Analisarei neste volume o fenômeno da ascese mística. Dispenso-me de novamente situá-lo no campo cultural e no momento psicológico moderno, visto como o apresento em seu duplo aspecto de fenômeno científico e de fenômeno espiritual, como seqüência lógica e vivida do fenômeno inspirativo, já amplamente analisado no precedente volume 1 . Quem o tiver lido, nele terá encontrado o duplo pretexto desta continuação, seja no campo científico, seja no campo espiritual. E para responder objetivamente, ou por outra, quase fotograficamente, à realidade do fenômeno, tal qual foi por mim vivido, aqui o analisarei e aprofundarei, sob dois aspectos decorrentes de duas psicologias diversas, que, embora hoje consideradas opostas, são para mimequivalentes: a ciência e a fé. Servirá isto para demonstrar sua identidade substancial em todos os campos e,principalmente, em face deste tão discutido e controverso fenômeno místico; servirá igualmente para evidenciar que já devem ser tidos por superados certos antagonismos ultimamente tão agudos e transformados em sementes de dolorosas cisões da unidade do pensamento e da fé. E, quando eu tiver feito convergir para as mesmas conclusões as extremas e opostas atitudes do pensamento humano, minha concepção interpretativa, baseada na realidade por mim muito intensamente sentida, terá solidez de verdade universal e poderá ser considerada novo fundamento que, no meu permanente anseio de realizar o bem, terei conseguido lançar para a construção do edifício do conhecimento. Ouso esperar isso, não somente como fruto do imenso trabalho interior em que me tenho amadurecido, por fatalidade da lei de evolução, superior aos méritos meus e à minha própria vontade, senão também porque este mesmo estudo constitui, para mim, tão alto coroamento de minhas precedentes sínteses, que as posso resumir e levantar todas para aquilo que eu poderia chamar minha mais alta síntese conceptual, de paixão e de vida.


O fenômeno místico é, de fato, animado por um dinamismo tão potente e profundo, feito de maturações e superamentos interiores tão substanciais e anelante de ímpetos tão excelsos, que deve ser necessariamente considerado no vértice das aspirações da inteligência e do coração. O precedente estudo, a que já me reportei, conquanto seja aparentemente exaustivo e definitivo, mais não é do que a preparação deste, assim como o fenômeno da mediunidade inspirativa, nele descrito, não foi, para mim, mais do que uma fase de vida. Nesta nova fase, parecem levantar-se, como num turbilhão, todas as potências da alma humana, e eu, através de minha exposição, guiarei o leitor, que me seguiu até aqui, ainda além da sensação viva da vertigem arrebatadora que me tem golpeado nos meus estados supranormais de visão e de êxtase.


Afirmei que isso é continuação de precedentes fases do fenômeno, razão pela qual neste escrito devo referir-me necessariamente ao volume em que estas são descritas. Declarei que se trata de fenômenos por mim vividos, pelo que sou compelido a falar ainda de mim. Se isso é deselegante, é todavia garantia de objetividade, porque minha análise toca, também aqui, assim como nas fases já examinadas, uma realidade que, embora interior, me é perfeitamente acessível.


Conquanto pessoal e objetiva, dela pude abstrair-me nitidamente, submetendo-a a estudo metódico, analítico e científico.


Somente numa segunda parte o fenômeno místico é apresentado em seu aspecto espiritual, religioso e ideal, tal qual o foi, de modo quase sempre exclusivo 2 . Ele se distingue, pois, dessa comum nomenclatura, vaga e imprecisa, e é definido em suas linhas fundamentais de fenômeno de evolução biológica, levada até o campo do mais alto psiquismo. Encarado assim, sob a forma de caso vivido, o fenômeno, conquanto pareça circunscrito ao subjetivismo de minha consciência individual, apresenta-se, sem dúvida, não somente na solidez de uma realidade experimental, senão também nos limites de uma verdade universal, porquanto eu o concebo e encaro, em concordância com minha orientação filosófica e científica, constantemente seguida, como fase da humana e normal evolução biológica, embora seja aqui continuada e projetada até os superiores níveis da ascensão espiritual. Verdades, pois, universais estas de que trataremos, linhas fundamentais do desenvolvimento fenomênico, que é lei das coisas, realidade objetiva situada além do relativo, no absoluto, realidade profundamente humana, tecida de lutas, de dores e de conquistas.


Grande vantagem esta de poder operar sobre uma realidade psicológica, para mim experimental, e sobre uma verdade que é universal: são estas duas bases de nosso estudo, bastante sólidas, que compensam quanto poderiam opor-me como defeito, isto é  a contínua necessidade de falar de mim, assim como de minha precedente produção literária. A esta devo, contudo, indispensavelmente reportar-me, porquanto dela resultam as primeiras fases da maturação do fenômeno espiritual por mim vivido. É imprescindível, para compreendê-lo no caso concreto em que o analiso e apresento, recorrer, como preparação e explicação, ao meu passado, que o contém, em germe, e do qual ele se desenvolveu. Não saberia estabelecer diversamente os termos deste estudo, até porque somente quem tem experimentado determinadas sensações e emoções possui a palavra suficientemente vibrante para exprimir o inefável.


Perdoem-me semelhante ostentação, forçoso como é reconhecer quanto é ela inevitável. Perdoem-me se ela parece chegar até uma confissão desapiedada de todo o meu ser, até a intimidade mais recôndita, confissão que proporcionará ao leitor aquela mesma sensação que provo, feita de sacrifício e de holocausto, ao invés de vão exibicionismo. Doação de mim mesmo, para o conhecimento e solução dos mais árduos problemas da ciência e da fé, implícitos no espírito, problemas do mundo, não somente em sentido evolutivo, mas também histórico, porque místicos sempre os houve, em todos os tempos e em todos os países. A ressonância que minha alma encontra na de tantos místicos e aquela que a deles encontra na minha, a comunhão de fé, de experiências e de metas espirituais, a universalidade histórica de fatos e fenômenos vividos ampliam meu pobre caso para além dos limites de um subjetivismo que, evidentemente, já não se acha circunscrito em mim, mas transborda para além das fronteiras de minha personalidade Espero haver, assim, justificado a posição em que situo o problema místico, que aqui se compensa com dois sólidos pontos de apoio e, todavia dois pontos de relativa debilidade.

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1 - As Noúres, obra do mesmo Autor já publicada em português por esta Editora. (N. do T.)

2 - Segunda parte do presente volume - "A Experiência". (N. do T).