A Lei de Deus

Apêndice: Uma Fábula. "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”.

Em minhas peregrinações brasileiras, ocorreu ter de demorar-me alguns dias numa ilha, habitada apenas por pescadores pobres, no litoral paulista. Entretive-me, então, com aquela gente simples, com eles dividindo alegrias e dores. Nessa vida, reduzida aos mais singelos elementos, diante das harmonias de uma paisagem luxuriante, imerso na infinita paz das coisas de Deus, senti a profunda justiça e bondade de Sua Lei, e como, mesmo na Terra, é possível aos homens de boa vontade realizar a grande máxima evangélica do “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Destas observações e meditações nasceu esta fábula.

Havia certa vez um homem, que era julgado louco porque pregava e praticava no mundo o Amor de Cristo. Dizia ele: "Não necessitamos de novas religiões, nem precisamos fazer prosélitos a favor de uma, condenando as outras, criando dessa forma cada vez maiores inimizades; mas, é indispensável tomarem-se bons e honestos os homens de todas as religiões".

   

Enfrentara, assim, com os meios da cultura, do raciocínio e da ciência, a elite intelectual das grandes cidades, as classes dirigentes dos mais aptos a compreender por esses caminhos, a verdade, como produto do pensamento. Mas, um dia, sentiu necessidade de completar seu trabalho, escolhendo outra gente; sentiu que deveria aproximar-se também dos deserdados, dos simples e ignorantes, para os quais estão fechadas essas estradas de luxo. Para eles, era mister outra linguagem: a linguagem simples do Evangelho, que ensina por fé, sem demonstrações a inteligência cética que pede provas; a linguagem fácil dos fatos e dos exemplos, a linguagem do amor, que todos compreendem e que percorre estradas diferentes - não as da mente, mas as do coração.

É verdade que o pensamento desce, de cima para baixo, nas classes sociais, como das nuvens desce a chuva, e uma vez firmado na classe culta, por si se difundiria nos planos inferiores, por uma lei de gravitação. Mas, teria sido um pensamento frio, filtrado através de outros cérebros. Era indispensável dar mais, dar algo de mais vivo e pessoal, dar de si mesmo, como exige o Amor e como não pode deixar de fazer quem ama verdadeiramente. Assim, quis um dia aquele homem entrar em contato também com os menos cultos, os homens simples dos campos.

Para eles, a linguagem seria outra. Não mais profundidade de conceitos, nem evidência de provas, para convencer mediante demonstrações a razão; não mais se tratava de enfrentar os ânimos duros dos céticos do materialismo, entregues a todas as sutilezas do pensamento, esmagando-os com os complexos intelectualismos culturais e científicos. Tratava-se, ao invés, de acender uma chama de bondade e verdade, com simplicidade de sentimento, oferecendo-se em doação completa, sem nada pedir, vencendo a dureza de ânimo com o poder da bondade, com uma grande paixão de ajudar, indo ao encontro dos mais humildes e desprezados para abraçados e elevá-los: um trabalho de coração, em contato direto com as formas mais elementares e instintivas da vida. Era, para aquele homem, um campo diferente e inexplorado, um caminho novo para inculcar no próximo o Amor de Cristo.

Assim, quem já fora peregrino das grandes cidades, transformou-se um dia em peregrino das aldeias abandonadas, das praias longínquas, das terras perdidas à margem da civilização das cidades. Navegando com alguns amigos em pequenas barquinhas, chegou um dia a uma ilha próxima à costa, numa aldeia de pescadores pobres, simples e primitivos.

Nesse estado de simplicidade, mesmo se o homem não compreende as fórmulas difíceis da cultura e da ciência, ele intui, instintivamente, sem muitas palavras, os motivos fundamentais da vida: amizade ou inimizade, ódio ou amor, fome, perigo. Não necessitaram, por isso, de muitas palavras as apresentações: um simples olhar-se de frente, um recíproco e instintivo observar-se quanto às respectivas intenções. Assim se conhecem os animais e até as plantas, daí resultando relações de amizade ou de inimizade.

Realizada essa primeira aliança, sistematizadas as necessidades materiais de alimento e repouso noturno, sentou-se aquele homem ao lado dos novos amigos, à beira da praia, para satisfazer a curiosidade deles de conhecerem os recém-vindos; e, falando de si e dos companheiros, começou a lançar as primeiras pontes da confiança e da compreensão. O próprio ambiente sugeria que se falasse das grandes coisas de Deus. O argumento alimentava-se das harmonias daquela natureza encantada. Os pensamentos mais simples assumiam, naturalmente, a musicalidade das ondas e dos ventos, sintonizavam-se na sinfonia das cores dos bosques, do mar e do céu. O pensamento de Deus, alma de tudo, transparecia tão poderoso e evidente nas formas que o revestiam, que Ele parecia falar sem palavras no âmago da alma. E todos, o peregrino e os pescadores, o ouviam juntos, como numa evocação mágica em que Deus, essência da vida, lhes falava em silêncio e o espírito das coisas se revelava, arrebatando-os todos no mesmo êxtase.

Se os primitivos não sabem exprimir-se para traduzir estas sensações, isto não significa que eles não as percebam, ainda mesmo confusamente. Em cada uma de suas formas, a própria vida mostra-nos que ela procura ser bela, alegra-se com isso e luta por sê-lo. A beleza representa um valor próprio porque tem sua função biológica. Nos mais altos planos evolutivos revela-se essa beleza na harmonia espiritual da Bondade e do Amor para com todas as criaturas. A musicalidade e a alegria de ouvi-la crescem, à proporção que se sobe para os mais altos planos da existência, formando, enfim, uma harmonia única, em que se fundem o Belo e o Bem.

O nosso peregrino e aqueles homens conheciam também os outros aspectos da vida, o lado positivo e prático das necessidades materiais. A vida constitui-se também de problemas concretos. Sem dúvida os primitivos também são poetas, mas só podem dar-se ao luxo de sê-los, depois de resolvida a premente questão das necessidades imediatas. Por isso, ninguém mais do que os primitivos quer prender-se aos valores reais terrenos e, para ouvir e respeitar, eles exigem uma prova de superioridade. Por esse motivo, não podendo Cristo apoiar-se nas qualidades de inteligência e cultura de Seus seguidores, teve de dar provas diferentes das racionais, a Seu respeito. Teve de operar prodígios, as únicas provas acessíveis àquelas mentalidades, tanto que ainda hoje a apologética cristã católica aceita os milagres como prova da divindade de Cristo. Para aquelas formas mentais, eles são verdadeiras provas, ainda que nada provem para quem tenha do milagre um conceito totalmente diferente.

Sendo a psicologia de todos os primitivos a mesma, nosso homem tinha de mostrar, para ser ouvido e seguido, suas credenciais, dando testemunhos de seu valor. Ora, quem vive longe dos centros, na periferia da civilização, permanece sempre com os olhos fixos e os ouvidos atentos para aqueles, ávido de‘ aprender e imitar. O peregrino chegava desses centros, e lá trabalhara e vencera. O homem, para estimar, exige uma prova de poder, seja material ou econômico, de inteligência ou espiritual, mas de qualquer forma, a prova de ter sabido vencer em qualquer campo. E o sinal não é menos convincente, se tiver sido conseguido em campo menos compreensível. Uma das razões por que as multidões modernas admiram os cientistas, é o fato de eles manejarem matéria inacessível a elas. Assim, é tanto mais fácil convencer quanto mais se chegue precedido da fama das próprias vitórias. Aos próprios santos era tanto mais fácil arrastar as multidões, quanto mais poderosa a seu respeito se formavam a lenda de prodígio e a auréola de santidade. Também no plano espiritual, a vida premia o forte que sabe vencer.

Dessa forma, apoiando-se nesse jogo psicológico natural e inevitável, imposto pela forma mental humana, procurava o peregrino penetrar no ânimo de seus ouvintes. Suas palestras eram simples, concretas, constituídas de conceitos revestidos de fábulas e parábolas, baseando-se nas sensações oferecidas pelo ambiente. Seria inútil bater em teclas mudas, lançar pensamentos que não pudessem encontrar eco. A princípio eram poucos a ouvi-lo. Mais tarde reuniu-se toda a aldeola, rodeando-o. Todo homem, mesmo que não entenda tudo, sente-se sempre atraído pela palavra quente, que por ser convicta, transmite convicção.

Então, falou-lhes assim: "Meus amigos. Aqui vim entre vós para ensinar-vos o Amor e a Paz, para diminuir vossas dores e tomar-vos mais contentes. Não enfrentaremos os problemas longínquos que atormentam as grandes mentes e não foram ainda solucionados pela ciência, pela religião e pela filosofia; bastem a vós as normas simples, para dirigir vossa vida".

"Falo-vos em nome de Cristo, para explicar-vos seu pensamento: não para condenar-vos, mas para ajudar-vos. Não vos digo: castigai a vida; mas: respeitai-a e melhorai-a, vivendo-a com inteligência. Ela é um dom de Deus e não deve ser renegada, mas levada cada vez mais para o alto, na direção d‘Ele. O desejo de felicidade é um instinto sadio e vital, e tendes pleno direito a ela. Aprendei apenas: ela só pode ser conquistada na ordem, com a própria disciplina, obedecendo à Lei de Deus. Só assim conseguireis diminuir cada vez mais o fardo de vossas dores, efeito de vossos erros”.

"Vossos instintos fundamentais devem ser respeitados, porque eles servem para conservar a vida, necessária para atingir seu objetivo: o de elevar-se, regressando a Deus. Por isso, Ele fez que vós os adquirísseis e os fixásseis em vós. São eles hoje a mola necessária à vossa vida, em vossa atual fase. Amanhã conquistareis outros instintos mais evoluídos, para viver em planos mais altos. Não vos prego as abstinências e os jejuns dos santos. Não peço renúncias, mas disciplina. Se não amardes o trabalho, seja ele a vossa penitência. Mas, aprendei a amá-lo, a fim de apressar as satisfações que ele proporciona e ele se transformará na alegria de criar”.

"Respeitemos os instintos fundamentais da fome e do amor. Devemos nutrir o corpo, para trabalhar melhor, mas não para empanturrar-nos. Quem abusa, seja por excesso ou por falta, estraga um instrumento que lhe foi confiado por Deus para fins mais altos, entre os quais o de produzir, com o trabalho; cada qual segundo sua capacidade. Em nosso planeta existem todos os elementos que podem torná-lo sede de vidas felizes. Mas, estão todos no estado caótico. Compete ao homem, com seu trabalho, transformar o caos numa ordem, na qual ele possa viver bem. Ordem exterior, nas ações, que só pode nascer de, uma ordem interior, no espírito".

"Respeitemos o Amor, mas disciplinado, com respeito à mulher e à família alheia, santificado com a proteção da mãe aos próprios filhos, com a educação destes, com a sublimação do afeto recíproco, que, provindo não apenas dos sentidos, “sobrevive a própria morte”.

   

"Respeitemos o instinto da posse e de domínio das coisas, mas sob condição de que ele não seja egoísta, que não represente opressão aos fracos, não seja feito de ambição. Seja respeitada a propriedade, fruto do trabalho. Mas, para ter direito do respeito pelas próprias coisas, deve-se antes respeita as coisas alheias. Em todos os campos, só tem direito a ser respeitado quem respeita. Seja respeitada a vida em seus instintos, mas esteja tudo disciplinado na medida e na ordem estabelecidas pela Lei de Deus”.

"Quanto mais aprenderdes a viver na ordem, tanto mais diminuirão vossas atribulações, e quanto mais desobedecerdes à Lei, tanto mais elas crescerão. Não vedes que cada coisa tem seu lugar na natureza? Que aconteceria se o mar quisesse usurpar o espaço que pertence à terra, e se esta quisesse invadir o céu? Tudo é belo e há lugar para tudo, inclusive para vossa vida, porque tudo está organizado e em paz. Mas logo que esta ordem e esta paz se perturbem, surge para todos o desastre. Só se respeitardes as regras indispensáveis da vida, estabelecidas por Deus, é que Ele poderá dar-vos a felicidade, de que elas são a condição essencial".

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Assim falou nosso peregrino àqueles homens simples. Mas a vida é ação, e era mister, para melhor convencê-los, dar-lhes um exemplo, um testemunho tangível.

Nos arredores do lugarejo, numa praia abandonada, vivia solitário um rebelde à ordem social, um homem feroz, ladrão e assassino, que, ao Invés de trabalho, preferia viver de delitos é de rapinagem. Era chamado o Lobo. Ninguém ia à sua cabana nem dela se aproximava sé não estivesse armado.

Falaram desse Lobo ao peregrino e este resolveu ir ao seu encontro. Lembrava-lhe isto outro encontro, com outro Lobo, talvez o nome de outro ladrão. O assassino, que foi amansado por São Francisco às portas de Gúbio. Os homens da pequena aldeia procuraram dissuadi-lo, mas ele sentiu-se irresistivelmente impelido àquela realização. Ir por aquelas paragens, sem armas, ou mesmo levando-as, mas sem saber usá-las, era loucura. Para que deixar-se matar?

Após muita discussão, um dia partiu o peregrino, desarmado, para a cabana do Lobo. Entretanto, acompanhavam-no alguns homens fortes e bem armados. Deixou-os em certo ponto, escondidos entre as árvores, de sobreaviso, para socorrê-lo, se houvesse necessidade. E encaminhou-se sozinho para a choupana.

Enquanto caminhava, refletia. Já dera um exemplo, nas grandes cidades, vencendo os mais poderosos obstáculos que lhe queriam impedir o cumprimento de sua missão. Vitória clamorosa, milagre de Deus, que lhe havia provado Seu auxílio e Sua presença a seu lado. Toda resistência havia caído e os elementos negativos tinham sido afastados, apesar de fortes e renitentes. Deus o ajudaria também, realizando este outro milagre. Era lógico e necessário também este exemplo num piano social diferente. Precisava aceitar, tinha de expor-se a esta nova prova, em que Cristo deveria triunfar mais uma vez.

O peregrino era também homem e, como tal, temia. Talvez tivessem razão os homens da pequena aldeia. Sua ousadia era loucura perigosa e inútil. Então, como sempre ocorrera nos maiores momentos de sua vida, Cristo lhe apareceu ao lado, tomou-o pela mão e, enquanto o guiava, desenvolveu-se; a seguinte colóquio:

"Filho, por que tomes? Não estou sempre a teu lado?"

"Senhor, que posso eu? Não é orgulho meu pretender mais uma vitória?"

"Vai; filho; não temas; estou contigo. Falarei em teu pensamento; brilharei em teu olhar, vibrarei em ti e manifestar-me-ei através de tua paixão pelo bem. Vai! Através de ti, meu instrumento terreno, vencerei com o Amor está alma rebelde. Vai! Vencerás. ‘Estou contigo".

Peregrino do amor e da dor, nosso homem continuou pela praia, aproximando-se, cada vez mais da choupana. Os homens armados o vigiavam, assustados, de longe. Mas, ele caminhava como uma criança, abaixando-se para apanhar conchinhas na praia, admirando-lhe as belas formas. Depois, extasiado, olhava o mar, a floresta, os montes, o céu. Toda aquela beleza lhe falava de Deus. Sentia-O tão próximo, que nada mais percebia além Dele.

Assim, chegou à cabana. Chamou. Nenhuma resposta. Aproximou-se e bateu. Ouviu um barulho de ferragens e logo apareceu um homem forte, alto, de aspecto feroz. Olharam-se. Olharam-se ainda mais, nos olhos. Nos momentos decisivos, da vida ou da morte, o esforço da vida se concentra no silêncio. As coisas mais graves são compreendidas sem palavras. Com o olhar eles se mediram e se pesaram. O Lobo em seu instinto de fera, compreendeu que se achava diante do um homem inerme. O fato de não se achar diante do antagonista que imaginava desarmou sou primeiro ímpeto de agressão. O recém-chegado não era um inimigo. Quem era então? E que podia querer dele? E quem lhe dera coragem de chegar até lá, desarmado?

Assim, o Lobo ficou desarmado pelo inerme. Já se viram feras bravias respeitarem criancinhas inocentes. Muitas vezes a agressão é um ato de defesa, provocado pela agressão alheia, e se esta não existe, a outra não estoura. O Lobo disse apenas: "Que queres aqui? Quem és?"

Silêncio.

Em redor vibrava, partindo de todas as coisas, a grande voz de Deus. Cantavam as harmonias do criado, pulsava a essência espiritual da vida, a transbordar da forma que a revestia e escondia. Parecia que a natureza, naquele dia celebrava uma festa e entoava uma sinfonia imensa de infinitas vibrações a se abraçarem unidas, em amor, harmonicamente, musicalmente, tecidas numa mesma trama de bondade e de paz. O peregrino sentia um choque em seu coração e estava em êxtase, fora de si. Algo, parecendo um novo poder, penetrava nele e já cintilava em seu olhar, inclinado com um sentido de ilimitada bondade para aquela pobre alma, repelida por todos, e que se tomara tão feroz, talvez porque jamais tivesse recebido bondade e amor.

Silêncio.

Estavam frente a frente, falando-se em diálogo cerrado, feito de sentimentos opostos e contrastantes, num violento assalto de vibrações, através dos olhares. De um lado, o desencadear das forças elementares da vida no primitivo, egocêntrico e prepotente, dominador no caos, ignaro de Deus e rebelde a qualquer ordem e harmonia; do outro lado, o poder da ordem, a que obedecem todos os elementos, coordenando-se fraternalmente em harmonia, no conhecimento da Lei e no Amor de Deus. Estavam frente a. frente, o Lobo e o peregrino, empenhados numa luta desesperada para vencer. A ferocidade ávida e agressiva de um lado, a bondade generosa e pacífica do outro. Enfrentavam-se dois tipos biológicos diferentes, dois exemplares diferentes da vida, que personificavam as forças do bem e do mal, do Amor e do ódio, de Deus e de Satanás. O anjo e a fera estavam frente a frente, sós, diante de Deus. Quem venceria?

Silêncio.

Mas, nesse silêncio reboava a voz de Deus, lampejava Cristo, acima das forças do mal, moviam-se as falanges do bem. A grande sinfonia que a natureza entoava transparecia nos planos de vida mais alta, onde, atingida a harmonização, a felicidade é muito maior. O estridor daquela alma rebelde era uma dissonância triste nesta grande música. Esta, porém, a sufocava com sua potência, quase anulando-a, absorvendo-a em sua harmonia. Descia do alto uma grande onda das forças do bem, para amansar aquela alma, impelindo-a pelas grandes vias da Bondade e do Amor. Ela queria resistir; mas Deus determinara que Ele havia de vencer. Cada vez mais poderosa resplandecia a luz e as trevas recuavam, vencidas. Luta apocalíptica entre as forças do bem e as do mal. O pobre instrumento humano permanecia mudo, como que triturado em meio ao embate dessas forças.             ‘

Assim, atingiu a luta um momento terrível: o peregrino sentiu dentro de si como um estouro e acreditou chegada a morte. Viu, confusamente, o Lobo lançar de si as armas, procurou segurar-se a alguma coisa para não cair, mas instantaneamente se encontrou recolhido nos braços dele.

Estava cumprido o milagre. O Bem, Deus, o Amor, tinham sido mais fortes e haviam vencido.

Os homens da guarda, que tinham visto tudo, correram, largando também suas armas. O Lobo foi levado em triunfo para a aldeia. Todos se abraçaram. Acabara o medo, a preocupação da luta e da guerra entre os dois, verdadeiro inferno. O peregrino organizou um novo regime de paz, no trabalho. E, no amor recíproco, um ajudando o outro, muitas dores desapareceram. Cristo permaneceu entre aqueles humildes, que agora viviam Seu grande mandamento: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei". Assim, também entre os simples e os pobres, pode formar-se aquilo que simbolizava um primeiro núcleo da nova civilização do Terceiro Milênio.

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Esta fábula mostra como o Amor é capaz de vencer. Mas, o problema do “Ama teu próximo” é muito vasto e apresenta-se-nos também sob outros aspectos. Amar o próximo significa unificar os ânimos, superando, na compreensão recíproca, as divergências e lutas em todos os campos. Significa pacificação. Estudá-la-emos, agora, em dois aspectos seus, ou seja, pacificação no ‘terreno religioso e pacificação no terreno prático da produção e distribuição econômica na sociedade moderna. Comecemos pelo primeiro aspecto.

Dissemos no princípio, que não precisamos de novas religiões, nem de fazer prosélitos em favor de uma condenando as outras, criando, dessa forma, cada vez maiores inimizades; mas, que necessitamos de ajudar os homens de todas as religiões a se tornarem bons e honestos. Desenvolvamos o primeiro conceito. A seguir, desenvolveremos a segunda parte deste tema.

Infelizmente, as rivalidades no terreno religioso foram, e são ainda, sempre grandes, justamente onde, por mais aproximar-se de Deus, deveria ser maior o amor ao próximo. A finalidade de qualquer religião deveria ser sempre a de pacificar e unificar. Qualquer religião que não trabalhe nesse sentido, pode considerar-se irreligiosa, realmente contrária a religião. Mas, infelizmente, elas operaram em sentido exclusivista, de grupo, centralizador e imperialista, com espírito de expansionismo dominador e proselitismo. Essa é a natureza do homem em sua fase atual de evolução e ele não sabe comportar-se diferentemente em outro campo. A compreensão recíproca, a colaboração, a organicidade da coletividade social, ainda são para ele conceitos inatingíveis. Ainda é guiado pelo instinto gregário, pelo qual ele apenas sabe fazer alianças de grupo, fortificando-se nelas para condenar e procurar eliminar todos os outros grupos que não sejam o próprio. A humanidade vive, em todos os campos, mesmo no religioso, em regime de lutas, e qualquer ordem só é concebível como resultado de uma disciplina imposta por alguém mais forte, e, por isso, pelo vencedor. Daí, em todas as religiões, as mesmas qualidades, próprias do homem: absolutismo, dogmatismo, farisaísmo, proselitismo, imperialismo etc. É a natureza egocêntrica do ser humano que o leva a ser tal em todas as suas manifestações e a conceber também as religiões como uma potência que cresce por centralização e por expansionismo centralizador. É por isso que os diferentes pontos de vista das nossas verdades relativas e progressivas, são tomados como verdades absolutas, mesmo nas religiões que, em suas palavras, dizem o contrário. Este é o estado de fato.

A tese que sustentei desde 1951, em minha primeira chegada ao Brasil, e que já havia sustentado na Europa, foi a de “imparcialidade e universalidade". Permaneci a ela igualmente fiel, diante desta ou daquela religião. Mas, todas mostraram a mesma vontade de enclausurar-me e fechar-me em seu próprio grupo, impondo-me uma verdade já feita, que exclui qualquer pesquisa e condena toda tentativa de progresso e aperfeiçoamento. Mas, nem todos podem apenas aceitar e dormir, somente para fornecer material a fim de engrossar suas fileiras. Não há dúvida de que todas as igrejas querem ser universais, mas a apenas no sentido imperialista: todas querem unificar mas debaixo do próprio  domínio. Não foi nesse sentido que compreendi a universalidade. Não a entendi no sentido de um partido religioso, que se expande tanto, que conquista tudo.

Ao contrário, universalidade deve entender-se no sentido de imparcialidade, para chegar, não à submissão, mas à convivência livre, fruto da compreensão. E compreensão é mais do que tolerância, pois esta subentende sempre a própria supremacia que tolera, isto é, se digna permitir. Compreensão significa recíproca integração dos vários aspectos, no relativo humano, para poderem, assim, unidos, aproximar-se cada vez mais do absoluto. É uma confraternização dos fiéis de todas as religiões, diante do mesmo Deus igualmente adorado por elas. A identidade da meta para a qual todas convergem, deveria uni-las ao invés de dividi-las. Ora, esse espírito de divisionismo e de exclusivismo e a luta que daí deriva representam os instintos próprios de um plano biológico atrasado, que o progresso espiritual do mundo se apressará em liquidar. Também no terreno religioso, a evolução dirigir-se-á cada vez mais para a unificação, dado que esta é sua direção. Trata-se de uma maturação biológica, que penetrará todos os campos, inclusive o religioso, porque é um amadurecimento do ânimo humano. Partindo do atual sistema de atritos entre egocentrismos que se não conhecem um ao outro, chegar-se-á à cooperação dos indivíduos, transformados como unidade orgânica na sociedade humana. Esta deslocação fundamental de um plano evolutivo, levará a uma transformação também no modo de compreender as religiões. Como reação natural ao atual rebaixamento da onda histórica, expresso pelo materialismo que domina hoje o mundo, chegar-se-á, por meio da reação, a um inevitável e complementar despertamento espiritual. Isto forçará o homem a sentir sempre mais, nas religiões, sua substância espiritual, dando cada vez menos importância às formas exteriores, que hoje têm valor maior. Pertencendo à matéria, elas representam o que divide, ao passo que sua substância, sendo espiritual, representa o que une.

Será o fenômeno biológico desse espiritualizar-se de todo o ser humano, será esse seu subir das aparências à essência interior das religiões, que lhe fará compreender sua substancial unidade. E o ser humano compreenderá como é absurdo, ou coisa pior, o litigar, condenar e até perseguir em nome de Deus, do próprio Deus. O passado naturalmente, é separatista. Mas o futuro só pode trazer unificação.

Hoje, ao invés, que acontece? O dogmatismo não é uma qualidade de determinada religião, mas do homem; e pode aparecer em todas as religiões quando apareça nelas um indivíduo que seja levado ao absolutismo por seu temperamento. O maior erro é considerar erro tudo o que está fora do grupo; a maior heresia é considerar heréticos todos os que pensam diferentemente; o maior pecado é não respeitar as consciências alheias. A verdade é uma coisa em continua evolução e não pode deter-se no caminho. As verdades envelhecem e renovam-se, como acontece com todas as coisas. Isto não quer dizer destruir. Renovando-se, a vida não se destrói, mas rejuvenesce. Não há dúvida de que o patrimônio das verdades adquiridas deve ser conservado e cada religião tem de conservar o seu. Mas, deve respeitar, também, aquele que as outras religiões têm de conservar. E precisa não sufocar o desenvolvimento e o aperfeiçoamento dessas verdades; nem deve, por excesso, de zelo, deixá-las cristalizarem-se e morrerem-se de velhice.

Na economia das religiões, também são necessários os pioneiros, os quais, condenados pelos ortodoxos, assumem a dura tarefa de fazê-las avançar. Tarefa que eles têm de realizar, correndo risco e perigo, ao passo que os demais podem repousar seguros e tranquilos, nas posições que conquistaram. Não é a estes, sem dúvida, que a vida confia as funções de fazer progredir. Daqueles pioneiros, Cristo foi o maior exemplo. Foi Ele o primeiro rebelde à ortodoxia do passado, o inovador que tinha de levar o Velho até o    Novo Testamento, não destruindo, mas continuando, aperfeiçoando e desenvolvendo em formas mais adaptadas ao amadurecimento do homem. Sem Cristo, julgado blasfemo pelas autoridades, estaríamos ainda nas velhas concepções mosaicas. Nesses amadurecimentos, deve sempre ser engajada a luta entre o velho e o novo, entre os conservadores e os inovadores, entre os ortodoxos e os declarados hereges. Cristo diante da religião hebraica, foi o maior herege, e, por isso, foi condenado a morte.

Na evolução religiosa acontece a mesma coisa que se verifica na evolução política. Os poderes constituídos resistem ao novo, para não perder as posições conquistadas. Isto, até que sobrevenha uma revolução que lance ideias mais avançadas e, vencendo, as fixe depois em novas instituições, defendidas por outros poderes constituídos. E assim, tudo caminha, mas por meio do contraste e da luta. De acordo com o exemplo de Cristo, podemos mesmo acreditar que, aos cristãos não-ortodoxos, que naturalmente são condenados, possa ter sido confiada, em alguns casos, a mesma missão que Cristo teve diante do Judaísmo, ou seja, a de forçá-lo a dar um salto adiante, sem o qual aquela religião teria permanecido fechada nas velhas fórmulas, sem evolução ulterior. E podemos acreditar logicamente também que, para um Cristianismo de amanhã, novo, mas verdadeiro e espiritual, trabalhem e produzam mais aqueles pioneiros condenados do que os conservadores e perfeitos ortodoxos. E quem sabe tenha Deus confiado justamente a esses pioneiros a dura e perigosa tarefa de realizar esse progresso, de modo que o próprio catolicismo, quando os tempos estiverem maduros e uma reforma for indispensável, já encontre um plano não improvisado, uma doutrina mais evoluída, para espiritualizar-se, a fim, de tornar-se, com as outras religiões afins o verdadeiro Cristianismo, isto é, aquela religião de substância, concebida pelo Cristo, e à, qual ainda não chegamos. Ele disse: “Amai-vos uns aos outros”, e não “condenai-vos uns aos outros em meu nome”.

   

Esta fusão de ânimos, no terreno religioso, é um dos maiores aspectos daquele Amor evangélico, que é a síntese dos ensinos de Cristo.

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Mas, o amor ao próximo assume também outros aspectos. Trata-se de superar, na compreensão reciproca, as divergências e as lutas, mesmo em outros campos. Estudamos o problema da pacificação no terreno religioso. Estudemo-lo agora no terreno prático da produção e distribuição econômica de nossa sociedade. Dissemos, pouco atrás, que o que mais importa é “tornarem-se bons e honestos os homens de todas as religiões”. Desenvolvemos a primeira metade do tema. Desenvolvamos, agora, a outra.

Sejamos práticos e positivos. Todos, teoricamente, desejariam ser bons e honestos. Mas, os homens de todas as religiões querem, antes de tudo, viver, e que vivam também suas esposas e seus filhos. É por isso que lutam e, se não são bons e honestos, é porque, para viver, eles se põem a escorchar o próximo. E quanto mais a família é sadia e compacta, mais representa ela um castelo bem defendido contra todos. Quanto mais o chefe é forte e hábil, melhor sabe ele cumprir o dever de defender sua esposa e filhos, e mais essa família é um carro armado, de assalto e defesa, contra as outras famílias, como cada nação o é contra as outras nações. Ora, é evidente que a máxima evangélica do "ama a teu próximo", neste mundo, é totalmente utópica. Demonstra-o o fato de que ninguém, ou quase ninguém, a aplica completamente. Reduz-se ela, assim, a um desejo piedoso, a uma afirmação teórica, a um sentimentalismo mais ou menos hipócrita. Mas, então, por que Cristo quis fazer e transmitir essa afirmação? Seria Ele, talvez, um sonhador, que não conhecia as condições reais e as exigências de nossa vida?

Não. Cristo não se colocava fora da realidade da vida, ignorando suas leis e pedindo o impossível. Se estas são, inegavelmente, as condições atuais do homem, ainda imerso no plano biológico animal, esse mandamento exprime a lei de um plano biológico mais alto, que o homem terá de atingir e, começando a praticá-lo e a aprender, dessa  maneira, uma nova norma de vida, ele deve preparar-se desde agora para entrar naquele plano. As leis da vida mudam, relativamente ao grau de evolução que se atingiu. A lei feroz da luta pela seleção do mais forte é lei em nosso plano animal, em que os seres não se conhecem uns aos outros. Encontram-se num estado caótico em que o indivíduo está sozinho, com suas forças, contra todos. É lógico que a natureza, a esse nível, premie o mais forte. Neste mundo ainda não nasceu o novo homem civilizado do futuro, o homem orgânico das futuras grandes unidades coletivas. Esse novo homem colabora com o. próximo e suas atividades e, ao invés de colidir com ele, coordena-se; ao invés de tender a destruições mútuas na luta, soma para o bem de todos, com grande vantagem para o bem de cada um.

O atual e egoístico esmagar-se reciprocamente seria considerado, numa sociedade mais evoluída e menos ignorante das leis da vida, uma estupidez, devido a forma mental atrasada, e isto porque é, antiprodutivo e antiutilitário para todos, inclusive para o indivíduo. Ainda estamos longe de uma verdadeira civilização inteligente. Em nossa humanidade ainda prevalece a selvageria; ela sobrevive devido ao fruto do passado bestial, o instinto e até o gosto de matar. Os jornais, o cinema, a televisão, os romances populares estão cheios de histórias de delitos, que o público lê e vê com alegria, ao invés de olhá-los com horror. Isso revela uma forma mental confusa, que não podendo satisfazer-se com os fatos, por medo do código penal, satisfaz-se com a imaginação. Essa presença de gostos ferozes explica-se como uma sobrevivência do passado, em que, na rivalidade da luta pela vida, o extermínio de quem estava fora do próprio grupo representava sinal de vitória portador de bem-estar. É por isso que, para os mais involuídos, a ideia da destruição do próximo está ligada à ideia da alegria de viver. Encontram-se no polo oposto do Evangelho, que quer inverter completamente as posições. Se se compreendesse quão grande revolução biológica o Evangelho quer operar não nos maravilharíamos ao verificar que, em dois mil anos, apenas muito pouco se fez, como realização sua na vida do homem.

É bem difícil a tarefa e bem árduo o trabalho que o Evangelho tem de levar a termo, para transformar esse tipo biológico e transportar essa animalidade feroz e egoísta até à margem oposta do “ama a teu próximo”. Há dois mil anos que se prega, ou, seja, que se procura fixar, com a repetição, no cérebro humano, essa nova ordem de ideias. Mas, a realidade, que justamente se procura modificar, é diferente. O passado resiste ou ressurge a cada passo. Desse contraste entre os dois princípios diversos, que buscam conquistar o campo das atividades humanas, nascem as acomodações, as hipocrisias, as revoltas a que as religiões se amoldam. E, assim, pode transformar-se o Evangelho em mentira. Trata-se de mudar a natureza humana nela induzindo uma persistente correção do passado, através de atividades opostas. Com a repetição destas, até o surgimento de hábitos, através dos automatismos, tal como se domesticam animais, nascerão novos instintos, em lugar dos velhos. Mas, á dureza da vida, imposta pela luta, e as necessidades materiais não cessam; o assalto da defesa e do ataque está sempre pronto para reduzir a pó a máxima evangélica: “ama a teu próximo”. É verdade que ela pertence ao futuro. Por isso, em nosso mundo, ainda aparece como um absurdo, como algo impraticável.

O Evangelho seria belo se fosse praticado por todos, porque então a reciprocidade do sacrifício pelo próximo torná-lo-ia compensado. Mas, onde não existem essa reciprocidade e essa compensação, o cordeiro, que e o único a amar no meio de um bando de lobos, acaba sendo simplesmente despedaçado e eliminado. Sem dúvida, aquele que, sozinho, for o primeiro a viver num mundo como este, cento por cento, o Evangelho, não pode deixar de ser um mártir. Por isso, o homem começa a vivê-lo em porcentagens mínimas, mas, assim mesmo, elas já penetram e se enxertam em sua natureza inferior e a modificam um pouco. O progresso é uma conquista laboriosa e só pode realizar-se por etapas. O Evangelho é uma inversão tão grande da bestialidade humana que, se a ela fosse aplicado integralmente, de uma só vez, destruí-la-ia e, com isso, destruiria a única forma de vida que o ser inferior possui. É necessário, primeiro, fazer evolver esse tipo biológico, ensiná-lo a viver num plano mais alto, de modo que, no Evangelho, ele não só continue a viver, mas encontre melhor forma de vida, mais vantajosa.

A vida quer durar de qualquer maneira e rebela-se contra quem a queira sufocar. Jamais se deve sufocara vida. Ora; é mister compreender que o Evangelho não é contra a vida Ele é apenas contra a bestialidade que domina a vida, cujo desenvolvimento ele não atrapalha, mas encoraja a levá-la a um plano evolutivo mais alto. Trata-se de ser mais inteligente, para compreender a enorme vantagem, para todos, de viver segundo o Evangelho. Observei certa vez, passarinhos prisioneiros numa gaiola. Evidentemente, todos sofriam. Mas, ao invés de procurar juntos um caminho para a fuga, que teria sido fácil se eles o tivessem compreendido, viviam a bicar-se uns aos outros. Assim, para vencer uma pequena partida, um contra o outro, perdiam a partida maior se todos se unissem. É assim que o homem age. Tal como aqueles pássaros, ele sabe fazer apenas o que lhe dizem os instintos e, assim, por falta de inteligência, acreditando vencer a partida, para ganhar a menor, perde a maior. Todo defeito reside no fato de que o homem, usando o raciocínio do indivíduo isolado, não vai além dele, e não sabe servir-se do raciocínio do homem orgânico, que vive em função da coletividade. Assim, os homens, lançando uns a culpa nos outros, permanecem todos fechados na gaiola da própria ignorância e sofrem igualmente essa prisão. Cada um sempre espera bondade e virtude do outro, e não de si mesmo; começa sempre pelos próprios direitos, e não pelos próprios deveres. "Sim, amemo-nos uns aos outros", dizem; “mas, se eu for bom, os outros se aproveitam disso; se fico qual cordeiro entre os lobos, eles me despedaçam. Então, tenho interesse em ser lobo cada vez mais, para despedaçar até mesmo os lobos". Assim procuram todos agir e o nó da ferocidade, da luta é do contínuo perigo cada vez mais se aperta em redor do pescoço de todos. E, por isso, a humanidade permanece imersa num pântano de atribulações. Bastaria querer sair daí, porque o monte está bom próximo e todos podem subi-lo. Mas, é preciso fazer o esforço de galgá-lo, e isso ninguém quer fazer, porque viver o Evangelho é árduo sacrifício para o atual tipo biológico, que pertence a outros planos de evolução. E o homem não quer fazer o esforço de evolver. Mas, se esta é a razão pela qual vive, ele deverá realizá-lo. O Evangelho é a Lei do futuro e é fatal que a humanidade tenha de atingi-lo um dia.

Como se vê, o problema do "ama a teu próximo", se for concebido, como muitas vezes se faz, só como um ato de sentimentalismo, permanece fora da realidade. Ele faz parte da evolução. O progresso é um fenômeno complexo que, para realizar-se, requer o amadurecimento de muitos elementos diferentes: psicológicos, econômicos, científicos, sociais. Aquela máxima evangélica envolve com ela outros problemas, até mesmo práticos. Permanecendo cada qual apegado ao próprio egoísmo, constrange os outros a ele também permanecerem apegados. Forma-se, assim, uma culpabilidade e responsabilidade coletivas, que arrastam todos ao mesmo báratro de atribulações. O trabalho para se chegar a viver o Evangelho é árduo e complexo. Mas, é verdade também que, ao lado de todos os outros instintos, o homem também tem o instinto do progresso, que visa a melhorar suas condições. Além disso, estão ai seus atuais sofrimentos e nada há como o sofrimento para despertar a inteligência. Dessa forma, poderá começar o homem a compreender como dirigir seu insaciável desejo de subir, ou seja, subir inteligentemente na direção indicada pelo Evangelho. Também existe a solução em curso, que cada vez mais se vai realizando, de muitos outros problemas paralelos, como o da justa distribuição da riqueza e o da elevação do nível de vida por meio do progresso científico. Tudo concorre, até mesmo a solução de muitos problemas, até agora considerados, insolúveis, do conhecimento, para melhorar as condições de vida, diminuindo sua ferocidade e aspereza, abrindo as mentes e os corações para uma melhor compreensão recíproca.

Realizar-se-á, assim, a grande transformação, por etapas. Como foi abolida a escravidão, também mediante providências sociais estatais será abolida a miséria; desse modo, como cada indivíduo, pelo nascimento, tem direita a liberdade, assim terá direito àquele mínimo que lhe é indispensável para viver, embora mesclado com o dever do trabalho. Serão inauguradas novas formas de vida social e, no seio dos novos sistemas, poderá amadurecer melhor o indivíduo. A vida opera suas transformações biológicas por etapas. O interesse coletivo disciplinará cada vez mais o desordenado interesse individual. O mais vasto egoísmo da unidade coletiva circunscreverá e reabsorverá sempre mais em si o limitado egoísmo individual. O poderio e as vantagens da organização social vencerão a anarquia do indivíduo rebelde. Isto, por etapas, até que seja eliminado o egoísta absoluto, para o qual a justa medida do dar e do receber é - "tudo para si e nada para os outros”. Ao longo dessa estrada de subida, o homem poderá ir verificando os benefícios da disciplina, porque a ordem, a qual deve ele esforçar-se por obedecer, volta a ele depois, da parte: dos outros, como reciprocidade, com vantagem para si. Dessa forma ele verá quão melhor poderá viver, mesmo como indivíduo, num» regime de ordem do que num regime de caos. Na floresta, o homem poderia gozar de modo absoluto aquela liberdade que tanto lhe agrada. Mas, ele prefere viver na cidade, onde normas numerosas limitam aquela liberdade. Isso porque a liberdade da floresta inclui lutas e perigos, que desaparecem nas cidades, onde lhe são ofertadas outras utilidades antes desconhecidas.

A maior recrudescência da luta, o que mais nos mantém afastados do amor evangélico, é o assalto das necessidades materiais. É verdade que não basta havê-las satisfeito, com o bem-estar, para que se tome o homem espiritualizado. Mas, também é verdade que não se pode falar de coisas espirituais a um faminto, nem dizer que é preciso sacrificar-se pelos outros a quem precisa de tudo. O problema do amor evangélico é, portanto, também um problema econômico. O amor é bem difícil entre famintos, que precisam lutar por obter o próprio alimento. O homem quer a satisfação concreta de suas necessidades e não se satisfaz com sentimentalismos teóricos. Nem com estes, nem tampouco com guerras e revoluções se criam meios. Para elevar o nível econômico, o meio positivo é o trabalho para produzir maiores frutos. Com uma distribuição diferente, da pouca riqueza total existente, poderão alguns melhorar mas, no conjunto, o nível de vida geral permanece baixo. Então, será melhor uma sociedade na qual sejam todos mais ricos pelo fato de todos trabalharem e produzirem, ainda que aí não seja a riqueza distribuída com toda a justiça, do que uma sociedade em que esta é distribuída com justiça, mas todos são pobres, porque ninguém trabalha nem produz.

No terreno prático, o "ama a teu próximo” é um problema de distribuição equânime de direitos e deveres. Dado que do nada, nada pode nascer, é evidente que, para poder alegar direitos contra o organismo coletivo, é necessário realizar em seu favor todos os deveres próprios. Para receber é preciso dar. Sem dúvida, o instinto do primitivo é o de tomar sem dar, e. nisso ele ainda faz consistir a sua sabedoria. Tal procedimento pode ser utilitário e produtivo num regime de caos, em que o indivíduo está sozinho, num ambiente hostil. Esse sistema todavia, torna-se antiutilitário e contraproducente num regime de ordem, em que o indivíduo necessita de completar-se com todos os outros, cada um especializando-se numa função diferente, numa sociedade orgânica. Nessa sociedade, o indivíduo que quer vencer subjugando com a luta, não encontra mais lugar, e o homem atual seria aí eliminado. Nessa sociedade a honestidade de todos é a primeira condição da vantagem e do bem-estar de todos. O trabalho deverá criar um produto genuíno e o mercado deve oferecer uma mercadoria não falsificada, pois doutra forma o dinheiro só poderia comprar enganos e perderia seu valor para todos. Quem rouba o próximo, nada dando em troca do valor que apanha, rouba a sociedade humana de que faz parte e assim acaba roubando também a si mesmo. Com este sistema, desvaloriza-se o poder aquisitivo da moeda, vão à falência as nações e arruinam-se os povos. Em tal sociedade, os finórios que acreditam ter vencido enganando o próximo acharão um exército de outros finórios como eles, e a vida se tornará para todos uma peleja feroz, até que enganadores e enganados cairão todos na mesma ruína. Mas, o homem atual está tão alucinado por sua exclusiva vantagem imediata que não compreende a impossibilidade de ele considerar-se única vítima; e assim sendo, tantos impulsos iguais, todos somados no mesmo sentido, não podem deixar de levar todos ao mesmo desastre. O mal reside na ignorância absoluta das leis da vida ou no fato de pensar-se que elas podem ser violadas impunemente. Conclusão: são necessários, para que o homem compreenda como deve comportar-se, os sofrimentos que ele mesmo busca; e são até poucos diante daquilo que ele provoca e merece.

"Ama a teu próximo" será o conceito-base das sociedades futuras mais evoluídas. Nestas, a riqueza será uma função social nas mãos dos dirigentes, para o bem de todos, e não um meio de vantagem exclusiva e egoística. Nesse novo mundo o poder político ou governo será uma missão a desempenhar, com a tarefa de guiar os povos para seu bem e progresso, e não o fruto de feroz luta contra os rivais para conquistar uma posição de domínio, apenas em seu benefício egoísta. Nossa sociedade está nos antípodas do "ama a teu próximo". Vive-se hoje o princípio oposto: “esmaga teu próximo, antes que teu próximo te esmague". Nossa evolução emerge do caos, que é o nosso passado, mas caminha para a ordem e a harmonia. Em nosso planeta e dentro de nós existem todos os recursos para fazer da Terra um jardim, e de nós, anjos. Deus nos deu todos os meios, mas o esforço de procurá-los, desenvolvê-los e utilizá-los com conhecimento, deve ser nosso. O desenvolvimento da sensibilidade e da inteligência nos levarão a compreender a tremenda estupidez da fraude, da exploração, da violência, tanto em guerras como em revoluções, e a grande importância da honestidade, da paz e da colaboração. A evolução consiste, sobretudo, na reorganização do caos. A passagem para a fase do “ama a teu próximo” faz parte dessa reorganização. Reorganização do caos do ambiente externo de nosso planeta, e também de nosso mundo interior, ainda tomado pelos instintos elementares e pelas trevas da ignorância.

   

Eis a diagnose do mal e o remédio para curá-lo. Procuremos, todos nós, introduzir em nossa vida a maior dose percentual de Evangelho que possamos suportar. Aplicá-lo todo, cento por cento, imediatamente, requer a força dos santos. Mas, comecemos por etapas, procurando aumentar as doses à proporção que aumentarem nossas forças. Será esforço, mas certamente, poderemos fazê-lo, quando temos consciência da nossa participação na grandiosa obra de regeneração da sociedade humana, fazendo evoluir da animalidade para a verdadeira civilização. Seremos os pioneiros dos grandes continentes inexplorados do espírito. Espalhemos a cada momento, em redor de nós, atos de sinceridade e de bondade. As vibrações de cada movimento jamais se perdem e alcançam distâncias inimagináveis. E, com o tempo voltarão para nós em forma de bênçãos e de benefício próprio. “Quem faz o bem o faz a si mesmo e quem faz o mal a si mesmo o faz”. Comecemos tendo a boa vontade de fazê-lo. Não procuremos justificar nossa preguiça, dizendo que essa subida é muito difícil; nem escapar às nossas responsabilidades, jogando a culpa sobre os outros. Principiemos cultivando nossas virtudes, e não exigindo-as do próximo. Procuremos amá-lo, ao invés de importuná-lo, salientando-lhe os defeitos. E não lhe peçamos que faça os sacrifícios e esforços que achamos demais árduos para nos.

Não nos esqueçamos de que não estamos sós. Quem se encaminha por essa estrada não pode deixar de ter o auxílio de Deus, Que ajuda a todos nos esforços de realização da Sua Lei. Deus dirige o grande caminho da evolução, através do qual atrai todos os seres a Si, Deus dirige a. História e o desenvolvimento do progresso humano, voltado para novos tipos de civilização, em que o espírito dominará. Os homens de boa vontade serão arrastados pela torrente da onda histórica, que lhes valorizará o esforço, fazendo-os alcançar resultados inesperados.

Não nos espantemos pelo fato de que agora nos achamos no fundo da descida da onda da evolução, isto é, em pleno período involutivo, expresso pelo materialismo. Quem conhece a estrutura do fenômeno sabe que a descida preludia o progresso na direção do alto e que, brevemente, no início do novo milênio, nos espera uma reação fecunda e construtiva, de renovação espiritual. Seu resultado será o nascimento de novo tipo de civilização, a nova civilização do Terceiro Milênio, em que o espírito triunfará e a matéria será sua escrava. Nessa civilização, o Evangelho não será apenas pregado, mas vivido, inclusive pelas instituições sociais. É, pois, a própria natureza do presente momento histórico que, como nunca, torna atual a aplicação do mandamento de Amor evangélico, porque rapidamente se avizinha o dia de tornar-se realidade a palavra que Cristo lançou como Sua maior recordação e seu maior ensinamento:

"AMAI-VOS UNS AOS OUTROS COMO EU VOS AMEI".

O caso da Revolução Francesa e o verdadeiro jogo da vida.

Procuraremos agora explicar melhor os conceitos do capítulo precedente, observando-os quando aplicados a um caso concreto, o caso clássico da Revolução Francesa. Examinemos a natureza e os movimentos das forças que lhe deram origem.

Luís XIV foi rei absoluto. Ele dizia: "L‘etat c‘est moi" ("O Estado sou eu"). Hoje isto seria considerado tirania. Porém, ninguém no seu tempo o considerou tirano, enquanto que como tal foi chamado o meigo Luís XVI, tão ecônomo para si e amigo do povo. Por que razão ninguém reclamou contra Luís XIV que era tirano e todos reclamaram contra Luís XVI que não o era? O primeiro não foi julgado tirano porque tinha o poder da força e da inteligência. O segundo foi chamado tirano porque era simples e fraco. Luís XIV, que quis chamar-se "le Roi Soleil" ("o Rei Sol"), usou o poder na forma que, era mais adaptada tanto para si como para seus súdit9s, a do nível de evolução atingido por todos eles naquele tempo. A forma mental nesse nível é o egocentrismo e o rei não podia ser senão a expressão mais completa dessa forma, o modelo da psicologia então vigorante, isto é, o exemplo máximo do individualismo egocêntrico. Para cumprir a função de cuidar do seu povo, era necessário que ele o considerasse como sua propriedade, porque nesse nível evolutivo o homem não sabe superar o seu egocentrismo e por isso não cuida de coisa alguma que não seja a sua própria. Dada essa forma mental, aquele rei não podia fazer seu trabalho senão em função do seu orgulho pessoal. E o seu povo, que tinha os mesmos instintos, compreendeu e aceitou o rei dominador, como coisa natural. De fato, nesse nível, ao mais forte pertencem todos os direitos e, por virtude da sua força, ele merece respeito. Por outro lado, os povos não tinham consciência coletiva alguma e, se o rebanho não recebesse seu chefe à força, por imposição, conforme as leis naturais, as ovelhas não possuíam conhecimento algum para escolhê-lo.

O eco do poder de Luís XIV sustentou o reinado vazio de Luís XV, por lei de inércia, por força do impulso recebido. A classe dos vencedores na luta pela vida tinha de gozar os frutos dos seus esforços. Mas, esgotou-se seu crédito e eles, no ócio, se tornaram seres inúteis. A vida, porém, não admite os seres inúteis e preparou-se para liquidá-los. Foi um reinado em descida, em que a grande Versalhes apodreceu na dissipação. Aqui começa a emborcação das posições. Enquanto a aristocracia perde virtude e força nos prazeres da vida, o povo, no sofrimento, conquista inteligência e energia para rebelar-se. E, cheio de desejo, olhando de longe a bela festa, vai se preparando para a revolta. Temos assim dois movimentos opostos, pelos quais o nível da força descia de um lado e subia do outro. Enquanto o povo ignorante, no sofrimento encontrava o estímulo para desenvolver suas qualidades de luta, os dominadores no gozo requintado encontravam o entorpecente que adormecia suas qualidades vitais. Tudo foi, assim, automaticamente preparado durante o reinado de Luís XV.

Quando subiu ao trono Luís XVI, tudo estava quase maduro e esperava somente a oportunidade para estourar. A classe dirigente estava completamente apodrecida e o rei era um campeão de fraqueza. Dos dois vasos opostos, um se tinha enchido e o outro, esvaziado. O próprio Luís XV tinha intuído isso, quando dizia: “Après-moi, le déluge” (Depois de mim, o dilúvio). E o dilúvio chegou.

Vemos, então, aparecer aquele que o povo chamou de tirano: um homem sobretudo bom, que teria sido um ótimo pai de família, um rei que pensava ser o pai do seu povo. Para não derramar o sangue do povo, ele afastou de Versalhes os batalhões na hora em que mais precisava de defesa, porque a multidão estava próxima a chegar a levá-lo com a família para Paris, onde iria encontrar a morte. Este era o tirano. Mas os tempos estavam maduros. A injustiça dos abusos da aristocracia e do clero havia sido cometida e agora era necessário saldar contas e pagar a dívida perante a justiça da Lei. Eis, então, a História atingindo seu objetivo: lança na boca do povo esse rei manso para que seja mais fácil devorá-lo. Se estivesse reinando Luís XIV, que não possuía apenas muito orgulho, mas também poder, que não tinha apenas egoísmo, mas também habilidade política e militar, o povo teria encontrado um osso duro demais para roer e, perante a força, teria achado justo tudo respeitar. Seria absurdo proclamar direitos, quaisquer que fossem sua necessidade e seus sofrimentos. A injustiça sempre existiu, mas só foi reconhecida como tal agora, quando a fraqueza do governo permitia ao povo tomar-se proporcionalmente forte para impor com a força sua própria justiça.

Eis o verdadeiro jogo da História, e o exemplo se repete todas as vezes que a vida se encontrar nessas condições. Um direito é considerado tal somente quando quem o sustenta possuir os meios para realizá-lo. Mas, o sofrimento encontra-se pronto para fornecer ao homem, por reação, esses meios, desenvolvendo ele na luta suas qualidades. Bondade, caridade, compreensão recíproca, aparecem só em níveis superiores de vida.

Qual foi então o resultado de todo esse movimento de forças aqui observado?

1)  O povo deu provas de ter aprendido a lição na escola de seus chefes, repetindo seus métodos para dominar. Esse método continua sendo repetido, numa escala sempre maior, até hoje.

2)    Os povos saíram da menoridade, começando a dirigir-se por eles próprios, aprendendo a eleger bem ou mal seus chefes, experiência nova, apta a desenvolver uma consciência coletiva e novas formas de inteligência.

3)    O sangue da aristocracia não foi derramado em vão na Revolução Francesa. A lição ficou e ensinou muita coisa ao mundo de então, para que não caísse mais nos mesmos erros. A lição faz ver que os abusos são perigosos, porque depois, por compensação, a injustiça e a dívida têm de ser saldadas. Dessa vez também, o mestre que ensinou a lição foi a dor. Hoje, semelhantes abusos não seriam mais possíveis. Tais privilégios da aristocracia e do clero seriam hoje um absurdo.

É verdade que o homem, no fundo, permaneceu o mesmo: a burguesia substituiu a aristocracia, procurou imitá-la, como está pronto a imitá-la o proletariado, que hoje quer substituir-se à burguesia. Mas, semelhantes excessos de egocentrismo em favor de grupos particulares e em forma legalmente reconhecidas, hoje não seriam mais possíveis. Torna-se cada vez mais inaceitável a concentração dos benefícios da vida nas mãos de poucos, que para si os subtraem aos outros. A moderna tendência coletivista e igualitária procura estender a um número sempre maior de indivíduos as vantagens que antes ficavam concentradas só em favor dos vencedores. O mundo progride, assim, para a justiça social, a igualdade, o altruísmo, as formas de vida organizada, coisas que pertencem a níveis evolutivos mais adiantados.

Vemos aqui, mais uma vez, funcionar a Lei, na sua maravilhosa sabedoria. A cada erro corresponde, também no terreno social, uma lição de sofrimento para que o erro não se repita. Assim, o mundo automaticamente tem de progredir. Cada lição representa uma dura experiência, que não é fácil esquecer. Ter experimentado as consequências do abuso representa o melhor meio para tirar a vontade de repetir o abuso. Desse modo, o homem aprende a não olhar mais para a vantagem imediata, de que foi vitima, e aprendo a ver mais além das aparências, além de suas ilusões psicológicas, e apercebe-se da necessidade de levar em conta, também, o bem-estar do próximo, porque o problema da felicidade não se pode resolver isoladamente, só para si.

Tudo o que vivemos não fica escrito só na História, mas também em nos mesmos. A dor tem o poder de fincar em nós um marco indelével. Desse modo, o homem vai entendendo cada vez melhor a inviolável estrutura da Lei, pela qual, como já tantas vezes dissemos, quem faz o bem ou o mal o faz a si mesmo. Tudo volta à fonte, com um movimento de forças semelhante ao das forças do espaço curvo, cujas leis parecem vigorar também no terreno da moral. Encontramo-nos, assim, perante um princípio de curvatura universal, verdadeiro em todas as dimensões e níveis de existência. Parece que em todos os planos, cada impulso tende automaticamente a voltar à fonte de onde partiu e este seja um dos princípios fundamentais da Lei. Assim, a teoria científica do espaço curvo concorda com esta aqui apresentada e a sustenta, teoria que se poderia chamar de moral curva. Em ambas não haveria deslocamentos em sentido absoluto, mas só relativo. Diríamos: movimentos só aparentes, como os das ondas do mar, nas quais não há deslocamentos de água, mas uma espécie de vibração fechada em si mesma, num contínuo movimento de retorno. Da mesma forma os movimentos da conduta humana seriam uma espécie de vibração fechada nesta lei de retorno; pela qual cada impulso nosso nada desloca a não ser nossa própria natureza, recebendo sobre si o que quis lançar fora de si. E assim se vai experimentando, amadurecendo e evoluindo. Neste capítulo quisemos observar como o princípio da curvatura da moral se verifica também no terreno social da coletividade humana. Por isso, podemos concluir: não somente para o indivíduo é verdade que quem faz o bem ou o mal o faz a si mesmo, mas também para as diferentes classes, camadas ou grupos sociais.

Com esta técnica maravilhosa superam-se todas as tentativas humanas de injustiça, pois acaba sofrendo na própria carne quem, para seu bem-estar, esmaga os outros; de igual modo, recebe o bem merecido, pelo motivo de ter feito bem ao seu próximo. Com esta técnica cada vez mais o ser está constrangido, automaticamente, a realizar a justiça da Lei, subindo da injustiça para a justiça, da desordem para a ordem, da luta entre egocentrismos rivais ao estado orgânico da humanidade civilizada. O processo é sempre o mesmo O homem tem de experimentar os dolorosos efeitos da injustiça, da desordem, do egoísmo, para chegar a compreender que o mais proveitoso para si mesmo é que se realizem a justiça, a ordem, o altruísmo.

Há um movimento na sucessão histórica das revoluções, ordenado como o das ondas do mar. Cada urna sustenta e impulsiona a outra, num movimento comum que as liga todas num mesmo processo. Acontece, pois, que, enquanto haja camadas inferiores exigindo justiça por se encontrarem esmagadas pelas superiores, estas não terão paz e terão de defender-se das contínuas tentativas de assalto da parte das inferiores. Quando nesta luta, estas vencem, então apoderam-se da posição das superiores, e tomam o seu lugar gozando das mesmas vantagens, mas sujeitas aos mesmos perigos e cometendo os mesmos erros. Têm, então, de pagar a mesma pena porque enquanto houver um homem explorado por outro, o primeiro procurará saltar-lhe em cima para tomar seu lugar de domínio. Trata-se tão-só de posições diferentes, que os mesmos homens vão ocupando sucessivamente, como a mesma água toma as diferentes posições das ondas em movimento. A Lei é uma só para todos e cada um tem de aceitar as vantagens, os perigos e os esforços que a posição de cada um implica. Em posições diferentes, todos estão cumprindo o mesmo trabalho, de fazer experiências que, embora diferentes, levam ao mesmo objetivo - o de evoluir.

Nesse rodar de posições e respectivos trabalhos, e na série das vantagens e abusos escalonados ao longo do caminho das comuns experimentações, na compensação entre tantas injustiças diferentes, realiza-se a justiça da Lei, pela qual tudo se paga e todos têm de aprender a mesma lição através das mesmas experiências. O universo é unidade na variedade, em que uma infinita multiplicidade se coordena em harmonia, regida por uma lei geral. Assim, as inúmeras injustiças particulares pelas quais cada um paga o que deve, coordenam-se realizando a justiça universal da Lei. "Quem estiver sem pecado, atire a primeira pedra". Mas, quem é que está sem pecado e não tem de pagar alguma dívida à justiça da Lei, sofrendo o que ele, às vezes, chama de injustiça? Esta é a verdadeira justiça que abrange a todos, está acima de todos, pela qual todos têm de pagar, perante a qual todos somos iguais. Eis como, pela Lei, foi realizada e sempre existiu a verdadeira igualdade, hoje em vão e tanto almejada pelas classes sociais em luta.

Agora podemos compreender o significado de tudo isso e o que está acontecendo. Acima de todas as rivalidades do formigueiro humano, permanece resplandecendo a sabedoria da Lei, invisível, poderosa, inflexível, sempre presente. Nela tudo se compensa, se coordena, se resolve. Eis a conclusão.

Por que o mundo não seque o método da não-resistência? Para que ele funcione é necessário merecer a defesa da Lei. Não adianta pedir justiça quando estamos praticando injustiça. A Divina Providência.

Explicamos no capítulo precedente o significado, a razão profunda e as vantagens do método da não-resistência sustentado pelo Evangelho. Terminamos nossa conversa com esta pergunta: Por que o mundo ainda não compreende a utilidade deste método de vida e não o segue? Observemos agora as razões deste fato.

O    sistema do Evangelho, poder-se-ia dizer, funciona a longo prazo por ser de longo alcance. O sistema do mundo, pelo contrário, funciona a curto prazo e é de curto alcance. Isso é lógico, porque neste segundo caso, tratando-se de um plano de vida menos evoluída, tudo nele é mais limitado no tempo e no espaço. Isso também corresponde à forma mental do homem prático, que percebe só de perto, como os míopes, e se julga positivo e adaptado à realidade porque enxerga só as coisas concretas e os efeitos imediatos. Esse tipo de homem tem pressa de algo realizar, porque seu mundo é o caos, e no reino desorganizado da desordem nada de duradouro se pode construir, só há luta sem certeza alguma do amanhã. Esse homem está fechado na sua psicologia de nível sensório e por isso cheia de ilusões nas quais acredita cegamente; ele ainda não possui a inteligência de nível especulativo, que possa orientá-lo com o conhecimento das causas primeiras e do funcionamento orgânico do todo. Por estas razões, o mundo não pode ainda compreender a utilidade desse novo método de vida que aqui explicamos e, por conseguinte, não o pratica.

Mas, não o pratica também por outra razão. Nas mãos do homem comum, o método do Evangelho não funciona, porque ele não sabe fazê-lo funcionar. Para que isso seja possível, é necessário a execução de todas as condições estudadas e indispensáveis. Para que, em relação a nós, possa funcionar a Lei da justiça, é preciso antes de tudo nos coloquemos dentro da justiça desta Lei e não fora dela. Isso quer dizer: com nossa inocência merecemos a defesa da Lei, mas com nossa culpabilidade merecemos que a Lei nos golpeie. Para poder reclamar justiça é indispensável viver no terreno da justiça. A Lei não pode funcionar em favor da injustiça. Ora, a Lei intervir para defender quem antes merece uma lição corretora, não é justiça, mas injustiça. Este seria, muitas vezes, o desejo do homem. Eis o problema: quando somos atingidos por uma decepção, podemos, porventura, ter a certeza de que ela foi causada somente por quem a provocou? Ou existe uma causa mais profunda: o merecimento do golpe? Se o golpe foi merecido, a Lei terá de intervir contra nós e não a nosso favor.

Para a Lei funcionar a nosso favor é necessário que sejamos inocentes, e que não tenhamos culpas a ressarcir. Mas, quem no mundo se encontra nestas condições? É por isso que o método da não-resistência do Evangelho na Terra é julgado utopia absurda. O homem julga com uma forma mental completamente diferente. O que lhe interessa não é a justiça, mas impor seu interesse com a força. Outra psicologia não pode dominar num plano onde vigora a Lei da luta pela vida. Como pode a Lei defender o ofendido se, por outro lado, ele é um ofensor? Muitas vezes, reagimos contra o ofensor e nos alegramos quando chega sua punição por tê-lo merecido, advinda da própria Lei, que é justa; nesse momento em que estamos pedindo justiça, estamos, na verdade, praticando injustiça, e com isso merecendo punição da própria Lei. Como podemos exigir que os outros nos paguem suas dívidas, quando nós ainda não lhes pagamos as nossas? Como podemos, no banco da justiça da Lei, criar e exigir créditos quando estamos cada vez mais cheios de débitos? Para que possa funcionar o método da não-resistência; é necessário primeiramente termos pago à justiça da Lei todas as injustiças que antes praticamos contra o próximo.

Ao recebermos uma ofensa, em vez de nos dirigirmos ao ofensor, deveríamos falar com Deus e conosco mesmos, para saber onde está a verdadeira causa da ofensa: se ela se encontra dentro de nós, em lugar de se encontrar nos outros. No método da não-resistência o problema está equacionado de uma forma completamente diferente da do mundo; em geral cada um prefere atirar a culpa sobre os outros ao invés de reconhecer-se culpado. Num sistema de justiça tal como é o da Lei, se está nos golpeia, como se pode admitir que a culpa seja dos outros? De fato, se alguém vive de acordo com a justiça e recebe um ataque não merecido, a Lei, por si mesma, pelo seu princípio de justiça, defendê-lo-á, quando ele praticar o método da não-resistência, de modo que a reação não terá mais sentido. Ele já se colocou dentro do equilíbrio da Lei. Sendo justo, para que se realize a justiça, ele tem de ser protegido pela Lei, a qual o defenderá como sendo coisa sua, que faz parte do seu sistema. Só ao mundo pertence o erro de enredar-se no sistema desequilibrado de reações e injustiças recíprocas, num encadeamento sem fim, porque não se pode reequilibrar o desequilíbrio acrescentando novos desequilíbrios. E ao equilíbrio não se pode chegar a não ser pelos caminhos reequilibrastes da não-resistência.

Que acontece, então, quando o Evangelho apresenta ao homem este novo método de vida, o único que pode levá-lo à salvação, libertando-o do mal? Para quem pede a defesa, não da justiça, mas da injustiça, a Lei não funciona. Então, aquele método é loucura e o homem lhe vira as costas. Volta, assim, ao seu sistema, o da injustiça, da força, da luta. Volta às leis do seu plano animal e aos seus instintos inferiores. Recusa-se a fazer o esforço para evoluir e, assim, resolver seus problemas e libertar-se de seus sofrimentos. O mundo não quer aceitar o remédio que lhe foi oferecido para a cura dos seus males. Preferir o próprio dano à própria vantagem, não é maldade, só pode ser fruto da ignorância. Surge a dor, providencialmente encarregada de mostrar que a loucura não está no Evangelho, mas em nós, porque não queremos compreendê-lo.

Reclamamos justiça e não compreendemos que a estamos recebendo, na forma de sofrimento, porque a justiça pedida, muitas vezes, não e senão injustiça, isto é, justiça às avessas e esta só podemos receber em forma de sofrimento. A Lei quer nosso bem e não se pode chegar a ele acrescentando ao mal novo mal. A grande loucura do mundo é querer chegar à justiça pelos caminhos da injustiça. Assim, um regime social toma lugar de outro, mas são todos filhos dos mesmos enganos e violências. Vemos na realidade da vida os resultados desse método A justiça tem de ser absoluta e imparcial, e não consistir numa série de justiças relativas e partidárias, em função de interesses dos que as praticam. A Lei não pode estar sujeita aos egocentrismos individuais ou de grupo. Ela está acima de tudo isso, acima das nossas concepções e lutas.

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Dissemos nos capítulos anteriores que iríamos falar sobre a Divina Providência. Trata-se de um fenômeno parecido com aquele que estamos estudando, sujeito também às suas regras. E nele também muitos não acreditam porque em suas mãos não funciona, por não terem sido satisfeitas as condições necessárias. Então afirma-se que a Divina Providência não existe e, de fato, assim é para eles. Entretanto, ela continua funcionando para outros. Neste caso também se trata de um fenômeno a longo prazo e de longo alcance. A inteligência de muitos, porém, não vê senão o que acontece de um dia para o outro, e o que eles podem atingir com suas mãos. A maioria acredita viver no caos e procura agarrar no momento o mais que pode, não suspeitando que vive num universo orgânico, onde há de tudo, de sobejo e sempre a nosso dispor, se fizermos movimentos certos conforme as normas da Lei. Mas, a inteligência para chegar a esse nível ainda não foi conquistada. Viramos então as costas à Divina Providência, renunciamos a sua ajuda e voltamos às lutas do nosso mundo. Parece loucura que tanta gente tão astuta, espontaneamente renuncie a estas vantagens. Porém é, desse modo se cumpre a justiça da Lei, da qual não se pode fugir. É da justiça:  nada se pode ganhar sem ser merecido.

Já falamos sobre a Divina Providência em nosso livro A Nova Civilização do Terceiro Milênio, Cap. XI. Enumeramos naquele livro as condições indispensáveis para o funcionamento da Divina Providência. São as seguintes:

1)    Merecer ajuda.

2)    Haver, antes de mais nada, esgotado as possibilidades de suas próprias forças.

3)    Estar, de acordo com suas condições, em estado de necessidade absoluta.

4)    Pedir o necessário e nada mais.

5)    Pedir humildemente, com submissão e fé.

Quem quiser aprofundar-se neste assunto em particular, encontrá-lo-á desenvolvido no livro e capítulo já mencionados.

Aqui, vamos discorrer sobre esta grande realidade: a Lei de Deus tudo rege. Procuramos ver as normas que dirigem o mundo moral, reconhecendo nelas a mesma exatidão das leis que regulam o mundo físico e dinâmico. Procuramos, assim, atingir uma orientação a respeito da nossa conduta de acordo com os métodos positivos da ciência, isto é, a lógica e a observação. O que aqui temos exposto satisfaz a razão, porque a Lei é também racional. Nossas afirmações baseiam-se sobre dois pontos fundamentais: 1) Uma teoria geral da estrutura e funcionamento orgânico do universo, da qual estas afirmações representam as conclusões práticas, derivadas daquela teoria. 2) Estas conclusões foram submetidas a controle experimental, isto é, são o resultado, como dissemos no começo, de meio século de experiência, a qual se poderia chamar de laboratório, porque foi vivida no banco experimental da realidade da vida.

Como acontece a todos, que de qualquer maneira têm de movimentar-se e adotar uma conduta, nós também, percorrendo os caminhos da vida, não pudemos deixar de tocar as teclas da Lei, e de receber, através dos acontecimentos, sua resposta. O fato tem o poder de convencer e neles vimos, em verdade, o funcionamento da Lei. Podemos, assim, dar testemunho de que ela funciona, devolvendo-nos o que lhe entregamos, retribuindo-nos conforme o que merecemos. E não podemos acreditar, porque isso seria ilógico e injusto, que essa Lei não venha a funcionar da mesma forma para todos.

Não queremos, com isso impor crença alguma. Convidamos, porém, todos aqueles que se interessarem por estes conceitos, a experimentá-los, por si mesmos, a fim de realizarem, para sua vantagem, a mesma descoberta. Aqui se encontram explicadas as regras do jogo, para serem controladas, verificando-se se são verdadeiras. Nosso desejo não é, de maneira nenhuma, o de espalhar ideias em busca de seguidores. Falamos unicamente porque ficaríamos muito satisfeito se pudéssemos ver também os outros, apesar de se encontrarem no meio deste mundo feroz, obter os resultados maravilhosos, diríamos mesmo milagrosos, de satisfação interior e de sucesso prático, com que a Lei nos respondeu, e que, com a ajuda de Deus, nos permitiu alcançar.

 

Antes de deixar definitivamente o assunto tratado nos precedentes capítulos, queremos acrescentar alguns conceitos que continuam desenvolvendo o tema da Lei, num seu aspecto diferente, isto é, a respeito das consequências da conduta humana no terreno histórico-social da posse do poder e do uso e abuso da função de comando, problema dos mais interessantes para o mundo atual, a demonstrar-nos o alcance universal dessa mesma Lei.

Continuaremos usando o mesmo método dos capítulos anteriores. Quando se trata do problema da conduta humana, é fácil cair no erro comum daqueles que, pregando virtudes, em nome dos santos princípios por eles defendidos, acusam; condenam e se deixam arrastar pelo desejo de perseguir o próximo. Isso é devido, sem querer, ao natural instinto de agressividade que o homem teve de desenvolver na sua luta pela vida, porque esta é a lei do seu plano, levando cada um a esmagar os outros para subjugá-los. Esta é uma das muitas ilusões psicológicas, de que já falamos, e às quais o homem muitas vezes obedece, sem suspeitar de seu papel - ele é apenas seguidor de uma lei do seu nível evolutivo. Como não aproveitar tão bela oportunidade de desabafar o próprio instinto de agredir para dominar, tanto mais quando isto se pode fazer em nome dos mais altos ideais, cobrindo-se do manto das mais nobres finalidades? Por isso, procuramos seguir um método diferente, não é o de condenar, colocando na posição de juiz, método aprovado pelo Evangelho ao dizer: "não julgueis".

Como há pouco dizíamos, nossa tarefa não é a de constranger, porque não possuímos poder nem autoridade alguma. Temos, antes de tudo, de respeitar a liberdade dos outros. Cada um é dono de si mesmo e de fazer algo de sua preferência. Tudo o que podemos fazer é explicar como funciona a Lei de Deus e quais são, para nós todos que estamos nela mergulhados, as consequências dos nossos atos, pois é com estes que cada um automaticamente premia ou condena a si mesmo. O julgamento e execução desses atos estão contidos na Lei e se realizam fatalmente, sem possibilidade de escapatórias. Por isso, não nos cabe julgar. O que podemos fazer é expor o que recebemos como inevitável consequência dos nossos atos, convidando a todos a julgarem a si mesmos.

Como já foi explicado anteriormente, nos caps. 17, 18 e outros deste volume, a Lei permite ao homem, ainda não evoluído suficiente, lutar para chegar ao poder, concedendo-lhe a possibilidade de funcionar com a sua psicologia egocêntrica, a qual lhe permite acreditar que a conquista do poder significa, antes de tudo, uma vantagem para si. Quando o homem, vivendo nesse plano evolutivo, chega ao poder, no mais vasto sentido de forma e domínio social, é lógico e também justo, em seu nível de vida, que ele use sua posição no poder conforme sua forma mental (porque outra ele não possui), isto é, dominando e explorando para tirar proveito pessoal. Esta é a forma mais involuída, usada pelos poderosos, correspondente ao estado primitivo, seja do chefe, seja dos seus subordinados. A Lei permite tudo isto, porque esta é a realidade e a maneira de conceber nesse plano de evolução, plano que ele ainda não conseguiu ultrapassar. Quem alcançou a posição de chefe não a recebeu de graça, mas teve de lutar para chegar até aí, vencendo seus rivais, e teve de enfrentar perigos e fazer esforços para desenvolver sua força e inteligência. Ora, é justa e merecida sua conquista. E a vantagem pessoal usufruída por ele representa a devida retribuição de seu trabalho, a justa mercê que lhe pertence. Se não houvesse esse prêmio, ninguém nesse nível de vida faria o trabalho de conquistar o poder e de desempenhar as obrigações a ele inerentes.

Até esse ponto tudo está bem equilibrado em seu devido lugar. O chefe é o mais forte e mais astuto. Isto, em seu plano, lhe confere o direito de ser chefe. Direito reconhecido, também, pelos seus subordinados, possuidores da mesma forma mental. Mas, até quando dura tudo isso? Se a posição se baseia na força e na astúcia, ela vai durar enquanto houver força e astúcia. O chefe tem de provar isso a todo momento, pois todos os que são dominados e rivais, tendo a mesma forma mental, estão prontos a agredido, para apoderar-se do poder. Todos: estão mergulhados na mesma atmosfera de luta e mesmo se o chefe não quisesse usar esses métodos, os subordinados o constrangeriam. São eles os primeiros a exigirem da parte do chefe esse tipo de poder, muito embora não correspondente à função de cérebro diretor de uma sociedade orgânica, a qual espontaneamente, para sua vantagem, deve reconhecer no seu chefe o cérebro cumpridor de uma função de interesse coletivo. Nos planos inferiores, quando um chefe não mostra sua força, são os próprios subordinados, antes constrangidos à obediência, que o eliminam. De modo que deverá toda hora, dar provas de saber dominar e ser o mais forte.

Esta é a justiça do seu mundo. Neste, um santo não pode ser chefe, porque não pertence ao nível evolutivo da maioria, não possuindo a sua forma mental, nem os métodos de domínio que ela pode compreender e exigir. O método da consciente e espontânea obediência não pode ser entendido e praticado num mundo onde o poder é respeitado, não porque representa uma função, mas porque é defendido somente pela força. Neste mundo, os subordinados obedecem só até quando o chefe possui força para sujeitá-los. Num tal ambiente de luta de todos contra todos, os subordinados, sejam súditos ou criados, ficam à espera de que esta força falte ao chefe. Isto para, ao seu primeiro sinal de fraqueza, tirar-lhe o poder das mãos e apoderar-se da sua posição de domínio a fim de substitui-lo. Usam-se, assim, a mesma psicologia e métodos do plano em que vivem, repetidos por eles próprios, seja na posição de chefes, seja na de subordinados.

Esta é a realidade que se encontra na prática, atrás de todas as teorias. A primeira função do poder é a de demonstrar-se poderoso: Os homens chegaram assim a governar em nome de Deus, intitulando-se representantes d‘Ele, por direito divino, porque Deus é o mais poderoso. Repetimos a pergunta: mas até quando irá durar tudo isso? Temos visto quais são os alicerces sobre os quais se baseia essa posição de domínio. De fato, tratando-se de um plano inferior de vida, quem nele vive não pode deixar de ficar sujeito as ilusões que lhe são relativas. A ilusão consiste no fato de que esse tipo de homem não conhece o jogo que está jogando. Ele acredita que a vitória seja unicamente para sua vantagem. A vitória, porém, é uma miragem sem duração, útil apenas porque o impulsiona à experiência e, assim, ele avança no caminho da evolução. A Lei movimenta estas alavancas para abalar o indivíduo, porque somente a estas ele responde. Acontece que o homem, para conquistar e manter sua posição de comando, para desempenhar compromissos que essa posição impõe, é obrigado a fazer esforços ingentes, pondo em ação suas qualidades, adestrado assim, cada dia mais, sua inteligência.

Como se vê, o jogo real das leis da vida é diferente do que aparece. Em substância, esta é a realidade: a evolução quer ascender de um degrau para outro. Quando o ser atingir determinado nível evolutivo, deve elevar-se ao seguinte. Como acontece isto? Nesse degrau superior a posição de chefe não pode existir para sua vantagem pessoal, mas justifica-se apenas enquanto se torna função de utilidade coletiva, missão social. Para o chefe involuído isso é inconcebível. Se, às vezes, ele chega a sustentar essa ideia, tudo não passa de palavras em que ele não acredita, de astúcia para dominar melhor. Este é o tipo do Príncipe, de Maquiavel. Quem irá ensinar-lhe a nova lição a aprender tal como a evolução exige?

Temos visto como a Lei não se manifesta diretamente. Geralmente, ela intervém, encarrega-se da tarefa outros elementos, a funcionarem como seus instrumentos. Vejamos então o que acontece. O chefe domina os seus subordinados, sujeitos a sua vontade. É lógico: enquanto existam ovelhas inexperientes, sem conhecimento, precisando de pastores, estes aparecem para dirigi-las. Mas, é lógico também que, neste nível, eles apareçam para explorá-las. Isto continuará acontecendo enquanto as ovelhas necessitarem de pastores. Mas, aqueles que ficaram dependentes, possuindo a mesma forma mental, estão ansiosos por imitar seu chefe. Ficam olhando o que ele faz, que eles bem compreendem1 mesmo porque o peso da exploração escravizadora é duro. Entretanto, o sofrimento vai desenvolvendo a inteligência deles. A opressão do chefe se transforma para eles numa escola, na qual os reduzidos à obediência vão estudando para chegar aos mesmos resultados de vantagem atingidos por quem os domina, aprendendo, dessa forma, a usar os mesmos métodos do sucesso: os da força e astúcia.

Assim, os subordinados enchem-se de inveja e cobiça, aguardando um momento de fraqueza do chefe ou qualquer oportunidade que os favoreça para agredi-lo com a força e traí-lo com a astúcia. O próprio chefe não pode estar isento das consequências do seu método, não pode deixar de ficar sujeito as leis do sistema usado por ele, as do plano de vida onde todos vivem, chefe e subordinados. Os comandados estão sempre olhando os defeitos e erros do chefe para tirar proveito, usufruir vantagem, com objetivo de furtar-lhe os frutos da sua vitória, e, por sua vez, vencer, substituindo-o na tão almejada posição de domínio.

A lição foi aprendida através da obediência, na escola onde o mestre era o chefe. Ensinarão agora ao mestre, após terem aprendido pela observação, ao se darem conta do que se existia por trás das teorias do vencer em nome de Deus, do direito e justiça, proclamados a bem do povo e progresso do mundo. Descobriram também uma outra verdade, que é a da luta pela vida, na qual vence o mais forte, posição facultada a qualquer um, bastando dar prova o ser mais forte.

Quando a maioria chega a esse ponto, pelo desenvolvimento da inteligência são derrubadas as barreiras criadas pelo chefe para impedir as revoltas dos seus subordinados, como fé cega, mito, medo do desconhecido ou ignorância. A realidade biológica se desmuda, então, pela dura lei da vida, revelando aos indivíduos que alcançaram entendimento, os direitos que os chefes possuem por terem conquistado em posição através da força e da astúcia. Eles passaram a entender, também, que não poderão ter direito se não souberem conquistá-los com o mesmo método, já conhecido. Inicia-se, então pelo amadurecimento natural, a lenta reação, pressionando o sistema até estourar na revolta, quando os rebeldes passam a imitar os chefes, com relação ao método que os conduzam à vitória.

Vemos, desta maneira, como a Lei automaticamente realiza sua justiça, utilizando elementos diferentes, colaborando todos para o mesmo objetivo, a evolução comum. Assim, se a opressão dos chefes gera a dor nos que a ele estão sujeitos, nestes ela acorda a inteligência que os fará vencedores. Assim, a posição de dominantes e dominados é posição percorrida por todos, para que todos aprendam na mesma escola a mesma lição. Esclareceremos ainda melhor estes conceitos, com exemplos, no capítulo seguinte.

Não-resistência ao mal não quer dizer anulação da justiça. Renunciar à vingança. Perdoar a ofensa. Esquecê-la. Com o afastamento, desligar-se em tudo do ofensor.

O  que temos dito até agora explica e justifica o método da não-resistência pregado pelo Evangelho, chegando, assim, a compreender o seu significado, seus objetivos, a razão de sua existência. Trata-se do método de vida mais adiantado e perfeito que existe. Trata-se do sistema dos que pertencem a um plano de existência superior. Trata-se, como num trabalho de introspecção, de colocar-se perante Deus, examinando nossa consciência, para ver o que de verdade merecemos. O homem é livre para escolher entre os dois métodos, o que prefere, mas não é livre para deixar de aceitar as consequências de sua escolha: 1) O método revela o grau de evolução atingido. 2) O método do mundo, que é o da luta pela seleção do mais forte, está adaptado para desenvolver só a inteligência do tipo biológico egocêntrico, separatista, que vive no plano animal, inteligência de curto alcance, sujeita a todas as ilusões sensórias e psicológicas do ser primitivo, que ignora a verdadeira natureza da vida e a estrutura do universo. 3) O método do Evangelho, que é o da não-resistência, esta adaptado para desenvolver a inteligência do tipo biológico altruísta, unitário, que superou o plano animal e vive na fase da colaboração fraternal dos grandes organismos sociais, nos quais a luta foi banida por ser contraproducente. Inteligência de longo alcance, que chegou a compreender a realidade, além do jogo das ilusões, e pode por isso orientar, com conhecimento, o homem na sua conduta. 4) O método do Evangelho é o único que resolve a luta, o que não sucede com o método do mundo, porque este só gera uma série de ações e reações sem fim. O mundo não pode deixar de aceitar as consequências do método que ele mesmo pratica, que neste caso significa guerra contínua. Parecendo uma triste condenação, a guerra está implícita no sistema hoje vigorante; é uma consequência inevitável da involuída psicologia do homem e da sua respectiva conduta, devida ao seu nível de evolução.

Cristo, com Seu exemplo, realizou na prática o método da não-resistência, que constitui a condenação mais completa ao sistema humano de ataque e defesa. A luta entre Cristo e o mundo representa a luta entre dois planos de vida e tem uma profunda significação biológica no que respeita ao problema da evolução. O Evangelho não tem só um sentido moral e religioso, mas também biológico e social, que a ciência um dia terá de compreender. O homem que chega a pratica o Evangelho entra num plano de existência superior e possui poderes superiores, domina o atual plano humano, ficando acima de todas as suas lutas. Mas, quem continua enganando e esmagando o próximo permanece amarrado ao método da luta e a todos os seus sofrimentos. Para este último, a inteligência especulativa, que procura o conhecimento das causas primeiras, é considerada luxo de sonhadores e perda de tempo, porque o que vale para ele são as capacidades guerreiras, estando o problema da vida está fechado dentro do pequeno mundo da agressão recíproca e da vitória de cada um sobre os outros.

O erro do mundo consiste em ignorar a presença da Lei, não levando em conta um fato tão importante. Assim, quando o homem recebe um ataque, em geral apressa-se a reagir com um contra-ataque, porque julga que não o fazer, perdoando, significa ter de receber e absorver o mal. Mas, nisto só o homem míope pode acreditar, fechado no seu pequeno mundo de lutas, ignorando que vivemos dentro de um todo orgânico, dirigido e dominado pela justiça de Deus. Quem sabe isto compreende que o não reagir não quer dizer ter de absorver o mal, mas que: 1) a reação é um direito que não pertence ao homem, mas só a Lei de Deus; 2) se desejarmos justiça, estejamos certos: a reação da Lei é muito mais poderosa que as reações alcançáveis pelos nossos pobres recursos humanos, isso porque também não há distância de tempo ou espaço que possa paralisá-la; 3) com nossa reação humana não afastamos nem apagamos o mal, a não ser na aparência e provisoriamente, porque, não eliminando sua causa, ele voltará para nós. Com nossa reação, nós geramos outro mal igual, aumentando-o em lugar de apagá4o, atraindo-o para nós em vez de afastá-lo. Assim, quem entendeu o Evangelho, quando fala de não-resistência, não pode julgar o método do nosso mundo senão como errado, apto somente para gerar sofrimentos.

O Evangelho não é um sonho fora da realidade. Pelo contrário, tem uma lógica raciocinal e positiva. Trata-se tão-só de uma realidade diferente, que o homem, por não a compreender, julga errada, como coisa irrealizável. Se o Evangelho não nos impele contra o ofensor, antes nos leva para o perdão, isto encontra sua plena justificação no fato de que a verdadeira causa que devemos combater não é o ofensor, mas nós mesmos, que, perante a Lei, merecemos a ofensa. Se o objetivo tem de ser o de destruir o mal e não o de deslocá-lo de um lugar para outro como faz o mundo, então é lógico e sábio o método do Evangelho, que não nos estimula contra a causa próxima e aparente que é o nosso inimigo, mas, convidando-nos a perdoar-lhe, a entregar tudo à justiça de Deus sem resistência, nos dirige, pelo contrário, para a verdadeira causa, que são nossos erros e defeitos. Só desse modo se pode acertar o alvo, que o mundo até agora não conseguiu. A prova está no fato de sempre destruir inimigos e ainda estar cheio deles.

Então, que deveremos fazer se, na verdade, quisermos encaminhar-nos para um nível de vida superior? O homem comum entrega-se só a defesa que lhe podem garantir suas forças, porque não sente a presença de Deus e não acredita no domínio absoluto da Sua Lei de justiça. Ele acha, por isso, que, se não realizar a justiça, ele próprio, com seus recursos, ela não será feita. Está convencido de que, se praticar o método evangélico de não-resistência, ele acabará sendo vítima de todos. O erro está no fato de acreditar que o direito de realizar a justiça seja função do ser humano e que, sem sua iniciativa está justiça não se cumpre. O homem pode intervir, realmente, não por si próprio, mas só para obedecer à  Lei, quando esta quiser utilizá-lo como instrumento da sua justiça. Mas, que está dependa só do homem é absurdo, porque a Lei é feita de ordem e equilíbrio, e a sua função fundamental é a justiça. Então, praticar o método da não-resistência não quer dizer que justiça não seja feita em favor de quem a merece; apesar de o homem não se defender, nem por isso o transgressor deixará de ter de pagar o que deve pela sua transgressão, porque, caso contrário, não haveria justiça. Tudo o que se faz contra a ordem da Lei tem de ser pago, porque só assim pode tudo ser reconduzido a sua ordem.

Quando recebemos uma ofensa, não somos nós que devemos exigir do ofensor a necessária reparação. Deus, Que é o juiz, necessariamente vai julgá-lo e impor Sua justiça, exigindo o; pagamento da dívida e reconduzindo o transgressor a ordem da Lei. Não devemos achar que, com o perdão, a justiça não seja feita. Melhor para nós será a não-reação, ficando inocentes perante Deus: assim, não teremos dívidas a pagar, porque não transgredimos a Lei. Desse modo, enquanto nosso ofensor fica esmagado pela reação da Lei, nós ficaremos livres e tranquilos, porque, não sendo devedores, por termos perdoado, antes sendo credores, a justiça de Deus, ao invés de nos perseguir, nos defenderá. Eis o método do Evangelho, que nos leva a posição mais vantajosa, em contraposição ao método dó mundo. É erro acreditar que a moral do Evangelho, com suas virtudes, esteja contra a vida. Ela está a favor da vida, mas de uma vida maior, que o mundo ainda não compreende.

Portanto, qual deve ser nossa defesa quando recebermos uma ofensa? Qual é, neste caso, a melhor forma de reagir? Como se resolve o problema da vingança? Com o princípio da não-resistência assistimos à entrada de outras forças no sistema de nossa estratégia de guerra, que nos leva para uma conduta diferente da comum. Quando alguém faz uma coisa injusta contra nós, a grande maioria julga que temos de reagir, e que não é sabedoria, mas loucura, deixar essa reação nas mãos da Lei, que sabe cumpri-la muito melhor. Não será, porventura, nosso desejo o de que haja justiça? Então, se este é verdadeiramente nosso desejo, e não o de praticar outra injustiça maior, ninguém poderá desempenhar melhor do que a Lei, cuja tarefa fundamental é exatamente a da justiça.

Observemos, então, a técnica com a qual se desenvolve esse processo de defesa. Examinemos quais são as condições necessárias para que a Lei funcione e realize em nosso favor essa defesa. Antes de tudo é necessário que renunciemos a vingança. Isto é lógico para quem compreendeu que é muito mais fácil chegar a justiça por intermédio da Lei, que possui poderes maiores do que os nossos. O mundo julga essa renúncia, que nos faz recuar perante o ataque, como fraqueza e covardia. Isso pode ser verdade na lógica das leis que dirigem o plano de vida animal e do homem que a ele pertence. Mas, para quem subiu a um plano mais alto, essa renúncia significa afastar o empecilho ou derrubar a parede representada pela nossa intervenção, que paralisaria o funcionamento da Lei com relação a nós.

Assim, a primeira coisa a fazer para alcançar a justiça, é renunciar a vingança. Só quando tivermos atingido a completa libertação deste liame com nosso ofensor, poderá entrar em ação a Lei substituindo sua ação à nossa. Mas, enquanto quisermos fazer justiça, a Lei respeitará nossa livre escolha, e não intervirá, para não sobrepor um juiz e executor de justiça ao outro. Mas acontece também outro fato: quando tivermos renunciado, na realidade a vingança, e só neste caso, ela se realizará automaticamente, sem nossa intervenção, por intermédio da Lei que, indiretamente, para que a justiça seja feita, tem de cumprir também essa vingança que nela está implícita. Disto se segue que poderíamos afirmar: só se pode chegar a mais completa vingança quando tivermos destruído em nós todo o desejo dela, e; perdoando tudo, não tivermos feito nada para realizá-la, deixando os acontecimentos nas mãos de Deus, isto é, entregues a Lei.

O primeiro passo, então, é renunciar a vingança. O segundo é perdoar a ofensa. Mas, há ainda mais. Embora renunciando a vingança e perdoando a ofensa, podemos ficar com sua lembrança e com o rancor e ódio por ela gerados. Enquanto tivermos dentro de nós a ideia de um direito nosso não satisfeito; ele pertencerá a nós, e a Lei não poderá transforma-lo em direito seu; para tomar nosso lugar na defesa. Para que isto aconteça, é necessário esquecer o problema de exigir justiça para nosso caso particular, porque só assim ele se pode tomar problema pertencente à Lei, que é o da realização da justiça universal. Quando conosco acontecerem essas coisas, podemos ficar sossegados, esperando a automática realização da justiça, o que elimina a necessidade de uma vingança. Neste caso, a realização da justiça terá a vantagem de não representar de nossa parte uma nova injustiça para corrigir a velha, como se costuma fazer no mundo. Com isto, não haverá aumento de nossa dívida, mas será execução de justiça em nossa defesa, na qual o devedor terá de pagar, enquanto, ao mesmo tempo, ficamos inocentes, livres de culpas novas, que depois por nossa vez teríamos de pagar.

O mais importante é ficarmos isentos de qualquer dívida; o segredo de nossa vitória não está na força que possuímos, mas no fato de estarmos limpos de qualquer mancha. Por isso, não devemos ficar ligados ao ofensor, que representa a injustiça, nem sequer por um pensamento de vingança. Quem apenas perdoa, não reage e não exige compensação, mas admite a ofensa e a dívida dos outros a seu respeito. Mas, para que se desloque completamente de nós para a Lei a função da realização da justiça, é necessário não conservar na propriamente nem a lembrança da ofensa nem a do ofensor. Não significa isso que a experiência não tenha de ser aprendida, mas, sim, venha a completar-se no esquecimento definitivo, que é o único que resolve, para que o caso não se repita, e não continue numa cadeia de novas injustiças sem fim. É difícil sair dessa rede, uma vez que caímos nela. A força de injustiças, nunca será possível chegar à justiça, ao passo que, perdoando e esquecendo, se entregarmos tudo à Lei, perante ela ficam de pé e terão de ser resolvidos, em perfeita justiça, o débito do ofensor e o crédito do ofendido. Perdoar não quer dizer que o primeiro não tenha mais de pagar, e que o segundo não tenha de receber. É erro acreditar que o perdão seja para nós contraproducente. Ele representa vantagem, porque liberta quem perdoa de todas as más consequências, ao mesmo tempo que não apaga o débito do ofensor, o qual não tem de prestar contas a um homem (o ofendido), mas ao próprio Deus. Só assim se pode sair do plano da injustiça baseada na força, que é o plano do mundo, entrar no da justiça de Deus, o que para o homem justo representa a melhor posição e vantagem.

Não há dúvida de que tudo isso tem sua lógica e beleza, mas é verdade também que quase ninguém o pratica, julgando-o loucura. A fera também julgaria loucura mudar-se para as nossas cidades, onde não saberia viver. Cada um está adaptado ao seu plano de vida E isto não destrói as vantagens do progresso. Mas, por que o mundo ainda não compreendeu a utilidade desse novo método de vida e não o segue? Quais são as razões? Responderemos a estas perguntas no próximo capítulo.