de Carlos VII Rei em Reims. Foi em julho que se deu essa consagração. Três anos e meio de incubação do fenômeno, cinco meses e meio para traduzir o pensamento em realidade. O impulso, que não poderia originar-se da Terra, desce do Céu. A centelha que faltava à consciência nacional, Joana a encontra no espírito, grande força também nos eventos políticos. Políticas e guerreiras eram as necessidades do momento e essa é a forma que assume a inspiração. A fonte das correntes inspirativas não é apenas moralmente elevada, senão também supremamente inteligente.

A obra de Joana é, assim, aqui sentida como força ativa que intervém e atua na História. As noúres, que eram bondade e justiça, pensamento e consciência, eram também vontade e energia de ação. E o caso de Joana não é único. A História, como todos os fenômenos, tem sua meta e se desenrola segundo um princípio lógico de desenvolvimento. Vejo nesse desenvolver-se de todos os fenômenos, inclusive no histórico, um último termo substancial, que é a força que os movimenta. Existe uma lei de equilíbrio entre os impulsos de todos os fenômenos e todos são imateriais, conexos, obedientes a uma única lei central, que é Deus. Nos momentos de depressão nas forças diretivas dos acontecimentos humanos, o vazio do inferior, na Terra, atrai, por equilíbrio, uma corrente espiritual do Céu e esta desce por vias inspirativas. Os impulsos do mal têm de ser equilibrados com os do bem. Esta é a lei que faz nascerem os heróis, os gênios, os santos, quando urge uma missão redentora. No momento decisivo da crise que ameaça os sagrados valores do espírito, que sintetizam uma civilização, alguma coisa “tem” que nascer. Por isso, nasceu Joana.

Cristo, a grande força que havia fundado a civilização cristã, velava, sempre presente, pela sua conservação. Desperta, então, o Destino e sacode as almas adormecidas. Carlos VII, embora rei, substancialmente era um nada; Joana, não obstante ser uma pastorinha, substancialmente era a força que explodia a seu lado.

Na História, entra em ação, nos momentos decisivos, a realidade do valor e não a aparência da posição social. E que diferença de armas e de métodos! Joana caminha rápida, reta e seguramente porque maneja as forças do bem, da justiça e da verdade; o rei e seus cortesãos vão pelas estradas tortuosas da dúvida e da traição, incertos, vazios, desunidos. O espírito e o bem tudo governam e Joana os possuía ambos. Ela era uma chama viva, os outros um archote apagado. Eis o segredo de seu triunfo.

A inteligência do centro inspirativo, neste caso de Joana, não é somente provada pela tempestividade da intervenção, pelo seu proporcionar-se aos acontecimentos da época, mas também pelo desenvolvimento lógico inegável que aquele centro imprime ao destino de Joana. A inspiração tinha uma exata meta, constante, um plano de ação complexo que muda de natureza ao longo de seu desenvolvimento, tem um período de preparação para a formação gradual do instrumento.

Observemos de perto como nasce e se desenvolve a inspiração de Joana, qual motor espiritual de toda a sua missão ativa. Reencontraremos muitos dos conceitos já observados. A forma imposta pelas circunstâncias ao desenvolvimento dessa missão, que é confiada a uma adolescente, não poderia permitir os longos períodos de maturação através da dor, que achamos em outros casos. A distribuição das fases é invertida e o fator dor é todo condensado no final. E isso porque o primeiro escopo, em ordem de tempo, é a salvação da França; o segundo é a purificação espiritual da heroína. A dor atinge, pois, somente a segunda fase do desenvolvimento individual da missão, quando o remate da obra política se deu.

Aos treze anos, no verão de 1425, Joana ouve as vozes no jardim da casa de seu pai. Essas vozes são o “leit-motiv” da vida de Joana, sempre presentes, sobretudo nos momentos mais decisivos. Elas se encontram à retaguarda dos fatos, são o centro motor de toda a sua missão. Dos treze aos dezessete anos, do verão de 1425 ao fim de 1428, isto é, três anos e meio dura o período de preparação do instrumento, três anos e meio para que a inspiração se apoderasse inteiramente daquela alma. O fenômeno é progressivo. Antes de a luta exteriorizar-se na terra, através de fatos concretos, deve ela completar-se no espírito, tem de ser antes solidamente estabilizado o equilíbrio interior das forças motrizes do fenômeno. Eis como Joana descreve sua primeira percepção das vozes:

“Losque j’avais 13 ans, j’ai eu une Voix de Dieu pour m'aider à me gouverner; et la première fois, j'eus grand peur. Cette Voix, vint vers midi, en été, dans le jardin de mon père; je

n'avais pas jeuné la veille. J'ai entendu cette Voix sur la droite, du côté de l'église, et je l'entends rarement sans voir une clarté. Cette clarté est du côté oú la Voix se fajt entendre et elle est habituellement très vive” 27 (Proc. 1,52).

(Quando eu tinha treze anos, ouvi uma Voz de Deus, que buscava dirigir-me; da primeira vez, senti grande temor. Essa voz manifestou-se por volta do meio-dia, no verão, no jardim da casa de meu pai. Eu não havia jejuado na véspera. Percebi essa Voz à minha direita, do lado da igreja, e raramente a ouço sem que perceba também uma claridade. Essa luz é vista sempre do meu lado de onde a Voz se faz ouvir e é habitualmente muito brilhante. Processo, 1, 52).

O primeiro sentimento é de medo e também aqui a primeira advertência da Voz é: “Nada temas”: ne crains rien. Mais tarde, quando o costume já houver tranquilizado Joana, a Voz se fará mais forte e segura, iniciando seus apelos de comando: Va, va, fille de Dieu, va28 (...). (Caminha, caminha, filha de Deus, caminha (...) e acrescenta: a missão vem de Deus: De la part de Dieu29 (Da parte de Deus).

As vozes são diversas. A primeira é a de São Miguel, o anjo guerreiro, o santo das batalhas, que guia os exércitos. Chegam-lhe, depois, em auxílio, como que para proporcionar-se melhor, ameigando-se à feminilidade de Joana, outras duas vozes: S. Catarina e S. Margarida. Existem também aí razões de simpatia, de atração e de afinidade de missão.

Esta última santa era representada na capela de Domremy, terra natal de Joana, por uma estátua que ela venerava. A Voz guerreira de S. Miguel desaparece depois, nos fossos de Melun, ao término da missão guerreira da heroína, quando seu destino se eleva pelas vias místicas do martírio. Então, somente falam as duas santas do sacrifício e da virgindade.

Joana vê também um resplendor na direção da Voz. Ouve, vê, tem até sensações táteis e olfativas: as correntes assumem as mais diversificadas formas de vibrações sensórias, mas, acima de tudo, ela ouve. O ambiente de sintonização está inundado de uma paz idílica, de singela musicalidade campestre, cheia de poesia. Nesse ambiente, as correntes espirituais saturam de suas energias a alma de Joana, o veículo que devia, depois, comunicar a transfusão espiritual à alma da França.

Os bosques deviam ser seu ambiente de sintonização preferido, porquanto durante o processo, imersa em vibrações mais baixas e opacas, Joana despendeu maior esforço para ouvir e numa sessão chegou a dizer: “Se fosse num bosque ouviria minhas Vozes”. Joana, naqueles três anos e meio de sua preparação espiritual, como camponesinha que era, vivera no ambiente rural, entre bosques e igrejinhas das aldeias tranquilas, na mais harmoniosa atmosfera vibratória. Nesse ambiente, ela assimilava as correntes, intensificando suas qualidades de ressonância, aperfeiçoando sua afinidade com as mesmas correntes até fundir-se e tornar-se, ela própria, o impulso que lhe foi transmitido.

A primeira voz se manifesta no jardim da casa paterna, continuando-se o contato, prosseguindo a iniciação, não mais com interrupções, mas constantemente, várias vezes por semana, um pouco em toda parte, pelas colinas do Mosa, aonde Joana conduzia a pastar seu rebanho, sob a árvore chamada “das fadas”, pelos bosques que cobriam a região, junto das fontes, entre o canto dos pássaros e o perfume das flores, ao som dos sinos que Joana muito amava e que na verdade, especialmente se grandes, são dotados de uma extraordinária potência de harmonização vibratória. Eram estas as doces vibrações que as correntes espirituais seguiam como vias de descida, como fundo de ressonância, constituindo o harmonioso motivo de matéria sobre que se apoiava a sinfonia divina. O concerto devia ser perfeito, sem dissonâncias, até seus ecos longínquos no mundo físico.

Assim descia a noúre ao espírito de Joana, através da voz interior das coisas boas e doces que se lhe inclinavam em torno em coroa, oferecendo-se como canais de sintonia. Assim se escondem na humildade as grandes coisas.

O ambiente das Vozes é, pois, quase sempre nos campos e em lugares distantes e solitários, onde Joana gostava de refugiar-se. E a campina de Domremy, onde vivia Joana, é ainda hoje verdadeiramente sugestiva pela sua tranquilidade e silêncio.

As Vozes, entretanto, falam também na igreja, outro ambiente místico excelente, isto é, na igrejinha de Domremy e no vizinho santuário de Nossa Senhora de Bermont. Na primeira havia a estátua de S. Margarida e diante dela Joana orava. O santuário de Bermont, isolado em silêncios, entre árvores, era o ambiente afastado, ideal de suas inspirações. A solidão daqueles silêncios era necessária a Joana, a fim de ouvir melhor e ela a buscava para sua preparação. Ocupada em seu profundo trabalho interior, sua alma tinha necessidade de paz no exterior. Nesse ambiente, a camponesinha de Lorena teria feito sua promessa solene, aceitando sua Missão e comprometendo-se com o Céu a segui-la até o fim. A História não assiste a essa íntima cena, em que a alma de Joana deveria haver falado e talvez também lutado longamente com suas Vozes. Certamente Elas estavam presentes como estiveram no Sinai, em Patmos, em S. Damião. Existe na capela de Bermont um Cristo dorido e amargurado a cujos pés a jovenzinha deve ter pronunciado o seu sim, um voto solene recolhido pelo Cristo moribundo e do qual não mais poderia afastar-se. Aquele voto era também de dor e de paixão.

A Lei de Deus desce e se humilha perante o consentimento da alma, porque, respeitando a liberdade desta, respeita a si própria. Somente agora Joana, desenvolvida antes de tudo interiormente, poderia lançar-se pelos caminhos do mundo. O doce período das efusões espirituais está terminado. Iniciar-se-á agora a grande batalha da conquista do martírio.

Disse: lutado. Sim, porque Joana não aceita passivamente, mas discute e frequentemente resiste às suas Vozes. Ela lhes opõe os raciocínios do seu bom senso, que calcula as dificuldades tanto quanto as próprias forças. As vozes eram sempre distintas do seu eu, com o qual às vezes colide, sem se confundirem jamais. Dá-se um encontro entre sua vontade humana e a vontade superior, uma como progressiva tomada desta sobre aquela; mas, não existe qualquer violência que anule vontade e liberdade. Se Joana obedece, é porque anteriormente discutiu, compreendeu, convenceu-se. Forma-se um pacto entre dois seres livres, conscientes e conscientes. As forças do Céu e da Terra são distintas, encontram-se e lentamente se fundem numa força única. Para isso, foi necessário um longo período de incubação, muito mais longo que o da conquista guerreira e do martírio; um período de preparação invisível, antes que o fenômeno pudesse explodir em sua maturidade; um processo de progressivo desenvolvimento antes de atingir sua plenitude.

Se as duas vontades se põem de acordo, permanecem, todavia, distintas, como distintos são os trabalhos a realizar. A vontade mais alta e mais sábia permanece na direção e guia; a outra a segue. No caso de Joana, as Vozes não revelam todo o plano, mas, embora de mostrando conhecê-lo completamente, só lhe comunicam, nos momentos oportunos, a parte dele que interessa à sua execução. O inspirado é, pois, sempre guiado pela mão, como uma criança. A missão é revelada aos poucos e a comunicação se limita ao mínimo necessário. Parece quase que as Vozes amam esconder no silêncio o que a alma não teria força para aceitar, guiando-a, docemente, com o menor dispêndio possível de energias.

Observemos como as Vozes se comportam na vida de Joana. Concluída a tarefa de preparação, Joana é lançada pelas Vozes em sua missão e parte no momento justo. Ela não sabe outra coisa senão isso: Va, va, fille de Dieu, va (...). As vozes, porém, sabem e precisam, imediatamente, quatro objetivos: Vaucouleurs, Chinon, Orleãs e Reims, conexos entre si por uma proporção e lógica de desenvolvimento que ascende a uma única meta. Quando as Vozes não têm de ser precisas não o são. Há um acordo entre a sabedoria do Céu e as exigências dos acontecimentos.

Elas sabem que Orleãs é a chave de toda a posição e que, perdida esta, desabaria a missão, salvar a França do domínio inglês. Orleãs está sitiada desde outubro de 1428. Ao iniciar-se 1429, Joana já se acha em movimento. Reims é o objetivo político que não se pode atingir senão numa segunda fase. Primeiro, a vitória que permita a legitimação e depois a legitimação que confirme a vitória.

A marcha heroica se desenvolve com uma segurança de guia que os grandes chefes daquela época não possuíam. Tudo é predito. Joana, no caos, segue reta como uma flecha. “Malgrado os inimigos, o Delfim se tornará Rei e sou eu quem o conduzirá à consagração”. (Proc. II, 450). Assim afirmou a pequena pastora. Como podia uma tão humilde criatura afirmar isso sem ser louca e se era louca como acertar com tamanha precisão?

Em março, Joana está em Chinon e reconhece o Delfim entre a multidão dos cortesãos:

Par le conseil de ma voix, qui me le révelait. (Proc. 1,56). Quand j’ai vu le Roi pour la première fois il y avait là plus de 300 chevaliers et de 50 torches sans compter la lumière celeste. Et j’ ai rarement des révélations sans qu’il y ait de lumière. (Proc. 1,75). “Je 1’entends rarement sans voir une clarté”30 (...). (Pelo aviso da minha Voz, que mo revelou. (Proc. I,50). Quando eu vi o Rei pela primeira vez, lá estavam mais de trezentos cavaleiros, sob a luz de cinquenta archotes, sem contar a luz celeste. Raramente recebo revelações sem que haja manifestação de alguma luz. (Proc. I,75). Também raramente ouço sem que perceba também uma claridade(...).já havia dito Joana a respeito de sua primeira aparição. Ao falar com o Delfim, ela lê no íntimo de seu espírito, atingindo suas secretas dúvidas, isto é, se ele era filho legítimo de Carlos VI e Isabel. E Joana lhe diz que justamente por sê-lo ela o fará consagrar em Reims.

Um outro sinal se acrescenta: o miraculoso encontro da espada enterrada de S. Catarina, coisa que Joana não podia saber e que lhe foi indicada pelas vozes31. Em Orleãs, a inspiração sustenta a estratégia e a técnica militar com uma capacidade que Joana não podia possuir e que superava a dos chefes de seu tempo. Em poucos dias uma camponesa de 17 anos consegue o que não o puderam fazer, em vários meses, os homens aguerridos da época. Orleãs é libertada. As Vozes são recebidas com exatidão. Joana, porém, sabia que era preciso tudo realizar rapidamente e tem pressa de concluir sua missão guerreira. Importava consagrar no rei a vitória conseguida, completá-la num plano de direito. E avança contra Reims. Na tarde de 16 de julho, Carlos VII entra na cidade, como as Vozes haviam predito. Imediatamente, no dia seguinte, um domingo, é realizada a coroação.

“Gentil Rei” – diz-lhe Joana – “acaba de realizar-se a vontade de Deus, que queria se levantasse o sítio de Orleãs e vos conduzisse a esta sagrada cidade de Reims para receber a Santa Consagração, mostrando, desse modo, que sois o verdadeiro Rei a quem o reino da França deve pertencer”. (Proc. IV, 186).

A França estava salva. As Vozes, que haviam atingido seu primeiro objetivo, já não têm por algum tempo, a precisão e a potência de Domremy. De fato, com que proveito, se seu objetivo é outro? A Pucela havia despertado a alma nacional. O desforço francês por ela preparado avançará e libertará sua pátria. Todas as suas profecias se cumprirão. O ânimo de Carlos VII ressurgirá e quatro lustros mais tarde a França será livre. Era suficiente aquela centelha. As forças haviam limitado sua intervenção ao mínimo indispensável.

Depois de Reims, é outro o objetivo das Vozes e para essa nova meta se dirigem e com ele se harmonizam. As Vozes permanecem em seu método de dizer, guiar, encorajar e promover acontecimentos parceladamente. Aí começa um novo destino de Joana, mas Elas não lho revelam; só falarão claramente na Páscoa de 1430 em Melun; O seu destino sobe, lenta e inadvertidamente, dos triunfos humanos aos triunfos divinos; já não se trata da salvação da França, mas da sublimação da alma de Joana através da dor. E sua paixão começa. É uma vitória maior, que deve consolidar a primeira e fazer de Joana uma santa.

Progressão ascensional do fenômeno, que o conduz a um limite imensamente mais elevado, em que o sofrimento, como já vimos, é o fator fundamental. Para Joana era necessário consolidar e consagrar sua ideia no martírio, que continha algo de maior que a salvação da França e que, no testemunho da morte, devia estender-se ao mundo inteiro. Para que Joana, entretanto, pudesse realizar sua ascensão era indispensável, para ela, a falência de seu triunfo humano, importava que sua grandeza terrena naufragasse na traição e no abandono, por parte dos ingratos em favor de quem ela havia lutado. Não devia ser ela quem colhesse, para si, glórias terrestres. Sua glória devia ser seu puríssimo sacrifício pela França. Recompensas e gozos humanos teriam dissipado completamente essa sutil fragrância do espírito.

Uma vez mais, vemos, no fundo de todas as missões, Cristo a resplandecer, Cristo que atrai a si, na renúncia e no martírio, as almas eleitas. Há, pois, um desenvolvimento lógico no íntimo progredir do fenômeno: o primeiro cuidado das forças superiores foi, assim, despojar a Pucela de todos os triunfos humanos, que naturalmente estavam para envolvê-la, ameaçando seu triunfo maior. Importava avançar ainda mais. As Vozes, porém, guiam com delicadeza, sem esmagar o espírito com uma perspectiva imediata, demasiadamente vasta, que o desoriente, que excite revolta ou temor. Elas o encaminham para a inevitável estrada, conservando-se sempre presentes, embora às vezes pareçam ausentes, mas apenas usam a inteligente estratégia do silêncio.

Na vida eterna de Joana, era chegada a hora da grande vitória e importava afrontá-la com uma grande prova, porque é esta a lei das almas maduras. Até o fim, as Vozes usam a piedade do mistério, fazem-na entrever a libertação, entendida, porém, num sentido espiritual, não lhe revelando que horrível morte a esperava, justamente a que ela mais temia. Falam-lhe, mas suavizam os caminhos da dor. O Alto, diferentemente dos planos inferiores, conhece essa piedade e se não pode evitar o sofrimento é porque este é parte essencial e integrante da ascensão que o mesmo Alto deseja, por ser o caminho da felicidade. Quantas coisas sutis e profundas nos ensina esse ponderado avançar das Vozes pelos caminhos do Senhor!

Somente quando a alma adquiriu a força de olhar, face a face, o martírio, é que as Vozes falam mais claramente. Somente quando Joana foi capaz de compreender o verdadeiro sentido da sua libertação, só então as Vozes lhe disseram: “Encara tudo isso com bom ânimo. Não te preocupes com teu martírio. Entrarás, finalmente, no reino do Paraíso”. E isso porque o significado profundo do fenômeno que estamos estudando se acha na evolução do espírito, no trabalho de sua potencialização, que lhe permita, como vimos em I Fioretti de Irmão Francisco, levantar vôo para superiores planos de vida.

Vejamos, porém, mais de perto os acontecimentos. Depois de Reims, a estratégia de Joana é deixada aos seus recursos humanos. Ela havia trabalhado no baixo mundo humano e é lei que esse mundo devesse reagir: ela havia triunfado demais e não poderia deixar de excitar ciúme e inveja de muita gente. A grandeza a isolava. Os níveis de consciência humana comuns são baixos e os homens não sabem aliar-se senão por interesse, raramente por um ideal. É natural que o conhecimento limitado de Joana, não mais sustentado pelas forças superiores, tivesse logo de despedaçar-se de encontro às astúcias de gente dada a todas as insídias e ela cai vítima da traição. Os homens eram cegos: só enxergavam o interesse mesquinho, por ser próximo e individual. Somente as potências do Alto haviam demonstrado uma superior consciência do momento histórico, dominando no espaço e no tempo. Os homens inferiores são, porém, os mais tenazes e armados de vontade, de astúcia, de mentiras. O plano lógico de Joana era de avançar logo sobre Paris e aí concluir a paz, como vencedora. Carlos VII, por quem lutava, pessoalmente lhe frustra os planos, preferindo um armistício com Paris e uma paz acomodatícia. Todo o impulso moral dado à França por Joana é quebrado: ela é traída pelo seu próprio rei. No momento da ação decisiva, que deveria recolher todos os esforços anteriores, o rei vadia e espera. Em setembro, Joana ataca Paris. Aí se dá a primeira traição. Vários comandantes, não desejando a vitória da empresa, retiram-se da luta. No dia seguinte, anuncia-se que é expressa vontade do rei se abandone a ofensiva.

E a traição continua. A primeira derrota ofusca a auréola da heroína. O povo quer o triunfo, a esmagante persuasão do fato concreto, que tudo justifica, o delito ou o milagre. Em face da derrota, a santa é transformada em feiticeira. Joana permanece cada vez mais sozinha, contra todos. O rei não quer senão mandriar, não cuida de Joana que sonha com a paz. Naqueles tempos, ninguém desconfiava das demolidoras hipóteses do materialismo. Hoje, Joana estaria entre os loucos. Mas, naquela época, só poderia ser ou feiticeira ou santa. Para os franceses, enquanto lhe foi útil com suas vitórias, era naturalmente uma santa. Para os ingleses, por ser inimiga de seus interesses, era uma bruxa, tese que lhes foi querida e que farão triunfar. As nações, como os homens, acreditam que Deus esteja sempre de seu lado, que imaginam ser sempre o lado do direito e da justiça. O pior foi que, por inveja, os franceses, desde a primeira derrota, começaram a considerá-la feiticeira, apertando em torno dela um círculo total e fatal que finalmente a estrangulará. Entretanto, se os séculos se recordam daquele tempo e de todas aquelas personagens insignificantes, é somente em virtude da heroína perseguida que eles quiseram esmagar. Somente a dor, nunca a astúcia ou a força, cria as coisas eternas.

A hora, porém, da maior traição se precipita. O destino tomou resolutamente um novo caminho e as Vozes voltam a falar. Até então se haviam calado. Em face da derrota de Paris, silêncio. “Quando caminhava para Paris, não tive revelações de minhas Vozes” (Proc. I, 146), diz Joana: “não foi nem a favor nem contra a ordem de minhas Vozes”. (Proc.I, 169). As Vozes deixaram, pois, que seu destino de mártir se cumprisse, que a traição, que o condicionava, prosseguisse. Assim também Cristo deixou Judas por ocasião da Ceia. Existe, desse modo, um senso de fatalidade no destino, que, uma vez fixado em suas causas, não mais se pode interromper.

As Vozes encontram de novo a potência de Domremy, numa nova curva decisiva. “Na semana da Páscoa, quando me encontrava nos fossos de Melun, foi-me anunciado pelas Vozes, isto é, por Santa Catarina e Santa Margarida, que eu cairia prisioneira antes da festa de São João e que assim deveria suceder; que eu não me surpreendesse, mas recebesse tudo de bom ânimo, porque Deus me ajudaria”. (Proc. I, 115-116). Estávamos em abril de 1430. São um fato verificado esses períodos de silêncio: parece que a Voz se ausenta e se extingue, todavia, no momento oportuno, ela ressurge, vibrante; compreende-se, então, que ela esteve sempre presente, guiando tudo sem que se revelasse. Silêncios necessários, que fazem parte do plano diretivo, da estratégia dos repousos e dos retornos em que amadurecem os impulsos mais elevados. Joana, pois, deveria cair prisioneira: esta, a vontade de Deus. Requere-se uma nova aceitação, mas, ao mesmo tempo, se encoraja e se promete um divino auxílio que, depois de Orleãs, vai operar o segundo milagre da inabalável firmeza de Joana até à fogueira.

De fato, Joana foi feita prisioneira em Compiègne, por uma nova traição. Entra na cidade sitiada, sem de nada suspeitar, mas, ao fazer uma incursão pelas suas proximidades (o inimigo talvez estivesse mancomunado com os próprios chefes da cidade), os ingleses lhe cortam a retirada. Nesse ínterim, Compiègne levanta as pontes e fecha as portas. Joana teve de render-se e foi aprisionada, em virtude da traição dos próprios franceses. Diz-se que a traição foi regiamente compensada.

Prisioneira! Assim, de mãos a mãos, ela passa aos ingleses, aos quais é vendida, e que pagam alto preço pela rica presa. Os acontecimentos se aceleram. Joana arrasta sua paixão, de cárcere em cárcere, até que se inicia seu processo. Nas mãos dos ingleses, Joana deveria ser considerada uma feiticeira – esta a conclusão preposta a todo processo, porque deveria este servir ao interesse de anular a consagração em Reims, reduzida, desse modo, a um sacrilégio, destruindo com isso a autoridade conferida a Carlos VII por esse novo juízo de Deus. Na incerteza das vicissitudes humanas o povo havia percebido essa milagrosa intervenção divina, que era garantia da legitimidade real. Entretanto, os trezentos homens do processo, tão aguerridos em sabedoria, não compreendiam esta verdade elementar – que todas as suas astúcias e violências, se podiam aniquilar Joana, o rei e a França, não tinham poder de violentar Deus, tampouco aqueles que por Ele eram protegidos, isto é, ligados ao círculo das forças superiores da Divindade. Os juízes, ao buscarem o ponto de contato entre Joana e Satanás assinalaram, ao contrário, o ponto de contato entre a Santa e Deus. Contra ela foram utilizadas as palavras de São Paulo. Sua perseverança foi considerada pecado de orgulho. Melhor não se poderia mentir. Não obstante tanta dialética, tanta pompa de encenação judiciária, tanta fúria de força e astúcia, não puderam cancelar uma sílaba da simples e sublime verdade de Joana. Para destruir o que representava a salvação da França, os juízes procuraram aniquilar a heroína e a santa, pondo em seu lugar a figura de uma feiticeira. Importava inverter a situação e substituir Deus por Satanás. Pobre míopes que não viam que essa inversão de valores era justamente o pedestal da grandeza da santa, porque era a condição de seu martírio! Eles eram a força ignara que o Alto utilizava para a vitória de Joana!

Na Idade Média, era fácil a acusação de feitiçaria. A atmosfera parecia estar saturada da ideia do demônio e, verdadeiramente, com todas aquelas mortes violentas e cruéis, com tantos ódios e vinganças, ela devia estar espiritualmente irrespirável, profundamente impregnada de emanações barônticas.

Joana está sozinha, oprimida, privada até do conforto da religião; sozinha, diante dos insultos dos carcereiros e dos ataques à sua pureza; sozinha, diante de uma terrível assembleia de juízes inteligentes e de má-fé, que tentavam, por todos os meios, arrancar-lhe a renegação de suas Vozes, para terem, assim, o meio legal de condená-la e a forma da justiça fosse salva. Eles criam que aquela ilusão da forma pudesse bastar para sustentar um fato que era mentira e hipocrisia. As forças reais da vida, porém, depois se levantam e impõem a reabilitação. Quando se compreenderão essas leis?

No caso presente, estamos vendo, no entanto, a que extremo de injustiça pode chegar a justiça humana.

As Vozes, porém, falavam com Joana e ela respondia a todos, simples e sublime. Esta é a grande força sem armas, a força do justo e do verdadeiro. Quando são iniciados certos caminhos, não mais se pode retroceder. Dois dramas se desenrolam nesta última fase: o drama exterior – que é o do processo em que a autoridade cega, cheia de ideias preconcebidas, de má-fé, se precipita de erro em erro, até bater a cabeça na fogueira, diante da qual um dos juízes ingleses gritará: “Nós nos enganamos! Queimamos uma santa!” O bispo Cauchon, juiz no processo e a quem Joana havia admoestado mais de uma vez, chorará. Ao lado de tudo isso, desenrola-se o drama interior de Joana, que resplandece sobre o fundo cinzento de tantas baixezas. Neste drama, agiganta-se a grandeza do céu e Joana, destruída, fulgura, replena da potência do infinito. Está sozinha, mas suas Vozes estão com ela. Isso lhe basta. A unificação se completou em Vermont e não mais poderá romper-se, nem sequer na hora do Getsêmani e do Gólgota. São liames que não se desatam no tempo e permanecem além da morte.

As Vozes são piedosas: amparam, não amedrontam. Prometeram a libertação e não mentiram, porquanto se referiam à libertação maior. Não tiravam de Joana a esperança de uma libertação humana, para não a afligirem antes do tempo, para oferecer-lhe uma oportunidade de compreender seu novo esforço e amadurecer, gradativamente, para a grande ideia do martírio. Busca a fuga, espera a salvação material e essa interpretação lhe é deixada como uma doce piedade que mitigue sua paixão. Muitas vezes é benéfica a ignorância das disposições do destino; certas ilusões da alma são frequentemente necessárias para que ela afronte situações que a amedrontariam. As Vozes a encorajam a resistir até à libertação. Só mais tarde haveria de compreender. Ne crains rien – Elas haviam dito desde o princípio.

Era necessária a prova suprema para dar ao mundo o testemunho da origem divina das Vozes. O destino de Joana não tinha de atingir somente o alvo de salvar a França, de santificar sua alma, mas, também, de afirmar ao mundo a verdade do espírito. Joana deu a vida por essa afirmação. Jamais renegou suas Vozes e sempre repetiu seu moto: De la part de Dieu – venho da parte de Deus. E repete no final: Se eu dissesse que Deus não me enviou, eu me condenaria. Verdadeiramente, Deus me mandou. Somente na jornada do cemitério de Saint-Ouen tem um momento de fraqueza humana. Seu cansaço cedeu em face a tantas pressões e astúcias de textos ou talvez se houvesse enganado pensando que aquela fosse a esperada libertação. Vacilou um momento, vencida pela vontade tenaz de seus juízes, que, no entanto, não passava de uma força que desejava sua retratação para condená-la de qualquer modo. São bem humanos esses desânimos que obscurecem o senso de responsabilidade. Joana, porém, apenas readquire alguma força, temeu, em face de suas Vozes, por havê-las desmentido, embora por um momento; e imediatamente recobrou ânimo. E seu último grito, o maior lançado ao mundo, entre as chamas da fogueira de Ruão, foi: Minhas Vozes vinham de Deus.

Testemunho solene, feito em face da morte, quando não se pode mentir; relâmpago de verdade eterna, descida como sempre de uma cruz, verdade provada com o martírio.

Que diz a ciência, dessa espécie de provas? Na apoteose do sacrifício, Joana reafirma, dando por isso a própria vida, as supremas verdades do espírito, testemunhando que elas existem e se atingem através da dor.

No momento supremo, a Pucela de Orleãs encontra o ponto de contato que a une a Cristo; novamente penetra e se fixa, como força palpitante de vida, no plano divino da Sua redenção. E Cristo é seu derradeiro grito, que é de vitória.

Jamais na História, como neste caso, as forças do espírito desceram tão perto da Terra e numa luta corpo a corpo tão resolutamente se impuseram aos acontecimentos humanos; jamais o contraste foi tão vivo, a intervenção tão evidente, nem os acontecimentos foram tão intensamente violentados pelos impulsos do imponderável. Os dois mundos se defrontaram e olharam face a face, desafiando-se. E o espírito venceu.

Já observamos as características fundamentais do fenômeno inspirativo, movimentando-o em seu ambiente tal qual eu o vivi. Dado que coisa alguma sucede na natureza de modo abstrato, mas sempre individuada num caso particular da realidade concreta, não se pode prescindir do sujeito, entendido como organismo físico e psíquico, instrumento através do qual o fenômeno se verifica.

De início, importa particularizar para não fugir à verdade. Somente depois poderemos generalizar. É por isso que não isolo o fenômeno, separando-o da forma concreta de seu ambiente. E esse conhecimento tenho o dever de oferecê-lo, eu, que mais imediatamente o sinto e possuo, pois os outros só poderão obtê-lo por vias mais remotas e indiretas.

Falei a respeito de ciência. Ora, a verdadeira ciência não pode ser um fato exterior, mecânico, adaptável a todos, como habitualmente acontece hoje; é, pelo contrário, uma qualidade interior, um profundo estado de pensamento em que se deve transformar toda a personalidade. Ela deve mudar a concepção e o regime de vida, o modo de sentir e de agir. É algo imensamente diverso do verniz cultural que atualmente, com universidades e láureas, se pode aplicar sobre a epiderme de todos, e que nada vale, pois, substancialmente, nada modifica: se um indivíduo é um selvagem continua perfeitamente um selvagem. É um mecanismo exterior, utilitário. A verdadeira ciência, porém, é uma realidade profunda, totalitária, uma reviravolta de alma, uma religião e uma fé, em face da qual ninguém pode sorrir com ceticismo nem permanecer agnóstico. A verdadeira ciência é apostolado e martírio, não pode nascer da psicologia do lucro.

Tudo isso tive eu de viver para levar a bom termo minha obra. Se não realizei o esforço de uma preparação cultural no sentido comum, tive de realizar um outro, muito maior, de mudar minha própria personalidade, espiritualmente, até o ponto de poder atingir e tocar as fontes do pensamento. Os cursos culturais eu os realizei dentro de mim mesmo, sozinho, face a face do mistério, guiado pelas leis biológicas, sustentado pelas gigantescas forças do imponderável. Não creio nas averiguações humanas. Creio num outro tipo de saber, em que é preciso ser, mais que parecer, e que serve para a eternidade. Creio numa outra sabedoria, em que se movimentam as forças da vida e que nunca pode mentir, porque foi conquistada, a sangrar, na dor. A força do conhecimento só é dada a quem muito tem sofrido diante de Deus. Certas expressões de fé absoluta, certas frases audazes que arrastam, é preciso haver conquistado em face da eternidade o direito de pronunciá-las. Só quem segue o caminho da cruz adquire o direito de julgar.

Atrás de minha produção ultrafânica, como certamente acontece com outros hipersensitivos, se desenvolve toda a história de minha vida eterna, que explode nesta culminância; aí se desenrola todo um drama apocalíptico, em que todas as forças do bem e do mal se desencadearam em torno de mim, lançando-se sobre minha alma para dilacerá-la e sublimá-la. Atravessei sozinho o limitado deserto da desesperação, sem a compreensão de ninguém; na louca dança dos egoísmos, ninguém, jamais, soube oferecer um gesto de amor ao meu ser quebrantado. Agora, porém, já venci. Não mais necessito da compreensão da terra, porque já me chegou a do céu. Deixo aqui a expressão de orgulho, tal como me escapou, humanamente, no primeiro ímpeto, a fim de que minha alma apareça nua, inclusive em sua imperfeição. E agora me inclino, humilhado por tanta felicidade; inclino-me ante meus irmãos da terra, porque todos devemos iniciar e percorrer o longo caminho.

Eis aqui o sujeito. Minha produção intelectual é a explosão da minha paixão de bem, constrangida num organismo científico, a fim de que se impusesse, assim, à racionalidade humana.

Fazer o bem é a mais difícil das tarefas e eu a desejei em grande escala, um bem nascido de meu tormento e que agora caminhará por si mesmo. Esta é a reação de meu sofrimento: o perdão de Cristo. É esta a ideia gigantesca que, na minha obra, se vestiu de fórmulas e conceitos; esta a paixão que se prendeu numa vestidura racional, da qual se rompe, todavia, dando asas ao escrito. Eis em que se transforma a necessidade de amar quando a alma se identifica com as correntes espirituais da inspiração.

Falei a respeito de sofrimento. De que espécie? Físico e moral, simultaneamente. Para compreender minha personalidade importa haver assimilado os conceitos expostos em A Grande Síntese como conclusões no campo da evolução individual e especialmente os seguintes: “Os caminhos da evolução humana”, “A lei do trabalho”, “O problema da renúncia”, “A função da dor”, “A evolução do amor”, “Psiquismo e degradação biológica”. Não os repito. Esses conceitos eu os vivi todos. O ponto de vista com o qual a ciência materialista lança ao patológico esses tipos de personalidade foi por mim destruído completamente. O sofrimento me vem do esforço de realizar minha evolução espiritual, fundido como me encontro num organismo animal que me arrasta para baixo, constrangido a um trabalho que me inclina para baixo, localizado numa atmosfera humana que me atrai para baixo. Verdadeiramente, possui o espírito uma força titânica, para poder realizar seu trabalho em tais condições. No meu esforço, conheci horas turvas e horas de derrota. Os impulsos biológicos do passado são forças reais que reagem e se lançam contra quem queira esmagá-las. Em mim, o espírito, princípio positivo, ativo, que sempre dá gratuitamente, viril na luta, escolheu o maior inimigo – as forças da vida – das quais os homens não são senão os executores inconscientes (instintos) e quis impor-se à matéria, ao passado sobrevivente na animalidade, o princípio negativo, passivo, que sempre requer uma compensação utilitária. Não pode pretender ensinar aos outros quem ao menos não experimentou primeiramente quão é difícil construir-se a si mesmo. Esse esforço, realizado nas profundezas de minha natureza humana, nas raízes dos instintos primordiais, torna indispensável uma tenacidade, um equilíbrio, uma lucidez que se mantêm somente à custa de uma tensão e uma presença de espírito intensas e constantes. Imagina o leitor o que significa ter por antagonista as forças biológicas? Quem vive de instintos e não discute a própria natureza humana, quem vive de acordo com os impulsos milenários e se deixa arrastar pela corrente, não pode imaginá-lo. Eu sou, porém, um revolucionário e um rebelde e todas as forças atávicas se encarniçam em torno do violador que quer superá-las. Tenho vivido dias de tempestades em que todos os vendavais do universo pareciam agredir-me. O bem e o mal são forças reais e na minha hipersensibilidade pude medir-lhes todo o ímpeto. Agonizei em poder de correntes barônticas que desejavam estrangular-me. Disputei e defendi, palmo a palmo, minha estrada, calculando o assalto e a resistência, com a estratégia consciente de quem quer dominar e vencer. Foi uma exaustiva guerra de trincheira. Ao mesmo tempo que me abandonava ao êxtase dos místicos para a ascensão, controlava as posições racionalmente, com objetividade científica, para consolidar as bases. Não se consegue o voo senão através de longas experiências, em que se deve conquistar uma completa técnica. Relatei, em termos científicos, os caminhos das ascensões espirituais dos místicos. E tudo isso não foi senão um dos aspectos do meu sofrimento.

Sobre todas essas coisas devo falar porque esclarece minha inspiração, porque esse doloroso esforço de desprendimento da natureza humana inferior, que fui deixando atrás de mim, sangrando, aos pedaços, ao longo do caminho de minha vida, foi a condição daquela inspiração, preparou-a e explica-a. Assim defino seu tipo, como um estado de hiperestesia nervosa e superpsiquismo intelectual, atingidos através das vias normais que continuam a evolução orgânica darwiniana. Foi através desse esforço de triunfos biológicos que consegui a transformação de minha consciência numa superior dimensão conceptual, que me permite a visão, o uso do novo método de pesquisa por intuição e a captação de noúres, que estão no centro deste estudo.

Expus as relações entre o desenvolvimento espiritual, a ascensão moral e meu tipo de mediunidade num artigo: “Selbstbeobachtete Medialität, Geistige Entwicklung und sittlicher Aufstieg als Faktoren einer hohen Medialität”(“Auto-observação da Mediunidade – desenvolvimento espiritual e ascenção moral como fatores de uma mediunidade mais elevada”.). Apareceu na Zeitschrift für, metapsychische Forschung14, dirigida por Schröder, de Berlim.

Ora, esta chamada mediunidade não é senão a progressiva realização de meu desenvolvimento intelectual, alcançado não por vias culturais exteriores, mas por sensibilização, obtida através da purificação moral e orgânica de todo o meu ser físico e psíquico. Se, como já disse, qualquer emanação barôntica inquinasse o fenômeno, eu tinha, antes de tudo, de eliminar em meu organismo a gênese de tais vibrações; devia distanciar-me evolutivamente delas, evitando correspondência, isto é, não entrando em ressonância com tais ondas, mas, pelo contrário, estabelecendo ressonância com ondas moral e conceptualmente superiores. Como se vê, chego à conclusão, coisa que a ciência ignora, de que a verdadeira cultura é um fato também de caráter moral; que as portas do conhecimento só se abrem a quem se haja tornado digno dele, dando garantias do bom uso que dele fará. Assim como essas vitórias biológicas da ascensão moral não se conseguem senão através dum combate titânico contra as resistências do misoneísmo atávico, também quando o espírito, num incêndio, se empenha na luta contra as atuais leis biológicas, o fenômeno da inspiração está intimamente condicionado àquele doloroso esforço de liberação. Eis porque tive necessidade de falar sobre dor. É justo, é lógico e cientificamente equilibrado que a maior potência e felicidade que a evolução confira, deva ser ganha e compensada pelo esforço da conquista. Tive de falar sobre o sofrimento, porque é este condição de ascensão espiritual e esta, condição da inspiração, que para mim não foi dom gratuito. Por isso, este livro sobre as noúres, como qualquer arrazoado meu sobre mediunidade, deve ser também o livro e o discurso da ascensão moral, da purificação espiritual.

Se algures coloquei a dor como base da evolução (redenção), aqui devo acrescentar que a dor também está posta como base da mediunidade inspirativa. Quantos novos fatores, estranhos e sutis, devemos considerar, fatores do destino, que não se determinam à vontade, que não existem nos gabinetes de experimentação!

Para poder avançar na investigação científica e ver no íntimo das coisas, é indispensável a sutilização do instrumento de pesquisa – a consciência. É necessário, portanto, introduzir na ciência, se quisermos avançar, não mais apenas microscópios e telescópios, raios e instrumentos, mas bondade de vida e retidão de intenções, como correntes positivas que pesam sobre o fenômeno. No meu caso, a relação entre o fator lucidez inspirativa e o fator pureza moral é tão íntima que eu poderia traçar um diagrama para assinalar-lhe o desenvolvimento paralelo: um retrocesso moral é imediatamente seguido de uma turvação de visão intelectual. Profundidade de visão e pureza de registação não se obtêm senão impulsionando sempre mais para as profundezas do ser o processo de purificação, justamente para outorgar-lhe a capacidade de ressonância e de sintonização, por afinidade, com as noúres mais puras, mais profundas, e, por isso, mais poderosas, mais próximas do centro espiritual do universo. Por isso, falei, com referência ao meu caso, de mediunidade progressiva, sujeita a um normal processo evolutivo. Poderia usar a terminologia mística e religiosa, que para mim é equivalente à científica: esta, porém, é mais apropriada a precisar e melhor corresponde à mentalidade hodierna. Somente agora, após estas últimas observações, é possível compreender plenamente a história do meu caso, exposto de início.

Esse sofrimento meu não é, portanto, patológico; sua normalidade é compreensível e justificada pelas condições particulares que atravessa minha personalidade, não equilibrada como a da mediania num ambiente de forças proporcionadas, mas lançada numa fase em que esse equilíbrio sofre desvios violentos pela introdução, no campo dinâmico de minha vida, de novos impulsos.

Para compreender a minha mediunidade, importa compreender-me e a esses problemas, o que não é, pois, uma questão ociosa. Desequilíbrio, portanto? – perguntar-se-á. Sim, é o primeiro desequilíbrio do voo, que já se equilibrou num equilíbrio mais dinâmico e mais ágil; é ele um desequilíbrio que ainda no período de formação foi por mim guiado, a fim de conduzi-lo a estes resultados, e cerceado nos limites de uma intensa produtividade. Sempre dominei esse desencadear de forças para que não me desorientasse e a pseudoneurose caiu, submissa, a meus pés; isso significa um equilíbrio e uma potência mais que normais. E daquela destruição de animalidade, que decepa egoísmos; voracidades, paixões, renasci numa vida maior, numa juventude de espírito que jamais perece. Essa foi minha conquista maior, minha redenção, como Cristo nos indicou, atingida na cruz através da dor. E Ele, primeiramente, obedeceu à Lei para mostrar-nos que até para Ele há necessidade de segui-la e como ela é sentida tanto mais inviolável quanto mais alto se sobe na harmonia da ordem divina. Estes conceitos a ciência não pode compreender, mas se encontram, não obstante, nas bases da evolução humana.

“Se ascendemos aos mais altos níveis, – diz uma registação minha, – parece que a velha forma biológica que se atrofia não mais pode suportar o psiquismo hipertrófico e surgem desequilíbrios aparentes, que a ciência, não sabendo compreendê-los, classifica de patológicos, fazendo-os ingressar nas formas da neurose”. Fixemos nossa atenção, pois, a fim de não nos enganarmos, observando superficialmente e baseando-nos em apenas qualquer sintoma; não confundamos, tão levianamente, o patológico com o supranormal, colocando ambos igualmente fora da lei, que é considerada verdadeira só porque é da maioria. Não elevemos, com essa adoração do tipo médio, um monumento à mediocridade humana e aprendamos, finalmente, a vibrar numa paixão mais elevada, que não seja a do eterno comer e reproduzir-se, orgulhar-se e enriquecer; quebremos, de uma vez, o ciclo em que se repete sempre a animalidade humana! Outra, porém, é a realidade. Cada forma de vida elabora, apenas nascida, suas defesas; e quem abandonou, no caminho do perdão e do amor, nas pegadas de Cristo, seus ataques e defesas, não está por isso desarmado e sabe, igualmente, combater o seu combate. Ele tem o conhecimento e se move num oceano de luz. Embora a agressividade humana estampe em sua alma a derrota de uma hora, ele sente e atrai as forças do universo, tem o poder da sinceridade, da verdade, da justiça, luta por um princípio, por um ideal, e aquelas forças se insurgem como por uma violação de si mesmas e do princípio que as governa, quando quem fala em nome do bem é esmagado. Quem atirou para longe de si as armas da luta humana, apodera-se de outras, mais sutis e poderosas, de uma luta mais digna.

Meu sofrimento provém do fato de o espírito, atingido certo nível, não saber e não poder mais adaptar- se a viver no cárcere sensório do organismo corporal. Quer evadir-se a cada instante, de sua prisão, a prisão do ambiente terrestre. É trágico ouvir cântico da grande pátria distante, invocá-la da terra do exílio e não poder atingi-la. É um contraste maravilhoso e sábio de forças, em que o espírito é constrangido a curvar a sua potência sobre a matéria para sacudi-la, animá-la, atraí-la consigo para o alto, já que não pode desprender-se dela e abandoná-la. Só esse ambiente denso oferece a resistência necessária a fazer dela um campo de exercícios. Eis porque se nasce neste mundo com um incêndio dentro dalma. Esta deve, então, aquietar seu impulso, estudar o ambiente, analisar-se, canalizar suas forças para uma produtividade real. E nessa compressão de impulso o espírito se fortalece, concentra-se, e a alma, repelida para dentro de si mesma por um exterior que não a sacia porque não lhe corresponde, parece encontrar nessa compressão a força para descer às profundezas cada vez maiores, e aí, nas grandes fontes da vida, adquirir potência. Então, e só então, quando se é assim, pela divina sabedoria, introduzido nesse encaixe, se retoma, à força, com a energia do desespero, o caminho da própria evolução biológica e se continua a via das ascensões espirituais.

A sabedoria que criou no passado novos órgãos e organismos, novos instintos e novas disposições psíquicas, obedeceu a essa mesma lei de necessidade de expansão pela compressão, necessidade de vida ou de morte. A evolução é uma força irrefreável e quando se chega a uma encruzilhada – na época paleontológica ou, como atualmente, na fase da evolução psíquica – é indispensável escolher: ou avançar ou morrer. Eu tive de avançar. Muitos, quando chegar sua hora, deverão fazer o mesmo.

Tudo isso serve para fazer compreender porque, como base da minha mediunidade, eu coloco, na condição de fundamentais, o caráter de normalidade, enquanto é fenômeno biológico, e o de progressividade, enquanto é evolução moral. A desarmonia entre o hipertrófico desenvolvimento psíquico e o funcionamento orgânico, necessariamente levado, por progressivas reduções, à atrofia, traz consigo um contínuo e sutil sofrimento nervoso, não localizado, difuso, mas intenso e incessante, como uma verdadeira sensação da vida. Por isso, a alegria de viver se transferiu, inteiramente, para o centro psíquico do espírito. O processo de purificação é tão completo e profundo que interessa também às íntimas camadas do metabolismo orgânico. Esse processo de renovação interior, que cria funções novas, dá uma sensação de agonia à vida no nível físico, porque se realiza nas profundezas do ser; trata-se de uma mudança substancial de formas e de existência; desce até tocar os íntimos movimentos eletrônicos dos átomos e os motos vorticosos que os unem na química celular; é verdadeiramente uma transmutação de órgãos e de substâncias em outras, de diversa composição química e diferente orientação atômica. A substância muda de forma no curso da evolução; é atingida até à alma, de sua estrutura cinética. Esta não é apenas purificação e esforço moral, mas também purificação e esforço orgânico, que penetra no campo da medicina.

Nesses hipersensitivos, a vida orgânica não mais tolera o grosseiro e violento ciclo vegetativo da vida dos antepassados; paralela a essa hipertrofia de psiquismo verifica-se uma inadaptabilidade, não só moral, aos sentimentos dos instintos animais humanos, senão também física, a um funcionamento vital indolente, dificultoso, absorvente de muita energia, qual o da assimilação intestinal, o da respiração, o da circulação sanguínea.

A um certo momento da evolução, tudo isso pesa demasiadamente, tornando-se não mais um veículo de vida, mas uma estorvante massa que o espírito assaz sutilizado não mais pode arrastar, a cujo nível ele não mais sabe descer.

A evolução sempre forneceu exemplos da criação de funções novas. Por que deveria deter-se agora? Pode algo estacionar no universo? E se evolução é ascensão, onde poderá haver criação, agora, senão no campo psíquico? Isso é absolutamente científico, é a continuação, que importa ver, da ciência que todos aceitam.

A medicina fala de atrofias deste e daquele órgão, desenvolvidos nos antepassados e que agora tendem a desaparecer, porque não mais alimentados pelo uso, porque lentamente foram postos fora do ciclo do metabolismo orgânico. A função se desloca ao longo da linha da evolução, à medida que o ser progride, abandonando a forma de expressão do passado e plasmando novas. Para compreender isso, porém, importa haver entendido que a evolução orgânica darwiniana não é senão o último efeito sensível de uma evolução do psiquismo da vida, que em progressivas formas orgânicas se tem expressado e se exprime. E se se fala que, um dia, novos órgãos poderão atrofiar-se, isso sucederá porque a atrofia terá primeiramente atingido o centro psíquico, interrompendo, desse modo, a alimentação energética do órgão interessado através das vias nervosas. A evolução orgânica será sempre a forma exterior de uma evolução psíquica mais profunda, que dirige aquela, e qualquer desvio que esta determine nos órgãos só se verificará quando já houver realizado e estabilizado suas conquistas em planos mais elevados.

Tudo isso devo afirmar porque faço de minha inspiração um caso de evolução também orgânica. Não posso prescindir, no estudo do fenômeno da captação noúrica, do estudo do organismo em que o fenômeno se processa e das profundas mutações que nele, por isso, se verificam e devem verificar-se. Tudo isso é e deve ser conexo: o meu método de intuição é uma superelevação de consciência ao seu limite mais avançado, que se comunica com o outro extremo que, em mim, tende a desaparecer, abandonado ao passado – a estrutura e o funcionamento do meu organismo animal. Quanto mais avança o primeiro mais reage sobre o segundo, modificando-o. O processo de sensibilização espiritual tem ressonância nos mais baixos níveis do mundo orgânico e a purificação moral, nos níveis elevados, se completa, igualmente, pela imposição de uma purificação celular, isto é, de células e tecidos, à substância orgânica. É um fato que com a alimentação introduzimos substâncias químicas que constituem o fortalecimento de nosso organismo. Para o sensitivo, então, que tudo percebe como noúres, isto é, como correntes de emanação espiritual, certas substâncias, vistas em sua mais profunda essência, são instintivamente repelidas como intoleráveis. A grosseira estrutura normal resiste a muitos venenos, a que o sensitivo não pode resistir. Desloca-se a gama considerada média da tolerabilidade e algumas substâncias do regime dietético comum se tornam superlativamente tóxicas. Tóxicas porque o organismo sensibilizado consegue perceber nas substâncias nutritivas emanações que, antes, não percebia; e quando ele houver introduzido em seu organismo aquelas substâncias impróprias, será torturado por aquelas emanações, durante o longo ciclo que não termina com sua eliminação final, através do metabolismo orgânico. Daí a necessidade de observar atentamente os alimentos, pois, pelo mínimo erro, surge uma fonte de novos sofrimentos, além do perigo contínuo de prejudicar-se a capacidade receptiva das noúres. O organismo do sensitivo é uma orquestra ressonante de correntes espirituais e no concerto nada se pode introduzir de heterogêneo, em especial o alimento, diretamente em circulação. Uma substância dissonante continua emitindo sua voz, sua radiação cacofônica, enquanto dela permanecerem traços no organismo.

Como já falei, quanto à verificação do fenômeno, a respeito de esterilização psíquica do ambiente, aqui estou falando sobre purificação celular. E esta deve ser não um fato momentâneo, mas um método dietético constante, um verdadeiro regime de vida. Chega-se, assim, por esta via, a um tal grau de sintonização com a harmonia universal, que já não é lícito violá-la senão à custa de graves sofrimentos, inclusive no campo moral, feito de sutis vibrações e atitudes de espírito. Sente-se, então, a culpa, não como vantagem, mas como dor.

Pureza! Eis ampliado até o campo da medicina o sistema dos místicos. O alimento jamais foi considerado um amigo dos místicos, que viviam sempre entre jejuns. A quantidade pesa. O cérebro deve servir a outras funções e atrai para si a circulação e a nutrição do sangue. O sistema nervoso não mais pode descer ao serviço de uma laboriosa digestão acumuladora de gorduras. O místico é magro e desejaria ser transparente. E, no entanto, é dinâmico, é um contínuo lampejo de energia. Isso mostra que é cem vezes mais vivo e mais jovem. O longo e sinuoso caminho intestinal, em que o alimento permanece até a putrefação, lhe traz inevitavelmente uma nota venenosa à sensação orgânica da vida. Vencida a quantidade, importa atender à qualidade, a fim de que o grosseiro sistema de reabastecimento dinâmico, a que está ligado o psiquismo, dê o maior rendimento com o menor prejuízo possível. Tóxico se torna, então, tudo que contém álcool, as drogas, o fumo, os caldos, a carne (especialmente a que não é branca), tudo que é gostoso e excitante ao paladar e não seja simples e puro produto da natureza. As frutas, as verduras, o peixe e o leite fermentam menos. E depois, a vida ao ar livre, em contato direto com o sol e o ar, com as grandes correntes da vida. É ao ar livre que se realiza a sintonização psíquica que regista as noúres e que se processa também a sintonização de todo o organismo com elas. Por isso, o místico também deve ser um esportista ágil e dinâmico, qualquer seja sua idade, resistente à neve, aos banhos, ao sol, magro, bronzeado, sempre jovem de corpo e de espírito.

A verdadeira saúde é um regime. A medicina hoje preponderante é um desvio de princípios por escopo utilitário. Acrescentar ao recâmbio orgânico substâncias novas para corrigir excessos precedentes, adicionando uma ação violenta para corrigir a natural reação orgânica ao erro cometido anteriormente, é um absurdo; seria necessário, ao invés disso, não fixar as causas maléficas e, quando elas produzissem efeito, pelo menos não flagelar ainda o organismo, mas dar-lhe tempo para digeri-las.

É, porém, cômodo acreditar no milagre, além disso, os remédios se vendem, mas os conselhos sábios, não se encontram à venda e custa esforço segui-los. E assim seja. E desse modo se multiplicam os prejuízos.

É um princípio geral que importa dar ao corpo o que lhe é necessário, como a u’a máquina o seu alimento, o combustível; e isso segundo o trabalho que se exige do organismo. Até poucos anos, a maioria da humanidade só se ocupava em trabalho físico; por isso, a carne lhe era necessária e as refeições pantagruélicas à Luís XIV podiam ser seu sonho e sua necessidade fisiológica. A um tipo de homem, porém, que hoje se vai normalizando, com funções preponderantemente nervosas e psíquicas, aquele sistema é tóxico e, no meu caso, insuportável. Quando o trabalho da vida é quase exclusivamente psíquico, a alimentação deve ser adequada. Isso é lógico. E direi mais. Dia por dia, conforme o trabalho a realizar, físico ou psíquico, a quantidade e a qualidade da alimentação devem mudar, proporcionando-se ao determinado trabalho. E se o trabalho é habitualmente sedentário e intelectual, o regime dietético deve ser também habitualmente vegetariano.

Assim, a espiritualidade se completa nos baixos níveis da evolução orgânica e sobre esta reage, dando também ao organismo físico suas qualidades de juventude perene.

A causa da vida, o seu motor, é o espírito. Quanto mais se é espírito mais se domina a decadência senil e se sente que a morte não mata. Envelhece-se, então, na direção de uma juventude que é plena de força porque é feita de espírito.

Envelheço e não morro, morrerei e viverei sublime experiência!