A Grande Síntese

A visão desses equilíbrios maravilhosos leva-nos ao conceito da função biológica do patológico. Pergunta-se: a doença é, de fato, um estado anormal e sempre uma queda orgânica, ou compensa-se no equilíbrio universal e assume uma função biológica, não apenas protetora, mas realmente criadora?

Inegavelmente, em muitos casos o patológico pode, com a adaptação, tornar-se um estado habitual do organismo, que acaba com ele convivendo normalmente. De fato, o estado orgânico perfeito é uma abstração inexistente na realidade. Na natureza não existe um tipo orgânico perfeito, uma verdade orgânica igual para todos, uma normalidade, termo de referência do valor fisiológico individual; antes, cada um tem seu tipo, possui uma verdade orgânica própria, supera todos os outros desde que saiba lutar e vencer. Na natureza a perfeição é uma tendência jamais alcançada; a saúde é um estado que deve conquistar-se a cada momento; um equilíbrio que se mantém à custa de um trabalho contínuo. Em realidade, cada organismo tem seu ponto fraco, de maior vulnerabilidade e de menor resistência. Assim, o patológico acabou equilibrando-se como um fato mais ou menos constante na normalidade do mundo orgânico, que nem por isso se abate, mas leva consigo, como força já aceita em seu equilíbrio, um lado de sombra. A natureza compensa-se das diferenças no número, completa suas imperfeições misturando sempre os seus tipos que, quanto mais diversos forem, melhor contrabalançarão qualidade e defeitos na reprodução. Estais aqui diante da mesma lei, pela qual o mal condiciona o bem, a dor condiciona a alegria, com o mesmo claro-escuro de contrastes, entre os quais se move e equilibra o mundo orgânico, tanto quanto o mundo ético, o sensório e o psíquico.

Mas existe outro fato. Não apenas o mundo orgânico habituou-se a arrastar normalmente o peso de sua imperfeição; não é só isso que entra na lei de equilíbrio. Essa lei opõe, por espontânea compensação, a cada ponto de maior fraqueza, um ponto de maior força; a cada vulnerabilidade específica, uma resistência própria. A natureza sente o ponto ameaçado e o cerca, reforçando-o com todos os seus outros recursos, órgãos e sentidos que se desenvolvem em proporção maior que a média. Então, não vos alarmeis de qualquer ponto fraco, porque ele pode ter a compensação de uma força.

 Permanecendo ainda no campo orgânico, também vimos que cada assalto patogênico superado produz, em reação, a capacidade de resistência, fortalecendo toda a estrutura das defesas orgânicas. Neste caso, a doença tem função imunizadora e, em contraste e por compensação, traz em si as condições de vitória e de auto-eliminação do patológico. Neste sentido, a doença é condição de saúde, pois que excita a construção de todas as resistências orgânicas. Estas, que vos defendem sem o saberdes, são o resultado de inúmeras vitórias e lutas superadas; são o fruto de vosso esforço, duramente conquistado ao longo do caminho da evolução.

 Mas, existem outras compensações do patológico em outros campos, porque tudo está interligado no universo. Sempre por motivo de compensação, uma imperfeição e um sofrimento físico podem ter uma repercussão criadora no campo moral, determinando um estado de tensão, excitando uma revolta que se manifesta como explosão de força no nível psíquico. Aqui reaparece a função criadora da dor. Sua ação tenaz e penetrante não pode deixar de despertar ressonâncias no âmago daquele psiquismo, sempre comunicante com as formas orgânicas, onde grava marcas indeléveis. Porque a dor não pode, muitas vezes, burlar, para construir, de inopino, a grandeza de uma alma, quase sempre ela se revela totalmente e potencializa, ao máximo, todos os valores e se torna, depois de muito tempo,  escola de ascensão. Se nas almas fracas, por vezes, a dor se resolve numa adaptação passiva, muitas vezes acende luminosidades novas no espírito; então, pode falar-se verdadeiramente de função criadora do patológico. Grande ciência esta, de saber sofrer, que só possuem os homens e os povos que viveram muito, pois significa uma resistência às adversidades que os jovens não possuem. Observai o fenômeno do patológico até suas últimas repercussões e vereis, às vezes, arrancar das almas humanas os gritos mais sublimes e as maiores criações. Muitas vezes um defeito físico, ao fechar para a alma o contato com o mundo exterior, preparou-lhe os caminhos da profunda instrospecção de si mesma, mantendo sempre desperto o espírito, submetendo-o a uma ginástica que o torna gigante. Muitas almas saíram purificadas da maceração de um corpo doente. Um mal físico pode ser a prova imposta pelo destino, no caminho das grandes ascensões humanas. Convido a ciência a explicar como uma doença, uma deficiência orgânica, pode dar tanta força ao espírito, tanta fecundidade ao pensamento, tanta saúde e potencialidade à personalidade; como, em outras palavras, o patológico pode, muitas vezes, conter o supranormal.

A causa, o princípio das coisas, reside no seu próprio íntimo. Os efeitos estão no seu exterior. Cada fenômeno tem um tempo próprio relativo, que lhe estabelece e mede o ritmo de transformação, tem sua velocidade do devenir. A sucessão que, no tempo, passa de causa a efeito, é também uma sucessão de desenvolvimento, que vai do âmago à superfície; é uma dilatação do princípio, em sua manifestação. Assim é o psiquismo. Vedes esse íntimo impulso manifestar-se em toda parte: primeiro na direção da química da vida, mediante a formação do plasma, por seu crescimento, reprodução e evolução; depois na construção dos órgãos internos que, com seu funcionamento orgânico, permitem manter-se vivas as unidades superiores dos órgãos externos, que lhe asseguram a nutrição e a defesa, a vida e a evolução; por fim, na direção geral, impressa em toda essa máquina, sob o impulso do instinto e da razão. Aqui transparece evidente o psiquismo. Em vossas classificações zoológicas, reunis os seres por afinidade morfológica. A anatomia comparada indica-vos órgãos homólogos. Essa homologia vos dá a perceber os parentescos e, com base nessas semelhanças, agrupais plantas e animais em ordens, gêneros, séries e espécies. Não podeis agir doutra maneira, porque partis do exterior e da forma. Isso está certo, porque parentesco de formas significa parentesco de conceito genético, afinidade morfológica e afinidade do princípio animador do psiquismo. Mas não basta. Esses agrupamentos seriam mais compreensíveis se concebidos em sua causa, em seu impulso íntimo determinante, mais do que apenas como forma exterior. É preciso introduzir o fator psíquico na interpretação de todos os fenômenos biológicos, aprofundando a química orgânica  no campo super-orgânico do psiquismo diretor; é mister criar uma ultrazoologia e botânica, que estude o conceito e os parentescos entre os conceitos, as afinidades psíquicas, mais do que as orgânicas, e a evolução do pensamento animador das formas.

   Há três tipos de natureza:

   - O reino físico (mineral, geológico, astronômico) que compreende a matéria.

   - O reino dinâmico (as forças) que compreende as formas de energia.

   - O reino biológico psíquico (vegetal, animal, humano, espiritual) que compreende  os fenômenos da vida e do psiquismo.

 Esta é a trindade das formas de vosso universo. As classificações zoológicas e botânicas não devem ser classificações de unidades orgânicas, mas de unidades psíquicas. É preciso enfrentar objetivamente o psiquismo da vida, a parte mais ignorada e negligenciada por vós, tomando-o como critério nas classificações e o fio condutor da evolução da espécie; observando-o, não mais na construção e funcionamento dos órgãos particulares, mas no movimento que o psiquismo imprime a toda a máquina; coordenando todos os seus atos para metas exatas, que revelam uma vontade exata com proporções de meios ao fim, com lógica e presciência profundas. É unicamente neste campo que reside a solução do mistério dos instintos, a explicação da técnica da hereditariedade, da sobrevivência, da evolução.

 Essa é uma direção inteiramente nova que deveis dar à biologia, à fisiologia e à patologia; uma orientação de acordo com o mais amplo conceito unitário, sem o qual todos os fenômenos, vistos por um único aspecto incompleto, vos parecerão mutilados e inexplicáveis. Sempre que o efeito aproxima-se do psiquismo animador, vos encontrais detidos diante da muralha do incompreensível. Agora as classificações estão feitas; a anatomia vos é conhecida; conhecido é o mecanismo químico da vida; está na hora de descer mais fundo no campo das causas. Mais do que da paciência do coletor de observações, a ciência precisa agora da síntese da intuição; além de gabinetes, de microscópios e telescópios, precisa acima de tudo de grandes almas, que saibam olhar desde seu próprio íntimo, até o âmago dos fenômenos; e saibam sentir, através das formas, a misteriosa substância que nelas se oculta.

 Não é mais tempo de negar um princípio tão evidente. Vimos que toda a evolução, da estequiogênese para cima, dirige-se para as formas do psiquismo, pois para ele se orienta o progresso fenomênico do universo, qual meta racional de todo o caminho. Na massa de fatos coletados e acumulados há um impulso que não se pode deter, uma direção que não se pode mudar. No psiquismo sobrevive o princípio elétrico da vida. Com efeito, tudo o que vive, ou se atrai, ou se repele; traz um sinal de amor ou de ódio; quer e tende irresistivelmente a fundir-se ou a destruir-se. Em cada forma, há um quid psíquico, um motor: é a substância da vida, é a vontade de viver que a sustenta, uma tensão que plasma e guia, um poder que dirige e arrasta a vida. Tirai esse princípio e ela logo cai. Além da aparência da forma vos indico essa substância, que lhe é a causa, desloco e aprofundo o conceito da evolução darwiniana. Vós parais nela diante da realidade exterior, da evolução das formas, do último efeito estampado na matéria. Eu penetro na realidade, partindo da concatenação evolutiva dos efeitos até a concatenação evolutiva das causas. Para mim não é essencial observar as formas que evoluem, a não ser  para seguir as causas que evoluem. Passo do conceito de evolução das formas biológicas, ao de evolução das formas determinantes; passo do estudo da evolução dos tipos orgânicos, mortos, ao estudo da evolução dos tipos psíquicos vivos e atuantes. O conceito darwiniano completa-se, assim, indo da série de organismos para uma "sucessão lógica de unidades dinâmicas".

 De agora em diante a ciência deve dirigir-se para esse centro, sem o qual a máquina da vida não se movimenta, não existe meta, e num instante se arruína, caindo à mercê de princípios menos elevados. Como pudestes crer que um organismo perfeito e complexo, qual o corpo humano, podia manter-se e funcionar sem um psiquismo central regulador? Não basta dizer qual a química da respiração, da assimilação e da circulação; nem verificar o perfeito entrosamento de todas as engrenagens que presidem a essas três funções básicas. Nas profundidades do metabolismo celular existe a presciência do instinto, que realiza por si, sem intervenção da ciência; esta, por vezes, custa a compreender. Há não apenas maravilhoso ritmo de equilíbrios, mas resistências deles a desvios; há autodefesa orgânica, feita de sabedoria imersa nas profundidades do subconsciente; há uma medicina mais profunda que a humana, porque sabe vencer, muitas vezes, apesar dos ataques desta. A elevação térmica do processo febril, a fagocitose, o equilíbrio bacteriológico mantido entre amigos e inimigos, num ambiente saturado de micróbios patogênicos, a contínua reconstrução química dos tecidos, e mil outros fenômenos, fazem pensar numa vontade sábia que conhece e quer essa ordem. Quanto mais o organismo estiver no alto, mais é delicado e vulnerável; mais se torna difícil, por sua complicação, sua sobrevivência; o psiquismo supre, progredindo paralelamente na perfeição das defesas.

 A função cria o órgão e o órgão cria a função. O sistema nervoso criou o funcionamento orgânico e o dirige; o funcionamento orgânico reforça, desenvolve e aperfeiçoa o sistema nervoso. O psiquismo caminha paralelo à evolução dos organismos. Existe uma evolução, nas formas da luta e da seleção, que cada vez se tornam mais psíquicas e poderosas. Há  passagens no funcionamento orgânico, há metamorfoses químicas, que vos escapam e caminham, dirigidas apenas pelo fio condutor desse psiquismo. Na assimilação do intestino, as substâncias desaparecem de um lado, para reaparecerem do outro, completamente transformadas. Para explicar isto não basta o mecanismo da osmose. O alimento digerido todo junto, depois de haver atravessado a grande sala das desinfecções que é o estômago, em contato com as vilosidades do intestino no tubo interno que digere, passa através das paredes deste para os vasos sanguíneos. Nesse processo de diálise, a substância absorvida muda sua natureza química. O processo é tão delicado e em relação tão direta com o sistema nervoso e psíquico central, que uma impressão o altera. Isso é fato da experiência comum. Depois há a viagem do sangue para a distribuição do alimento absorvido, para ligar todas as partes num banho de vida. Com a respiração, o ar cede seu oxigênio e com ele a potência de um raio de sol; o sangue o pega para levá-lo a queimar-se e consumir-se lá embaixo no dinamismo celular dos tecidos e dos órgãos, para depois ressurgir em seu psiquismo. Que laboratório químico! Nele, a cada instante, restabelece-se o equilíbrio. Por sístoles e diástoles vai e volta o impulso da vida, circula o suco energético reconstrutor; a cada instante ferve o trabalho reparador da permuta; multidões de esquizomicetos viajam e param, aninham-se e acorrem, fazem paz ou guerra, levando saúde ou ruína.

 Por meio desse refinamento evolutivo, que culmina no espírito, ao lado da progressiva desmaterialização das formas, o futuro se prepara à preponderância transbordante do psiquismo e prepara um banquete energético extraído de um raio de sol. Sem luta nem assassinatos, repousareis saciados de eflúvios solares, absorvendo diretamente seu dinamismo. Isto acontece em planetas mais evoluídos que o vosso, mas para vós, constitui um futuro ainda distante. Estômago e sangue formaram-se em vós como são agora, e através de idades incalculáveis, portanto, oferecem uma resistência proporcional para manter-se em sua linha atávica de funcionamento. Nem mesmo a venenosa síntese artificial das substâncias alimentares é própria para libertar-vos do animalesco circuito da química intestinal. Nem a introdução direta dos princípios nutritivos no sangue é trabalho adequado para vossa medicina de superfície, grosseira e violenta.

Se olhais em torno de vós, vereis que as formas de vida revelam sabedoria profunda. Mesmo nas individuações da matéria, o ser material é filho de um germe cristalino, de um impulso que emana do infinito, caracterizando-se em sua forma típica de cristal, como o ser vivo o é em sua forma anatômica; quando mutilado, sabe igualmente reparar sua mutilação. Mas em qualquer campo, cada fenômeno é uma afirmação, uma resistência às perturbações, uma vontade de ser em sua forma, uma diferenciação do ambiente para poder dizer: "eu". Nos altos níveis da vida, à sabedoria química do íntimo metabolismo celular acrescentam-se a sabedoria técnica da construção de órgãos e a sabedoria que dirige seu funcionamento, para uso dos objetivos internos e externos da vida. O complexo edifício é um transformismo dirigido para a luminosidade do psiquismo.

Há uma necessidade de beleza nas formas da vida. Aquele material orgânico comum que os seres roubam uns dos outros, comendo-se mutuamente, tende a plasmar-se numa forma que exprime a íntima aspiração estética. Já a própria célula é um pequeno ser vivo, que concentra todas as potencialidades da vida e as qualidades do organismo, porque se move, respira, nutre-se (assimila e desassimila), cresce, segrega, reproduz, nasce e morre, sente o ambiente e reage a ele. Desde sua primeira unidade, a vida muda continuamente, quer exprimir-se sempre em suas formas mais altas e complexas. Há sempre grande necessidade de subir e de revelar em si mesma essa ascensão; ao mesmo tempo, vê-se uma necessidade de prudência, que teme aventurar-se ao perigo de tentativas dirigidas a equilíbrios muito avançados e afastados da segura estabilidade dos equilíbrios já experimentados. Assim, a vida oscila entre as velhas estradas já conhecidas e seguras, já percorridas nas primeiras e mais simples estabilizações de movimento - as mais resistentes aos choques ambientais - entre a necessidade de conservar-se e proteger-se, mantendo-se na linha do passado (misoneísmo), e a necessidade de absorver, em sua estrutura cinética e de tornar suas, assimilando-as, novas linhas de força, obedecendo ao irresistível impulso ascensional da evolução (inovar-se, revolucionar-se). A vida se equilibra assim (até mesmo no campo intelectual e social), entre as tendências conservadoras e as criadoras, e segue adiante na luta entre duas forças opostas: da hereditariedade e da evolução (variações da espécie). A natureza avança, mas com muita prudência. As grandes florescências orgânicas só acontecem em períodos particulares, como aqueles a vós revelados pelas descobertas paleontológicas; períodos de transição rápida, em que os edifícios dinâmicos, muito saturados dos novos impulsos assimilados, precipitam em tentativas de formas novíssimas, em que a vida, depois de longas fases de incubação silenciosa, explode numa inopinada febre de criação. Tentativas nem todas bem sobrevividas, períodos de construções apressadas e monstruosas, mas que lançaram as bases de novos órgãos, de novas espécies, de novos instintos. Hoje, a fase das formações biológicas tornou-se um passado superado. Os seres que vedes, animais ou plantas, são tipos sobreviventes da evolução, vitoriosos na grande luta da vida. Não podeis observar a evolução, mas apenas suas consequências. A elaboração presente acha-se em outro nível.

 Período semelhante, de apressadas e monstruosas criações paleontológicas, viveis hoje, mas não como unidades orgânicas, e sim como unidades psíquicas, com a mesma febre de criação (paixões), com a mesma monstruosidade de formas espirituais (erros e mentiras), com a mesma incerteza e instabilidade. Também no campo psíquico e social, a Lei continua no mesmo ritmo. Também o equilíbrio espiritual do mundo oscilou sempre entre o impulso de conservação e o de revolução. Algumas células sociais tendem a manter-se na senda dos equilíbrios estáveis e seguros, conhecidos, mas fechados, do passado. Outras células personificam as tendências opostas, destróem e reedificam, tentando sempre caminhos novos, em incessante dinamismo; representam o princípio da revolução, diante do princípio da conservação. São os pioneiros que vivem perigosamente, que dão tudo de si e arriscam tudo, que assaltam e atormentam, mas são os únicos que criam. O mundo dormiu por milênios na estase de um ritmo monótono, que voltava sempre sobre si mesmo, nos mesmos pontos que pareciam fixos (princípio de conservação); mas não sabeis que lento trabalho subterrâneo de amadurecimento e de assimilação ocorria no mundo psíquico-social, fazendo com que o equilíbrio estável e fechado se precipitasse um dia na revolução. O segundo impulso oposto das inovações tomou hoje a primazia e a alma do mundo tenta, nas pegadas dos grandes pioneiros que falaram sozinhos, há muito tempo, as criações futuras: criações psíquicas, biológicas. No resto deste século vosso trabalho individual e de massa decide a respeito dos futuros milênios.

 Naquelas fases primordiais das formações orgânicas, a maleabilidade do plasma dobrou-se à pressão do explosivo psiquismo interior, ávido de expressar-se, modelando as formas. Ao lado da formação de órgãos internos cada vez mais complexos, houve uma florescência exterior de todos os meios de ataque e defesa, que a luta contínua impunha. A planta estende suas gavinhas como órgão preênsil para agarrar: produz no espinho a primeira garra para ofender; inventa a astúcia de economizar movimento, lançando sementes aladas ao vento, ou pregando-a nos animais que passam; a arte de envolver as sementes de saboroso fruto, não para alegria do homem, mas porque este, ao comê-lo, leva involuntariamente para longe as sementes; a arte dos perfumes e a estética das cores e das formas, porque também a beleza atrai e é grande necessidade no baixo mundo biológico: a beleza, ao lado da luta, é necessidade universal e protege, como um dom sagrado e divino que dá alegria, diante do qual o agressor pára, quase reverente, detido pelo medo de perturbar a harmonia divina. Todos os segredos da mecânica, da química, da eletricidade são utilizados: nascem patas, asas, antenas, chifres, tenazes, bicos, presas, ferrões; a arte sutil dos venenos, da fosforescência, do hipnotismo, das ondas elétricas; o psiquismo retifica no olho as imagens visíveis; a arte dos sentidos desenvolve-os cada vez mais finos e complexos, sempre de atalaia; não há descoberta humana que antes não tenha sido encontrada e utilizada pela natureza.

 Todos esses meios sábios são utilizados com sabedoria ainda maior. Os tecidos são regidos por uma força racional que lhes guia as funções, por isso, o tubo digestivo que digere o plasma, não digere a si mesmo; as glândulas que segregam o veneno, não envenenam a si mesmas. Há ainda o mimetismo, a arte da mentira, e também, a da fuga para os fracos. Por que falta somente uma - a arte da compaixão? Porque esta é conquista mais alta, a que só o homem saberá chegar e, como verdadeiro rei, só ele saberá conceber dominando toda a vida no planeta. No uso dos órgãos e instrumentos de ataque e de defesa, a vida manifesta mais evidente seu psiquismo. É ciência sem piedade, mas é ciência. A natureza assegura a sobrevivência das espécies construindo organismos em grandes séries, lançando germes no campo da vida com a máxima prodigalidade. A fonte primária, que brota no âmago da substância, aparece-vos com um poder ilimitado e inexaurível; o que lhe delimita a expansão, a força que freia a multiplicação dos seres, reside sobretudo na limitação dos meios ambientais, limitação da qual nasce a luta cuja função principal é a seleção do melhor. Sem a rivalidade do vizinho que modera sua expansão, cada espécie sozinha invadiria todo o planeta. A Lei é sábia e alcança seus objetivos. Aparece, assim, a vida como desenfreada concorrência de apetites, em que tudo é obtido com a força ou com a astúcia. Este é o nível do animal que não tem horror a seu estado, porque sua sensibilidade é proporcional a ele. O animal é feroz com toda a inocência e nem por isso é imoral, mas simplesmente amoral. Nesse nível a vida é contínua guerra, é um atirar-se a ataques aos quais apenas os mais fortes resistem, esse é o estado normal. Aí a bondade é fraqueza e falência. A bondade é flor mais delicada que a sabedoria; nasceu  depois, muito mais no alto na escada da evolução. Mas aquela sabedoria já era profunda. O instinto conhece química, anatomia; em alguns casos sabe até anestesiar o inimigo, com injeções nos gânglios nervosos, no ponto estratégico que paralisa os movimentos. Uma espécie de himenópteros, necessitados de provisões imóveis, mas vivas, conhecia anatomia e anestesia antes do homem. O instinto tem previdências incríveis, sobretudo em seres primitivos.

 Um exemplo entre os coleópteros: a larva lignívora do capricórnio (cerambix miles) nascida cega, surda, sem olfato, com apenas um pouco de paladar e de tato - esse rudimento de sensibilidade que nenhuma aquisição psíquica pode obter no ambiente (no caso, é um tronco de carvalho, onde vive perfurando e digerindo) - esse pobre tubo digestivo possui uma sabedoria imensamente superior à sua organização e a seus meios, comporta-se com uma racionalidade e presciência extraordinárias. Prepara, com antecipação, um caminho de saída do tronco, que não poderia furar no estado de inseto perfeito; constrói, perto da saída, uma cavidade para sua maturação de ninfa; fecha-se dentro dela com o corpo orientado para a saída, pois sem essa precaução o inseto adulto, todo encouraçado não poderia dobrar-se para sair. E tantas outras coisas sabe por antecipação! Donde lhe vem essa ciência? Não sabeis responder. Mas pensai que, se a forma visível é um verme, ele sintetiza em seu psiquismo o princípio que resume todas as formas que o inseto assume e que, em sua vida, adotou há milênios; pensai que esse verme traz em seu psiquismo a recordação de todas as experiências vividas como inseto perfeito; em outros termos, o fenômeno está sempre potencialmente completo, mesmo na  fase de transição que vedes, porque, se a forma mutável se transforma, o psiquismo animador está sempre todo presente a cada momento de suas sucessivas manifestações. Então, no psiquismo estão os recursos dessa ciência superior às aparências da forma. Chamastes a isso de instinto e não sabeis explicar, num instinto, uma racionalidade tão previdente. O instinto não é inferior à razão humana, a não ser pelo campo mais limitado que domina e pelo fato de que, sendo, como evolução, mais próximo do determinismo da matéria, é fenômeno mais simples e mecânico; enquanto o espírito, por evolução, distanciou-se mais da matéria e conquistou aquela complexidade e riqueza de caminhos que denominais de livre-arbítrio, característica, como vimos, da fase das criações.

 Cada ser, tanto quanto o homem, traz consigo esse sutil psiquismo que lhe dirige as funções orgânicas; que lhe mantém constantemente a identidade, apesar da contínua renovação completa dos materiais que constituem o organismo; prepara-lhe e dirige o desenvolvimento e as ações, com uma precognição que só sabe quem viveu e recorda. Sem esse psiquismo, não se explica como os sempre novos materiais da vida voltam exatamente a seu posto de funcionamento; não se explica como a corrente de tantos elementos heterogêneos esteja ligada em continuidade; como, de todas as impressões transmitidas pelo ambiente, só algumas sejam assimiladas, outras corrigidas, outras repelidas. Esse princípio resume, verdadeiramente a hereditariedade das características adquiridas, implanta-se no germe e lhe dá novamente a marca recebida das impressões e experiências vividas. Ele precede o nascimento e sobrevive à morte, mesmo nos animais, também eles - e é justo - pequenos fragmentos de imortalidades e de eternidade; ele renasce continuamente, enriquecendo-se com a experiência de cada existência. Vós mesmos podeis verificar com a domesticação e adestramento, que nos animais as portas do instinto não estão fechadas, ou seja, ele tem ainda, sob vossos olhos, a capacidade de enriquecer-se com qualidades, de assimilar coisas novas. Há sempre uma possibilidade de progresso no raciocínio cristalizado do instinto. As qualidades, mesmo no homem, nutrem-se, continuamente por seu exercício cotidiano. O psiquismo plasma-se num processo de constante elaboração: no campo orgânico, como no psíquico, a falta de uso atrofia e destrói, da mesma forma que a atividade cria órgãos e aptidões (daí a necessidade biológica do trabalho).

 Falei de um inseto, mas os casos são infinitos. Sem esses conceitos, o fenômeno do instinto, de sua formação, de sua presciência, e os próprios fenômenos da hereditariedade permaneceriam no mistério insolúvel.

 A presença de um psiquismo diretor torna-se evidente no fenômeno da histólise do inseto. Aí não encontrais mais uma sabedoria funcional, de órgãos internos ou externos, nem a sabedoria que dirige as ações do animal. Aí se revela uma sabedoria mais profunda: a que sabe criar um organismo novo a partir de um organismo desfeito. Nesse fenômeno ocorrem metamorfoses profundas, que revelam a presença de um psiquismo, de maneira ainda mais evidente que nas reparações orgânicas que já observamos. No estado de crisálida, acontece em vários insetos (lepidópteros) que se fecham no invólucro protetor, fenômeno misterioso, no qual órgãos e tecidos desagregam-se, perdendo seus caracteres distintivos assim como a estrutura celular anterior, numa pasta uniforme, amorfa, em que não se percebem sobrevivências da organização demolida. A essa espécie de desmaterialização orgânica segue-se nova reconstrução, verdadeira histogênese, em que novo organismo ressurge tão diferente na constituição orgânica, que não se pode considerar preso ao precedente mediante relações diretas de derivação. O psiquismo diretor do dinamismo fisiológico, mesmo na reparação orgânica imediatamente ativo no complexo quimismo da vida, emerge aqui em toda a sua independência, a partir da forma, e mostra seu completo domínio sobre esta, porque dela se destaca, desmaterializa-a e a reconstrói diferentemente, sem continuidade fisiológica, exorbitando todas as potencialidades construtivas do organismo. É necessário substituir o conceito absurdo de funções - efeito de uma natureza específica de células e tecidos e de uma localização funcional, em estreita dependência de uma especialização na estrutura de órgãos e funções - pelo conceito de um psiquismo superior independente e dirigente, de que as formas são apenas a manifestação. Ele as plasma, dirigindo-lhe o íntimo metabolismo incessante e, quando este tem de enfrentar de um salto as maiores distâncias, em metamorfoses profundas, que implicam solução de continuidade no desenvolvimento fisiológico, então o psiquismo permanece como único fio condutor do fenômeno, que permanece único e contínuo, embora, de modo inexplicável, pareça quebrado. Não há aí, portanto, uma substância orgânica que, de acordo com a conformação diferente e com a estrutura celular alcançada por evolução, dê lugar a funções específicas, cuja causa seja perceptível apenas na especialização do material orgânico, mas existe um psiquismo diretor que modela o plasma, para que este possa exprimir a função, de acordo com o impulso recebido. A solução dos mais profundos problemas biológicos reside somente nesta ultrafisiologia do psiquismo.

Olhemos novamente as harmonias da vida em seu mais profundo aspecto científico. Também isto constitui sempre uma contemplação da beleza divina. A visão estética alimenta e eleva como a visão conceptual, que vos dá a chave daquela beleza. De fato, fé, arte e ciência são um canto único no seio da mesma harmonia. O mundo biológico é todo um edifício de maravilhosa arquitetura, um organismo de correspondências e permutas, uma sinfonia de harmonias e equilíbrios perfeitos.

 Vimos que os elementos com os quais a vida constitui sua roupagem orgânica - ao mesmo tempo expressão e elaboração do psiquismo - são Hidrogênio, Carbono, Nitrogênio e Oxigênio, existentes em grande abundância na atmosfera, no momento da gênese. Esses são os corpos que encontrais como elementos organógenos na estrutura plasmática, nestas proporções: Carbono 53%, Oxigênio 23%, Nitrogênio 17%, Hidrogênio 7%. São encontrados no corpo humano aproximadamente nas mesmas proporções (tipo médio): Oxigênio 44 Kg, Carbono 22Kg, Hidrogênio 7Kg, Nitrogênio 1Kg etc. Todos os compostos orgânicos são construídos com esses elementos que, na grande mobilidade dos edifícios químicos da vida, circulam em permutas incessantes. O material orgânico é coletivo, circulante, como uma correnteza, por organismos comunicantes, como um patrimônio comum, de onde cada ser o colhe para construir a forma mais adequada à expressão e ao desenvolvimento do seu próprio psiquismo.

A máquina apropriada e especializada para a construção desse material, por meio dos quatro elementos, é a planta. Vimos como ela surgiu no seio das águas. As primeiras plantas, gelatinosas, a boiar nos mares, começaram a realizar a síntese dos materiais orgânicos do mundo inorgânico. O maravilhoso quimismo das folhas verdes iniciou a transformação da matéria morta em matéria viva, captando ao mesmo tempo e armazenando a energia que vinha da grande fonte solar. Iniciada a construção da matéria viva, esta aumentava continuamente e se acumulava, enriquecendo o patrimônio coletivo, que depois entraria em circulação nas permutas inversas entre vida vegetal e vida animal.

 Observai o maravilhoso equilíbrio. Enquanto as plantas possuem poderes construtivos e dedicam-se à função de aumentar a massa dos produtos orgânicos do planeta, os animais vivem da destruição desses produtos, utilizando para sua vida a energia solar fixada pelas plantas no material orgânico construído por elas. A planta produz, o animal consome. São duas máquinas com funções opostas e inversas. A planta forma a matéria orgânica; o animal, com um processo de lenta combustão, derruba a construção, restituindo o material às condições primitivas. O primeiro processo de síntese se equilibra no segundo processo complementar de decomposição.

 Cabe, pois, à planta, a glória de ter sabido cumprir o esforço da primeira construção orgânica; sem ela, a superior vida animal não teria podido formar-se e subsistir. Hoje, também deveis vossa vida ao trabalho construtivo das plantas. No estado natural, os elementos químicos  básicos da vida acham-se combinados entre si, ou seja, Carbono e Hidrogênio unidos com Oxigênio, sob a forma de anidrido carbônico (Co2) e água (H2O). A planta é a máquina que realiza a separação do Carbono e Hidrogênio, do Oxigênio. Na molécula de anidrido carbônico, composta de um átomo de Carbono e dois de Oxigênio, a planta libera no ar o Oxigênio e assimila o Carbono. Na molécula da água, construída com dois átomos de Hidrogênio combinados com um átomo de Oxigênio, o processo é igual: libera no ar o Oxigênio e assimila o Hidrogênio.

 No animal ocorre o processo inverso. Na respiração, ele recombina o oxigênio com o carbono e o hidrogênio e, assim combinados, ele os restitui sob a forma de anidrido carbônico e água. Assim, animais e plantas realizam sua inversa respiração e, na contínua compensação das funções invertidas, mantém-se o equilíbrio. Esse antagonismo de funções vegetais e animais permite que a vida possa perdurar indefinidamente. Também na vida nada se cria e nada se destrói, mas tudo se transforma. Eis a nova confirmação do princípio geral, pelo qual cada fenômeno jamais se move numa direção única, retilínea, mas, ao invés, é cíclica, com inversões e retornos sobre si mesmo. Mesmo na química da vida, o que nasce morre, e o que morre renasce.

 Imaginai em que imensa usina de construções vitais se transformou a Terra, com a progressiva expansão de plantas sobre os continentes emersos. Mares ilimitados de substância verde trabalham sem repouso na construção da matéria prima, de que depois formar-se-á cada ser vivo. Miríades de folhas estendem-se ao sol, ávidas para surpreender e agarrar cada átomo de carbono e cada raio de luz. O ar que circula entre elas fornece o anidrido carbônico e, sob a ação da luz, a clorofila absorve-lhe a vida, alimentando-se de carbono. Não se perde um único átomo dele, o imenso mar de folhas aspira cada molécula do alimento gasoso. Nem um raio de sol cai inútil. A torrente de luz, onde quer que desça, fecunda uma vida. A química orgânica, em sua instabilidade, mantém escancaradas as portas e transforma a substância da energia em vida. Debaixo de vossos olhos, pelos campos intermináveis, realiza-se a cada instante a transformação de β  em α. E o prodígio dessa transformação realizado a cada dia pelas plantas, criaturas menores, irmãs vossas, verdadeiras máquinas sintéticas de ação solar. Se não houvesse quem, nos primeiros degraus da vida, realizasse este primeiro trabalho de transformação, nem mesmo seria possível o trabalho mais elevado que realizais no campo orgânico e psíquico.

O equilíbrio vegetal-animal completa-se aqui em equilíbrio mais amplo, porque essa permuta contínua de combinações químicas comunicantes inclui no fundo uma permuta dinâmica em que, por meio de contínuas transformações, a energia transmite-se e circula de forma em forma, de ser em ser. Tudo deriva da grande fonte de energia que é o sol. Observai como são perceptíveis, no seio do sistema solar, todas as fases do transformismo γ →β→α. No sol ocorre a primeira transformação físico-dinâmica: a matéria dissolve-se em radiações que, interceptadas pela Terra, aí se transformam em vida. No transformismo da matéria nada se destrói. As plantas fixam a energia solar e dela se alimentam para as finalidades da vida. O sol desagrega seus materiais, as radiações chegam à Terra, a vida cresce sem cessar. Tudo provém da doação de si, do centro do sistema. Os compostos químicos, pelo irrefreável impulso profundo da evolução, combinam-se em fórmulas cada vez mais complexas. As máquinas vivas acumulam energia solar, transformando-a em compostos de cada vez mais alta estrutura química. O animal, por sua vez, se destrói grandes quantidades de material orgânico fornecido pelas plantas, reconstrói, como qualidade, o que se destruiu como quantidade (o potencial da substância indestrutível permanece sempre idêntico), realizando operações químicas e fabricando materiais ainda mais complexos. Complexidade progressiva, expressão e meio de construção de um psiquismo íntimo e progressivo, diretor do fenômeno.

 Se nas plantas temos o primeiro degrau da transformação da energia em vida e da constituição do material orgânico, no animal, subimos a um degrau mais alto: o da transformação da vida em psiquismo. A destruição do produto da vida das plantas significa construção de um material ainda mais perfeito: o espírito. Divisão de trabalho, especialização de funções, transformações contínuas e infinitesimais deslocamentos progressivos. Só no animal começa verdadeiramente a função específica da constituição daquele psiquismo cuja gênese observamos, e que se tornará, à medida que sobe, cada vez mais a nota fundamental dos fenômenos vitais. Vede como da matéria solar chega-se, por sucessivas transformações, aos fenômenos do espírito; em cada uma dessas transformações podeis descobrir sempre a mesma substância que, embora mudando de forma, nada aumenta e nada destrói de si mesma, mas refina seu modo de ser com qualidades cada vez mais sutis, complexas e perfeitas.

O físio-dínamo-psiquismo de minha síntese monista o vedes aqui tangível, fato objetivo, realidade vossa cotidiana, e não é possível negá-lo.

Esse transformismo é um ciclo compacto, inalterável, em que estão presos e amarrados todos os fenômenos. Nem a experiência, nem a lógica vos permitem escapar. A energia solar, assimilada e transformada pelas plantas, torna-se, no animal, calor, movimento, e, como última transformação do dinamismo vital, energia nervosa. Esta, no homem, torna-se função psíquica e espiritual. Eis traçada a linha que, através das espécies físicas, dinâmicas e psíquicas, une a matéria ao gênio. Eis onde, depois de tantas transformações, culmina a energia das radiações solares. Das torrentes ilimitadas só encontrais um riacho, mas sua potência e sua perfeição nada vos fizeram perder da substância.

No ápice de todo o grande trabalho, o termo mais alto da escada de vosso universo, a máquina mais complexa e delicada, é vossa psique. Nos órgãos sensórios ocorre continuamente essa elevação de vibrações ambientais em vibrações de ordem superior; pelo ouvido, o som torna-se música; pelos olhos, a luz torna-se beleza; pelos sentidos, o choque das forças ambientais torna-se instinto e consciência. A energia é transformada, por meio do mecanismo da vida, de suas formas inferiores nas mais altas formas nervosas de sensação, sentimento e pensamento. As individuações biológicas constituem centros de elaboração da substância, em que atua o transformismo evolutivo da fase β para α. Assim à florescência da vida, realizada por meio das radiações solares, ascende a florescência de consciência. Como a energia universal espalhou por toda a parte a vida, assim esta, por profunda elaboração, gera em toda parte o psiquismo. O grande rio da energia, que tinha sido matéria, transforma-se no mar imenso da vida, que se transforma emconsciência. O universo, que caminhara até a vida, finalmente sente e olha para si mesmo.

 Na co-participação do material orgânico, entre todos os seres vivos, reside a origem da lei básica da vida: a luta. O que vos devia tornar irmãos, vos faz também, inevitavelmente, rivais. O patrimônio comum, obtido por longas e laboriosas transformações, é limitado; a substância que constitui um organismo, é ótimo material de nutrição para o outro. Daí a luta, o recíproco dilacerar-se, a rivalidade orgânica de tantos aparelhos digestivos, mais ou menos complexos e evoluídos, armados com todos os instrumentos de ataque e defesa da vida. Esta é, indiscutivelmente, a lei do planeta no nível animal; mas o homem, com seu psiquismo, começa a elevar-se acima dela, então percebe a diferença. O horror que o homem experimenta, pelas formas ferozes e agressivas da vida, é proporcional a seu grau de evolução. Os homens inferiores, ainda não emergidos espiritualmente da fase animal, podem agitar-se felizes numa forma de vida brutal e atroz, que para eles é a expressão normal da própria natureza. Mas os seres mais evoluídos, embora fisicamente vestidos com um corpo humano, organicamente semelhante, não podem evitar de sentir, é absolutamente inadmissível, esse sistema de vida e se encontram numa encruzilhada: ou aceitar uma vida bestial, ou lutar para civilizar a humanidade. Esta é nova forma de luta, que os primeiros ainda não enxergam, imersos como estão na luta a nível animal; não enxergam e condenam os outros, pois os separam abismos de incompreensão. No entanto, são os únicos ativos e verdadeiramente produtores, são os grandes que arrastam o mundo: são as antenas da evolução.

A inteligência e a ciência, dominando as forças naturais, submetem a natureza ao homem, provendo as necessidades materais, e eliminam a necessidade da luta em suas formas brutais inferiores; sutilizam-na e a transformam em luta nervosa e psíquica, dirigida a conquistas superiores. Não mais luta de músculos, mas de nervos; não mais de paixões, mas de inteligência. Doutro lado, os princípios éticos das religiões e da sociedade educam o homem para as virtudes morais e cívicas superiores, preparando-o para saber viver com uma psicologia de elaboração evangélica, no ambiente mais elevado que a ciência terá preparado.

 O homem é o agente desta transformação, último anel de todas as transformações precedentes. Assim, a Terra tornar-se-á um jardim, governado por uma humanidade mais sábia. Esta é a transformação biológica que vos espera. Na ascensão humana espiritual, que se realiza nestes milênios e se intensifica no momento atual, numa fase decisiva, culmina o esforço de toda a ilimitada evolução que a preparou, que a sustenta e que hoje a impõe.

Alma cansada, abatida à margem da estrada, pára um instante na eterna trajetória da vida, larga o fardo de tuas expiações e repousa.

 Ouve como está plena de harmonias a obra de Deus! O ritmo dos fenômenos irradia doce e grandiosa música. Por meio das formas exteriores, os dois mistérios, da alma e das coisas, observam-se e se sentem. Das profundezas, o teu espírito ouve e compreende. A visão das obras de Deus produz paz e esquecimento; diante da divina beleza da criação, aquieta-se a tempestade do coração; paixão e dor adormecem em lento e doce canto sem fim. Parece que a mão de Deus, através das harmonias do universo, acalenta, qual brisa confortadora, tua fronte prostrada pela fadiga e aí se detém como uma carícia. Beleza, repouso da alma, contato com o divino! Então o viandante deprimido se reanima, com renovado pressentimento de sua meta. Não parece mais tão longa a jornada, tão comprida, quando se pára um instante para dessedentar-se numa fonte. Então a alma contempla, antecipa e se alivia na caminhada. Com o olhar fixo para o Alto, é mais fácil retomar em seguida o caminho cansativo.

 Na estrada dolorosa, pára, enxuga tua lágrima e ouve. O canto é imenso, as harmonias chegam do infinito para beijar-te a fronte, ó cansado viandante da vida. Ao lado do trovão das vozes titânicas do universo, murmuram num sussurro de beleza as delicadas vozes das humildes criaturas irmãs: "Também eu, eu também sou filha de Deus, luto e sofro, carrego o meu peso e busco minha vitória. Também eu sou vida, na grande vida do Todo". E tudo, desde o fragor da tempestade, até o canto matutino  do sol, do sorriso do recém nascido ao grito dilacerante da alma, tudo, com sua voz, revela-se a si mesmo e sintoniza com as vozes irmãs; tudo exprime seu mistério íntimo; cada ser manifesta o pensamento de Deus. Quando a dor atinge as mais íntimas fibras de teu coração, ouves uma voz que te diz: DEUS; quando a carícia do crepúsculo te adormece no sono silencioso das coisas, uma voz te diz: DEUS. Quando ruge a tempestade e a terra treme, uma voz te diz DEUS! Essa estupenda visão supera qualquer dor.

 Pára, escuta e ora. Abre os braços à criação e repete com ela: "Deus, eu te amo"! Tua oração, não mais admiração amedrontada pelo poder divino, agora é mais elevada: é amor. Oração doce, que brota como um canto que a alma repete, ecoa de fraga em fraga por toda a terra, de onda em onda pelos mares, de estrela em estrela pelos espaços infinitos. É a palavra sublime do amor que as unidades colossais dos universos repetem contigo, em uníssono com a voz perdida do último inseto que, tímido, esconde-se entre a grama. Parece perdida; no entanto, Deus a conhece também, recolhe-a e a ama. No infinito do espaço e do tempo, somente esta força, essa imensa onda de amor, mantém tudo compacto em harmônico desenvolvimento de forças. A visão suprema das últimas coisas, da ordem em que caminham todas as criaturas, dar-te-á sozinha um sentido de paz; de verdadeira paz, de paz profunda, de alma saciada, porque percebe sua mais elevada meta.

Assim Deus Se afigura-te ainda maior do que em seu poder de Criador, afigura-Se-te na potência de Seu amor. Explode, ó alma! Não temas! O novo Deus da Boa-Nova do Cristo é bondade. Não mais os raios vingativos de Júpiter, mas a verdade que convence, o carinho que ama e perdoa. O abismo infinito que olhas assustado não está para engolir-te, nas trevas do mistério, abre-se cheio de luz e, no âmago, canta sem fim o hino da vida. Lança-te afoito, porque nesse abismo reside o amor. Não digas: "não sei", dize antes: "eu amo!"

Ora! ora diante das imensas obras de Deus, diante da terra, do mar, do céu. Pede-lhes que te falem de Deus, pede aos efeitos a voz da causa, pede às formas  o pensamento e o princípio que a todas anima. E todas as formas se aglomerarão em redor de ti, estender-te-ão seus braços fraternos, olhar-te-ão com mil olhos feitos de luz e o eterno sorriso da vida te envolverá como uma carícia. Essas mil vozes dirão: "Vem, irmão, sacia teu olhar interior, busca força na visão sublime. A vida é grande e bela, mesmo na dor mais atroz e tenaz é sempre digna de ser vivida". Tomar-te-ão pelo braço, gritando: "Vem, atravessa o limiar e olha o mistério. Vê: não podes morrer jamais, jamais morrer. Tua dor passa,  com ela sobes e fica o resultado. Não temas a morte nem a dor: não são o fim, nem o mal, são o ritmo da renovação e caminhos de tuas ascensões. A vida é um canto sem fim. Canta conosco, canta com toda a criação, o canto infinito do amor".

Ora assim, ó alma cansada: "Senhor, bendito sejas, sobretudo pela irmã dor, porque ela me aproxima de Ti. Prostro-me diante de Tua imensa obra, mesmo se nela minha parte é esforço. Nada posso pedir-Te, porque tudo já é perfeito e justo em Tua criação, mesmo meu sofrimento, mesmo minha imperfeição transitória. Aguardo no posto de meu dever a minha maturação. Repouso em Tua contemplação".

Responde, ó alma, ao imenso amplexo, verdadeiramente sentirás Deus. Se a inteligência dos grandes se prostra e venera, curva-se diante do poder do conceito e de sua realização, e se aproxima do Divino pelas cansadas vias da mente, o coração dos humildes atinge a Deus pelos caminhos da dor e do amor. Sente-O pelas estradas dessa sabedoria mais profunda.

Ora assim, ó alma cansada. Descansa a cabeça em Seu peito e repousa.